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AS MUITAS FACETAS DA ALFABETIZACAO Magda Becker Soares Da Faculdade de EducapSo da Universidade Federal de Minas Gerais Uma verss0_proliminar deste trabatho fol apresentada no XVI Seminirio da Associaeo Brasileira de Tecnologia Educacional — ABT, em Porto Alegre, de 4 a 9 de Novem bro de 1986, RESUMO CConsiderando a multiplicidade de facstas do fendmeno alfabeti- safo, 0 antigo discute algumas das principals perspectives sob {5 quais esse Tendmeno pode ser estudado, agrupando-as 505 {res categorie: 0 conceito da alfabetiznglo, a naturera do pro: ‘costo do alfabetizaglo (aspectot peicologico, pslealingUstic, sociolingUistico @ propriamente lingustico)e o$ condicionantes esse processo “(pressupostos sodkals, culturais politicos). ‘Apontamse as impicapses das diferentes perspectivas para os problemas de método, material diditico, definicso de prbre Quisitos © formagdo do alfabetizador, © detende-ss 9 necessidade cde ums teoria coerente da alfabetiza¢So, que concilie resultados f intogre estruturadamente estudos sobre as diferentes facetas do processo. SUMMARY ‘This article deal with some of the main prospects under which the phenomenon of teaching how to read and write a nstive language may be studied. These prospects involve the mal aspects of the phenomenon itself and group them into three ‘categories: a) the definition of literacy”, b) the nature of this process — psychological, pycholinguistic, sociolinguistic and Hinguistie — and e) the conditioning factors of this process, that Is to say: social, cultural and_ political pressupostions The implications of those prospects are pointed out in order to try to solve problems ab methodology, uso of didactic materials, ‘etting up of the requirements and skill needed by the leomer, ‘raining of teachers. It defends the necesity of coherent theory in dealing with the teaching of Row to read and write ‘native language. Such a theory must not only reconcile the results but alo interact studies azout the aspects of the procoss ina structured form. —— Cad. Pesq., So Paulo (52): 19-24, fev. 1985 19 INTRODUGAO Hé cerca de 40 anos, no mais que 50% (freqdente mente, menos que 50%) das criangas brasileiras conse- quem romper a barreira da 12 série do 19 grau, ou sea, conseguem aprender @ ler ea escrever. Segundo os dados estatisticos (SEEC-MEC), de cada 1.000 criancas que, no Brasil, ingressaram na 12 série em 1963, apenas 449 passaram 8 2° série, em 1964; em 1974 — portanto, dez anos depois — de cada 1.000 criangas que ingressa- ram na 19 série, apenas 438 chegaram a 22 séri 1975. Quando dispusermos de dados semelhantes para 3 década de 80, a situacdo nBo seré diferente, segundo indicam estatsticas que as Secretarias Estaduais de Educagdo. vém apresentando anualmente. Nenhum pro- aresso, nas dltimas décadas. Somos um pais que vem reiincidindo no fracassso em alfabetizacd Quis 2s causas desse fracasso? Muito se tem escrito e pesquisado a respeito do pro- blema. Entretanto, uma analise desses estudos e pesqui sas revelaré uma jé vasta, mas incoerente massa de dados ‘no integrados e no conclusivos. Em primeiro lugar, $80 dados que resultam de diferentes perspectivas do proces 50 da alfabetizacdo, a partir de diferentes éreas de conhe- cimanto (Psicologia, Linguistica, Pedagogia), cada uma tratando a questo independentemente, ¢ ignorando as demeis; em segundo lugar. s80 dados que, excludente ‘mente, buscam explicagio do problema ora no alluno (questdes de sa0de, ou psicolégicas, ou de linguagem), ora no contexto cultural do aluno (ambiente familiar © Vivéncias sécio-culturais), ora no professor (formacéo inadequada, incompeténcia profissional), ora no método (eficiéncia/ineticiéncia deste ou daquele método), ora no material didético (inadequacéo as experincias e interes- ses das criancas, sobretudo das criangas das classes popu- lares), ora, finalmente, no proprio melo, 0 cédigo escrito (a questdo das relacdes entre o sistema fonolégico ¢ 0 sistema ortogréfico da lingua portuguese). Sem divide, no hé como fugir, em se tratando de lum processo complexo como a alfebetizaro, de uma muttiplicidade de perspectivas, resultante da colaboraco de diferentes éreas de conhecimento, ¢ de uma pluralide- de de enfoques, exigida pela natureza do fendmeno, que envolve atores (professores e alunos) e seus contextos culturais, métodos, material ¢ melos. Entretanto, essa multiplicidade de perspectives e essa pluralidade de enfo- ques nfo trar8o colaboracdo realmente efetiva enquanto 1n&o se articularem em uma teoria coerente da alfabetiza- ‘e8, que concilie resultados apenas aparentemente in- compativeis, que articule andlises provenientes de dife rentes éreas de conhecimento, que integre estruturade- mente estudos sobre cada um dos componentes do pro- ‘cesso. Um primeiro pasto nesse sentido seria uma reviséo dessas perspectivas, analises e estudos, de’ modo que se pudesse ter uma visio do “estado da arte” na érea da alfabetizacdo. Naturalmente, este artigo no pretende apresentar essa revis#o, mas apenas apontar algumas das principais facetas do processo da alfabetizaro que vém sendo estudadas € pesquisadas. Embora correndo o risco de ‘uma excessiva simplificacdo, esses facetas seréo equi apresentadas sob trés categories: 0 conceito de alfabe- tizagéo, @ natureza do procesto de alfabetizaréo © os condicionantes do processo de alfabetizacdo. Na Gitima 20 parte, procurar-se-é apontar as implicagées educacionais das diferentes perspectivas, andlises e estudos sobre a alfabetizago: implicardes para a selego e desenvolvi- mento de métodos de alfabetizacSo, para a elaboracdo de material didético, para a definicio de pré-requisitos da alfabetizacdo, para a formacSo do alfabetizador. O CONCEITO DE ALFABETIZAGAO Tem-se tendido, ultimamente, a atribuir um signifi cado demasiado abrangente a alfabetizardo, conside rando-a um processo permanente, que se estenderia por toda a vida, que no se esgotaria na aprendizagem da leitura e da escrita. € verdade que, de certa forma, @ aprendizagem da lingua materna, quer escrita, quer cal, 6 um processo permanente, nunca interrompido. Entretanto, 6 preciso diferenciar um processo de aqui sigdo da I{ngua (oral e escrita) de um processo de de- senvolvimento da \ingua (oral e escrita); este dltimo é que, sem divida, nunca se interrompe. Ndo parece apropriado, nem etimolégica nem pedagogicamente, que 0 termo alfabetizacdo designe tanto 0 processo de aquisi¢do da \(ngua escrita quanto 0 processo de seu desenvolvimento: etimologicamente, 0 temo alfabeti za¢i0 néo ultrapassa o significado de “levar & aquisicao do alfabeto”, ou seja, ensinar o cédigo da lingua escri ‘a, ensinar as habilidades de ler e escrever; pedagogica- mente, atribuir um significado muito amplo ao proces s0 de alfabetizagfo seria negar-lhe a especificidade, com reflexos indesejéveis na caracterizago de sua naturez: na configuracéo des habilidades bésicas de leitura e escrita, na definigdo da competéncia em alfabetizar. ‘Toma-se, por isso, aqui, alfabetizar#o em seu sentido proprio, especitico: proceso de aquisigdo do cédigo escrito, das habilidades de leitura e de escrita. Em relacio ao conceito de alfabetizacdo assim enten: dido, 0 debate bisico desenvolvese em torno de dois pontos de vista que, de certa forma, esto presentes no duplo significado que os verbos Jer'e escrever tém, em nossa lingui 1) Pedro jé sabe ler. Pedro jd sabe escrever. 2) Pedro jé leu Monteiro Lobato. Pedro escreveu uma redagio sobre Monteiro Lobato. Nos exemplos (1), /er e escrever significam o domi: ‘lo da “mecanica” da Ifngua escrita; nesta perspecti alfebetizar-se significa adquirir a habilidade de codi 1 lingua oral em lingua escrita (escrever) e de decodificar a lingua escrita em lingua oral (ler). A alfabetizacdo seria lum processo de representagio de fonemas em grafemas (escrever) e de grafemas em fonemas (ler); "o que o alfa- betizando deve construir para si é uma teoria adequada sobre a relago entre sons ¢ letras na lingua portuguesa” (Lemle, 1984, p. 41). Nos exemplos (2), /er e escrever signiticam apreensio © compreensio de significados expressos em lingua escri +a (ler) ou expresso de significados por meio da Ifngua escrita (escrever); nesta perspectiva, a alfabetizago seria tum processo de compreensio/expressio de significados, “um processo de representaco que envolve substitu Ges gradativas ("ler"” um objeto, um gesto, uma figura ‘u desenho, uma palavra) em que 0 objetivo primordial 6 a apreansio ¢ a compreensio do mundo, desde o que est mais proximo a crianca ao que the esté mais distan- te, visando 8 comunicacio, 8 aquisiqéo de conhecimen- Cad. Pesq. (52) fev. 1985 108, a troca” (Kramer, 1982, p. 62) Métodos de alfabetizacdo podem ser classificados segundo a énfase num ou noutro desses dois pontos de vista; por exemplo: a0 método fénico esté subjacente, fundamentalmente, o primeira ponto de vista; o método global tem como pressuposto bésico 0 segundo ponto de vista. Entretanto, tal como 0 duplo significado dos verbos Jere escrever nfo implica veracidade ou falsidade de lum ou outro significado, assim também os dois pontos de vista sobre 0 conceito de alfabetizaco no implicam veracidade ou falsidade de um ou outro conceito. Sem divide, a alfabetizago € um processo de representaclo de fonemas em grafemas, e vice-versa, mas & também lum processo de compreensfo/expressdo de significados através do cédigo escrito. Nao so consideraria “alfabeti zada"" uma pessoa que fosse apenas capaz de decodificar simbolos visuals em simbolos sonoros, “lendo”, por exemplo, sflabas ou palavras isoladas, como também nic se consideraria “alfabetizada” uma pestoa incapaz de, Por exemplo, usar adequadamente o sistema ortogrético de sua lingua, a0 expressar-se por escrito. Mesmo, porém, que se combinem os dois conceitos — alfabetizacdo como processo de representacio de fone- mas em grafemas e de grafemas em fonemas, ¢ alfabeti- zagio como processo de expressdo/compreensso de signi ficados — é preciso, ainda, lembrar que ambos os concei tos so apenas parcialmente verdadeiros. Em primeiro lugar, a lingua escrita nfo @ uma mera representacdo da lingua oral, como faz supor o primeiro. conceito. Além de apenas em poucos casos haver total correspondéncia entre fonemas e grafemas, de modo que 2 lingua escrita nfo é, de forma alguma, um registro fiel dos fonemas da lingua oral, ha também uma especificida de morfolégica, sintética e seméntica da lingua excrita: ‘ado se escreve como $e fala, mesmo quando se fala em situagdes formais; nfo se fala como se escreve, mesmo ‘quando se escreve em contextos informais. Em segundo lugar, e em relagdo ao segundo conceito, 08 problemas de compreensio/expressdo da lingua escri- ta sio diferentes dos problemas de compreenso/expras- ‘fo da lingua oral: o discurso oral e o discurso escrito ‘organizam-se de forma diferente. Por exemplo: na lingua escrita, & preciso explicitar muitos significados que, na ingua oral, so expressos por meios no verbais (aspec tos prosédicos, gestos, etc.); por outro lado, na lingua coral, a compreensdo 6 contemporinea da expressio, & 1do € possivel voltar atrés, refazer o caminho, em busce de melhor compreensfo, ou de mais adequada expressdo, (dai, entre outros, os recursos de redundancia e de topi- calizagdo na lingua oral). Em seu sentido pleno, pois, 0 processo de alfabetiza ‘edo deve levar a aprendizagem no de uma mera tradu: Bo do oral para 0 escrito, e deste para aquele, mas aprendizagemn de uma peculiar e muitas vezes idiossin critica relagéo fonemas-grafemas, de um outro cédigo, que tem, em relacdo a0 cédigo oral, especificidade mor- folégica e sintética, autonomia de recursos de articula fo do texto e estratégias proprias de expressfo/com- preenséo. Convém, finalmente, lembrar que, embora o debate fem relagSo a0 conceito de alfabetizago se desenvolva predominantemente em torno dos dois pontos de vista, apontados ("mecdnica” da lingua escrita versus com As muitas facetas da alfabetizaggio preensio/expresséo de significados), hd um terceiro onto de vista cuja importancia equipare-se 3 dos dois rimeiros. Esse tercviro ponto de vista, ao contrério dos dois primeicos, que consideram a alfabetizago como um rocesso individual, volta-se para o seu aspecto social ‘2 conceituacdo de alfabetizacdo nfo é a mesma, em todas {28 sociedades. Em que idade deve a crianga ser alfabetiza: da? Para que deve a crianca ser alfabetizada? Que tipo de alfabetizagdo necessiria em determinado grupo social? As respostas a essas perguntas variam de sociedade para sociedade, ¢ dependem das funeSes atribuldas por cada uma delas a Ifngua escrita. Dizer que uma crianga de sete ‘anos “ainda 6 analfabeta" tem sentido em certas socie dades, que alfabetizam aos quatro ou aos cinco anos; a frase no tem sentido em uma sociedade como @ nos fem que no se espera que uma crianca de sete anos jé esteja alfabetizada. Para um lavrador, a alfabetizaco & ‘um processo com fungSes e fins bem diferentes das fur- .98es e fins que esse mesmo processo teré para um ope: rério de regio urbana. © conceito de alfabetizagio de- ppende, assim, de caracteristicas culturais, econdmicas e tecnologicas; a expressdo alfabetizapio funcional, usda pela Unesco nos programas de alfabetizacéo organizados fem pafses subdesenvolvidos, pretende alertar para esse conceito socia/ da alfabetizacéo. Em sintese: uma teoria coerente da alfabetizago doverd basear-se num conceito desse processo suficien: ‘temente abrangente para incluir a aborda: nica’ do ler/escrever, enfoque da I{ngua escrita como tum meio de expressio/compreensio, com especificidade fe autonomia om relaco a lingua oral, e, ainda, os deter- minantes sociais das fungSes e fins da aprendizagem da Mogua escrita. A NATUREZA DO PROCESSO DE ALFABETIZACAO Como se pode concluir da discussdo @ respeito do conceito de alfabetizacéo, esta nfo é ume hablidade, 6 tum conjunto de habilidades, 0 que a caracteriza como um fendmeno de natureza complexa, multifacetado. Essa complexidade e multiplicidade de facetas explicam por que 0 processo de alfabetizacdo tem sido estudado or diferentes profissionais, que privilegiam ora estas ora aquelas habilidades, segundo a érea de conhecimen: ‘to a que pertencem. Resulta dai uma visfo fragmentar do processo e, muitas vezes, uma aparente incoerénc entre as andlses ¢ interpretagdes propostes. Uma teoria coerente da alfabetizagio exigiria uma articulagdo e inte- gracko dos estudos e pesquisas a respeito de suas dite: rentes facetas. Essas facetas referernse, fundamentalmente, as pers pectivas psicoldgice, psicolingdfstica, sociolingustica €@ propriamentelingi/stica do process. ‘A perspectiva psicoldgica é @ que tem predominado nos estudos € pesquisas sobre a alfabetizago. Sob e580 perspectiva, estudam-se 0s processos psicolégicos considerados necessirios como pré-requisitos para a alfabetizaclo, e 05 processos psicolégicos por meio dos ‘utis 0 individuo aprende a ler e a escrever. Tradicionalmente, a perspective psicoldgica foi do- minada pela énfase nas relaeSes entre inteligencia (Ql) @ alfabetizacdo, ¢ nas relagdes entre 0s aspectos fisio- logioos ¢ neuroldgicos & os aspectos psicolégicos da 21 alfabetizacio (percep¢io do esquema corporal, estrutu- aco espacial e temporal, discriminaggo visual e auditiva, Psicomotricidade, etc). Essa visdo da alfabetizacdo, que dominou, durante muito tempo, os estudos ¢ pesquisas na Sree, explica 0 papel desempenhado pela “ideologia do dom” na justificativa do fracasso om alfabetizacdo {sucesso/fracasso na aprendizagem da leitura e da escrita dependentes de Ol e de aptiddes espectficas), a atribui co da responsabilidade por esse fracasso as chamadas disfunedes psiconeurolégicas”” da aprendizagem da lei tura e da escrita (afasia, dislexia, disgrafia, disortografia, disfuncZo cerebral minima, etc.), ¢ a conseqiente utili- zaglo de testes psicolégicos e testes “de prontido” co- mo medidas das condigées intelectuais, fisiolégicas neurolégicas da crianca para a alfabetizaclo. Mais recentemente, 0 foco da anilise psicolagica da alfabetizacdo voltou-se para abordagens cognitivas, 30° bretudo no quadro da Psicologia Genética de Piaget. Embora Piaget no tenha, ele mesmo, realizado pesqui s@5 ou reflexes sobre a aprendizagem da leitura e da escrita, varios pesquisadores tém estudado a alfabetiza- fo a luz de sua teoria dos processos de aquisigo de conhecimento. Destaca-se, entre esses, Emilia Fer que ver realizando investigaces sobre 0s estégios de conceptualizagdo da escrita e 0 desenvolvimento da “"lecto-escrita” na erianca. Nessa perspectiva, 0 sucesso ou fracasso da alfabetizagao relaciona-se com 0 estégio de compreensfo da natureza simbalica da escrita em que se encontre a crianga. No Brasil, nos Gitimos anos, tém ido desenvolvides varios estudos e pesquisas nessa linha de interpretacdo (apenas como exemplos: Carraher e Rego, 1981; Rego, 1982; Goes, 1984). Essa perspectiva cognitiva da alfabetizacéo aproxima- se muito dos estudos psicolingdisticos a respeito da lei- tura e da escrita; as vezes, confunde-se mesmo com eles. Esses estudos psicolingifsticos voltam-se para a anélise de problemas tais como a caracterizagio de maturidade linglifstica da crianca para a aprendizagem da leitura © da escrita, as relages entre linguagem e meméria, a in- terago entre a informagSo visual e no visual no proces- so da leitura, a determinago da quantidade de informa: fo que & apreendida pelo sistema visual, quando a crianga Ié, etc. So, porém, ainda pouco numerosos, no Brasil, os estudos @ pesquisas sobre a alfabetizacdo um enfoque psicolinglfstico. (Veja-se, por exemplo, Kato, 1982) Também é ainda pouco desenvolvide, no Brasil, a perspectiva sociolingiifstica da alfabetiza¢o. Sob essa perspectiva, a alfabetizacZo é vista como um process ‘estreitamente relacionado com of usos sociais da lingua. Uma questo fundamental que se coloca, nessa pers pectiva, é 0 problema das diferencas dialetais. Quando chega 8 escola para ser alfabetizada, a crianga j8 domina um determinado dialeto da I{ngua oral; esse dialeto pode estar mais préximo ou mais distante da I{ngua escrita convencional, que se baseia numa norma padréo que, nna verdade, ndo é usada, na lingua oral, por falante algum, mesmo em situagées mais formas. Hé, entre os dialetos orais ¢ a lingua escrita, diferencas relativas & correspondéncia entre o sistema fonolégico e o sistema ortogréfico, e também diferengas de léxico, morfologia @ sintaxe. Essas diferengas so maiores ou menores, se- gundo @ maior ou menor proximidade entre o dialeto particular falado pela crianga @ a li 22 temente, as repercussées dessas difereneas sobre o pro- cesso de alfabetizagao so grandes. Um exemplo: 0 pro- cesso de alfabetizacSo nfo ocorre da mesma maneira em diferentes regides do pais, porque a distancia entre cada dialeto geogrifico e a lingua escrita no @ a mesma (so- bretudo no que se refere & correspondéncia entre o sis- tema fonolégico e o sistema ortogrifico); esta seria uma das (poucas) raz6es para a existéncia de cartithas regio- nais. Outro exemplo, sem divida mais grave para a reali- dade brasileira que © exemplo anterior: a natureza do processo de alfabetizacdo de criangas das classes favore- idas, que convivem com falantes de um dialeto oral mais proximo da lingua escrita (a chamada “norma padréo culta”), e que tém oportunidades de contacto ‘com material escrito (através, por exemplo, de leituras que Ihes sfo feitas por adultos) & muito diferente da natureza do processo de alfabetizagdo de criancas das classes populares, que dominam um dialeto em geral distante da lingua escrita e tém pouco ou nenhum aces- so. material escrito. ‘Além do problema das difereneas dialetais, um outro problema de natureza sociolingUistica se coloca: como jé se disse anteriormenta, lingua oral e lingua escrita ser- vvern a diferentes fung6es de comunicacéo, sS0 usadas em diferentes situagSes sociais e com diferentes objetivos; além disso, essas fungSes, situagdes e objetivos variam de comunidade (geogréfica ou social) para comunidade. Por exemplo: as fungées e objetivos atribuidos a leitura @ B escrita pelas classes populares, e a utilizagSo dessas habilidades por essas classes sfo, inegavelmente, diferer- tes das fungdes e objetivos a elas atribuidos pelas classes favorecidas, ¢ da utilizagZo que delas fazom estas classes. Essas diferencas alteram, fundamentalmente, 0 processo de alfabetizacZo, que no pode considerar a ling ‘ta meramente como um meio de comunicagdo @ nfo contextualizado; na verdade, qualquer sistema de comunicagio escrita @ profundamente marcado por atitudes e valores culturais, @ pelo contexto social e eco- nidmico em que & usado. Portanto, a alfabetizecio & lum processo de natureza no s6 psicolégica e psicolin- gifstica, mas também de natureza sociolingifstica. Finalmente, 0 processo de alfabetizacéo 6, também, fe essencialmente, um processo de natureza lingdstica Do ponto de vista propriamente lingiistico, 0 pro: ‘cesso de alfabetizagio 6, fundamentalmente, um proces- 30 de transferéncia da seqiiéncia temporal da fala para a teqiiéncia espaco-direcional da escrita, e de transferéncia dda forma sonora da fala para a forma gréfica da escrita {ct. Silva, 1981). E, sobretudo, esta sogunda transferén- cia que constitui, em esséncia, a aprendizagem da leitura @ da escrita: um processo de estabelecimento de relacdes entre sons e simbolos gréficas, ou entre fonemas e gra “femas, Ora, como nfo hé correspondéncia univoca entre © sistema fonolégico e o sistema ortogréfico na escrita portuguesa (um mesmo fonema pode ser representado or mais de um grafema, e um mesmo grafema pode representar mais de um fonema), 0 processo de alfabet zago significa, do ponto de vista lingiifstico, um pro- gressivo dominio de regularidades e irregularidades. Esse "progressivo dominio" no pode dar-se, de maneira ade- quada, através de uma selecZo aleatéria de fonemas-gra- femas, como geralmente ocorre no processo de alfabeti- zacio; essa seleco deveria obedecer a “etapas” (ct. Lemle, 1984), que se definissem, por um lado, a partir Cad. Pesq. (52) fev. 1985 de uma descriedo das relagdes entre os sistemas fonolé- gico e ortogréfico da linus portuguesa, @, por outro lado, a partir dos processos cognitivos que a crianga uti- liza para superar as barreiras da transferéncia, para 0 sistema. ortogrético, do sistema fonolégico do dialeto oral que domina. Estudos ¢ pesquisas nesta direedo comecam a ser desenvolvidos no Brasil. Do que foi, sucinta e superficialmente, expasto, pode: se concluir que a alfabetizacdo é, como se disse inicial mente, um processo de natureza complexa. Trata-se de fendmeno de maltiplas facetas, que fazem dele objeto de estudo de varias ciéncias. Entretanto, s6 a articulacdo @ integragéo dos estudos desenvolvides no ambito de cada uma dessas ciéncias pode conduzir a uma teoria coerente da alfabetizacdo. No entanto, 0 problema da alfabetizago nfo esti, apenas, nessa sua caracteristica interdisciplinar. Além desta, 6 preciso considerar, ainda, os aspectos sociais & politicos que condicionam a aprendizagem, na escola, daeitura e da escrita. CONDICIONANTES DO PROCESSO DE ALFABETIZAGAO © fracasso escolar em alfabetizago nfo se explica, apenas, pola complexidade da natureza do processo; caso contrario, no se justficaria a predominante dese fracassso nas criances das classes popu: ares. Nao € necessério retomar, aqui, os j8 muito conhe cidos e discutidos conceitos da escola como “aparelho ideolbgico do Estado” (cf. Althusser), como mecanis mo de reproduggo social (cf. Bourdieu-Passeron) ou como instituigéo dualista e divisora (cf. Baudelot- Establet). Basta aficmar que o processo de alfabetiza G80, na escola, sofre, talvez mais que qualquer outra aprendizagem escolar, a marca da discriminaglo em favor das classes sécio-economicamente privilegiadas, A escola valoriza a lingua escrita, e censura a lingua ‘oral esponténea que se afaste muito daquela; ora, como foi dito anteriormente, a crianca das classes privlegia- das, por suas condi¢des de existéncia, adapta-se mais facilmente as expectativas da escola, tanto com rele do as funcdes e usos da Ifngua escrita, quanto em rela¢o 90 padrBo culto de lingua oral. Por outro lado, essa lingua oral culta, que a escola valoriza, e a lingua lingliisticas das criangas das classes populares; por isto, estas praticas s80 rejeitadas pela escola e, mais ue isso, atribuidas a um “déficit linglifstico”, que se acrescentaria a um “déficit cultural”, conceitos insus tentéveis, quer do ponto de vista cientifico (segundo as. ciéncias lingifsticas e as ciéncias antropolégicas, I{nguas culturas s80 diferentes umas das outras, nfo melhores ou piores), quer do ponto de vista ideolégico. E evidente que esse contexto escolar, com seus pre- conceitos linglifsticos e culturais, afeta o processo de alfabetizag#o das criangas, levando a0 fracasso as crianr G28 das classes populares. SolugSes para esse fracasso tém sido geralmente buscadas em programas de "edu ‘capo compensatéria”” que, partindo de pressupostos falsos. ("caréncia cultural”, “deficiéncia linguifstica nfo s6 no tém levado a resultados satisfat6rios mas ainda tém reforgado a discriminago das criangas das As muitas facetas da alfabetizagao classes populares: ". . . se os programas fracassarem, 48 proprias criancas ¢ suas familias sero responsabili- zadas, 1a medida em que se considera que lhes foram dadas as oportunidades educacionais e, como nfo pro grediram, s80 mesmo incapazes." (Kramer, 1982, p.58). Aerescente-se que, nesse contexto de falsos pressu- postos socials, cultures e lingisticos, a escola atua, na rea da alfabetizagfo, como se esta fosse uma aprendi zagem “neutra”, despida de qualquer caréter politica Aprender a ler @ a escrever, para a escola, parece signi ficar, apenas, a aquisigo de um “‘instrumento' para futura obtengio de conhecimentos; @ escola desconhece @ alfabetizacio como forma de pensamento, processo de construcio do saber e meio de conquista de poder politico Esse significado instrumental atribuido & alfabet zagio pela escola serve, naturalmente, apenas &s clas Ses prvilegiadas, para as quais aprender a ler e a escre ver 6 realmente, no mais que adquirir um instrumen 10 de obtencdo de conhecimentos, pois, por suas con digdes de classe, jf dominam # forma de pensamento Subjacente 8 lingua escrita, jé tém o monopdlio da cons: ‘rueéo do saber considerado legitimo e jé detim o poder politico. Para as classes dominadas, o significado meramente instrumental atribuido & alfabetizacio, es vaziando-a de seu sentido politico, reforca a cultura dominante @ as relagdes de poder existentes, ¢ afasta exes classes da participago na construpso e na parti- tha do saber. ‘A questo da postura politica em relago 20 signi- ficado da alfabetizacéo afeta, evidentemente, 0 pro- cesso de aprender @ ler e a escrever. A diferenca entre uma postura pretensamente “neutra”” e uma explicita Postura politica fica clara quando se compare o trabar tho em alfabetizacgo deserwolvido, geralmente, nas escolas, com um trabalho na linha de Paulo Freire, para quem & alfabetizagdo é um processo de conscientizagSo uma forma de apio politic. Concluise que, & natureza complexa do processo de alfabetizagzo, com suas facetas. pricolégice, ptico- lingustica, sociolingijstica e lingifstica, € preciso acrescentar o§ fatores sociais, econdmicos, culturais € politicos que o condicionam. Um teoria coerente da alfabetizacdo_ 56 seré possivel se a articulaco e inte- gracio des viries facetes do processo for contextuali- zada social culturalmente e iluminada por uma pos tura politica que resgate seu verdadeiro significado. IMPLICAGOES EDUCACIONAIS ‘A natureza complexa e multifacetada do proceso de alfabetizaco e seus condicionantes sociais, culturais € politicos tam importantes repercussées no problema dos métodos de alfabetizacdo, do material didético para a alfabetizagfo, particularmente a cartilha, da definigso de prérequisitos e da preparaglo pare a alfabetizacio, da formacio do alfabetizador. Uma anélise psicol6gica, psicolingliistica, socio: lingifstica e linglifstica do processo de alfabetizagio torna claro que a diferenca entre métodos de alfabeti- zaglo explica-se pela consideragéo prioritéria, em cada tum deles, de um ou outro aspecto do processo, igno- rando-se, em geral, os demais aspectos. Portanto, a questéo dos métodos, que tanto tem polarizado as 23 24 reflexdes sobre a alfabetiza¢io, sera insolivel enquan- to nfo se aprofundar a caracterizago das diversas fa cetas do processo @ ndo se buscar uma articulacio dessas diversas facetas nos métodos e procedimentos de ensinar aler e a escraver. Essa articulacdo deve estar presente também, 6 dbvio, ‘no material didatico para a alfabetizacSo, como opera cionalizaefo do método que é. Hé, porém, ainda outras, ImplicaeSes em rela¢o 20 material didético: a regiona- lizagdo da cartitha, @ que jé se aludiu anteriormente, a conveniéncia ou no de elaboracio de material didatico programas especificos para a regio rural, ou a organi zagdo de programas de alfabetizacdo para as classes popu lares, o problema do viés cultural de programas e mate- Tiais didaticos so questées que so podem ser discutidas 2 luz dos aspectos sociolingiisticos, culturais e politicos da alfabetizacao. A natureza complexa do processo de alfabetizagfo evidencia, ainda, como tem sido apenas parcialmente tenfrentado 0 problema da identificacdo dos pré-requi tos e da_preparagdo da crianga para a alfabetizacio. Essa questio ainda esté restrita a apenas uma das facetas. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS CARRAHER, T.N. & REGO, LL.B. 0 reaismo nominal como ‘obstéculo na aprendizagom da litura, Cademnos do Pesquisa, ‘0 Paulo (39)!3-10, nov. 1981, GOES, M.CLR. de. Critérios pora avalinfo de nogées sobre a Tinguager escrita em criangas do alfabetizades, Cadernos ie Pesquisa, S20 Paulo (49): 3-14, maio, 1984 KATO, M.A. Alfabetizagdo. In: SEMINARIO APRENDIZA. GEM _DA LINGUA MATERNA: UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR. Bras ia, 1982. Anais do samingrio Brasilia, INEP, 1984. p. 59-61. KRAMER, Sonia, Privapso cultural ¢ educapfo compensatbr do processo de alfabetizacio, & faceta necessério ampliar a visio do processo e acrescentar, 8 dos prérequisitos e a organizagSo de programas de preparacio para a alfabetizago, o enfoque da Pricolo- gia cognitiva, da Psicolinglifstica, da Sociolingdfstica e da Lingiistica Finalmente, tudo que foi dito permite concluir que @ formago do alfabetizador — que ainda ngo se tem feito sistematicamente no Brasil — tem uma grande espe- cificidade, ¢ exige uma preparacdo do professor que 0 leve @ compreender todas as facetas (psicologica, psico- lingitstica, sociolingifstica e lingUfstica) e todos os condicionantes (sociais, culturais, politicos) do proceso de alfabetizacZo, que o leve a saber operacionalizar essas diversas facetas (sem desprezar os seus condicionantes) ‘em métodos e procedimentos de preparardo para a alfa- betizaco e de alfabetizago, em eleboracSo e,uso ade- quados de materiais didéticos, e, sobretudo, que o leve a assumir uma postura politica diante das implicacdes leolbgicas do significado e do papel atribuidos & alfa- betizacdo. lume _andlise critica. Cademos de Pesquisa, Sto Paulo (42): 54-62, go. 1982. LEMLE, Miriam, A tarefa de alfabetizagSo: tapes e problemas no Portuguts. Letras de Hoje, Porto Alege, 7514): 41-60, 1984, REGO, L.L®. Aprender a lor: uma conguista da crianga ou 0 tesultado de um treinamento? in: SEMINARIO APRENDI- ZAGEM DA LINGUA MATERNA: UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR, Brostis, 1982, Anais do semindrio Brasilia, INEP, 1984, p. 6370, SILVA, M.B. da, Leiture, ortoprefie « fonologia, Séo Paulo, ‘Ata, 1981 Cad. Pesq. (52) fev. 1985

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