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Pesquisa de recepcao: investigadores, paradigmas, contribuicédes latino-americanas* Entrevista com Guillermo Orozco** Nilda Jacks*** RESUMO Esta entrevista foi realizada em abril de 1992, na cidade do México, durante a vigéncia da bolsa sanduiche concedida pelo CNPq, para co-orientagao da Tese de Poutorado “Comunicagao e \dentidade Cultural: Recepgao de Telenovela no Cotidiano ional”. Guillermo Orozco - Doutor em Educagao pela Universidade de Harvard, professor titular do Departamento de Comunicagao da Universidade Ibero-Americana Coorde- nador do Programa Institucional de Investigacao em Comunicagao e Praticas Sociais Palavras Chave: investigagao; Paradigmas; Recepcao ABSTRACT This interview occurred in April 1992 in the city of Mexico while the author held aCNPQ scholarship for the purpose of co-advisoring a doctor's thesis entitled "Com- munication and Cultural indentity: Reception of Television Soap Operas in the Region's daily lie" Guillermo Orozco is Doctor in Education, by the University of Harvard, professor "titular" in the Department of Communication of the Ibero-Americana University and coordinator of the Institutional Programm of Investigation in Communication and Social Practices. Key words: Research; Models; Reception RESUMEN Esta entrevista ha sido realizada en abril de 1992, en la ciudad de Méjico, mientras duraba la “beca sandwich", concedida por el CNP a. para la orientacién de la Tesis de Doctorado, cuyo titulo es "Comunicacion y Identidad Cultural: Recepcién de la Telenovela en el Cotidiano Regional". Guillermo Orozco: Doctor en Educacién por la Universidad de Harvard, profesor titular del Departamento de Comunicacién de la Universidad Ibero-Americana y Coordenador del Programa institucional de Investigacion en Comunicacién y Practicas Sociales. Palavras clave: Investigacion; Paradigmas; Recepcion * Esta entrevista foi realizada em abril de 92, na Cidade do México, durante a vigéncia da bolsa sanduiche concedida pelo CNPQ, ‘para co-orientag&o da Tese de Doutorado “Comunicagdo e Identidade Cultural: Recepgao de telenovela no cotidiano regional. ** Guillermo Orozco - Doutor em Educagao pela Universidade de Harvard, professor titular do Departamento de Comunicagto da Universidade Iberoamericana ¢ Cootdenador do Programa Institucional de Investigag40 em Comunicag&o Praticas Sociais. *** Professora da Faculdade de Comunicagdo Social da Universidade Federal de Santa Maria 2 INTERCOM - Rev. Bras, de Com, S. Paulo, Vol. XVI.n* 1, pig. 22-89, janvjun 1993 Nilda - O atual estdgio dos estudos de recep¢&o comporta diversas linhas de investigag&o. Poderiam identificd-las juntamente com suas por- postas tedrico-metodolégicas? Orozco - E uma pergunta bastante extensa. Creio que atualmente hé uns 6 ou 7 distintos modelos tedrico-metodolégicos para investigar a recep¢do. Uma delas, "usos sociais", trata de verificar 0 que fazem as pessoas quando véem televisdo ou escutam radio ou Jéem jornal. O que fazem com a informag4o, como a usa para a sua vida didria. O modelo do "consumo cultural" , apesar de nfo ter uma proposta muito detalhada de tipo metodolégico e instrumental, tem uma concepgdo bastante acabada. Em parte obtida em correntes marxistas sobre consumo, mas acima de tudo, originalmente, conceitualizou e elaborou um entendimento da recep¢o e da intera¢4o com a cultura em geral,com bens culturais distintivos do modelo. Esta conceituagao entende que todos consumimos nao s6 pro- dutos materiais, mas também produtos simbdlicos. Ent&o, reine produtos materiais como os museus e todas as exposigdes de objetos, assim como mensagens, interpretacdes, simbolos de toda a cultura e da vida didria. Outro modelo é 0 da "mediag&o miultipla", com o qual trabalho, que trata de entender o processo de recepg4o0 como um modelo que nao é linear, claro, e muito menos univoco, sen4o que se d4 em varias diregdes e sofre a interven¢Zo e o condicionamento de uma série de situagdes do contexto cultural, politico, histérico, etc. A “etnografia" que trata de descrever com muitos detalhes o que passa na interagao de algum meio e com as mensagens de comunicacao. Este modelo esta ligado aos estudos realizados pelo francés Michel De Certeau sobre a vida cotidiana. Isto é, entende sobretudo que a recepgdo é parte de uma série de atividades e pensamentos que tém as pessoas em sua vida cotidiana, que com o passar do tempo vdo integrando e processados estes contetidos pelos receptores. Estes s&o alguns dos principais modelos, mas me referiria a um mais, que é do "jogo", que ainda n&o se desenvolveu conceitualmente. Diferente- mente do modelo "consumo cultural", este modelo é uma proposta muito técnica e instrumental, para ver como se apropria um grupo de receptores de algum significado para o "jogo", para uma atividade concreta. Apesar de nio haver desenvolvido uma conceitualizag&o maior, pode ser tomado como uma perspectiva de apropriagdo de mensagens através do jogo, como um derivado do modelo dos "usos sociais". Alguns deste modelos centram-se nos processos de recepg4o e outros no produto da recepgao. N - Em termos de proposta integral teérico-metodolégico, quais se apresentam mais desenvolvidos? O- A Altima ("jogo"), por exemplo, é fundamentalmente uma meto- dologia para observar a aproptiago das mensagens massivas, mas nao desenvolveu muito a parte conceitual. O "consumo cultural" é um modelo que se desenvolveu bastante teoricamente, mas metodologicamente utiliza os instrumentos da pesquisa INTERCOM - Rev. Bras. de Com.,§, Paulo, Vol. XVI n? 1, pig. 22:93, janfiun 1993 23 de mercado e outras técnicas que podem ser consideradas universais, ou seja, podem serutilizados por qualquer tipo de investigac4o. Nao tem método préprio. A “etnografia" é¢ uma metodologia muito completa que tem bem equilibrada a parte conceitual com a técnica, como a observacdo participante. Tem afinal um aparato metodolégico muito importante e desenvolvido. Quanto 4 "mediagdo miltipla", esté em processo de consolidar-se. Conduz equilibradamente os dois aspectos, ndo como técnicas unicas, quer dizer, préprias, distintas de qualquer outro tipo de técnica, sendo quanto as estratégias de como observar, e que elementos tomar em conta para entender 0 processo global de recepgdo. Neste sentido sim, tem uma metodologia que s&o os "cendrios", as "comunidades", etc., que ddo uma racionalidade ao estudo ¢ a observagdo da recepgdo. N- A outra questo que ew gostaria de abordar é sobre a produgdo da América Latina. Quais os principais aportes que a investigacao latino-ameri- cana tem dado ao conjunto de estudos de recepg40? O- Eu teria dividas em afirmar que modelos so totalmente originais na América Latina. Creio que hé alguns que s4o realmente produg&o latino- americana ¢ outros que sdo combinagées de estudos de outras regides. para responder esta pergunta, primeiro tem-se que ter em conta que é muito facil ver os aportes e avangos das investigagdes feitas em outros lugares. S40 mais conhecidas simplesmente porque tem maior divulgac4o e funcionam de uma forma bem sistem4tica. H4 muita gente trabalhando nos EUA e Inglaterra, continuamente publicando seus avan¢os e continuamente desenvolvendo o mesmo modelo de investigacao. E tem uma repercussdo enorme, porque é lido em todo o mundo. A América Latina pouco-chega a este nivel de difusdo e esta é uma das razdes pelas quais ndo se vé qual é realmente as aportagdes da América Latina no contexto internacional. isto ndo quer dizer que nao ha. H4 contribuigdes importantes, mas nao h4 um didlogo entre o que se esté fazendo na América Latina com 0 que se est4 fazendo em outras latitudes, simplesmente por um problema de idiomas e pela dificuldade de difus&o e do que se esté fazendo aqui. O outro problema é que muitos dos latino-americanos que estio trabalhando em investigagao formaram-se fora da América-Latina. Martin Barbero, por exemplo, formou-se na Bélgica, eu nos EUA e na Europa, Garcia Canclini formou-se também na Europa. E muito dificil dizer até onde a formag4o é somente latino-americana e até onde foi tomado um pouco de tudo e integrada a partir daqui. Melhor seria apontar o que foi integrado pela América Latina e a partir dai o que surgiu de novo para aaportag4o mundial. Eu creio que conseguimos integrar uma investiga¢ao critica sobre os MCM em geral e sobre a recep¢do. Uma investigacdo critica que néo é exclusiva da América Latina, mas que aqui foi dado uma énfase no desentranhamento da proposta ideolégica das. mensagens, por exemplo, ou das distintas atitudes e necessidades dos recep- tores frente aos meios. Por razdes histdricas, culturais e de defesa de nossa identidade tivemos que dar maior peso e maior investimento a investigacio critica que a investiga¢do, por exemplo, para inovagées técnicas. Esta é uma 4 INTERCOM - Rev, Bias. de Com., 8, Paulo, Vol. XVI, ni 1, pg. 2283, janfun 1993 aportacdo importante, um pensamento critico sobre os meios de comuni- cagdo, que se estende a recepcfo. Porém outro lado, eu creio que ha contribuigdes que so originais na América Latina, no que diz respeito 4 recepcdo: Uma € 0 estudo da telenovela, isto é, 0 estudo de um produto que é originalmente latino-americano. A telenovela é como o drama da vida, como um catalizador do que sucede na vida cotidiana, algo que originalmente comegou a ser escrito na América Latina. Pela importéncia que tem neste continente e que é muito estudado. Noutros paises estudaram outros géneros, por exemplo, as noticias, as comédias etc. Na América Latina isso nfo se estudou tanto, mas teve uma contribuigdo original que foi o estudo das telenovelas, n4o importando o tipo de metodologia, o estudo foi original. A outra foi o estudo das mediagées. A contribuic&o de Barbero, no nivel tedrico, sobre as mediaces e como a cultura media a comunicacio, creio que € uma aportagdo ao nivel mundial original de um latino-americano, apesar de estudar na Europa e de nfo ter nascido aqui. No nivel metodolégico, o modelo das mediagées, eu sinto que é uma integragao que também constitui uma aportagdo latino-americana, no sentido que n&o ha investigacdes que enfoquem exclusivamente as mediagdes, nem foi operacionalizada em ne- nhuma metodologia, esta conceituacao. Uma outra contribuigao importante da América Latina é a educacao para os meios, que se desenvolveu em outros paises antes do que na América Latina, mas h4 uma perspectiva latino-americana de educag&o para os meios, que da énfase na leitura critica e sobretudo em tomar a leitura dos MCM como elementos de conscientizacéo dos grupos marginalizados da so- ciedade. A contribuig&o espec{fica da América Latina é em utilizar este modelo, ou esta idéia geral para a educagdo para os meios como um elemento de conscientizag30, de tomada de consciéncia dos problemas em grupos marginalizados. Na Europa e EUA se trabalha com as criancas que est&o na escola ou com grupos de profissionais do ensino que s&o classe média, mas ndo com grupos que est&o marginalizados. Inclusive o Brasil, em torno da UCBC, que comecou com a idéia religiosa das "comunidades de base", e que pouco a pouco foi se tranformando até chegar a um programa muito mais polftico: tratar de comunicar a consciéncia de classe a partir da assisténcia dos programas e da andlise dos conteiidos radiof6nicos e televisivos. Eu creio que esta é uma contribui¢Zo muito importante da América Latina, a investi- gacdo das necessidades, das aspiravdes e expectativas que os setores margi- nalizados da populacao tém. No Chile, por exemplo, a investigag&o das ambic¢des e as visdes dos telespectadores, as demandas educativas que formulam os camponeses e as mulheres a TV etc, € uma énfase muito latino-americana que constitui uma contribuigdo importante. N-No contexto que acabas de analisar, poderias localizar teus estudos sobre as Mediacdes Miltiplas ¢ teus referenciais tedricos? O- Primeiro vou contextualizar um pouco como nasceu esta proposta de Mediagdes Miltiplas. INTERCOM - Rev, Bras, de Com. S. Paulo, Vol. XVI, pdg. 22-93, janjun 1993 ce) Quando eu fazia meu doutorado, frequentava uma Universidade na qual o modelo importante era o "condutivista", por um lado, e por outro, o modelo de “usos e gratificagdes". Tinha ainda um grupo que havia criado a série Vila Sésamo. Os criadores desta série eram professores da Faculdade de Ciéncias da Educagdo da Universidade de Harvard. Entdo a visdo domi- nante para entender as influéncias de um programa de TV na educag4o era tratar de fazer programacao educativa, mas se deixava de lado toda a programacdo que ndo é educativa, para estudar os efeitos educativos da programago educativa. E eu vinha com toda a formagdo latino-americana onde para mim era importante a pesquisa critica da audiénciae no a pesquisa meramente funcional da audiéncia para os objetivos de uma produgdo. Ent&o eu me confrontei com uma visio dominante e toda a minha aprendizagem nesta escola foi muito dialética, pois se eles diziam X eu tratava de demons- trar o contréario. E foi por estar "brigando" continuamente que consegui ir perfilando uma forma distinta, em contraposigdo a deles. E tem sido como uma caracteristica de tudo que tenho feito. Quando eu escrevo, sempre trato de argumentar como se tivera implicitamente um interlocutor/leitor que cré na posi¢do contréria, entdo eu trato de convencé-lo de minha posi¢ao. E é um pouco por isso, pois ‘eu tive que estar argumentando e con- vencendo aos meus professores , néo de que eles pensavam diferente, mas que a maneira que eu pensava era racionalmente coerente, distinta da deles, mas respeitdvel no sentido de que tinha sua propria forga. Isso, por um lado, define muito o modelo que eu concebi. Por outro lado, me parecia que havia que abandonar o modelo tradicional "dos efeitos" (usos e gratificagdes) e comecei a buscar referentes nos "Estudos Culturais" europeus, sobretudo da Inglaterra. Foi justamente na busca de argumentagao contra os produtores da Vila Sésamo, que encontrei esta linha muito rica de estudos e conceituagdes, cujo principal inspirador foi Raymond Willians, que j4 morreu, mas que inaugurou o pensamento sobre os MCM a partir da cultura, antes ainda que Martin Barbero. So estudos muito a inglesa, muito localizado na Inglaterra, mas de qualquer maneira foi um referente muito importante para mim. HA outro autor muito importante na mesma linha de estudos culturais, mas mais "aterrizado" do que R. Willians, o investigador jamaicano Stuart Hall, que vive em Londres e que fundou a Escola de Birminghan (Centro de Estudos Culturais de Birminghan). Ele realmente deu corpo 4 teorizagdo de R. Willians e todos os teéricos ingleses que tiveram interesse de vincular os MCM com a cultura. Entio, os trabalhos da Escola de Birminghan foram para mim os referenciais iniciais de todo o desenvolvimento teérico-conceitual. O trabalho de Barbero nado conhecia até 1976, quando saiu seu livro, que levei para os Estados Unidos antes de escrever a versdo final de minha tese. Entdo eu lie me pareceu que havia muitas coincidéncias, ainda que ele tomasse a parte mais macro-social e movimentos sociais. Mas sem divida, eu ja n&o podia integrar, pois j4 tinha feito a pesquisa, e o projeto estava pronto desde 1985. N&o o levei em conta diretamente para a tese, porque era um pouco tarde, mas a partir daf cada vez mais tenho considerado Barbero ey INTERCOM - Rev. Bras, de Com, $, Paulo, Vol XVI, n® 1, pg, 22-83, jonjun 1993, como referente tedrico. E o que eu tenho tratado de fazer ¢ "aterrizar" algumas coisas dele e dar-lhes uma operacionalizag4o mais na realidade. Nao conhecia o pensamento e os trabalhos de Martin Serrano, até que cheguei aqui na Iberoamericana em 1989 e conheci o primeiro trabalho dele. Paralela- mente conheci uma série de autores, alguns americanos e outros europeus, que estavam trabalhando no que se configurou em uma espécie de escola, que se chama Escola dos Estudos Qualitativos da Audiéncia. Ha um artigo muito importante de um autor que chama Jensen, um autor alem&o que trabalha na Universidade de Copenhagen/Dinamarca - e que é um dos inspiradores desta corrente critica com metodologia qualitativa para os estudos de audiéncia. Também conheci um pesquisador da Universidade da California que chama James Luli, o qual também era quase o Gnico nos EUA que vinha trabalhando com etnografria da recepgdo. E a partir do conhe- cimento destes trabalhos li outros autores ingleses, holandeses, a maioria europeus. Ha australianos como John Fiske e somente dois autores dos EUA ~ James Lull e James Karey - que é 0 outro que est4 na perspectiva critica, tratando de revelar a cultura da comunicacdo, através de estudos de audiéncia. E,sem davida, os investigadores da Universidade de Londres - 0 Centro de Estudos Cinematograficos de Londres - que é uma corrente mais meto- dolégica. Este grupo - "Poder Ativo de Audiéncia" - esté tomando como referente teérico um autor que se chama Anthony Giddens, que é 0 paradigma de sociologia que se chama da reestruturagdo. Ent&o, o referente mais amplo é Giddens com sua teoria de Estru- turag4o, que é distinto do Estruturalismo, Marxismo e Funcionalismo. Fun- damentalmente diz que o que importa € 0 processo e como se vai estruturando a pratica social. Ele é socidlogo e n&o trabalhou com os MCM, mas varios dos que estamos neste grupo, ou que nos sentimos parte da Escola dos Estudos Qualitativos da Audiéncia, estamos tentando vincular os elementos tedricos de Giddens aos Meios de Comunicagdo. Elementos teéricos como “pratica social", "pratica de comunica¢do", "processo de estruturagao", “processo de recepcdo", “proceso de apropriagdo" e o "conceito de agéncia", que nfo € um condutor, é uma atividade reflexiva distinta de uma atividade, tipo reacao. No meu trabalho de doutorado trato de relacionar muito preliminar- mente o conceito de "agéncia" para entender a aprendizagem das criancas frente a TV. E posteriormente, neste estudo que estamos finalizando, tratamos de relacionar mais 0 conceito de "pratica de comunica¢4o", "pratica de me- diacdo", "estratégia de recep¢4o", todos estes conceitos tomados do paradigma sociolégico de Giddens. N ~ Onde localizar os europeus nas linhas de investigagao que anali- saste? Incluem-se nelas, ou na Europa desenvolvem outro tipo de investi- gacdo sobre recepg40? O- N&o. Alguns destes autores como Jensen, por exemplo, se localiza no modelo da "sdcio-semiética". Lull esta mais na "etnografia da recep¢4o". Stuart Hall estaria, talvez, mais no "consumo cultural". INTERCOM - Rev. Bras. de Com. 8, Paulo, Vol. XVI, n# 1, pg. 22-33, jarvjun 1993. ar N-EaEscola de Birminghan? O- Aescola de Birminghan trabalha com varios modelos, Tratam de fazer distintos tipos de andlises com o denominador comum dos Estudos Culturais. A cortente de Estudos Culturais devolve 4 cultura o papel central na vida cotidiana de todos os individuos, diferente do marxismo, que conside- rava a cultura como um reflexo da vida material. Quer dizer, os Estudos Culturais retomam a cultura como lugar central onde se negocia, se apropria, re-apropria, se rechaga, se resiste, aos significados do intercambio social. N - Em que linhas se localizam os investigadores \atino-americanos? O- Com Consumo Cultural trabalha Garcia Canclini, com Etnografia da Recepgao trabalha Jorge Gonzales ¢ o grupo de Colima. Com Usos Sociais trabalha Enrique Sanchez da Universidade de Guadalajara, Barbero e tam- bém Jorge Gonzales. Com Mediacao, creio que apenas eu. E Sécio-Semidtica trabalha Rosa Estér Juarez do ITESO de Guadalajara e Fuenzalida no Chile. Estes seriam os mais importantes. WN - Gostaria de saber em que projeto estés trabalhando, e se podes adiantar alguns avangos teéricos ou metodoldgicos? O - Atualmente estou trabalhando em um projeto que se chama "Préticas de Mediagdes da Familia e da Escola na recepgdo televisiva das criancas", Este trabalho é uma continuacgdo e ampliagado da minha tese de doutorado em varios aspectos: teoricamente, metodologicamente e no nivel de alcance do projeto. Estamos fazendo o trabalho em todas as regides do México, no norte, na fronteira, em Guadalajara e na Cidade do México. Estamos tratando de ver ndo sé as intervencdes, pequenas agdes dos pais e professores com tespeito ao processo de recepg4o dos pais e professores com respeito ao processo de recepgdo televisiva das criangas. Sendo, como vao conformando suas estratégias de recepg4o em casa e na escola, Queremos com este projeto, acima de tudo, ver onde podemos intervir, onde podemos desenhar alguns elementos de educagao para os meios. Para isto temos estes trés atores: pais, professores e criangas. O projeto em si vai concluir com uma série de conhecimentos empiri- cos de primeira mde de tipo qualitativo e que fazem as criangas com a Tv em outros momentos em suas casas ¢ na escola, que fazem os pais e que fazem os professores. Tratamos de articular o conceito de "pratica de mediagdo", tudo o que fazem e€ tudo o que pensam sobre a TV e nfo sé agdes isoladas ou espont&neas. Ea partir daf, esperamos “desenhas" 4 como produto a parte e posterior -algum manual ou guia para pais ou para as escolas sobre como ver TV de maneira diferente e como ensinar as criangas a ver TV de maneiras diferentes. Creio que teoricamente 0 avanco do projeto, por um lado e experimen- tar se é poss{vel combinar metodologia qualitativa com metodologia quanti- tativa. Ou mais que a metodologia em si, a informa¢do obtida quantitativamente com informacdes obtidas qualitativamente. Quer dizer entrevistas, observacao participante, direta, etc. 2% INTERCOM - Rev. Bras. de Com.,S. Paulo, Vol. XVI n® 1, pig. 22-09, jrvjun 1893 E um problema epistemolégico muito grande, por isso tratamos de explorar em que medida podemos ter frequéncia estatisticas, tendéncias, regularidades que podem generalizar-se, com informagdes, que so jus- tamente o contrario disto, ou seja, com as informacées das entrevistas, da observago das familias que sao tinicas, que no se pode generalizar, que nao se pode tirar tendéncias. Queremos ver de que mancira podemos combinar estas duas coisas. Isto se localiza dentro de uma pretens&o, de um objetivo deste grupo internacional de Estudos Qualitativos da Audiéncia, que justamente trata de explorar a combinago e 0 uso do conhecimento qualitativo. Entio, é um experimento de metodologia. Por outro lado, é um experimento também em termos teéricos, porque tratamos de vincular alguns elementos da Teoria da Estruturagdo Social de Giddens diretamente aos processos de recep¢&o das audiéncias. O que estamos conseguindo é como dar corpo a alguns destes elemen- tos como "estratégias de recepg&o", "estilo de recepgdo", que ¢ outro dos conceitos que manejamos, "praticas de recepg4o", "agéncia", que mencionei noutro momento e as "praticas de mediacdo". E pode integrar ao objetivo deste projeto, além da informago empirica sobre o que sucede com as criangas no México, uma teoriza¢do de tipo macrossociolégica, a um nivel de andlise, que permita provar se estes conceitos servem para dar conta de uma série de fendmenos e circunst4ncias no campo da comunicag&o. Quere- mos fazer um pouco de teoria com o resultado desta pesquisa. N- Diante do est4gio atual dos estudos de comunicagao, que reflete o que ocorre em todo o campo das Ciéncias Sociais, ou seja, a debatida crise dos paradigmas, como se colocam os estudos de recepco nesta situagdo de crise? O- Por um lado, a énfase na recep¢fo e nos receptores é vista como uma respostas a énfase que se fez antes na emiss4o e nos meios. Ent&o, justamente pela crise dos paradigmas é que se buscou diferentes fendémenos e diferentes perspectivas para acercar-se, fazer perguntas e obter respostas. Eu creio que todo este interesse pela recepgdo e pela audiéncia ¢ um produto da crise dos paradigmas. Entdo, por um lado € 0 produto de toda esta discuss4o sobre os paradigmas, mas ao mesmo tempo é um produto da confus&o que participa algumas posic¢des com respeito A audiéncia e a recep¢do, porque se foi a um extremo totalmente oposto. Quando se acreditou que j4 nao importava os MCM, o que importava era a mensagem e que os receptores sdo livres para interpreta-la como querem, vo ressemantizar 0 que véem, se foi ao outro extremo. Agora, chegamos ao ponto de equilfbrio. A emissdo nao determina todo ‘0 processo, mas tampouco 0 receptor é totalmente livre para fazer o que quer. H&4 um referente importante na emissdo. Ha ai uma hierarquia de liberdade de interpretag&o, mas nunca é andrquico esta agdo, quer dizer, ha limites nas possibilidades de interpretac4o. Creio que estamos agora saindo deste extremo, os autores que se foram totalmente para 14, estfio regressando um pouco para vincular de maneira INTERCOM - Rev. Bras. de Com.,S, Paulo, Vol. XVI, n* 1, pg. 22-33, janijun 1993 2 mais integrada 0 receptor e o emissor como parte de um processo de comunicagao. Eu creio que atualmente no nivel internacional h4 como cinco grandes perspectivas, Isto que falamos até agora sfo como modelos, mas ha cinco grandes perspectivas, com énfase na Emissdo, Recep¢do, Contetido, Proces- so, e na combinagdo de distintas coisas, quer dizer, a perspectiva integral. So perspectivas que estio inspirando distintos modelos de investi- gagdo e distintas aproximagdes do estudo da recepgdo. Os estudos de contetido cada vez se conectam mais com os estudos de tipo literdrio, andlise de textos, resultando na leitura da TV, diferencas de leitura que fazem diferentes grupos de audiéncia. Os “usos sociais"” se conectam mais com 0 processo de recepgao. O modelo do "consumo" aproxima-se a perspectiva do contetdo e do processo. Por fim, eu diria que muitos dos estudos que se fazem com a Teoria dos Estudos Culturais tenderiam a perspectiva mais integral, que trata de ver nfo s6 0 sujeito do processo mas 0 que estd mais além. E certamente 0 modelo das mediagdes também esté na perspectiva integral, porque trata de ver todo o contetdo, interagdes com os meios, processo, resultado, etc. N-A academia retorna aos estudos de recep¢do, entretanto, o receptor sempre foi o alvo das pesquisas de mercado, porém com um enfoque ptimordialmente quantitativo. Como a academia, que dé énfase aos estudos qualitativos, pode contribuir para mudar a relagdo entre o receptor e os MCM? O - Sempre houve ums tens4o, um conflito entre o que faz a academia com o que fazem os institutos de pesquisa. Eu creio que se requer uma miitua aprendizagem, pois ha um desprezo de ambas as partes. Os académicos desprezam a pesquisa de mercado porque nos parece muito superficiais. Nos parecem que ndo explicam a situacdo, que ndo nos dizem realmente porque acontece o que acontece. E os pesquisadores de mercado nos criticam porque temos pequenos estudos de caso que ndo se pode generalizar, nem servem para tomar decisdes. Eu creio que tem havido muitos estereétipos de ambas as partes e tem havido més pesquisas de mercado e académicas. Geralmente na América latina as pesquisas qualitativas se faziam por que ndo se conhe- ciam as técnicas estatisticas de pesquisa quantitativa, porque se requer um talento especial, uma formagdo e um treinamento, e porque se requer dinheiro eequipe. Entéo as pessoas se dedicavam a fazer elocubragdes ea isso chamavam metodologia qualitativa, e isto é um erro. Isto é simplesmente ma pesquisa. Pesquisa qualitativa eu creio que apenas h4 cinco anos se est4. fazendo seriamente na América Latina. Sao estudos de casos, de multiplos casos, muito rigorosos, com observacées, etnografias, usos sociais, etc., onde se define uma estratégia, uma técnica, se vai a realidade, se fala com as pessoas eobtém informacées de primeira m&o. H4 uma série de regras e justificagdes metodolégicas que permite ir avancando na obteng&o de informacao e isto também requer uma formago especial e as vezes uma formaco ainda maior para saber como fazer uma entrevista. 2. INTERCOM - Rev. Bras. do Com, S. Paulo, Vol XVI 1, pg. 22-33, janjun 1989 Tem gente que pensa que é o mesmo conversar e fazer uma entrevista. Fazer uma entrevista, aprofundar opinides, confrontar o entrevistado, detec- tar as contradigdes, detectar os eixos que v4o unindo o que com 0 que, as prioridades, os Ambitos de significag&o que vio surgindo em seu préprio discurso, é muito complicado. Por isso a partir de qualquer pesquisa académica boa se pode tomar decisdes que afetam a maioria, 0 que acontece é que nao h4 pesquisa qualitativa boa que permita isto. E possivel dizer que. decisies se podem tomar com pesquisas qualitativas e quantitativas. Eu creio que a academia, por outro lado desprezou o Ambito profis- sional em muitos sentidos. Os interesses da academia n&o tem nada a ver, as vezes, com problemas reais que as pessoas querem solucionar. Por isso cada vez mais se deve dialogar com as pessoas que est&o trabalhando com os meios, pois necessitam de pesquisa. Necéssitam saber 0 que acontece com os receptores, como é o proceso de recep¢ao, como se dio as mediagées. N-Tu que trabalhas com criangas, Como utilizar toda esta metodologia para modificar a relacdo delas com os MCM? O- O queacontece é que meu horizonte nfo so os MCM, masa escola ea familia. Quero ter elementos para criar manuais para os pais, professores e criangas. Fazer oficinas de recepg4o, onde as criangas se sensibilizem a tespeito do que acontece quando véem TV, o que acontece com outras pessoas, como podem ver de maneira diferente. N - Qual tua estratégia para alcangar este objetivo? O - Deve ser uma estratégia multipla, igual ao "Modelo Maltiplo”. Temos que atacar por diferentes frentes. O mais importante é pela escola porque a familia é um mundo muito complicado. Mas na escola hé varios nfveis: nivel do Ministério da Educagao, nfvel dos professores ¢ sala de aula e através de grupos como associagées de pais e mestres, etc. Acredito que a estratégia que eu tenho, ¢ que a miiltipla, trata de estar primeiro na escola e através dela chegar a fam{lia, Mas antes deve-se iniciar uma campanha de sensibilizag&o, dizendo que tém-se que levar a sério a TV come elemento que esta af, que tém-se que fazer algo a respeito para aproveité-la melhor, etc. N&o sé para criticd-la e apaga-la, sendo fazer algo para poder interatuar melhor com ela. Sobretudo, uma campanha de sensibilizag&o tem que publicar livros, com uma linguagem suficientemente simples para que chegue aos desti- natérios. Tem-se que conseguir patrocinador, uma instituicao, por exemplo, porque é através das instituigdes, que h4 maior possibilidade de atingir maior repercussdo. Aqui no México ha atualmente dois projetos de educaco para a recep¢do que esto sendo implantados por “funcionérios educativos", a partir do meu projeto. Um aluno meu que trabalha em Toluca apresentou uma tese sobre "O papel do professor como mediador" e o diretor de sua escola est interessado em criar um curso sobre recep¢do, para os professores da escola. INTERCOM - Rev. Bras, de Com, S. Paulo, Vol. XVI, nt 1, pg. 22.3, janjun 1983 at E em Guadalajara a Secretaria da Educaco, através de um aluno meu, est4 fazendo uma pesquisa em todas as escolas do estado para saber o que acontece nas escolas a respeito da TV, como ensinar os professores orientar as criangas para ver TV. Ou seja, so situagdes muito concretas, de pessoas que levam a idéia a instituigdes que podem implantar este tipo de projeto. N ~ Queres acrescentar algo ao que foi dito? O- Creio que o estudo de recep¢o para alguns é uma coisa de "moda", para mim melhor dizendo é um assunto de "modo", de como acercar-se para entender o processo de comunicagao. Agora tratamos de entender este processo no tanto por defini¢des politicas, econémicas nem pelos meios de comunicacao, mas pelas definic¢des culturais e histéricas dos receptores. E outra forma de entrar a quest&o para tratar de entender o mesmo: como se produz a comunica¢do, come se intercambiam significados, como se pro- duzem simbolos, como s&o apropriados, negociados e rechacados. Entre- tanto, é importante dizer que nfo se trata de desconsiderar outras perspectivas @ outros modelos de investigagfo, sendo de ver qual € a especificidade do conhecimente e do entendimento, da compreens4o que nos da fazé-lo através do estudo darecep¢4o. Antes haviamos deixado de lado o estudo da recepcao, o receptor estava sempre em fungdo do emissor, e foi tomado simplesmente como consumidor. Ent&o estuddvamos suas necessidades, seus gostos, para ver de que maneira seriam oferecidos mercadorias e servigos. Agora se trata de, através dos estudos de recep¢do, entender a recepc&o como processo, entender o receptor como sujeito deste processo, entender o meio social deste receptor e ver as possibilidades deste conhecimento para uma democrati- zag&o do processo comunicativo. Apesar de muitos autores atuais nio serem explicitos quanto ao objetivo mais polftico do que académico, ao tratar de organizar a sociedade civil a partir da recepc¢4o e em relagdo aos MCM, treinando-os como receptores a participar e entender os processso de comu- nica¢do, isto é um trabalho fundamentalmente politico. Este enfoque ultra- passa 0 académico e permite ir trabalhando com grupos da sociedade para uma participa¢ao mais democratica, mais além dos MCM. Este é 0 projeto que eu tenho € no qual trato de inscrever meus trabalhos de investigagao, nao s6 como algo estritamente académico, o qual vai ser lido por alguns, senao para obter um conhecimento que me permita devolvé-los a eles mesmos, ou seja, 4 audiéncia investigada, para que possam dar-se conta de sua propria situa¢4o como sujeitos frente 4 recep¢4o e irem potencializando sua capaci- dade de intervengdo, de transformagao e de atuac4o politica. E antes, eu creio que os investigadores criticos tratavam de mudar também os processos de comunicag4o, fazendo-os melhor, mas suas estratégias eram diferentes, era dizer aos polfticos que deveriam criar uma politica de comunicacdo ou criar leis. Ou dizer aos donos dos meios que deveriam fazé-lo methor, que nao deveriam passar tanta pornografia, ndo deveria passar publicidade de bebidas alcodlicas, etc. E nada foi conseguido. A histéria nos faz ver que eram posicdes ingénuas. A posicao de trabalhar com a audiéncia pode ser muito dificil mas nao é ingénua, creio que é justamente a{ que estd a possibilidade 2 INTERCOM - Rev. Bras. de Com.,§. Paulo, Vol. XVI #1, pg. 22-83, Jarvjun 1999 de modificar os MCM. Nao est4 nem nos donos que controlam os MCM - eles buscam lucro, nao vdo modificar nada a menos que lhes dé lucrO- nem t&o pouco nos politicos, que com esta onda neoliberal estdo deixando os meios de comunicaco abandonados. Temos ent&o que ensinar a audiéncia a pressionar. HA casos concretos nos México, como porexemplo, durante as eleigdes os habitantes de Chiuahua vieram ao Distrito Federal para protestar contra a atuagio da TELEVISA que estava informando mal e ocultando coisas que ndo era de seu interesse que fosse divulgado. Fizeram manifestagdes em frente A sede da emissora até que os noticidrios comegassem a dar mais informagSes sobre o que estava realmente passando nesta cidade. Estas so medidas de pressao, isto é o que consegue mudar 0 cotidiano da audiéncia. INTERCOM - Rev. Bras. de Com. 8. Paulo, Vol. XVI, nf 1, pig. 22-83, janfjun 1993 33

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