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20 Os Limites do Conhecimento Filoséfico' Bertrand Russell Tradugao de Tassos Lycurgo” Em tudo 0 que nés dissemos até agora sobre a filosofia, apenas escassamente tocamos em muitos tépicos que ocupam um grande espago nos escritos da maioria dos filisofos. A maioria dos filésofos — ou, pelo menos, muitos deles — professa ser capaz de provar por raciocinios metafisicos a priori coisas tais como os dogmas fundamentais da religiéo, a racionalidade essenciat do universo, a ilustio da matéria, a irrealidade de todo mal, ¢ assim por diante. Nao pode haver diividas de que a esperanga de encontrar razdes para se crerem em teses como essas tem sido a mais importante inspiragao para muitos estudantes dedicarem toda a vida a filosofia. Esta esperanca, creio, é imitil. Ao que parecem, conhecimento concernente a0 universo como um todo ndo é para ser obtido pela metafisica e ndo so capazes de sobreviver a um escrutinio critico as provas que se propdem de que, em virtude das leis da Logica, tais € tais coisas devem existir enquanto outras tais e tais no podem. Neste capitulo, brevemente consideraremos o tipo "A obra da qual se faz a subseqiente tradugdo é a seguinte: RUSSELL, Bertrand. The limits of philosophical knowledge. In: __.. The problems of philosophy. New York: Prometheus Books, 1988. Chap. XIV, p. 141-152. [Primeiramente publicada em 1912 por Home University Library]. Uma outra versio do mesmo texto, disponivel na Internet, é a seguinte: RUSSELL, Bertrand. The limits of philosophical knowledge. ‘Disponivel-—_em: << hip://onww.ditext.com/russellrusl4.html> . Acesso em: 28 jul. 2001. 2 Mestre em Filosofia Analitica (Sussex University) e doutorando em Educacio (UFRN). Principios UFRN Natal v.8 9.10 p.210-219—Julder.2001 de caminho através do qual tal raciocinio € intentado, propésito de descobrir se podemos experar que ele seja vilido, Nos tempos modemos, o grande representante do tipo de centendimento 0 qual desejamos examinar foi Hegel (1770- 1831). A filosofia hegeliana é muito dificil e seus comentadores discordam quanto a sua interpretago verdadeira. De acordo com a interpretagéo que adotarei, que € a de muito comentadores, se no a da maioria deles, e que tem 0 mérito de apresentar um tipo importante e interessante de filosofia, sua mais importante tese € a de que tudo que é menor do que 0 Todo é obviamente fragmentério ¢ evidentemente incapaz de cexistir sem 0 complemento provido pelo resto do mundo. Assim ‘como um anatomista comparativo, a partir de um iinico osso, visualiza que tipo de animal o todo deve ter sido, o metafisico, de acordo com Hegel, visualiza, a partir de qualquer pedago de realidade, o que o todo da realidade, pelo menos em suas linhas gerais, deve ser. Cada pedaco aparentemente separado de ealidade tem, dito desta forma, ganchos que o prendem ao proximo pedaco; este, por sua vez, tem novos ganchos e assim por diante, até que todo o universo seja reconstruido. Esta incompletude essencial igualmente aparece, de acordo com Hegel, no mundo do pensamento ¢ no mundo das coisas. No munde do pensamento, se tomarmos qualquer idéia que seja abstrata ow incompleta, a0 examinarmos, chegaremos a conclusdo de que, se esquecermos sua incompletude, estaremos envolvidos em contradicio; essas contradigdes invertem a idéi para sua oposta, ou antitese; e, para escaparmos disso, temos de encontram uma nova € menos incompleta idéia, a qual sera a sintese da nossa idéia original e da antitese desta. Essa nova idéia, apesar de menos incompleta do que a idéia com a qual comegamos, ainda ndo se mostrari, contudo, totalmente completa, mas se mostraré como uma transigéo para a sua antitese, com a qual ela deve ser combinada para formar uma nova sintese. E desta forma que Hegel avanga até se deparar com a ‘Idéia Absoluta’, a qual, de acordo com ele, nao possui incompletude, nfo tem antitese € ndo tem necessidade de um desenvolvimento posterior. A Idéia Absoluta, portanto, é adequada para descrever a Realidade Absoluta; mas todas as Principios URN Natal v8.10 p.210-219 Julies. 2001 2 idéias inferiores apenas descrevem a realidade tal qual ela aparece para uma visao parcial, nunca como ela é para alguém que simultaneamente contempla 0 Todo. Assim sendo, Hegel chega & conclusio de que a Realidade Absoluta forma um sistema Gnico e harmonioso, ndo no espaco ou tempo, nem em qualquer gradaco do mal, mas que é totalmente racional spiritual. Toda aparéncia contréria, no mundo que conhecemos, pode logicamente ser provada — como acredita Hegel — que € devida a visio fragmentéria que temos do universo. Se vissemos todo 0 universo, como podemos supor que Deus o faz, o tempo e o espago, a matéria e o mal, todas as batalhas ¢ os conflitos, tudo desapareceria e nés, em lugar disso tudo verlamos uma unidade espiritual imutavel, perfeita ¢ eterna. Indubitavelmente, ha algo sublime nessa concepgdo, & qual nés desejariamos render aceitago, Quando os argumentos que alicergam tal concepsio sio cuidadosamente examinados, todavia, eles parecem envolver muitas assungdes nao garantidas assim como muita confusdo. O dogma fundamental, sobre o qual o sistema é construido, é 0 de que 0 que é incompleto no deve ser auto-subsistente, de forma que precise do apoio de outras coisas para sua existéncia. E mantido que o que tem relagdes com algumas coisas fora de si deve manter referéncia com essas coisas exteriores em sua propria natureza, nfo podendo, portanto, ser 0 que de fato é caso essas coisas exteriores no existissem. A natureza de um homem, por exemplo, é constituida por suas memérias e pelo restante de seu conhecimento, por seus amores e aversdes, e assim por diante; desta feita, sem os objetos os quais ele conhece, ama ou odeia, ele nao poderia ser o que é. Ele é, de maneira 6bvia e essencial, uum fragmento: tomado tal como um todo da realidade, seria contraditério em si mesmo. Essa perspectiva geral, entretanto, leva & nogo de ‘natureza’ da coisa, que parece significar ‘todas as verdades sobre a coisa’. Vé-se claramente que uma verdade que conecte uma coisa a outra nao poderia subsistir se essa outra coisa nao subsistisse. Uma verdade sobre a coisa, contudo, nao & parte da propria coisa, mas deve ser, de acordo com uso acima referido, Princpios UFRN Natal v.81 p.210-219 lide. 2001, parte da ‘natureza’ da coisa, Se por natureza da ‘coisa’ nos referimos a todas as verdades sobre a coisa, entdo, claramente, ‘ndo podemos conhecer a ‘natureza’ da coisa a ndo ser que conheramos todas as relagdes da coisa com todas as outras coisas no universo. Mas, se a palavra ‘natureza’ é usada neste sentido, devemos sustentar que a coisa pode ser conhecida ‘mesmo quando niio se conhece a sua ‘natureza’ ou, pelo menos, quando a mesma ndo € conhecida completamente. Quando este uso da palavra ‘natureza’ é empregado, aparece uma confusio entre 0 conhecimento das coisas e 0 conhecimento das verdades. Podemos conhecer uma coisa por familiaridade mesmo se conhegamos muito poucas proposigdes sobre ela — teoricamente, nem precisamos conhecer alguma proposigao sobre ela, Assim sendo, familiaridade com uma coisa nio envolve conhecimento de sua ‘natureza’, no sentido acima usado. E, apesar da familiaridade estar envolvida em nossa cognigéo de qualquer proposi¢io sobre uma coisa, 0 conhecimento de sua ‘natureza’, no sentido que usamos anteriormente, ndo esté envolvido. Conseqiientemente, i) familiaridade ‘com uma coisa ndo envolve logicamente um conhecimento das suas relacdes, ¢ ii) 0 conhecimento de algumas de suas relagdes no implica o conhecimento de todas as suas relagdes nem 0 conhecimento de sua ‘natureza’, usada no sentido jé mencionado. Por exemplo, posso estar tio completamente familiatizado com minha dor de dente quanto completa pode a farailiaridade ser, sem que, para isso, tenha conhecimento de tudo 0 que o dentista (que ndo ¢ familiarizado com minha dor de dente particular) pode me dizer sobre a causa da dor e sem, portanto, conhecer a sta ‘natureza’, no sentido em que j4 usamos essa palavra. Deste modo, 0 fato de que uma coisa tem relagdes ndo prova que suas relagdes so logicamente necessérias. Isto é, do mero fato de uma coisa ser 0 que é, no se pode deduzir que ela tem as varias relagdes que de fato tem. Isto apenas parece se deduzir porque nds jé conhecemos o fato. Segue-se, pois, que nfo podemos demonstrar que 0 ‘universo como um todo forma um sistema harmonioso € tinico, ‘como Hegel acreditava que formaria. E, se ndo podemos provar isso, também ndo podemos demonstrar a irrealidade do espaco, Princpios UFRN Natl v8.10 .210-219 Jide 2001 do tempo, da matéria e do mal, pois isso & deduzido por Hegel a partir do cariter fragmentario e relacional dessas coisas. Somos, ent2o, condenados & investiga¢o parcial do mundo e somos, Portanto, inaptos para conhecer os caracteres daquelas partes do tuniverso que se encontram fora do escopo de nossa experiéncia, Esse resultado, decepcionante como € para aqueles cujas esperangas tém sido acaloradas pelos sistemas dos filésofos, esté.em harmonia com a tendéncia indutiva e cientifica de nossa era ¢ é trazido & tona pela andlise completa do conhecimento ‘humano, que tem ocupado os capitulos anteriores. A maioria das grandes e ambiciosas tentativas dos ‘metafisicos tem procedido pelo intento de demonstrar que tais € tais aspectos aparentes do mundo real sio contraditérios em si €, portanto, nao podem ser reais. Toda a tendéncia do pensamento moderno, nada obstante, tende cada vez mais a mostrar que as supostas contradigdes so ilusérias e que muito poucas podem ser provadas a priori a partir de consideragdes sobre 0 que deve ser. Uma boa ilustrago disso nos é oferecida pelo espago © pelo tempo. O espaco e o tempo parecem ser infinitos em extensdo e infinitamente indivisiveis. Se viajarmos sobre um linha reta em ambos os sentidos, é dificil acreditar que chegaremos a um ponto final, além do qual nada hi, nem mesmo um espaco vazio. Similarmente, se na imaginagao viajarmos para tris ou para frente no tempo, é dificil acreditar que encontraremos 0 primeiro ou o iitimo instante, além do qual nem mesmo um tempo vazio existisse. O espago € 0 tempo, desta feita, parecem ser infinitos em extensio. Mais um vez, se pegarmos quaisquer dois pontos em uma linha, parece evidente que outros pontos entre eles deverdo existir. Por menor que possam ser as distincias entre eles, contudo, cada uma pode ainda ser dividida pela metade ¢ as metades podem ser novamente divididas em suas metades, € assim ad infinitum. Quanto ao tempo, de forma similar, por menor que seja 0 lapso entre dois momentos, parece evidente que havera outros momentos entre eles. Desta feita, 0 espago e © tempo parecem ser infinitamente divisiveis. Nao obstante, de encontro a tais fatos aparentes — a extensio e a divisibilidade infinitas —, hé fildsofos que tém construido argumentos que Princpics UFRN Natl «8 n.10 210-219 Jer. 2001, =as tendem a mostrar que no pode haver colegdes infinitas de coisas © que, portanto, 0 mimero de pontos no espaco, ou de instantes no tempo, deve ser finito, Sendo assim, uma contradigiio emergiu entre a aparente natureza do espaco e do ‘tempo ¢ a suposta impossibilidade das colegdes infinitas. Kant, quem primeiro enfatizou essa contradigao, dela deduziu a impossibilidade do espaco e do tempo, a respeito dos quais ele declarov que eram meramente subjetivos; e, desde a sua época, muitos filésofos tém acreditado que o espago ¢ 0 tempo sio meras aparéncias e ndo caracteristicas do mundo como ele realmente €. Agora, entretanto, devido aos trabalhos dos matematicos, notadamente Georg Cantor, parece que a idéia da impossibilidade das colecdes infinitas foi um engano. Elas ndo so em si contraditorias, mas apenas contraditérias com alguns relutantes preconceitos mentais. Sendo assim, as razdes para se considerarem 0 espago ¢ 0 tempo como irreais tém se tornado inoperantes e, desta feita, pode-se dizer que uma das maiores fontes de auxilio a construgao metafisica deixou de ser Produtiva. (Os mateméticos, todavia, ndo se contentaram em mostrar que 0 espaco, tal como normalmente é suposto, & possivel; eles tarbém tém nos mostrado que muitas outras formas de espaco sto igualmente possiveis, até 0 ponto em que a légica pode mostrar. Alguns dos axiomas de Euclides, que ao senso comum parecem ser necessérios, como assim anteriormente foram supostos set por alguns filésofos, tém agora suas aparéncias de necessidade derivadas de nossa mera familiaridade com o espago real ¢ ndo de algum fundamento l6gico a priori. Ao jimaginar mundo nos quais esses axiomas séo falsos, os mateméticos se usam da légica para se desfazerem dos preconceitos do senso comum € para mostrarem a possibilidade de espagos diferentes — alguns mais diversos, outros menos — do espaco no qual vivemos. Alguns desses espacos diferem tio pouco do espago euclidiano, onde se englobam as distincias que podemos medir, que € impossivel descobrir por observacdo se nosso espaco real é estritamente cuclidiano ou se é um desses de outro tipo. A situagdo, portanto, est4 completamente invertida, Primeiramente, pareceu que a experiéncia deixava um Prncipios UFRN Naw = v.8 10 9.210.219 Julldez.2001 ~216 ‘inico tipo de espago a logica e que esta mostrava que este tipo de espaco era impossivel. Agora, a légica, independentemente da experiéncia, apresenta muitos tipos de espago como possiveis, de maneira que a experiéncia apenas decide parcialmente entre eles. Sendo assim, enquanto rosso cconhecimento do que & se tomou menor do que anteriormente se supunha ser, 0 nosso conhecimento do que pode ser aumentou grandemente. Em vez da existéncia encerrada entre paredes estreitas, das quais cada canto e fissura podiam ser explorados, nés nos encontramos em um mundo aberto de livres possibilidades, onde muito permanece desconhecido, pois tanto hd para ser desvendado. © que sucedeu com 0 caso do espago e do tempo aconteceu, em certo grau, também em outras diregdes. A tentativa de prescrever regras ao universo através de principios @ priori tem se despedagado; a Iégica, em lugar de ser, como antes, um obsticulo as possibilidades, tem se tornado a maior libertadora da imaginaco, apresentando iniimeras alternativas fechadas a0 imeffexivo senso comum, deixando para a experiéncia a tarefa de decidir, quando possivel, entre os muitos ‘mundos que a idgica oferece para a nossa escolha. Sendo assim, ‘© conhecimento concernente ao que existe toma-se limitado ao ‘que podemos aprender a partir da experiéncia — e nfo ao que podemos de fato experenciar, pois, como temos visto, ha muito conhecimento por descricio concemente as coisas das quais nfo temos experiéncia diteta. Mas, em todos os casos de conhecimento por descrico, precisamos de algumas conexdes com os universais, que nos tomar hibeis a deduzir que um objeto é de um determinado tipo a partir de tal e tal dado. Assim sendo, no que diz respeito aos objetos fisicos, por exemplo, 0 principio segundo 0 qual os dados dos sentidos so sinais de tais objetos é, em si, uma conexio de universais. E apenas em virtude desse principio que a experiéncia nos habilita a adquirir conhecimento relativo aos objetos fisicos. O mesmo aplica-se a lei da causalidade ou, para se desencadear 0 que se afirma para © que & menos geral, diz-se que também se aplica aos principios como os da lei da gravidade. Principios UFRN Natal v.8 10 p.210-219 —_Julldez 2001 Principios como os da lei da gravidade so provados, ou melhor, so tidos como altamente provaveis, gragas a uma combinagdo de experiéncia com aigum principio totalmente a Priori, tal como 0 principio da indugao. Assim sendo, nosso conhecimento intuitivo, que ¢ a fonte de todos os nossos outros conhecimentos de verdades, ¢ de dois tipos: conhecimento puramente empirico, que nos informa da existéncia e de algumas das propriedades das coisas particulares com as quais estamos familiarizados; e conhecimento puramente a priori, que nos informa das conexdes entre os universais € que nos habilita a tracar inferéncias a partir de fatos particulares que nos so oferecidos no conhecimento empirico. Nosso conhecimento derivado sempre depende de algum conhecimento puro a priori © usualmente também depende de algum conhecimento genuinamente empirico, © conhecimento filoséfico, st 0 que tem sido dito até entio é verdadeiro, nao difere essencialmente do conhecimento cientifico; ndo ha fonte especial de sabedoria que seja aberta & filosofia e ndo & cincia; os resultados obtidos pela iilesofia no sao radicalmente diferentes daqueles obtidos pela ciéncia. A caracteristica essencial da filosofia, que a toma um estudo diferente da ciéncia, € possibilidade de critica. A filosofia examina criticamente os principios empregados na ciéncia e na vida quotidiana, procura quaisquer inconsisténcias que possam existir entre esses principios ¢ apenas os aceita quando, a0 cabo de uma investigagdo critica, ndo aparece razdes para os abandonar.. Se, como muitos filésofos tém acreditado, 0s rincipios subjacentes as ciéncias fossem capazes, quando descomprometidos com os detalhes irrelevantes, de nos proporcionar conhecimento concernente ao universo como um todo, tal conhecimento teria a mesma sustentagio em nossa crenga da qual desfruta 0 conhecimento cientifico; mas nossa investigacdo nao nos revelou nenhum conhecimento desse tipo; , portanto, no que diz respeito as doutrinas especiais dos audaciosos metafisicos, esta investigagdo tem tido um resultado predominantemente negative. Mas, no que conceme a0 que seria comumente aceito como conhecimento, nossas conclusdes tém sido majoritariamente positivas: como resultado de nossa Princpios UFRN Nal v8 10 p. 210-219 ‘lider, 2001, as possibilidade de critica, temos raramente encontrado razdes para rejeitar tal conhecimento e ndo vimos motivos para supor que o homem é incapaz de possuir o tipo de conhecimento que cle geralmente acredita possuir. Quando, todavia, falamos da filosofia como sendo um mecanismo de critica do conhecimento, faz-se necessério se impor certas limitagdes. Se adotarmos a atitude do completamente cético, colocando-nos totalmente fora do conhecimento ¢, desta localizago exterior, pedindo que nos compilam a retomar ao circulo do conhecimento, estaremos requerendo 0 que € impossivel. Nosso ceticismo nunca podera ser refutado, pois toda refutagdo deve comecar em alguma fatia de conhecimento que seja compartilhada pelos que disputam; de uma davida vazia, nenhum argumento pode ter inicio. Desta feita, a critica do conhecimento empregada pela filosofia nio deve ser deste tipo destrutivo se a aquisigdo de algum resultado é pretendida. Contra 0 ceticismo absoluto, nenhum argumento égico pode ser empregado. Nao ¢ dificil ver, nada obstante, que © ceticismo deste tipo é iracional. A ‘divida metédica’ cartesiana, com a qual a filosofia modema se iniciou, ndo é desse tipo, mas é daquele tipo de atividade critica que declaramos ser da esséncia da filosofia. Sua ‘diivida metédica’ consistiu em se duvidar de tudo que era susceptivel de divida, para que se pudesse, em cada fatia de conhecimento, parar-se € se perguntar se realmente se conhecia aquilo. Este & 0 tipo de atividade critica que constitui a filosofia. Alguns conhecimentos, como o da existéncia dos dados provenientes dos nossos sentidos, parecem um tanto indubitaveis, mesmo que reflitamos calmamente € inteiramente sobre ele. Em relagdo a tal tipo de conhecimento, a atividade critica filoséfica néo equer que nos abstenhamos da crenga. Mas, hé crengas ~ ‘como, por exemplo, as de que 0s objetos fisicos assemelham-se 208 nossos dados provenientes dos nossos sentidos — que s6 nos so mantidas até que comecemos a refletir ¢ que derretem quando submetidas a uma investigagio pormenorizada. A filosofia nos obrigaré a rejeitar tais crengas, 2 menos que alguma nova linha de argumento seja descoberta para amparé- la. Mas, rejeitar crengas que ndo parecem estar susceptiveis a Princpios UFRN Nal v8.10 p.210-219 Jule, 2001 219 objegdes, por mais préximos que nés as examinemos, no razoavel e isto ndo é 0 que advoga a filosofia. Em uma palavra, a atividade critica que se objetiva ndo fade que, sem razies, determine-se que tudo seja rejeitado, mas a que considera o possivel mérito de cada fatia de conhecimento aparente ¢ mantém 0 que, apés uma consideragao completa da matéria, continua a aparentar ser conhecimento. Desde que os seres humanos so faliveis, deve-se admitir que algum risto de erro persiste. Com justica, a filosofia pode sustentar que ela diminui 0 risco de erros ¢ que, em alguns casos, oferece um risco tio pequeno que praticamente pode ser desprezado. Nenhum advogado da filosofia que seja prudente alegaria ter realizado mais que isso, o que é impossivel em um mundo onde equivacos ocorrem. Princpios UFRN Natl v8.10 p.210-219 slider. 2001,

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