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Hannah Arendt O Que E POLITICA? 3- edicao Organizacdo Ursula Ludz Preféicio Kurt Sontheimer ‘Tradugdo Reinaldo Guarany B BERTRAND BRASIL Copyright © R. Piper GmbH & Co., Munchen 1993, Titulo original: Was ist Politik? Capa: Leonardo Carvalho Editoragao eletronica: Imagem Virtual Editoragio Ltda. 2002 Impresso no Brasil Prinied in Bracit (CIP-Brasil Catalogaclo-na-fonte Sindicato Nacional dos Faitores de Livros, RI ‘Arendt, Hannah A727 Oque é politica? / Hannah Arent [editoria, Ursula Lud: Sed. uaducdo de Reinaldo Guarany.-3' ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 240 p. “Tradacio de: Was ist politik? Inclui apendice ISBN 85-286-0640.6 1. Cigncia politica. 1 Ludz, Ursula. H. Titulo, DD - 320.01 98.0072 cpu -32 ‘Todos os direitos reservados pela EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 - I? andar - Sao Crist6vao 20921-380- Rio de Janeieo - RJ ‘Tel: (OXX21) 2585-2070 Fax: (OXX21) 2585-2087 Ni € permitida a reprodugo total ou parcial desta obra, por quaisquer meios. sem a prévia autorizagio por escrito da Editora Atendemos pelo Reembolso Postal Prefacio Os fragmentos das obras péstumas de Hannah Arendt, impressos aqui pela primeira vez, no mudam em principio nosso atual conhecimento do pensamento politico da fil6sofa judeu-alema, ‘mas eles representam uma elucidag3o e aprofundamento com respeito A discussio de algumas posigdes fundamentais de sua filosofia politica. Esses textos proporcionam ao leitor 0 encontro com um filosofar original sobre a politica, de cuja sugestio idiomitica e pensante quase no se pode esquivar mesmo quando se esti ucostumado a compreender, de outra maneira teérica, pergunta "o que é politica?". Embora os irechos impressos representem apenas parte do esforco de Hannah Arendt para responder, de forma abrangente, a indagagdo sobre a natureza da coisa politica para nosso tempo, ainda assim eles nos dao uma idéia essencial de seu filosofar politica, io de mundo, da independéncia e originalidade inconfundiveis de seu pensamento & de seus escritos. Quem estiver disposto a se abrir para o mundo intelectual de uma grande pensacora independente e comprometida com a verdade, vai ter muito 0 que explorar nestes artigos nao dispostos de modo sistematico, E 0 encontro com um pensamento que proporciona 9 no mundo: apesar das condigdes e perspectivas sombrias que tal orientag’o contém em meados do século XX, fornece coragem so mesmo tempo para novos comecos & para uum agir responsivel em liberdade. A pergunta de Hannah Arendt sobre o sentido positivo da "coisa politica” parte de duas experiéncias basicas de nosso século, que ofuscaram esse sentido e transformaram-no em seu oposto: o surgimento de sistemas totalitirios na forma do nazismo e do comunismo, ¢ o fato de que hoje em dia a politica dispde de meios técnieos, na forma da bomba atOmica, para exterminar a Humanidade e, com ela, toda espécie de politica. As experiéncias que tivemos com a politica em nossa era, foram e so to calamitosas que nos fazem duvidar, sim, desesperar, de um sentido da politica, "As guerras e as revoluges e niio o funcionar de governos parlamentares e aparatos de partido formam as experi¢ncias politicas basicas de nosso século." Os sistemas totalitérios, cujo surgimento Hannah Arendt analisou em seu grande livro sobre o totalitarismo, sio a forma mais extrema de desnaturagao da coisa politica, posto que suprimem por completo a liberdade humana, submetendo-a ao fluxo de uma determinagio histérica ideologicamente fundamentada, contra a qual é impossibilitada toda resisténcia individual livre por meio do terror e do dominio da ideologia. Diante desse pano de fundo, Hannah Arendt lembra, em abordagens sempre novas, a idéia da coisa politica” que aflora pela primeira vez na historia na polis grega, e que é idéntica a liberdade. Além disso, ela constata: "A politica baseia-se no fato da pluralidade dos homens", ela deve, portanto, organizar e regular o convivio de diferentes, no de iguais. Distinguindo-se da interpretagdo geral comum do homem enquanto um zon politikon (Arist6teles), em conseqiiéneia da qual o politico seria inerente ao ser humano, Arendt acentua que a politica surge no no homem, mas sim enire os homens, que a liberdade e a espontaneidade dos diferentes homens sio pressupostos necessirios para 0 surgimento de um espago entre homens, onde s6 entio se torna possivel a politica, a verdadeira politica. "O sentido da politica é a liberdade.” Apesar das experiéncias de calamidade que o homem moderno teve com o politico, Arendt acredita "ser evidente que 0 homem € dotado, de uma maneira altamente maravilhosa € misteriosa, do dom de fazer milagre", a saber: ele pode agir, tomar iniciativas, impor "um novo comego". "O milagre da liberdade esta contido nesse poder comegar que, por seu lado, estii contido no fato de que cada homem é em si um novo comeco, ja que através do nascimento veio ao mundo que existia antes dele e continuara existindo depois dele.” A compreensao da politiea para a qual Hannah Arendt quer abrir nossos olhos e por ela € vinculada com as idéias da liberdade e da espontaneidade humanas, para a qual deve haver um espago para o desenvolvimento, quer dizer, um espago para a politica, esta muito acima da compreensfo usual e mais burocritica da coisa politica, que realga apenas a organizagio e a garantia da vida dos homens. Sua idéia do politico nasceu, € verdade, da lembranga da antiga polis grega, mas que, no obstante, sempre pode ser realizada de novo, A politica nesse verdadeiro sentido aparece raras vezes na Historia, ela se manifesta "em poucos grandes acasos felizes da Historia", mas que por isso so decisivos, porque neles se manifesta por completo o sentido da politica, que continua atuando na Hist6ria, A politica de hoje também nao pode prescindir dessa lembranca ¢ presentificagdo de seu verdadeiro sentido, a fim de poder permanecer livre e humana. A desgraga da politica no século XX nao reside no fato de que surgiram terriveis regimes totalitarios que apagaram a liberdade como caracteristica essencial do politico, mas sim no fato de que seu surgimento levou a também os sistemas politicos, que pretendem ser liberais, correrem o perigo de ser infectados pelo bacilo totalitirio. "Se um prinejpio de tamanha envergadura ... chega ao mundo, € quase impossivel limité-lo.” Por isso no podemos simplesmente nos contentar hoje com o desaparecimento hist6rieo do fascismo e "do comunismo, senso que devemos continuar conscientes de que a restrigio da liberdade, repressiio da espontaneidade humana e a corrupgio do poder através da violencia tumbém so uma ameaca constante para a politica dos pretensos sistemas liberais. Por isso, a alta compreensio politica de Han-nah Arendt continua atual e digna de reflexio mesmo depois do declinio dos sistemas totaitérios outrora poderosos. © pensamento politico de Hannah Arendt € independemte e original; dificilmente pode ser classiticado nos esquemas tradicionais da teoria politica, Arendt tampouco pode ser acomodada nas categorias de direita e esquerda que determinam o debate politico piblico. Ela é realista e idealista so mesmo tempo. Nao nutre nenhuma ilusio sobre o estado do mundo ¢ insiste com firmeza que, tal como estd, ndo deve ficar nem continuar, se tivermos em mente o essencial. Essa reflexio levou-a, em vista do primado da necessidade e do cuidado com a existéncia, dominante na politica, a relacionar a politica com "chance e espago da liberdade", a frisar a importéncia do agir e da realizacdo pessoal, em comparagao com a fixagao da pura produgao de produtos, a contrapor o valor mais elevado da felicidade publica & caga ao interesse privado e & boa vida, Num tempo politicamente medfoere, ela procurou as origens da politica nio no sentido de uma vida realizada e livre em associago com outros, com o reconhecimento de suas diferengas. "Hannah > Arendt entende o teorizar como um ato do reencontrar, do 10 recuperar o sentido perdido, do lembrat/' (Sheldon S. Wo-lin). Quando ela relata, ao lembrar a polis grega e as idéias de Arist6teles, qual é 0 verdadeiro sentido da politica, quer chamar nossa atengao hoje, em meio as calamidades cotidianas e insuficiéncias da politica pritica, para 0 fato de que ndo devemos nem podemos contentar-nos com isso. Apesar de todas as experiéncias contrérias, cla jamais perdeu sua confianca bésica na possibilidade de o homem atuante comecar de novo, de fazer a coisa diferente.” Enquanto os homensjniderem agir, escreveu ela num desses textos, eles serio capazes de fazer 0 improvavel eo incalculivel Assim, a mesma Hannah Arendt que, em suas andlises do totalitarismo e da perda do sentido politico em nosso mundo, contribuiu com tanta coisa importante ¢ deprimente para nosso conhecimento histrico, jamais entregou-se ao pessimismo, muito menos ao cinismo, sen’io que sempre honrou a crenga na liberdade e na espontaneidade do homem — e até procurou despert la de novo. A lembranga refletida levou-a & certeza de que © homem pode agir ¢ sempre comegar de novo, de que ele nao precisa ser a marionete de um destino situado fora de seu ser. "86 quando se priva o recém-nascido de sua espontaneidade, de seu direito de comegar algo de novo, & que 0 curso do mundo pode ser estipulado e vaticinado de maneira deterministica.” Esta foi a acusagio aniquiladora que ela fez ao totalitarismo tanto de direita como de esquerda; mas também nos supostos sistemas livres espreita o perigo de que a coagio (inclusive as pretensas coagées materiais) ¢ a violéncia sufoquem o livre agir do homem, Livre agir € agir em publico, € publico € 0 espaco original do politico. Nele 0 homem deve mostrar-se em sua liberdade & espontaneidade, ¢ se afirmar no trato politico com outros. A adaptagio oportunistica, a fuga ao privado, a retirada da responsabilidade politica, a cOmoda apatia politica — que, porém, nio causa nada de positive —, a delimitagao consciente dos outros, sejam partidos, interesses opostos ou concidadiios estrangeitos que so rotulados como estranhos: todos esses modos de conduta tio correntes hoje em dia so nocivos a uma verdadeira politica civilizada, Han-nah Arendt opde-lhes sua elevada e nfo obstante nio utépica idéia de politica, Essa idéia nada perdeu de sua necessidade e intensidade mesmo pata nosso presente. "Seu nome (Han-nah Arendt) designa uma renovagae tao radical quanto original da filosofia politica, a saber, do conceito, da concepeao, do efos ¢ do patos do politico.” (Dol Sternberger) Esta edigio de manuscritos que Hannah Arendt redigiu sobretudo para uma "Introdu Politica”, combinada com a editora Piper, no teria sido possivel sem a dedicacdo abnegada da editora Ursula Ludz, dedicagdo essa que fez justica a pretensdes cientificas da edigio. O resultado dessa dedicacao preenche o tiltimo tergo do livro, dando informagoes seguras a todas as questdes relacionadas com a presente edi¢ao. Por fim, devemos notar agradecidos que a Junta de Pesquisa Alea acedeu, sem cortes colocando os meios necessérios & disposi¢ao, a meu pedido, para incumbir a sra. Ursula Ludz da elaboragao de uma bibliografia comentada de Hannah Arendt da composigao e redagao da presente edigao a partir do espélio: para tanto foram necessérias varias viagens a Nova York & Washington. De resto, também nao devemos esquecer que, sem o estimulo original do editor Klaus Piper, este livro — apesar de composto apenas de fragmentos — nio teria podido vir & luz do publico. Estou convencido de que seu carster fragmentario nao € nenhum obstaculo para se reconhecer 6s tragos de uma grande e original pensadora politica, que nada perdeu em atualidade e forca intelectual Kurt Sontheimer Munique, dezembro de 1992 Agradecimentos ‘Todo editor est comprometido, em primeiro lugar, com 0 autor por ele publicado. Assim, tenho de agradecer a Hannah Arendt porque trabalhar em seus textos foi uma grandiosa experiéncia de educagio. Ela nao apenas alargou meu horizonte cientifico, como também proporeionoueme conhecimentos sobre 0 que acontece e pode acontecer entre os homens no espago politico publica, As palavras de Arendt Gio mareantes, aqui como em outras parles, tomaram-se par ‘mim companheiras de vida, Para o contexto presente ocorrem-me algumas frases da entrevista com Gunter Gaus: "Nés comegamos alguma coisa; jogamos nossa linha numa rede de relagbes...” De fato, eu ‘comecei’ alguma coisa com este livro: muito simplesmente porque, como qualquer produtor de livros, pus no mundo algo novo: contudo, num sentido mais apurado, pelo menos é 0 que espero. Esta publicagio das obras péstumas poderia tornar-se um comego, desde que dé um novo impulso a interpretacio de Arendt, depois que os caminhos percortidos alé aqui ja foram, em parte, bastante trilhados, e a recepcio corre o perigo de se tornar apenas citagio — férmulas categéricas como a da "banalidade do mal” ow de algumas frases tiradas do contoxto. Em outras pulavras: os manuseritos aqui reunidos podem estimular & retomada do conhecimento daquilo que Hannah Arendt escreveu, de maneira mais exata, Em tedo caso, eles me fizeram um convite desse tipo. Eu desejo ter reagido com meu comentario de maneira a inflamar a discussio sobre a filosofia e a teoria politica de Arendt. Nao pode ser outra coisa senso um desejo, posto que aqui vale como em qualquer comego: "jamais sabemos no que vai dar". Seguindo a cronologia do surgimento deste livro, devemos citar, em segundo lugar, a leitora designada pela editora Piper, sra. Renate Déemer, Os projetos de pesquisa mencionados no preficio tiveram sua origem em conversas com ela, ¢ foi ela que se juntou a mim e ao prof. Ku Sontheimer para essa tarefa. Com isso, chego A proxima etapa de agradecimento: 0 s Sontheimer manifestou-me uma confianga incomum e, com seu apoio aos respectivos pedidos & Junta de Pesquisa Alem’, conseguiu um generoso espaco livre para meu trabalho. Em seguida, sem 0 apoio da Junta de Pesquisa esta publi teria sido realizada. Eu repito com prazer, e gostaria de acrescentar que, aos meus olhos, as boas condigdes de trabalho oferecidas pela Biblioteca do Congreso em Washington aos organizadores das obras péstumas também foram importantes. Ainda deve ser mencionado que me ajudaram muito duas exposicdes (e sua ressonncia junto aos ouvintes) no trabalho no texto € no comentiirio: uma delas na aula da dra Gitta Gess (Universidade de Munique), no semestre de vera de 1991, ¢ outra no simpésio sobre Hannah Arendt da Academia Catélica de Wiesbaden, em janeiro de 1992. Por tim, pude importunar uma série de pessoas proximas a mim, mascu-lini et feminini generis, com uma pré- redagdo do manuscrito, Entre elas destacam-se duas as quais eu gostaria de agradecer de piblico: a sra. Lotte Kéehler, a administradora do espélio de Hannah Arendt, com quem pude obter muitos esclarecimentos, ¢ 0 st. Erich Darchinger, que me introduziu © ajudou nos rudimentos do idioma grego — no qual a filéloga Hannah Arendt, especializada em linguas da Antigitidade, propés enigmas para a socidloga editora, em cuja formagao a Antigttidade cléssica teve ténue participag Ursula Ludz Feldafing, dezembro de 1992 PRIMERA PARTE TEXTOS DE HANNAH ARENDT 1. O que é Politica? Fragmento 1 Agosto de 1950 O que ¢ Politica? 1. A politica baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens um produto humano mundano, e produto da natureza humana. A filosofia e a teologia sempre se ocupam do homem, e todas as suas afirmagies seriam corretas mesmo se houvesse apenas um homem, ow apenas dois homens, ou apenas homens idénticos. Por ss0, ndo encontraram nenhuma resposta filosoficamente valida para a pergunta: 0 que & politica? Mais, ainda: para todo o pensamento cientifico existe apenas 0 homem — na biologia ou na psicologia, na filosofia e na teologia, da mesma forma como para a zoologia s6 existe o ledo, Os leGes seriam, no caso, uma questo que s6 interessaria aos ledes. E surpreendente a diferenga de categoria entre as filosofias politicas e as obras de todos os grandes pensadores — até mesmo de Platao. A politica jamais atinge a mesma profundidade, A falta de profundidade de pensamento nio revela outra coisa sei propria auséncia de profundidade, na qual a politica esta ancorada. 2. A politica trata da convivéncia entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferengas. Enquanto os homens organizam corpos politicos sobre a amilia, em cujo quadro familiar se entendem, o parentesco significa, em diversos graus, por um lado aquilo que pode ligar os mais diferentes ¢ por outro aquilo pelo qual formas individusis semelhantes podem separar-se de nove umas das outras ¢ umas contra as outras. Nessa forma de organizagio, a diversidade original tanto é extinta de maneira efetiva como também destruida a igualdade essencial de todos es homens. A ruina da politica em ambos os lados surge do desenvolvimento de corpos politicos a partir da familia, Aqui jé esta indicado 0 que se torna simbélico na imagem da Sagrada Familia: Deus io criou tanto 0 homem como 0 fez coma familia.* 3. Quando se vé na familia mais do que a participagao, ou seja, a participagao ativa na pluralidade, comega-se a bancar Deus, ou seja, a agir como se se pudesse sair, de modo natural, do principio da diversidade. Ao invés de se gerur um homem, tenta-se criar © homem na imagem de si mesmo. Porém, sob 0 ponto de vista pratico-politico, a familia ganha sua importancia inquestionavel porque o mundo assim est organizado, porque nele nao ha nenhum abrigo para o individuo — ale dizer, para os mais diferentes, As familias si fundadas como abrigos ¢ castelos s6lidos num mundo inéspito ¢ estranho, no qual se precisa ter parentesco. Esse desejo leva & perversio fundamental da coisa politica, porque anula a qualidade basica da pluralidade ou a perde através da introducao do conceito de parentesco. * Antiquado para: Dews nfo cri © homem tanto’ como crow a fami a 4. O homem, tal como a filosofia e a teologia o conhecem, existe — ou se realiza — na poli apenas no tocante aos direitos iguais que os mais diferentes garantem a si préprios. Exatamente ha garantia e concessao voluntaria de uma reivindicagao juridicamente equanime reconhece-se que a pluralidade dos homens, os quais devem a si mesmos sua pluralidade, atribui sua do homem 5. A filosofia tem duas boas razSes para nfo se limitar a apenas encontrar 0 lugar onde surge a politica. A primeira é 8) Zoon politikon:* como se na homem houvesse algo politico que pertencesse & sua esséncia — conceito que nio procede; © homem ¢ a-politigo. Ajpolitica surge no entre-os-homens; portanto, totalmente_/oj#,dos Jiqmens* Por conseguinte, nfo existe nenhuma substincia politica original A politica surge no intra-espago e se estabelece como relago. Hobbes compreendeu isso. ») A concepgao monoieista de Deus, em cuja imagem 0 homem deve ter sido eriado. Daf s6 pode haver © homem, ¢ 0s homens tornam-se sua repetigio mais ou menos bem-sucedida, O hhomem, criado & imagem da solidio de Deus, serve de base ao state ofnature as a war of ali against ali, de Hobbes. 6 a rebeliao de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido — sem sentido exclusivamente para o homem criado & imagem da solidio de Deus. A solugio ocidental dessa impossibilidade da politica dentro do mito ocidental da eriagio & a \ransformagio ou a substituigio da politica pela Hist6ria, Atavés da idéia de uma histéria mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida em wn individuo-homen depois também chamada de Humanidade. Dai o monstruoso e desumano da Hist6ria, que 86 em seu final se afirma plena vigorosamente na politic: 6. Toma-se dificil compreender que devemos ser livres de fato num campo, ou seja, nem movidos por nés mesmos nem dependentes do material dado. $6 existe liberdade no Ambito particular do conceito jnira da politica. N6s nos salvamos dessa liberdade justo na "necessidade" da Histéria. Um absurdo abominavel, 7. Pode ser que a tarefa da politica seja construir um mundo téo transparente para a verdade como a eriagdo de Deus. No sentido do mito judaico-cristdo, isso significaria: ao homem, criado & imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens & imagem da criagao divina, Provavelmente, um absurdo — mas seria a tinica demonstragao e justificativa possfvel 3 idéia da lei da Natureza. Na diversidade absoluta de todos os homens entre si — maior do que a diversidade relativa de povos, nagdes ou ragas — a criagdo do homem por Deus esti contida na pluralidade, Mas a politica nada tem a ver com isso. A politica organiza, de antemao, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa € em contrapartida as diferengas relativas. « Em grego no origina 2. Introducio a Politica I Fragmento 2° Capitulo 1: Os Preconceitos §10 Preconceito contra a Politica ¢ o que é de fato Politica hoje Em nosso tempo, ao se pretender falar sobre politica, é preciso comegar por avaliar os preconceitos que todos temos contra a politica — visto nio sermos politicos profissionais. Tais preconceitos, comuns a todos nés, representam algo de politico no sentido mais amplo da palavra: no brotam da soberba das pessoas cultas & no culpados do cinismo delas, que viveram demais e compreenderam de menos. Nao podemos ignord-los porquanto esto presentes em nossa vida, endo podemos atenus-los com argumentos porquanto refletem realidades incontestaveis e, com maior fidelidade ainda, a atual situagio existente, de fato, justamente em seus aspectos politicos. No entanto, esses preconceitos no sio juizos definitivos. Indicam que chegamos em uma situago na qual nao sabemos — pelo menos ainda — nos mover politicamente. O perigo € a coisa politica desaparecer do mundo. Mas os preconceitos se antecipam; ‘jogam fora a crianga junto com a égua do banho’, confundem aquilo que seria o fim da politica com a politica em si, e apresentam aquilo que seria uma catéstrofe como inerente a propria natureza da politica e sendo, por conseguinte, inevitavel. Por tris dos preconceitos contra a politica esto hoje em dia, ou seja, desde a invengao da bomba atémica, o medo de a Humanidade poder varrer-se da face da Terra por meio da pol e dos meios de violéncia colocados a sua disposigéo, e — estreitamente ligada a esse medo — esperanga de a Humanidade ter jufzo e, em ver de eliminar-se a si mesma, eliminar a politica — através de um governo mundial que transforme o Estado numa maquina administrativa, liquide de maneira burocratica os conflites politicos ¢ substitua os exéreitos por tropas da policia, Na verdade, essa esperanga € totalmente ut6pica quando se entende a politica em geral como uma relagio entre dominaclores e dominados. Sob tal ponto de vista, conseguirfamos, em lugar da abolicZo da politica, uma forma de dominagio despética amptiada ao extremo, na qual © abismo entre dominadores ¢ dominados assumiria dimensdes to giganteseas que nao seria mais possfvel nenhuma rebelido, muito menos alguma forma de controle dos dominadores pelos dominados. Esse cariter despotico nao seria modificado pelo fato de nio se poder mais descobrir uma pessoa, um déspota no contingente mundial — visto 0 dominio burocratico, 0 dominio através do anonimato do bureau, no ser menos despético pelo fato de ‘ninguém exercé-lo; pelo contrario, € ainda mais terrivel porque nenhuma pessoa pode falar com esse Ninguém nem Ihe apresentar uma reclamagio. Mas, se se entender por ‘politico’ 0 ambito ‘mundial no qual os homens se apresentam sobretudo como atuantes, conferindo aos assuntos ‘mundanos uma durabilidade que em geral nZo Ihes € caracteristica, entio essa esperanca no se tora nem um pouco ut6pica. Na Hist6ria, * Passagem ene aspas riscada no original e aio substituida Fla €rtomada quosetextalmente no Fragmento 3. 26 conseguiu-se fregtientemente varrer do mapa o homem enquanto ser atuante, mas no em escal ‘mundial — seja na forma da tirania que hoje nos di a impressio de estar fora de moda, na qual vontade de um homem 'exige pista livre’; seja na forma moderna de dominago total, na qual se deseja liberar os processos € 'forgas hist6ricas’ impessoais supostamente mais. elevadas. escravizar os homens para elas. Na verdade, a-politico no sentide mais profundo dessa forma de dominagao mostra-se justamente na dinfmica que Ihe ¢ caracteristica e que ela deseneade ra qual cada coisa ¢ tudo antes ainda tido como ‘grande’ hoje pode cair no esquecimento — se for para manter 0 movimento em impulso, deve cair mesmo. O que nao pode servir para acalmar nossas preocupagdes ao constatarmos que, nas democracias de massa, sem nenhum terror e de modo quase espontineo, por um lado toma yulto uma impoténcia do homem e por outro aparece um processo similar de consumir e esquecer, como que girando em torno de si mesmo de forma continua, embora esses fendmenos continuem restritos, no mundo livre e ndo-arbitrério, 4 coisa politica em seu sentido mais literal e & cois Mas os preconceitos contra a politica, a concepeao de a politica ser, em seu dimago interior, uma teia feita de velha-caria de interesses mesquinhos e de ideologia mais mesquinha ainda, a0 paso que a politica exterior oscila entre a propaganda vazia e a pura violéncia, tém data muito mais remota do que a invengio de instrumentos com os quais se pode destruir toda a vida organica da face da Terra, No que diz respeito & politica interna, so pelo menos 180 antigos quanto a democracia de partidos — quer dizer, pouco mais de 100 anos —, a qual alega, pela primeira vvez, representar © povo na historia mais recente, se bem que © povo jamais acreditou nisso. A politica externa surgiu, de fato, na primeira década da expansao imperialista, por volta da virada do século, quando 0 Estado nacional — nao por incumbéncia da nage, mas sim por causa de interesses econdmicos nacionais — comegou a levar o dominio europeu para todo © planeta Mas © verdadeiro ponto principal do preconceito corrente contra a politica € a fuga a impoténcia, 0 desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir, outrora preconceito e privilégio de uma pequena camada que, como lorde Acton, achava que 0 poder corrompe ¢ a posse do poder absoluto corrompe em absoluto.' O fato de essa condenagio do poder corresponder por inteiro aos desejos ainda inarticulados das massas nao foi visto por ninguém com tanta clareza como Nietzsche, em sta tentativa de reabilitar o poder — se bem que ele também confundisse, ou seja identificasse, bem ao espirito da época, o poder impossfvel de um individuo ter, visto ele surgir somente pelo agir em conjunto de muitos, com a forga cuja posse qualquer pessoa pode deter. a Fragmento 2b Capitulo 1: Os Preconceitos § IPreconceito e Juizo® Ao se falar de politica, em nosso tempo, & preciso comegar pelos preconceitos que todos nés temos contra a politica — quando no somos politicos profissionais. Pois os preconceitos que compartilhamos uns com os outros, naturais para nés. que podemos langar-nos mutuamente em conversa sem termos primeiro de explicélos em detalhes, representam em si algo pol sentido mais amplo da palavra — ou seja, algo a se constituir num componente integi questiio humana, em euja érbita nos movemos a cada dia * Alulizayao e revisio de O preconceite contra a politica Nao se precisa deplorar e, em nenhum caso, deve-se tentar modificar 0 fato de os preconceitos desempenharem um papel to extraordinério no cotidiano — e com isso, na poli nenhum homem pode viver sem preconceitos, nfo apenas porque nao teria inteli conhecimento suficiente para julgar de novo tudo que exigisse um juizo seu no decorrer de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a politica tem de lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a dispersio de preconceitos, o que nio significa tratarse, no caso de uma educagio para a perda de preconceitos, nem que aqueles que se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de pteconceitos. A dimensdo do estado de alerta e abertura para o mundo determina o nivel politico © 0 carater geral de uma época; mas nao se pode imaginar nenhuma época na qual os homens do pudessem reincidir e confiar em seus preconceitos para amplas areas de juizo e decisio. evidente que essa justificacdo do preconceito enquanto medida do juizo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Bla $6 vale para os verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles que nio afirmem ser juizos. Os verdadeiros preconceitos podem ser reconhecidos, em geral, porque ‘acham’, sem que, é claro, essa apel recorrem despreocupadamente a um "dizem’, lacdio precise ser apresentada de maneira expressa. Os preconceitos no sio idiossincrasias pessoais que, apesar da impossibilidade permanente de sua indemonstra-bilidade, sempre remontam a uma experiéncia pessoal dentro da qual persiste a evidéncia de percepgdes sensoriais. Os preconceitos jama éncia, nem mesmo para aqueles a eles submetidos por falta de experiéneia, Em contrapartida, como nao silo ligados a pessoas, podem facilmente contar com 0 assentimento de outras, grandes esforgos de convencimento, Nisso, 0 preconceito diferencia-se do juuizo — com 0 qual, por outro lado, tem em comum o fato de nele os homens se reconhecerem ¢ a ele sentirem-se integrados — de modo que o homem dotado de preconceitos sempre pode ter certeza de um efeito, enquanto que 0 idiossinerstico quase nunca pode realizar- se no espago politico-piblico, s6 revelando-se no privado intimo. Por conseguinte, 0 preconceito desempenha um grande papel na coisa social pura; na verdade, nao existe nenhuma estrutura social que nao se baseie mais ou menos em preconceitos, através dos quais certos tipos, de homens sio permitidas e outros excluidos. Quanto mais livre de preconceitos 6 um homem, ‘menos apto seri para a coisa social pura, Mas nds afirmamos nao julgar, em absoluto, dentro da sociedade e essa rentincia, essa substituigao do juizo pelo preconceito sé se tora perigosa quando se alastra para o ambito politico, onde nao conseguimos mover-nos sem j como veremos mais tarde, 0 pensamento politico baseia-se, em esséncia, na capacidade de Formagdo de opiniaio? Uma das razdes para a eficiéncia e a periculosidade dos preconceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedago do pasado. Além disso, observando-se com mais atengdo, vemos que um verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque nele se oculta um juizo ja formado, © qual originalmente tinha uma legitima causa empirica que Ihe era apropriada e que s6 se tornou preconceito porque foi arrastado através dos tempos, de modo cego e sem ser revisto. Com relagio a isso, 0 preconceito diferencia-se do mero boato que nao sobrevive ao dia ou & hora do rumor e no qual reina uma grande confusio caleidoscépica de opinides e juizos mais heterogéneos. O perigo do preconceito reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passado, quer dizer, muito bem ancorado e, por causa disso, niio apenas se antecipa ao juizo € 0 evita, mas também torna impossivel uma experiéncia verdadeira do presente como juizo. Quando se quer difundir preconceitos, é preciso sempre descobrir primeiro o juizo anterior neles contido, ou seja, identificar seu conteddo original de verdade. Se porventura se passar ao largo disso, batalhdes inteiros de oradores esclarecidos € bibliotecas inteiras nada podem conseguir como mostram com clareza os infindos esforgos infinitamemte infrutiferos em relagdo a problemas sobrecarregados de preconceitos mais antigos ¢ radicados, como ¢ 0 caso dos negros nos Estados Unidos ou o problema dos judeus Como 0 preconceito se antecipa ao jutzo, recorrendo ao passado, sua razdio de ser temporal & limitada as épocas histor m, em fermos puramente quantitativos, a maior parte da Histéria —, nas quais 0 novo é relativamente raro € o velho predomina na estrutura politica € social. A palavra julgar tem, em nosso uso idiomatico, dois significados distintos um do outro por completo, que sempre confundimos quando falamos. Bla significa, por um lado, © subordinar do individuo e do particular a algo geral e universal, o medir normalizador com critérios nos quais se verifica © concreto € sobre os quais se decidiré. Em todos esses jutzos encontra-se um preconceito; $6 0 individuo é julgado, mas nio © proprio critério nem sua adequabilidade para 0 medir. Também o eritério foi um dia posto em julgamento, mas depois esse juizo foi assumido e como que se tornou um meio para se poder continuar julgando. Mas, julgar também pode significar outra coisa bem diferente e, na verdade, sempre quando nos conirontamos com alguma coisa que nunca haviamos visto antes e para a qual nio esto & nossa disposigdo critérios de nenhum tipo, Esse julgar no tem parametro, ni pode recorrer a coisa alguma senZo a propria evidéncia do julgado, nfo possui nenhum outro pressuposto que no a capacidade humana do discernimento, e tem muito mais a ver com a capacidade de diferenciar do que com a capacidade de ordenar e subordinar. Conhecemos bem esse julgar sem pardmetros no juizo estético ou no juizo de gosto, sobre o qual, como sentenciou Kant, nao se pode “discutir’, mas sim brigar e chegar a um acordo; € nds 0 conhecemos na vida cotidiana sempre que, numa desconhecida, opinamos que este ou aquele teria julgado a situagio correta ou erradamente. Em toda crise hist6rica, so sempre 0s preconceitos que cambaleiam primeiro, passa-se a nio ter mais nenhuma confianga neles © justamente porque nao podem contar mais com o reconhecimento, em seu carter descomprome-tido do "dizem’, "acham', no espago limitado onde sao justificados e usados, eles se consolidam, com facilidade, em algo que, por natureza, no existe em absoluto — ou seja, transformam-se naquelas pscudoteorias que, enquanto visées de mundo fechadas ou ideologias que tudo explicam, pretendem compreender a realidade hist6rica ¢ politica. Se a fungao do preconceito € defender o homem julgante para ndo se expor abertamente a cada realidade encontrada e dai ter de defronta-la pensando, entao as visdes de mundo e ideologias cumprem essa tarefa — to bem que protegem contra toda experiéncia, pois supostamente todo © real esté nelas previsto de alguma maneira. justamente essa universalidade distinta to claramente dos preconceitos — que sio sempre de natureza parcial — que induz com nitidez & conclusao de nao se poder mais, ter confianga ndo apenas no preconceito, mas também nos critérios do preconceito e no que foi nele prejulgado: indica textualmente que eles so inconvenientes. Essa falha dos pardmetros no mundo modemo — a impossibilidade de se julgar 0 que aconteceu ¢ acontece de novo todos os dias, segundo critérios fixos e reconhecidos por todos, de subordiné-lo como caso de um esquema geral bem conhecido, assim como a dificuldade, estreitamente ligada a isso, de indicar principios de agao para o que iri acontecer — foi descrita, como um niilismo inerente & época, como uma desvalorizagio de todos os valores, uma espécie de creptisculo dos deuses e catéstrofe da ordem mundial moral Todas essas interpretacdes pressupdem, de forma tacita, que s6 se podem exigir juizos dos homens onde eles possuem pardmetros; que a capacidade de discernimento nao seja nada mais do que a capacidade de agregar, de modo correto e adequado, 0 isolado a0 geral que lhe corresponde ¢ sobre o qual se chegou a um acordo, Sabe-se que a capacidade de discernimento insiste e deve insistir em julgar de forma direta sem parimetros, mas as esferas nas quais tal acontece — nas decisdes de todo tipo, tanto de natureza pessoal como publica, € no chamado ‘juizo de gosto' nao sio levadas a sério porque, de fato, a coisa assim julgada jamais tem caréter imperativo, jamais pode forgar 6s outros a uma concordineia no sentido de uma conclusfo l6gica e inevitivel; pode apenas ¢ {do-somente convencer. Mas € um preconceito em si mesmo o fato de algo imperative adequar-se ao juizo; os critérios, enquanto duram, jamais podem ser demonstrados de maneira forcada: s6 Ihes serve, sempre, a evidéncia limitada dos juizos, sobre 0s quais todos concordaram € sobre os quais ndo se precisa mais brigar nem discutir. Forgosa ¢ unicamente demonstravel é a agregagio, 0 medir e a adogio de ctitérios, a regulamentagdo do isolado e do concreto, feita nesse sentido, e que pressupde a validade do critério segundo a natureza da coisa; e esse agregar e regular no qual nada mais € decidido a nio ser o proceder, provando-se correta ou erradamente. tem muito mais a ver com um pensamento que chega a conclusdes do que com um pensamento que julga. Portanto, a perda de critérios — a determinar, de fato, © mundo moderno com sua facticidade e que nao pode ser anulada por meio de nenhum retorno a velhos conceitos do 'bom’ nem da formagio arbitriria de novos valores e critérios — s6 & uma istrofe do mundo moral quando se supe os homens nio estarem em condigdes de julyar a coisa em si, que sua capacidade de discernimento nio basta para um julgar original. Na verdade, nio se poderia exigir deles mais do que a aplicagio correta de regras conhecidas e a adogio apropriada de critérios ja existentes, Se isso estiver certo, se pertencer & natureza do pensamento humano o fato de os homens 6 poderem julgar ali onde tém & mio critérios fixos ¢ prontos, entio de fato seria certo, como atualmente se supe, que na crise do mundo modemno nio € tanto o mundo, mas sim © préprio homem que saiu dos tilhos. Hoje, tal suposigio se impés amplamente dentro dos estabelecimentos de ensino académico, como se pode reconhecer pelo fato de as diseiplinas que tém a ver com a histéria do mundo ¢ com aquilo que sucede nela* terem sido dilufdas primeiro nas ciéncias sociais e depois na psicologia. Isso no significa nada mais do que a renincia do estudo ‘hist6rieo' do mundo — dissecado em suas camadas eronolégicas em favor do estudo do modo de conduta, primeiro, social e depois humano — 0 qual, por sua vez, s6 pode torar-se ‘objeto de uma pesquisa sistemética quando se exclui o homem atuante, o autor dos acontecimentos mundiais demonstraveis, degradando-o a um ser que s6 reage, que pode ser submetido a experigncias e do qual até pode-se esperar ter definitivamente sob controle. Talver mais caracterfstico do que essa disputa acad@mica das faculdades, na qual sempre se apresentam reivindicagdes de poder nem um pouco académicas, seja o fato de um semelhante deslocamento do interesse do mundo para o homem manifestar-se no resultado de uma pesquisa recente, na qual @ pergunta sobre o que estaria hoje no centro das preocupagoes seguiu-se a resposta qua: unfinime: 0 homem.' Nao se referia, contudo, A ameaca do género humano pela bomba atémica (Gal preocupagio seria justificada, na realidade); é evidente que os entrevistados reportavarn-se 3 esséncia do homem, entendendo-se com isso o individuo. Num ¢ noutro caso — ¢ esses exemplos podem multiplicar-se a vontade em nenhum momento duvida-se de o homem ter saido dos tilhos ou estar em perigo; ou de ser quem deve ser modificado, * No original: e 6 sicedid ncla Nao importa como pode ser feita a pergunta, se 6 0 homem ou o mundo que corre perigo na crise atual, mas uma coisa é certa: a resposta que empurra o homem para o ponto central das preocupagdes do presente e que acha que deve modifica-lo, remedia-lo, € apolitica em seu sentido mais profundo. Pois, no ponto central da politica esta sempre a preocupagao com o mundo e no com o homem — ¢, na verdade, x preocupagio com um mundo assim ou com um mundo arranjado de outra maneira, sem o qual aqueles que se preocupam e sio politicos, julgam que a vida no vale a pena ser vivida. E modifica-se 0 mundo to pouco, modificando-se os homens dele — abstraindo-se a impossibilidade pritica de tal empreendimento — quanto se muda uma organizagio ou uma associago, comegando-se a influenciar seus membros, de uma maneira ou de outra. Se se quer mudar uma instituigdo, uma organizagio ou entidade publica existente no mundo, entio s6 se pode renovar sua constituigdo, suas leis, seus estatutos ¢ esperar que tudo mais se produza por si mesmo. Isso estd relacionado com o fato de que em toda parte em que os homens se agrupam — seja na vida privada, na social ou na pibli-co-polit surge um espago que os reline & a0 mesmo tempo os separa uns dos outros. Cada um desses, espagos tem sua propria estruturabilidade que se transforma com a mudanga dos tempos e que se manifesta na vida privada em costumes; na social, em convengdes e na pablis em leis, constituigdes, estatutos e coisas semelhantes. Sempre que os homens se juntam, move-se 0 mundo entre eles, e nesse interespago ocorrem e fazem-se todos os assuntos humanos. O espago entre os homens que é © mundo, com certeza ndo pode existir sem eles e um mundo sem homens, a0 contrarie de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contradigo em si — sem isso significar, porém, que 0 mundo e as catéstrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontecesse com 'o homem’ ou com a natureza do homem. Pois © mundo e as coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos nfo so a expressio — a impressiio como que formada para fora — da natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem produzir: que eles mesmos no S40, ou Seja, coisas, € que os pretensos dmbitos espirituais ou intelectuais 86 se tomam realidades duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam objetivados enquanto mundo real. Os homens agem nesse mundo real e condicionados por ele e exatamente por esse condicionamento toda catastrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo € neles refletida, co-determina-os. Seria inimagindvel tal catdstrofe ser tio monstruosa, to aniquila-dora do mundo a ponto de as capacidades formadoras do mundo € realizadoras* do homem também serem afetadas, e 0 homem tomnar-se to ‘sem mundo’, como 0 animal, Podemos até imaginar que, no passado, tais, caldstrofes tenham acontecido em tempos pré-historicos e que certas tribos dos chamados povos primitivos sejam seus residuos, suas sobras ‘sem mundo’, Também podemos imaginar que uma guerra atémica, se permitisse a sobrevivéncia de alguma vida humana, poderia provocar uma catdstrofe assim através da destruigao do mundo inteiro. Mesmo assim, sera sempre o mundo, bem como o curso do mundo — do qual os homens nao [sido] mais senhores, do qual se alhearam tanto que o automatismo inerente a todo processo pode realizar-se sem ser impedido —, no qual os homens sucumbem. ‘Tampouco trata-se daquelas possibilidades de preocupagio com os homens acima ‘mencionada, O pior e mais inquietante dela ¢ essencialmente o fato de ndo se interessar mais, em absoluto, por esses perigos ‘externos' e, por conseguinte, altamente reais, & desvid-los para um Ambito interior que pode no maximo ser refletido, mas no tratado nem modificado. No original: que @ capacidade formadora do mundo e reali Contra isso se poderia objetar com facilidade ser o mundo do qual se fala aqui o mundo dos homens, quer dizer, o resultado do fazer humano e do agir humano, como se queira entender isso. Essas capacidades pertencem, com certeza, 4 natureza do homem; se falham, nao se deveria mudar a natureza do homem, antes de se poder pensar numa mudanga do mundo? Essa obje¢do ¢ antigiifssima em sua esséncia e pode recorrer as melhores testemunhas — a saber, a Plato que ja censurava Péricles, afirmando que, depois da morte, os atenienses nao seriam melhores do que antes. 3. Introducao a Politica IT Fragmento 32 Introdugdo: Tem a Politica ainda algum sentido?! Para a pergunta sobre 0 sentido da politica existe uma resposta tio simples e to concludente em {que se poderia achar outras respostas dispensaveis por completo. Tal resposta seria: 0 sentido da politica € a liberdude. Sua simplicidade concludéncia residem no fato de ser ela tGo antiga quanto a existéncia da coisa politica — é na verdade, ndo como a pergunta, que ji nasce de uma divida e é inspirada por uma desconfianga. Essa resposta nao é hoje, natural nem imediatamente obvia, Isso evidencia-se porque a pergunta de hoje no é simplesmente sobre o sentido da politica, como antes se fazia, em esséncia, a partir de experiéncias nio-politicas ou ‘alé mesmo antipoliticas. A pergunta atual surge a partir de experiéncias bem reais que se teve com a politica, ela se inflama com a desgraga que a politica causou em nosso século, ¢ na maior desgraga que ameaga resultar delas. Por conseguinte, a pergunta € muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a politica algum sentido ainda? Na pergunta assim formulada — e essa € a forma que ela assume pouco a pouco para todo mundo — mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiéncia com as formas {otalitirias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado 0 fato de a liberdade no existir mais nelas. Visto a partir dai, sob condigdes especiticamente modernas, surge a pergunta se politica e liberdade so compativeis entre si, se a liberdade nao comega apenas onde cessa a politica, de modo a nao existir mais liberdade onde a coisa politica nao encontra seu fim e seu limite em parte alguma. Talvez, desde a Antigtidade — para a qual politica e liberdade eram idénticas — as coisas tenham mudado tanto que, nas condigdes modernas, precisam ser distinguidas por completo uma da outra. Em segundo lugar, a pergunta ¢ formulada forcosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modemas possibilidades de destruigao — cujo monopélio os Estados detém; sem esse monopélio, jamais teriam chegado a se desenvolver —e que s6 podem ser empregadas dentro do dmbito politico. © que est em jogo aqui nao é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existéncia da Humanidade ¢ talvez de toda a vida orginica da Terra, A pergunta de agora torna duvidosa toda a politica; faz parecer discutivel nas condigdes modemnas se a politica € a conservagao da vida sdo compativeis entre si, © espera, sub- repticiamente que os homens tenham ju‘zo e de alguma maneita consigam abolir a politica antes de sucumbir por causa dela. Na verdade, pode-se objetar ser ut6pica a esperanga de que todos os Estados sejam extintos ou que, caso contrério, a politica desaparega de alguma maneira, ¢ & de se supor que a maioria das pessoas concorda com tal objecao. Mas isso nao muda nada na esperanga e na pergunta, Se a politica causa desgraga € se nao se pode aboli-la, entao resta apenas 0 desespero, bem como a esperanga de ‘no se comer tao quente como est sendo cozido’ — esperanga tum tanto insensata em nosso século, posto que desde a Primeira Guerra Mundial somos obrigados a comer cada prato servido pela politica muitissimo mais quente do que ocorreu a algum de seus cozinheiros preparé-lo. AAs duas experiéncias nas quais se inflama a pergunta atual sobre o sentido da politica sio as experiéneias politicas fundamentais de nossa época. Se se passar ao largo delas, seria como se nfo se tivesse vivido, em absoluto, no mundo que é o nosso. Em contrapartida, ainda existe uma diferenca entre elas, Contra a experiencia da politizacdo total nas formas totalitarias de Estado € © catater duvidoso da coisa politica que nela nasce esta sempre o fato de, desde a Antigilidade, ninguém mais ser de opinido que o sentido da politica és liberdade; bem como o outro fato de, ros tempos modernos, tanto em termos te6ricos como priticos, a coisa politica ser tida como um ‘meio para proteger o sustento da vida da sociedade ¢ [a] produtividade do desenvolvimento social livre, Contra 0 questionamento da coisa politica como existe na experiéncia toralitéria, haveria um recuo para um ponto de vista anterior, falando-se em termos histéricos — como se as formas de dominacio totalitérias no houvessem demonstrado nada melhor, como se tivesse raz4i0 0 pensamento liberal e conservador do século XTX. O desconcertante no aparecimento de uma possibilidade de destruig&o fisica absoluta dentro da coisa politica é tal retirada ser nada mais nada menos do que impossfvel. Pois a coisa politica ameaga exatamente aquilo onde, no conceito dos tempos moderos, reside o proprio direito de existéncia, a saber, a mera possibilidade de vida — na verdade, de toda a Humanidade. Se for verdade que a politica nada mais & do que algo infelizmente necessirio para a conservagio da vida da Humanidade,® entio de fato elajnesmo comegou a se riscar do mapa, ou seja, seu sentido transformou-se em falta de sentido. « No original: que politica nada é que aquilo que infelizmente é necessério para a conservagio da vida da hhumaniclat. Essa falta de sentido nao seria uma aporia imaginada; € um fato da maior reatidade, do qual podemos tomar conhecimento todos os dias se nos dermos ao trabalho nao apenas de ler os jomais, mas também, em nosso mau humor com a maneira de acontecer de todos os problemas politicos importantes, indagarmos como se poderia fazer melhor, em tais. circunstancias existentes. Essa auséncia de sentido jé atingida pela politica evidencia-se na falta de solugdo na qual se afolaram todas as quest0es politicas isoladas. Nao importa como consideramos a situagio ¢ como tentamos calcular os fatores isolados que nos sio apresentados pela dupla ameaga das formas totalitatias de Estado e das armas atémicas, mas sobretudo pela coincidéncia desses acontecimentos: nem sequer conseguimos imaginar uma solugao satisfatéria e, na verdade, nem mesmo se presum melhor boa vontade universal (coisa que como se sabe no se pode fazer na politica, porque nenhuma boa vontade de hoje garante no minimo uma boa vontade para amanha). Se partirmos da légica inerente a esses fatores ¢ supusermos que nada mais do conhecido por nés determina e determinaré 0 curso do mundo, entaio s6 podemos dizer que uma mudanga para a salvagio s6 poderd acontecer por meio de uma espécie de milagre, Para perguntar, com toda a seriedade, 0 que hi de verdade nesse milagre para eliminar a suspeita de que uma esperanga — ou um contar com milagres — é pura leviandade ou frivolidade insensata, precisamos antes de mais nada esquecer 0 papel que o milagre sempre desempenhow na crenga e na superstigao, portanto, no religioso € no pseudo-religioso. Para nos, libertarmos do preconceito de que 0 milagre é um fendmeno genuina e exclusivamente religioso, no qual algo sobrenatural e sobre-humano se intromete no desenrolar terrestre dos assuntos humanos ou no desenvolvimento natural, talvez seja conveniente rememorarmos em breves instantes que todo 0 marco de nossa existéncia real — a existéncia da Terra, da vida orginica sobre ela, a existéncia do género humano — baseia-se numa espécie de milagre Porque, sob o ponto de vista dos fendmenos universais e das probabilidades que nelas reinam e que podem ser apreendidas estatisticamente, 0 surgimento da Tetra foi uma "infinita improbabilidade”, Endo € diferente 0 caso do aparecimento da vida organica nos processos de evolucao da natureza inorginica ou do aparecimento da espécie humana nos processos de desenvolvimento da vida organiea. Nesses exemplos, fica claro que sempre que algo de novo acontece, de maneia inesperada, incalculivel e por fim inexplicdvel em sua causa, acontece jjustamente como um milagre dentro do contexto de cursos calculéveis. Em outras palavras, cada hovo comego &, em sua natureza, um milagre — ou seja, sempre visto e experimentado do ponto de vista dos processos que ele interrompe necessariamente. Nesse sentido, a transcendéncia religiosa da crenga no milagre corresponde a transcendéncia real ¢ demons-trvel de cada comego em relagdo ao contexto do processo no qual penetra. Obviamente, isso é apenas um exemplo para explicar que aquilo que chamamos de real jé é um entrelagamento da realidade terrestre-orginica-humana, surgido como realidade através da incidéneia de “infinitas improbabilida-des". Se tomamos esse exemplo como uma metifora para aquilo que sucede de fato no ambito dos assuntos humanos, entio ele logo comega a claudicar Pois os processos com os quais temos de lidar aqui, so, como dizemos, de natureza hist6rica, ou seja, no se desenrolam na forma de desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo encadeamento acontece aquele milagre das “infinitas, improbabilidades” sempre com tanta freqiiéneia que nos parece estranho falar aqui de milagre. Isso reside apenas no fato de que © process da Hist6ria surgi por iniciativa humana e esta sempre sendo rompido por novas iniciativas. Se vemos esse proceso em seu puro carter de proceso — e isso acontece naturalmente em todas as filosofias hist6ricas para as quais o proceso hist6rico nio é 0 resultado do agir em conjunto dos homens, mas sim do desenvolvimento e da coincidéncia de forgas extra-humanas, sobre-humanas ou subumanas, ou seja, onde © homem atuante ¢ eliminado da Hist6ria —, entio cada novo comego, para a salvagdo ou a desgraga, ¢ tio infinitamente improvavel que todos os acontecimentos maiores se apresentam como milagres, Visto exteriormente de modo objetivo, as chances de o dia de amanha transcorrer exatamente como 0 de hoje so sempre muito grandes — com certeza niio tanto como, mas nas proporgdes humanas mais ou menos tio grandes quanto as chances de no surgir nenhuma Terra de acontecimentos césmicos; de processos inorgdnicos, nenhuma vida: e, da evolugio das espécies animais, nao surjao homem nao-animnal A diferenga decisiva entre as "infinitas improbabilidades” nas quais se baseia a vida terrestre- humana eo acon-tecimento-milagre no ambito dos assuntos humanos €, claro, existir aqui um taumaturgo ¢ 0 fato de © proprio homem ser dotudo, de um modo extremamente maravilhoso ¢ misterioso, de fazer milagre. No uso idiomético habitual e comum, nés chamamos essa aptiddo dexagin E caractertstica dos aeina capaciiade deidesencadear process, cajovantomiatiand depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-Ihe caracteristico, inclusive, 0 poder impor um nove comego, comecar algo de novo, tomar iniciativa ou, adotando-se 0 estilo de Kant, comegar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade esté contido nesse poder-comecar que, por seut lado, esti contido no fato de que cada homem € em si um novo comego, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele € vai continuar existindo depois dele. Essa concepedo de que a liberdade ¢ idéntica ao comegar ou, falando de novo & maneira de Kant, 2 espontaneidade, é-nos bastante estranha porque faz parte do carter & das de nossas tradigdes do pensamento, identificar liberdade com livre- arbitrio e entender como livre-ar-bitrio a liberdade de escolha entre coisas dadas — gT0ss0 modo, entre 0 bem € 0 mal, mas ndo a liberdade; simplesmente querer que isso ou aquilo seja assim ou de outra maneira. Essa tradigio tem, € claro, suas boas razées — as quais no é 0 caso de detalhar aqui -— e foi extraordinariamente fortalecida pela convicgao espalhada desde © final da Antigitidade de a liberdade nao estar no agir e na coisa politica, mas somente ser possivel quando 0 homem renuncia ao agir, quando se retira do mundo para si mesmo evita a politica, Contra essa tradi¢ao abstrata categérica esta nao apenas a experiéncia de cada homem, seja ela de tipo privado ou publico, contra ela esta sobretudo também o testemunho jamais esquecido das linguas antigas, nas quais 0 grego archein significa comegar e dominar, quer dizer, ser livre, ¢ © latim agere significa por alguma coisa em andamento, desencadear um processo, Portanto, se esperar um milagre for um trago caracteristico da falta de saida em que nosso mundo chegou, entdo essa expectativa nao nos remete, de modo nenhum, para fora do Ambito politico original. Se o sentido da politica ¢ a liberdade, isso significa que nesse espago — e em nenhum outro — temos de fato o direito de esperar milagres. porque fdssemos crentes em milagres, mas sim porque os homens, enquanto puderem agir, esto em condigses de fazer o improvavel eo incalculdvel e, saibam eles ou nao, esto sempre fazendo. A pergunta se a politica ainda tem algum sentido nos remete, justamente quando ela termina na crenga em milagres — e onde mais deveria terminar senao ai — de volta forgosamente & pergunta sobre o sentido da polit Fragmento 3b Capitulo I: O Sentido da Politica* A pergunta sobre o sentido da politica e a desconfianga em relagao & politica so muito antigas, tio antigas quanto a tradicao da filosofia politica, Elas remontam a Platao ¢ talvez até mesmo a Parménides ¢ nasceram de experiéneias muito reais de fil6sofos com a polis: significa como a forma de organizagio do convivio humano, que determinou, de forma tao exemplar e decisiva, aquilo que entendemos hoje por politica que até mesmo nossa palavra para isso, em todos os idiomas europeus, deriva dat. Tao antigas quanto a pergunta sobre o sentido da politica sao as respostas que justifieam a politica; quase todas as classificagdes ou definigdes da coisa politica que encontramos, em nossa tradigio so, quanto a seu contetido original, justificagdes. Falando-se de maneira bastante geral, todas essas justificagdes ou definigdes tém como objetivo classificar a politica como um meio para um fim mais elevado, sendo a determinagao dessa finalidade bem diferente ao longo dos séculos, Contudo, essa diferenga também pode ser reduzida a algumas poucas respostas bisicas, e © fato de assim ser indica a simplicidade elementar das coisas com as quais temos de lidar aqui * Reval eatualizado de: Introd: Tem a Poli anda algum skid? A politica, assim aprendemos, & algo como uma necessidade imperiosa para a vida humana ¢, na verdade, tanto para a vida do individuo como da sociedade. Como 0 homem nao € autarquico, porém depende de outros em sua existéncia, precisa haver um provimento da Vida relativo a todos, sem o qual ndo seria possivel justamente o convivio, Tarefa ¢ objetivo da politica 6 a garantia da vida no sentido mais amplo. Ela possibilita ao individuo buscar seus objetivos, em paz e tranguilidade, ou seja, sem ser molestado pela politica — sendo antes de mais nada indiferente em quais esferas da vida se situam esses objetives garantidos pela politica, quer se trate, no sentido da Antigilidade, de possibilitar a poucos a ocupagao com a filosofia, quer se trate, no sentido modemo, de assegurar a muitos a vida, © ganhapao e um minimo de felicidade. Como além disso, conforme Madison observou um dia, trata-se nesse convivio de homens € no de anjos,’ 0 provimento da vida s6 pode realizar-se através de um Estado, que possui o monopélio do poder e impede a guerra de todos contra todos. Comum a essas respostas 6 0 fato de elas se julgarem naturais, de que a politica existe e existiu sempre ¢ em toda parte, onde os homens convivem num sentido hist6rico-ci-vilizat6rio. Para esse carter natural, costuma-se recorrer 2 definic¢Zo aristotélica do homem enquanto ser politico, e esse recurso nao é indiferente porque a polis determinou de maneira decisiva, tanto m termos de idioma como de contetide, a concepgao européia do que seria politica originalmente e que sentido ela tem. Tampouco é indiferente porque a citago a Aristételes baseia-se num equivoco também bastante antigo, embora pds-clissico. Aristételes, para quem a palavra politikon era de fato um adjetivo da organizagio da polis e néio uma designagio qualquer para o convivie humano, nao achava, de maneira nenhuma, que todos os homens fossem politicos ou que a politica, ou seja, uma polis, houvesse em toda parte onde viviam homens. De sua definigZo estavam excluidos no apenas os escravos, mas também os barbaros asidticos, reinos de governo des-pético, de cuja qualidade humana nao duvidava, de maneira alguma, Ele julgava ser apenas uma caracteristica do homem o fato de poder viver numa polis e que essa organizacio da polis representava a forma mais elevada do convivio humano: por conseguinte, € humana num sentido especitico, to distante do divino que pode existir apenas para si em plena liberdade e independéncia, ¢ do animal cujo estar junto, onde existe, & uma forma da vida em sua necessidade. Portanto, a politica na acepgao de Aristételes — e Aristételes no reproduz aqui, como em muitos outros pontos de seus escritos politicos, sua opinidio sobre a coisa, mas sim a opinido compartilhada por todos os gregos da época, embora em geral nao articulada — néo é, de maneira nenhuma, algo natural e nao se encontra, de modo algum, em toda parte onde os homens convivem, Bla existiu, segundo a opiniio dos gregos, apenas na Grécia e mesmo ali num espaco de tempo relativamente curto, © que distingue 0 convivio dos homens na polis de todas as outras formas de convivio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. Mas isso nio significa entender-se aqui a coisa politica ou a politica justamente como um meio para possibilitar aos homens a liberdade, uma vida livre, Ser-livre e viver-numa-polfs eram, num certo sentido, a mesma e tinica coisa. A propésito, apenas num certo sentido: posto que para poder viver numa polis, o homem jé devia ser livre em outro sentido — ele nao devia estar subordinado como escravo 4 coagdo de um outro nem como trabalhador & necessidade do ganha-pao disrio, Primeiro, 0 homem precisava ser livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forcado pela necessidade da vida era sentido original do grego schole ou do romano otium, 0 civ, como dizemos hoje. Essa libertagdo, diferente da liberdade, era um objetivo que podia e devia ser atingido através de determinados meios. O meio decisive era a soci sta, o poder com 0 qual outros eram forgados a assumir a preocupacio com a vida diaria, Ao contririo de todas as formas de exploragio capitalista que perseguem sobretudo objetivos econdmicos © servem ao enriquecimento, no caso da exploragio do trabalho escravo na Antigtiidade tratava-se de liberar 9s senhores por completo do trabalho a fim de disp6-los para a liberdade da coisa politica, Essa libertagio realizava-se através da coagio & da forva e baseava-se no dominio absoluto que 0 dono da casa exercia em seu domicilio. Mas esse dominio nio era politico, se bem que representasse uma condi¢io indispensivel de toda a coisa politica. Portanto, se quiserem entender a coisa politica no sentido da categoria meio-ob-jetivo, ela era, tanto na acepgao grega como na acepeao de Arist6teles, antes de mais nada um objetivo € nao um meio. E 0 objetivo no era pura e simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a libertagio pré-po-litica para a liberdade na polis. O sentido da coisa politica aqui, mas nio seu objetivo, ‘os homens terem relagdes entre si em liberdade, para além da forga, da coagao € do dominio. TIguais com iguais que s6 em caso de necessidade, ow seja, em tempos de guerra, davam ordens € obedeciam uns aos outros: porém, exceto isso, regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa miitua e do convencimento reciproco, A coisa politica entendida nesse sentido grego esté, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o nao-ser-dominado e nio-dominar, © positivamente como um espago que 86 pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que so meus iguais nao existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte, diferente dos outros em principio, ¢ mais feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas nao € mais livre em coisa alguma, Ele também se move mum espago no qual a liberdade nao existe, em absoluto, Isso € dificil nds compreendermos porque vinculamos a igualdade o conceito de justica e no o de liberdade e, desse modo, compreendemos mal a expresso grega para uma constituigio livre, a isonomia [Isonomie], em nosso sentido de uma igualdade perante a lei. Porém, isonomia nao significa que todos sio iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos tém 0 ‘mesmo direito 2 atividade politica: e essa atividade na polis era de preferéncia uma atividade da conversa miitua, Por isso, isonomia é, antes de mais nada, liberdade de falar e como tal © mesmo que isegoria; imais tarde, em Polibios, ambas significam apenas isologia.” Porém, o falar na forma de ordenar © 0 ouvir na forma de obedecer nao eram avaliados como falar ouvir originais; nao era uma conversa livre porquanto comprometida com um fenémeno determinado nao pela conversa, mas sim pelo fazer ou trabalhar. As palavras eram agui como que o substituto do fazer e, na verdade, de um fazer que pressupunha o forgar e o ser forgado. Quando os gregos diziam que escravos € barbaros eram anew logo, nao dominavam a palavra, queriam dizer que eles se encontravam numa situagao na qual era impossivel a conversa livre. Na mesma situagio encontra-se 0 déspota que s6 conhece o ordenar; para poder eonversar, ele precisava de outros de categoria igual A dele. Portanto, para a liberdade no se precisava de uma democracia igualitéria no sentido modemo, mas sim de uma esfera limitada de maneira estreitamente oligdrquica ou aistocritica, na qual pelo menos os poucos ou os melhores se relacionassem entre si como iguais entre iguais. Claro que essa igualdade nao tem a minima coisa a ver com justiga. Decisivo dessa liberdade politica era 0 fato de ser ela vinculada espacialmente, Quem deixava sua polis ou era dela degredado, perdia nio apenas sua terra natal ou patria, mas também o iinico espaco no qual poderia ser livxe” perdia a companhia daqueles que eram seus iguais. Mas esse espago da liberdade era tio pouco necessério ou indispensavel para sua vida € o sustento de sua existéncia que ele era mais embaragoso para ela. Os gregos sabiam por experiéncia propria que um tirano sensato (o que chamamos hoje de déspota esclarecido) era de grande vantagem para o puro bem-estar da cidade e 0 florescimento das artes tanto materiais como intelectuais. S6 a liberdade estava extinta. Os cidadios eram desterrados em suas casas, € era isolado 0 espago no qual se realizava o livre trinsito entre iguais, a agora. A liberdade nfo tinha mais, henhum espago e isso significava; nao havia mais liberdade politica. Ainda nfo podemos tratar aqui do que acontecia, de fato, com essa perda da coisa politica que, nna acepgdo da Antigtidade, coincidia com a perda de liberdade, Tratamos aqui apenas de que uma breve reminiscéncia daquilo que estava ligado originalmente ao conceito da coisa politica nos deve curar do preconceito modemo, segundo o qual a politica seria uma necessidade imperiosa © que ela teria existido sempre © em toda parte. A politica nao € necesséria, em absoluto — seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou © amor, seja no sentido de uma instituigio indispensivel do convivio humano. Aliés, ela s6 comega — onde cessa 0 reino das necessidades materiais ¢ da forga fisica, Como tal, a coisa politica existiu sempre e em toda parte tio pouco que, falando em termos histéricos, apenas, poueas grandes épocas a conheceram ¢ realizaram. Esses poucos ¢ grandes acasos felizes da Hist6ria so, porém, decisivos; é s6 neles que se manifesta de cheio o sentido da politica e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraga da coisa politica. Com isso, eles tomam-se determinantes, mas nao a ponto de poder ser copiadas as formas de organizagio que Ihes sao inerentes, € sim porque certas idéias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto perfodo de tempo, também co-determinem as épocas para as quais seja negada uma experiencia plena com a coisa politica. A mais importante dessas idéias — que também para nés pertence inegavelmente ao conceito da politica e que, por conseguinte, sobreviveu a todas as mudangas histéricas e a todas as iransformagdes tedricas — 6, sem diivida, a idéia da liberdade.’ O fato de a politica e a liberdade serem ligadas ¢ de a tirania ser a pior de todas as formas de Estado — ser na prética antipoliti —estende-se como uma diretriz através do pensar e agir da Humanidade até os tempos mais recentes. Apenas as formas de Estado totalitarias ¢ as ideologias correspondentes — nao 0 marxismo que proclamava 0 reino da liberdade e compreendia a ditadura do proletariado, no sentido romano, como uma instituicao temporéria da revolugdio — ousaram cortar essa linha, mas 0 verdadeiro novo e assustador desse empreendimento nio é a negagiio da liberdade ou a afirmagao que a liberdade ndo € boa nem necesséria para © homem, e sim a concepgao segundo a qual a liberdade dos homens precisa ser sacrificada para 0 desenvolvimento histérico, cujo processo 86 pode ser impedido pelo homem quando este age e se move em liberdade. Essa concepedo & comum a todos os movimentos politicos e ideoldgicos especificos. Do ponto de vista te6rico, torna-se decisivo a liberdade mio ser localizada nem no homem atuante e semovente nem no espago que surge entre os homens, mas sim apresentada num proceso que se realiza pelas costas do homem atuante e age, as escondlidas, do outro lado do espaco visivel dos assuntos piblicos. O modelo desse conceito de liberdade 6 0 rio que corre livremente, diante do qual qualquer intervencdo representa uma arbitrariedade a obstruir seu fluxo. As modernas identificagbes da antiquissima oposicao entre liberdade e necessidade e 0 par de contrastes que a substitui, de liberdade e intervengio, t&m sua justificagao secreta neste modelo. Em todos esses sos, 0 modemo conceito de Hist6ria substitu: um conceito de politica qualquer que seja sua natureza; acontecimentos politicos ¢ agir politico sio diluidos no acontecer histérico, ¢ a Historia € compreendida, no sentido mais textual, como um fluxo da histéria. A diferenga entre esse difundido pensamento ideolégico e as formas totalitirias de Estado é que estas descobriram 6s meios politicos para encaixar os homens no fluxo da Histria de tal maneira a ele ser compreendido, em relagao a 'liberdade’, ao fluxo ‘livre’ dela, exclusivamente como no podendo obstruir esse fluxo, a0 contrétio, tornando-se um momento de sua aceleracio, Os meios pelos quais isso acontece sio um proceso extemo de coagio do terror ¢ a pressio exercida por dentro do pensamento ideolégico, ou seja, um pensamento que, bem no sentido do fluxo da Hist6ria, também vem junto no {ntimo, por assim dizer. Esse desenvolvimento totalitério é, sem diivida, © passo decisive no caminho da abolicio da liberdade. Mas nao impede que, em termos te6ricos, o conceito de liberdade desapareca em toda parte onde, no pensamento dos novos tempos, o conceito da Historia substitui © conceite da politica. Que a idéia de a politica ter necessariamente alguma coisa a ver com a liberdade, depois de haver nascido pela primeira vez na polis grega, conseguir perdurar através dos milénios é tanto ‘mais notdvel e confortador porque quase nfo existe outro conceito no pensamento ¢ na experiéneia ocidental que se tenha transformado tanto e também se enriquecido tanto no decorrer desse espago de tempo. Originalmente, ser livre nada mais significava que poder ir aonde bem se desejasse, mas isso continha mais do que [aquilo] que hoje entendemos como liberdade de ir e vir. Significava nao apenas que no se estava subordinado & coagdo de nenhum homem, mas também que eta possivel distanciar-se de todo o Ambito da obrigagao, da casa e de sua “familia” (esse conceito romano que Mommsen traduziu um dia apenas como servidao’). Tal liberdade s6 tinha o senhor da casa, ¢ ela nio consistia em ele dominar os demais membros da casa, mas que em fungio desse dominio, ele podia abandonar sua casa, a familia no sentido da Antigiiidade, Evidente que o elemento do risco, da aventura, eta inerente a essa liberdade; a casa da qual o ir embora era uma opgao ao bel-prazer do homem livre, nao era apenas o lugar no qual os homens dominavam por necessidade ¢ pressio, mas também — e numa ligagdo mais estreita — o lugar onde a vida de cada qual estava assegurada, onde tudo estava orientado para satisfazer as necessidades vitais. Portanto, s6 podia ser livre quem estivesse disposto a arriscar a vida, ¢ tinha alma escrava; e era ndo-livre aquele que se agarrava a vida com um amor grande demais — um vicio para 0 qual o idioma grego tinha uma palavra propria.” Essa concepelio, de que s6 pode ser livre quem est disposto a arrisear sua vida, nunca mais desapareceu de todo de nossa consciéneia; © mesmo vale para a ligacio entre a coisa politica e petigo e risco, A coragem € a mais antiga das virtudes politicas e ainda hoje pertence as poucas virtudes cardeais da politica, porque 56 podemos chegar no mundo piiblico comum a todos nds — que, no fundo, & o espago politico — se nos distanciarmos de nossa existéncia privada e da conexdo familiar com a qual nossa vida estd ligada, Alids, 0 espago no qual entravam aqueles que ousavam ultrapassar a soleira da casa j4 deixou de ser, em nossa época, um Ambito de grandes empreendimentos ¢ aventuras, no qual 0 homem s6 podia entrar © no qual s6 podia esperar sair vitorioso se se ligasse a outros que eram seus iguais. Além disso, € verdade que surge no mundo aberto para 0s eorajosos, 0S aventureiros e os vidos por empreendimento uma espécie de espago publico, mas ainda nfo-politico no verdadeiro sentido, ‘Torna-se piiblico esse espago no qual avangam os dvidos por faganhas, porque eles esto entre seus iguais € se podem conceder aquele ver, ouvir e admirar o feito, cuja tradigao vai fazer com que 0 poeta ¢ 0 contador de hist6rias mais tarde possam assegurar-Ihes a gldria para a posteridade. Ao contrério do que acontece na vida privada € na familia, no recolhimento das quatro paredes, aqui tudo aparece naquela luz que s6 pode ser criada em publico, 0 que quer dizer na presenga de outros® Mas essa luz, condicao prévia de toda manifestagio real, € enganadora enquanto for apenas piiblica e nao-politica. O espago piblico da aventura e do empreendimento desaparece assim que tudo chega a seu fim, logo que dissolvido 0 acampamento do exército e os ‘herdis’ — que em Homero nada mais significam que os homens livres — retornam para suas casas, Esse espago paiblico 56 se torna politico quando assegurado numa cidade, quer dizer, quando ligado a um lugar palpdvel que possa sobreviver tanto aos feitos memordveis quanto aos nomes dos ‘memoriveis autores, e poss ser transmitido A posterioridade na seqiéncia das geragies. Essa cidade a oferecer aos homens mortais ¢ a seus feitos © palavras passageiros um lugar duradouro constitui a polis — que € politica e, desse modo, diferente de outros povoamentos (para os quais os gregos tinham uma palavra especifica’), porque originalmente s6 foi construida em toro do espago pablico, em tomo da praca do mercado, na qual os livres ¢ iguais podiam encontrar-se a qualquer hora. Essa estreita unio do politico com 0 homérico é de grande importancia para a compreenstio de nosso conceito de liberdade politica tal como aparece em sua origem na polis grega. E nio apenas porque Homero se tomou o educador dessa polis, mas também porque em conseqiiénci do auto-entendimento grego, a organizacio ¢ fundacao da polis estavam ligadas, da maneira mais intima, com as experiéncias que existiam dentro do homérico. Desse modo, © conceito central da polis livre e nao dominada por nenhum tirano, pode ser situado, sem dificuldade, no conceito da isonomia e da isegoria da era homérica (Pauly-Wissowa, loc. cit.!”), porque a enorme experiéncia dus possibilidades de uma vida entre iguais existia, de fato, como modelo no épico de Homero; e, 0 que talvez fosse mais importante, era possivel compreender 0 surgimento da polis como uma resposta a essas experiéncias. Isso podia acontecer de uma maneira como que negativa — no sentido como Péricles referiu-se a Homero na oragio ftinebre a polis precisava ser fundada para assegurar um paradeiro para a grandeza do fazer ¢ do falar humanos, que fosse mais seguro“ do que a memoria que © poeta fixava no poema, tornando-a duradoura.’' Também poderia ser compreendido de modo positive — no sentido conferido por Platao (na 11- Epistola'”): a polis nasceu do encontro de grandes acontecimemtos na guerra ou em outros feitos, quer dizer, das préprias atividades polfticas e de sua grandeza original, Em ambos os casos, € como se 0 acampamento do exército de Homero nfo fosse desfeito, senio depois que o regresso A patria, quando fundasse a polis para entio encontrar um espago onde pudessem reunit-se permanentemente. Nao importa quanto pode ter-se modificado através dessa consiancia no futuro, 0 contetido da polis permanece ligado no homérico como em sua origem. * No origi de contin ‘A propésito, € natural que nesse sentido especifico de espaco politico desvie-se aquilo que se entendia por liberdade; o sentido do empreendimento e da aventura retrocede cada vez mais ¢ aquilo que era, de certo modo, apenas 0 acess6rio indispensavel, a constante presenca de outros, 0 relacionamento com iguais na publicidade da agora, como Herédoto diz, a isegoria torna-se 0 verdadeiro contetido do ser-livre. Ao mesmo tempo, @ mais importante atividade para o ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ago livre para palavra livre Esse deslocamento é de grande importancia, em nosso conceito tradicional de liberdade no qual a concepgio de que agir e falar so, em principio, separados um do outro, de que correspondem, de certa maneira, a duas capacidades bem diferentes do homem: faz se valer de forma muito mais decisiva do que na propria historia da Grécia. Pois um dos tragos essenciais mais notaveis ¢ excitantes justamente do pensamento grego é que nele, desde 0 comego — ou seja, j4 em Homero — nio ocorre tal separacao de principio entre falar e agir, € 0 autor de grandes feitos também deve ser sempre, ao mesmo tempo, um. orador de grandes palavras — e no apenas porque grandes palavras precisam acompanhar os grandes feitos, explicando-os, por assim dizer, feitos esses que, caso contrario, cairiam mudos no esquecimento, mas porque o proprio falar era compreendido a priori como uma espécie de agir. E verdade que o homem nao pode proteger-se contra os golpes do destino, contra os golpes dos deuses, mas pode opor-se eles e retrucar-Ihes no falar e, se bem que esse retrucar nfo adiante nada, no mude a infelicidade nem atraia a felicidade, essas palavras pertencem ao acontecer como tal; se as palavras sio iguais a0 acontecimento, se (como no final de Antigona) "grandes palavras" replicam € pagam na mesma moeda "os grandes golpes dos ombros altos", entio 0 que sucede € algo grandioso ¢ digno da lembranga enaltecedora, A tragédia grega e seu drama, nela tratado, baseiam-se nessa convicgao bisica, de que o falar é, nese sentido, uma espécie de ago, de que 0 declinio pode tomar-se um feito se palavras forem langadas em sua direcdo enquanto se sucumbe. Justamente essa concepgio do falar encontra-se na origem da descoberta do poder independente do logos pela filosofia grega, que retrocede na experiéncia da polis ¢ desaparece, por completo, da tradigo'do pensamento politico, A liberdade de externar opinido, o direito de ouvir opinides de outros ¢ de também ser ouvido, que para nos constitui também parte indispensavel da liberdade politica, suplantou a liberdade nao em contradigao com ela, mas que possui uma natureza bem diferente, caracterfstica do agir e do falar, desde que seja uma aco, Essa liberdade consiste naquilo que chamamos, de espontaneidade que, segundo Kant, se baseia no fato de cada homem ser eapaz de comegar uma série de novo por si mesmo. O fato de que liberdade de agir é equivalente a estabelecer-um-inicio-e-come-car-alguma-coisa ¢ ilustrado, da melhor maneira dentro do Ambito politico prego, porque a palavra archein tanto significa comecar como dominar, E evidente que esse duplo significado indica que originalmente era chamado de guia aquele que comegava uma coisa, procurava companheiros a fim de poder levé-la a cabo; e esse levar a cabo e levar-ao-fim-a-coisa-comegada era 0 significado original da palavra para agir, prattein. Encontramos esse acoplamento do ser-livre com o comecar na concepeao romana, segundo a qual a grandeza dos antepassados esta contida na fundagzio de Roma e a liberdade dos romanos sempre pode ser atribuida a essa fundagdo — ab urbe condita —, na qual foi feito um comeco. Entio, Agostinho fundamentou ontolo-gicamente essa liberdade romana experimentada, dizendo ser 0 proprio homem um comego, um inition, porquanto nem sempre existiu, sendio que sé veio ao mundo por meio do nascimento. Apesar da filosofia politica de Kant que, a partir da experigneia da Revolugdo Francesa, se tomou uma filosofia da liberdade porque, em seu Amago, estd centrada em torno do conceito da espontaneidade, parece que s6 hoje reconhecemos 0 extraordinério significado politico inserido no poder-comegar, pois as formas de dominagio total nio se contentaram em por um fim no livre externar de opinilio, senio que puseram mios & obra para exterminar, em principio, a espontaneidade do homem em todus as reas, Por outro lado, isso ¢ inevitavel sempre que 0 processo histérico-politico foi definido de maneira deter-ministica, como algo definido de antemao ¢ segundo suas préprias leis, podendo ser reconhecido por isso. Contra a possivel determinagio e distinguibilidade do futuro esta 0 fato de 0 mundo se renovar a cada dia por meio do nascimento e, pela espontaneidade dos recém-chegados, esti sempre se comprometendo com um novo imprevisivel. $6 quando os 1ecém-nascidos slo privados de sua espontaneidade, de seu direito a comecar algo novo, 0 curso do mundo pode ser determinado e previsto, de maneira determi nistica A liberdade de externar opinio, determinante para a orgunizagio da polis, distingue-se da liberdade caracteristica do agir, do fazer um novo comego, porque numa medida muitssimo maior ndo pode prescindir da presenca de outros e do ser-confrontado com suas opinides. E verdade que 0 agir também jamais pode realizar-se em isolamento, porquanto aquele que comeca alguma coisa s6 pode levé-la a cabo se ganhar outros que o ajudem. Nesse sentido, todo agir & um agir in concert, como Burke costumaya dizer:!" "6 impossivel agir sem amigos & companheiros dignos de confianga" (Platiio, 7- Epistola 325d"), ou seja, impossivel no sentido do praitein grego, do executar € do concluir. Mas isso mesmo & apenas uma fase do agir, embora politicamente seja 0 mais importante, em suma, aquilo que determina no final o que ser feito dos assuntos dos homens e que aspecto terdo. Precede-Ihe © comegar, 0 archein; essa iniciativa, que decide quem seré o guia ou archon, o primus inter pares, cabe ao individuo e sua coragem de se envolver num empreendimento, Por fim, alguém como Héreules — a quem os deuses ajudam — pode realizar grandes faganhas mesmo sozinho e precisava dos homens apenas para receber a noticia sobre elas. A prépria liberdadle da espontaneidade é, por assim dizer, pré-politica, se bem que sem ela toda a liberdade politica perderia seu melhor ¢ mais profundo sentido; ela s6 depende das formas de organizagio da vida em comum na medida em que também pode ser organizada do mundo para fora. Mas como, em tltima andlise, ela nasce do individuo, & s6 em circunstancias muito desfavordveis que ela ainda consegue salvar-se da intervene3o, por exemplo, de uma tirania; na produtividade do artista, como de todos aqueles que produzem alguma coisa qualquer do mundo no isolamento contra outros, também se apresenta a espontaneidade ¢ se pode dizer que nenhum produzir € possivel que nao tenha sido etiado por meio da capacidade para agir. Contudo, muitas atividades do homem s6 podem realizar-se longe da esfera politica © essa distancia € até, como veremos mais tarde,” uma condicao essencial para determinadas produtividades humanas. "* Algo bem diferente ocorre com a liberdade do falar um com o outro, Ela s6 € possivel no trato com outros. Sua importancia sempre foi multipla e ambigua e. j4 na Antiglidade, possuia a ambigtidade duvidosa que ainda tem para nés. Mas, naquele tempo como hoje, o decisive nao era, de maneira alguma, cada um poder dizer o que bem entendesse, ou cada homem ter um direito imanente de se expressar tal como era. Trata-se aqui talvez da experiéncia de ninguém poder compreender por si, de maneira adequada, tudo que é objetivo em sua plenitude, porque a coisa s6 se mostra € se manifesta numa perspectiva, adequada e inerente & sua posigio no mundo, Se alguém quiser ver e comhecer 0 mundo tal como ele & ‘realmente’, s6 poderd fazé-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que esté entre eles, separando-os ¢ unindo-os, que se mostra para cada um de maneira diferente e, por conseguinte, s6 se tora compreensivel na medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opinides, sttas perspectivas uns com os outros € uns contra os outros. $6 na liberdade do falar um como outro nasce o mundo sobre o qual se fala, em sua objetividade visivel de todos os lados. O viver-num-mundo-real e o falar-sobre-ele-com-outros sio, no fundo, a mesma ¢ tinica coisa, ¢ a vida privada parecia ‘idiota’ para os gregos porque os privava dessa complexidade do conversar-sobre-alguma-coisa e, com isso, da experiéncia sobre como a coisa acontecia, de fato, to mundo, Essa liberdade de movimento, seja a liberdade de ir em frente e comegar algo novo e inaudito, ou seja a liberdade de se relacionar com muitos conversando ¢ tomar conhecimento de muitas coisas que, em sua totalidade, sio © mundo em dado momento, nio era nem é, de maneira alguma, o* objetivo da.£oiitica — aquilo que seria alcangavel por meios politicos; € muito mais o contetido e sentido original da propria coi politica. Nesse sentido, politica e liberdade sio idénticas e sempre onde nao existe essa espécie de liberdade, tampouco existe o espaco politico no verdadeiro sentido. Por outro lado, os meios com os quais se pode fundar esse espago politico ¢ proteger sua existéncia nfo so, de modo algum, sempre e necessariamente meios politicos. Desse modo, os gregos, por exemplo, nao reconheceram como atividades politicas legitimas — quer dizer, como uma espécie de agir que esté contida na esséneia da polis — esses meios com os quais 0 espago politico & formado & mantido. Eles eram de opinido que, para a fundagio de uma polis, $6 se precisava de um ato legislativo, mas esse legislador nao era um cidadao da polis e aquilo que ele fazia nao era, em absoluto, 'politicoVAlém disso, eram de opinido de que sempre que a polis tinha a ver com outros Estados, nao preeisava mais proceder politicamente, sendo que podia empregar a forca — seja porque sua existéncia corresse perigo pelo poder de outras coletividades, seja porque ela ‘mesma desejasse tornar outros vassalos seus. O que hoje denominamos politica extema nao era, em outras palavras, para os gregos a politica no verdadeiro sentido, Voltaremos a isso m: tarde."® Para nds, s6 importa aqui o fato de entendermos liberdade como algo politico, e nao como 0 objetivo mais elevado dos meios politicos, e que pressio e violencia sempre foram, na verdade, meios para proteger 0 espaco politico, ou para fundé-lo ¢ amplid-lo — mas sem serem politicos em si como tal, So fendmenos marginais que pertencem ao fendmeno da coisa politica e, por causa disso, ela. A partir desse espaco da politica, que como tal realizava e garantia tanto a realidade por muitos discutida e testemunhada como a liberdade de todos, s6 se pode indagar por um sentido situado no outro lado da esfera politica se, como os fildsofos da polis, conferir-se preferéncia ao trato com poucos niio ao trato com muitos e chegar-se & conviego de que o livre-conversar-sobre- alguma-coisa-com-outros nfo produz a realidade, mas sim 0 engano; ndo a verdade, ms ‘mentira, Parece que Parménides foi o primeiro a ter essa opinifo, sendo decisivo o fato de ele nfo separar ‘0s maus dos poucos e melhores — como Hericlito fazia e como, no fundo, correspondlia 0 espirito agonal da vida politica grega, no qual cada um devia esforcar-se sempre para ser 0 melhor de todos. Parménides distinguia muito mais um caminho da verdade que s6 esté aberto para o "individuo qua individuo", dos caminhos do engano nos quais se movem todos aqueles, qualquer que seja a forma, que estio no caminho uns com os outros. Plato sezuiu-o até certo rau, Mas esse acompanhamento de Plato s6 tem importancia politica porque ele nao insiste no individuo, e coneretizando na fundago da academia uma concepgao basica dos poucos que, por seu lado, filosofavam de novo entre si num discurso livre. Platao, o pai da filosotia politica do Ocidente, tentou de varias maneiras contrapor-se a polis & aquilo que ela definia por liberdade. Tentou-o por meio de uma teoria politica na qual os critérios da coisa politica no so criados a partir da prépria politica, mas sim da filosofia, por meio do aperfeicoamento de uma constituigio que entrava em pormenores, cujas leis correspondem as idéias acessiveis apenas aos filésofos, e por fim por meio inclusive de uma influéncia sobre um soberano, do qual esperava que fosse transformar tal legislagio em realidade — tentativa que quase Ihe custou a vida e a liberdade. Entre tais tentativas esti também a fundagio da academia, que se efetuow tanto contra a polis — enquanto uma delimitagao ao Ambito politico original — como também, por outro lado, no sentido justamente desse espaco politico especifico grego-ateniense — ou seja, contanto que 0 conversar-um-com- o-outro se tornisse seu verdadeiro contetido. Dai, junto com o fimbito da liberdade da coisa politica, surgiu um novo espaco da liberdade muitissimo real, com repercussio até hoje na forma de liberdade das universidades € de liberdade de ensino académico. Mas essa liberdade, se bem que formada & imagem de uma liberdade originalmente experimentada como politica € entendida por Platio como um possivel niicleo ou ponto de partida, a partir do qual devia ser determinado 0 estar junto de muitos no futuro, trouxe, de fato, ao mundo um novo conceito de liberdade, Ao contrério de uma liberdade puramente filoséfica © vilida apenas para os individuos, tao distante de tudo que € politico, que s6 0 corpo do filésofo habita a polis, essa liberdade de poucos tem completa natureza politica. O espaco de liberdade da academia devia ser um substituto vilido para a praga do mercado, & agora, © espaco de liberdade central da polis, Para poder existir como tal, a minoria precisava exigir, para sua atividade, seu conve entre si, ser dispensada das atividades da polis e da agora, da mesma maneira que os cidadaos de Atenas eram dispensados de todas a5 atividades que serviam ao mero ganha-pao, Bles precisavam ser libertados da politica no sentido dos gregos, para serem livres para o espago de liberdade académica, da mesma maneira como os cidaddos precisavam ser libertados das necessidades da vida para a politica. E precisavam sair do espaco da propria coisa politica, a fim de poder entrar no espago da ‘coisa académica’, da mesma mianeira como os cidadios precisavam sair da esfera privada de sua casa para se deslocarem para a praca do mercado. Assim como a libertagiio do trabalho e das preocupagdes com a vida eram pressupostos necessérios para a liberdade da coisa politica, a libertacdo da politica tomou-se pressuposto necessdrio para a liberdade da coisa académica. Nesse contexto, ouvimos pela primeira vez que a politica € algo necessério, que a coisa politica em sua totalidade é apenas um meio para um objetivo mais elevado, situadojfora de si mesmo, e que em conseqliéncia precisa ser justificado no sentido de tal estabelecimento de objetivo. Torna-se entio surpreendente que o paralelismo que recém-estabelecemos, em consequéncia do qual a liberdade académica simplesmente parece substituir a politica e que polis e academia se comportassem entre si como casa e polis, no é mais vilido aqui. Pois, a casa (e © provimento da vida que ocorria em sua esfera) jamais foi justificada como um meio para um objetivo, como se, falando aristotelicamente, a vida fosse um simples meio para a 'boa vida’ s6 possivel na polis, Isso nao era possivel nem necessério porque, dentro do mero dmbito da vida, a categoria objefivo-meio nao pode chegar a ser empregada: é evidente que © objetivo da vida e de todas as atividades de trabalho relacionadas com ela é a manutengao da vida e nada mais, e o impulso para o manter-se-em-vida com trabalho nfo esti situado do lado de fora da vida, mas sim contido no processo da vida que nos obriga a trabalhar, assim como nos obriga a comer. Se se quiser entender essa relacdo entre casa e polis no ambito do objetivo-meio, entio a vida garantida na casa no é © meio para um objetivo mais elevado da liberdade pol dominio das necessidades vitais ¢ a dominagio realizada sobre o trabalho escravo s libertagio para a coisa politica. Tal libertagao através do dominio, a libertagdo de poucos para a liberdade do filosofar através da dominagdo sobre muitos, foi proposta, de fato, por Plato na forma do rei-filésofo, mas essa proposta nao foi admitida por nenhum filésofo depois dele e permaneceu sem nenhum efeito politico. Em contrapartida, a fundagio da academia, justamente porque nfo objetivava sobretudo a educagio para politica, como as escolas dos sofistas e oradores, teve uma importancia extraordinatia para aquilo que ainda entendemos por politica, O proprio Platao ainda podia acreditar que um dia a academia fosse conquistar e dominar a polis. Para seus sucessores, para os filésofos que vieram a seguir, s6 continuou determinante o fato de a academia garantir institucionalmente um espago de liberdade para a minoria, e essa liberdade set entendida desde o inicio em completa contradigiio com a liberdade politica da praga do mercado; ao mundo das opinides mentirosas ¢ do falar enganador devia ser oposto um mundo contririo da verdade ¢ do falar adequado & verdade; & arte da retérica, a citncia da dialética. O que se impés e até hoje determina nossa concepedo de liberdade académica nio é a esperanga de Plato de a partir da academia determinar a polis, a partir da filosofia determinar a politica, mas sim 0 afastamento da polis, a apolitia,* a indiferenca contra a politica. 0 decisivo nesse contexto nao € tanto 0 conflito entre a polis e as filsofos — nos quais mai tarde teremos de entrar em detalhes'” — mas sim ndo poder persistir a simples indiferenga de um Ambito em relagio a0 outro, na qual © conflito pareceu solucionado por um momento, porquanto impossivel o espaco da minoria € sua liberdade — se bem que eta também um. Ambito public © nao-pri-vado — desempenhar as duas fungdes, assim como a politica incluia todos 0s que estavam aptos para a liberdade. E evidente que a minoria, sempre que se separou da maioria — seja na forma de uma indiferenga académica, seja na forma de um dominio oligdrquico —, caiu numa dependéncia da maioria, em todas as questées da vida em comum nas quais realmente se tinha de negociar. Assim, essa dependéncia no sentido de uma oligarquia platOnica pode ser entendida como obrigagao da maioria em cumprir as ordens da minoria, quer dizer, assumir 0 verdadeiro agir; nese caso, a dependéneia da minoria foi superada pelo dominio, assim como a dependéncia dos livres em relago as necessidades da vida pode ser superada por meio de seu dominio sobre uma casa de escravos, e a liberdade basear-se no poder. © A palavra nao tem comprovagio éxica, tampouco como “apolit Ou enti, a liberdade da minoria € de natureza meramente académica e assim toma-se evidente ser dependente da boa vontade do corpo politico que a garante. Mas em ambos os casos a politica no tem mais a ver com a liberdade, nao sendo, portanto, politica no sentido grego; refere-se muito mais a tudo que garante a prdpria existéncia dessa liberdade, quer dizer, & administragao © a0 provimento da vida na paz eA defesa na guerra. Assim, © ambito de liberdade da minoria nao apenas tem 0 trabalho de se impor contra o Ambito da coisa politica determinada pela maioria; além disso, sua mera existéncia depende da maioria; a existéncia simultdnea da polis é uma necessidade vital para a existéncia da academia, seja a existéncia da platonica ou da universidade posterior, Com isso, € evidente que a coisa politica em sua plenitude € empurrada um degrau para baixo, que faz parte da politica [da polis) da conservacao da vida; torna-se uma necessidade por um lado em contradigao com liberdadle, mas por outro forma seu pressuposto. Ao mesmo tempo, aparecem, de maneira inegdvel. no ponto central de todo esse Ambito, aqueles aspectos da coisa politica que originalmente, ou seja, no auto- entendimento da polis, representavam fendmenos marginais. Para a polis, o sustento da vida e a defesa nao eram o ponto central da vida politica, e s6 eram politicos no verdadeiro sentido desde que as conclusdes sobre eles no fossem decretadas de cima para baixo, mas sim se concebidas em comum no conversar de um com 0 outro € no convencer mituo, Mas justamente isso tornou- se indiferente na jus Jo da politica resultante do ponto de vista da liberdade da minoria S6 era decisive o fato de todas as questdes da existéncia, das quais a minoria nao fosse 0 senhor, serem deixadas por conta do ambito da coisa politica. verdade **" que com isso ainda se nota uma rel uma rel io entre politica e liberdade, mas apenas jo e nao uma identidade. A liberdade enquanto objetivo final da politica esta fronteiras politicas; mas, o critério do agir dentro do proprio ambito politico nio € mais a liberdade, mas sim a competéncia e a capacidade de assegurar a vida, Essa degradacdo da politica a partir da filosofia, tal como conhecemos desde Platio ¢ Arist6teles, depende por completo da distingio entre maioria e minoria, Tem um efeito extraordindrio, demonstravel até nossos dias, sobre todas as respostas te6ricas para a pergunta sobre o sentido da politica, Mas em termos politicos nio realizou mais que a apolitia das escolas filoséficas da Antiguidade e a liberdade de ensino académico das universidades. Em outras palavras, sua eficiéneia politica sempre estendeu-se apenas & minoria para a qual a auténtica experiéncia filosGfica era decisiva em sua estupenda eficcicia — uma experiéncia que, de acordo com seu proprio sentido, levava de fato para fora do Ambito politico da vida em comum ¢ da conversa em comum, Contudo, a razdo pela qual nio prevaleceu esse efeito tedrico — pelo qual faz-se valer, até hoje. no auto-entendimento da politica e dos politicos, a concepeaio segundo a qual a coisa politica & justificada e precisa ser justificada através de objetivos mais elevados, situados fora da coisa politica (ainda que esses objetivos sejam, nesse meio tempo, como é natural, de natureza ‘muitissimo mais mesquinhos do que cram originalmente) reside na negacio © na reinter- pretagao da politica, semethantes apenas no exterior, mas na verdade moldadas de maneira bem diferente e muito mais radical, realizadas pelo cristianismo. Ao mesmo tempo, pode parecer & primeira vista que o cristianismo primitivo reivindicava para todos « mesma liberdade de certo modo académica da politica, que as escolas filosGficas da Antigiidade solicitavam para si. Tal impressio € fortalecida se considerarmos que aqui também a negacao da coisa politica andava de maos dadas com o restabelecimento de um espago existente ao lado do politico, no qual os figis se reuniam primeiro numa comunidade e depois numa Igreja. Porém, esse paralelismo s6 se impds de cheio com 0 advento do Estado secularizado no qual, aliés, a liberdade académica e a religiosa tém estreita ligagao, desde que Ihes seja garantida publica e juridicamente a liberdade da politica pelo corpo politico, Uma vez entender-se por politica tudo aquilo necessario para 0 convivio dos homens, a fim de Ihes possibilitar, enquanto individuos ou em comunidad, uma liberdade situada além da politica e da necessidade justifica-se de fato que se mega o grau de liberdade de cada corpo politico pela liberdade académica ¢ religiosa por ele tolerada, ou seja, pela extensio, por assim dizer, do espago de liberdade nao-politica que contém € mantém. Justamente esse efeito politico ja direto da liberdade da potitica, da qual a liberdade académica se aproveitou de mancira extraordindria, remonta a outras experiéncias mais radicais — no que diz respeito a coisa politica — do que as dos filésofos, No caso dos cristaos nao se tratava de se produzir um espago da minoria junto ao espago da maioria, tampouco de se fundar um contra- espago para todos contra © espago oficial, mas sim que um espago piblico, nao importava se para a minoria ou para a maioria, era insuportivel por causa de sua publicidade, Quando Tertuliano diz. que "para nés, os cristdos, nada € mais estranho que os assuntos publicos”,"* a essénicia encontra-se no carter pliblico. Costuma-se entender, sem diivida com razao, a negacao do cristianismo antigo de participar dos assuntos puiblicos a partir da perspectiva romana de uma divindade que rivalizava com os deuses de Roma, ou a partir da visio do cristianismo primitivo de uma expectativa escatolégica, segundo a qual estaria dispensada toda a preocupacio com 0 mundo. Com isso, nao se notam as verdadeiras tendéncias antipoliticas da mensagem ct experiéncia que Ihe serve de base, com aquilo que é essencial para 0 estar junto dos homens. Niio hi diivida de que no sermio de Jesus 0 ideal da bondade desempenha o mesmo papel que © ideal da sabedoria nas doutrinas de Séerates: Jesus recusa-se a ser chamado de bom pelos iscipulos, no mesmo sentido em que Séerates recusa ser apresentado como sabio pelos alunos, Porém, a bondade precisa ser escondida, no deve manifestar-se como aquilo que & Uma comunidade de homens, cuja opinigo seja que com toda seriedade todos os assuntos humanos devem ser regulamentados no sentido da bondade; que, por conseguinte, nao tem medo de pelo menos tentar amar seus inimigos ¢ de pagar © mal com o bem; que em outras palawras acha decisivo o ideal da santidade — nio apenas para a salvacio da prépria alma no afastamento dos homens, mas para a prépria regulamentagdo dos assuntos humanos —. nao pode fazer outra coisa que se manter afastada do publico e de sua luz. Ela precisa agit em segredo porque o ser-visto e ser-ouvide geram forgosamente aquele brilho e luz, nos quais toda a santidade — que pode apresentar-se como quiser — torna-se, de imediato, hipocrisia Assim, no caso do afastamento dos primeiros cristios da politica nio se tratava, como no caso do afastamento dos fil6sofos, de um abandono do fmbito dos assuntos humans. ‘Tal afastamento, comum nas formas extremas de vida eremita nos primeiros séculos da era crista, estaria em retumbante contradic: o de Jesus e foi sentida bem cedo como uma heresia pela Igreja. Tratava-se muito mais de uma proposigio da mensagem crist& para um caminho de vida, no qual os assuntos humanos deviam ser deslocados do ambito ptiblico para um ammbito intermédio entre homem ¢ homem. O fato de ter-se identificado e talvez confundido esfera privada, porquanto em evidente oposigio ao ambito piblico-politico, encontra-se na natureza da situagio hist6riea, A esfera privada foi entendida através de toda a Antigiidade grego-romana como tinica altemativa para 0 espago piblico, sendo que, para a interpretagio de ambos os espagos, foi decisiva a oposigao entre aquilo que se queria mostrar para todo o mundo e a maneira como se queria aparecer diante de todo © mundo € aquilo que $6 podia existir em segredo e, por conseguinte, precisava continuar a salvo. Em termos politicos foi decisive que © cristianismo procurasse 0 recolhimento ¢, nesse recolhimento, exigisse co-assumir aquilo que sempre foi coisa do ptblico,”® Nesse contexto, nio € necessério entrarem consideragdes de como se conseguiu, dentro do decorrer histérico, transformar o caraiter consciente e radicalmente antipoliti-co do cristianismo, de maneira a tomar possivel uma espécie de politica erista; isso foi — abstraindo-se a necessidade hist6rica propiciada pela decadéncia do Império Romano — obra de um tinico homem, Agostinho, e possibilitada pela extraordinéria tradigao ainda bem viva nele do pensamento romano, A reinterpretagao da coisa politica foi de importancia decisiva para toda a iradigdo do Ocidente e, na verdade, ndo apenas para a tradi¢io das teorias € do imaginério, mas sim para os marcos nos quais acontecia entio a verdadeira hist6ria politica. Foi entio que 0 corpo politico também aceitou a concepgao de que a politica € um meio para um objetivo mais, elevado © que se trata da liberdade dentro da politica apenas porque a coisa politica tem de libertar determinadas dreas. $6 que a liberdade da politica nao é mais uma questio da minoria, ‘mas sim, a0 contrério, tornou-se uma questio da maioria que nao devia nem precisava preocupar-se com os negécios do governo, ao passo que foi imposto A minoria o fardo de se preocupar com a ordem politica necessaria aos assuntos humanos. No entanto, esse tardo nao resultou, como em Platae e nos filésofas, da situagao humana basica da pluralidade, que liga a ‘minoria A maioria, © um a todos. Essa pluratidade 6, a0 contririo, afirmada, e © motivo que determina a minoria assumir sobre os prdprios ombros o fardo do governar nao é 0 medo de ser dominado por piores, Agostinho exige expressamente que a vida dos santos também se passe numa "sociedade” e supde com o cunho de uma Civitas Dei, um Estado de Deus, que a vida dos homens também é determinada politicamente em condicdes ndo-terrenas — deixando em aberto se a coisa politica também € um fardo no Além, Em todo caso, 0 motivo para assumir nos ptdptios ombros o peso da coisa politica terrena ¢ 0 amor ao préximo e ndo o medo dele. Essa transformacdo do cristianismo realiza-se no pensamento € agdo de Agostinho,* que no final restaurou a Igreja, que secularizou o medo cristo em segredo ao ponto de os figis, constitufrem no mundo um espago pablico totalmente novo e determinado pela religido — 0 qual, embora ptiblico, no era politico. O cariter piblico desse espago dos figis — o tnico no qual, através de toda a Idade Média, as necessidades politicas especificas do homem puderam ser levadas em conta — sempre foi ambiguo; era antes de mais nada um local de reunido e isso significa ndo apenas um prédio no qual homens se reuniam, mas um espaco que foi construido expressamente como reunidor de homens. Como tal, porém, no devia tomnar-se um espago de aparigio, devendo ser preservado o contetido original da mensagem crista, Ficou provado ser quase impossivel impedir isso, visto que esti na natureza do cariter pablico, constituido pela reuniio de muitos, estabelecer-se como espaco de aparigio. © No original: E sobre a base dessa transformasao que se realiza no pensamento ¢ ago de Agostinho, A\ politica orista sempre esteve diante da dupla tarefa de, por um lado, assegurar-se através da influéncia sobre @ politica secular, de que o local de reuniio nao politico dos figis esteja protegido de fora, e, por outro lado, impedir que um local de reuniio se torne um espago de aparigao, € com isso que a Igreja se torne um poder secu-lar-mundano, entre outros. Dai, verificou-se que a vinculagio com o mundo correspondente a tudo espacial ¢ 0 faz aparecer & parecer, € muito mais dificil de se combater do que a reivindicacao de poder do secular, que se apresenta de fora para dentro, Quando a Reforma conseguiu afastar da Igreja tudo aquilo que tem a ver com aparéncia ¢ manifestacio, transformando-a de novo em local de reunido para aqueles que, no sentido dos Evangelhos, viviam no recolhimento, desapareceu também o carter Pliblico desses espacos da Igreja. Ainda que ao movimento da Reforma nao se tenha seguido a secularizagdo de toda a vida ptiblica, da qual ela vista, com freqtiéneia, como precursora, e ainda que, no rastro dessa secularizagio, a religio nio se tenha tornado coisa privada, a Igreja protestante dificilmente poderia ter assumido a tarefa de oferecer aos homens um substituto para a cidadania da Antignidade — tarefa que, sem chivida, a Igreja catdlica realizou durante longos sulos apés 0 declinio do Império Romano. Nio importa como sejam essas possibilidades e alternativas hipotéticas, o decisivo é que desde 6 fim da Antigitidade e com 0 nascimento de um espago eclesidstico-pibli-co, a politica secular continuou vinculada as necessidades da vida resultantes do convivio dos homens ¢ com a defesa de uma esfera mais elevada, que até o fim da Idade Média estava espacial e palpavelmente na existéncia das igrejas. A Igreja precisa da politica e, na verdade, tanto da politica mundana dos poderes seculares como da propria politica religiosa ligada ao Ambito eclesidstico, para poder manter-se ¢ afirmar-se na terra ¢ neste mundo do lado de c — enquanto Igreja visivel, ou seja, a0 contrério da invisivel cuja existéncia apenas acreditada continuow sem ser molestada, em absolute, pela politica. A politica precisava da Igreja — nao apenas da religiao, mas sim da existéncia espacial palpdvel das instituigdes religiosas —. a fim de provar sua razao de ser mais, elevada, por causa de sua legitimagio, O que mudou com o despontar dos tempos modemos no foi uma modificagao de fungdo da coisa politica; nao € como se, de repente, & politica Tosse adjudicada uma nova dignidade propria s6 dela, O que mudou foram, pelo contratio, os ambitos pelos quais a politica parecia ser necesséria. O fimbito do religioso recaiu no espaco do privado. a0 passo que o Ambito da vida e de suas necessidades — que tanto na Antigiiidade como na Idade Média valera por exceléncia como mbito privado — recebeu nova dignidade e, na forma da sociedade, apareceu em ptblico. Nisso, devemos diferenciar politicamente entre a democracia igualitaria do século XTX para a qual a co-participa-cio de todos no governo, seja em que forma for, € sempre um sinal imprescindivel da iberdade do povo, e o despotismo esclarecido do comego dos tempos ‘modernos para o qual valia que ‘liberty and freedom consists in having the government of those laws by wich their life and their goods tay be most their own: ‘tis not for having share in government, that is nothing pertaining to 'em"?” Em ambos os casos é obrigagio do governo em eujo espaco de acio cai a coisa politica a partir de entao, proteger a livre produtividade da sociedade ea seguranca do individuo em seu Ambito privado. Nao importa como seja a relagao enire cidadao e Estado: liberdade e politica continuam separadas uma da outra da maneira mais categériea, e ser livre no sentido de uma alividade positiva a se desenvolver livremente esta localizado num ambito que trata de coisas que, de acordo com sua natureza, ndo podem ser. em absoluto, comuns a todos, ou seja, trata da vida e da propriedade, quer dizer, trata daquilo que & proprio da maioria, O fato de essa esfera do prdprio, do idion, cujo permanecer nela era tido como limitagio ‘idiota’ pela Antighidade, amplia.se enormemente através do novo fenémeno de um espago social e de foreas produtivas sociais ¢ niio-individuais, no altera em nada o estado de coisas, segundo o qual as atividades necessérias & manutengao da vida e da propriedade, bem como para a melhoria da vida e 0 aumento da propriedade, estao subordinadas, lade © no a liberdade, O que os tempos modernos esperavam de set Estado e 0 que esse Estado fez, de fato, em grande escala foi uma libertagdo dos homens para o desenvolvimento das forgas produtivas sociais, para a produgao comum de mercadorias necessdrias para uma vida ‘feliz’. Essa concepedo de politica dos tempos modemos para. a qual o Estado é uma fungao da sociedade ou um mal necessério para a liberdade social, impds-se, tanto em termos priticos como te6ricos contra as concepgées moldadas de maneira bem diferente e inspiradas pela Antigiiidade, de uma soberania do povo ou da nagdo, que se manifestaram em todas as revolugSes dos tempos modernos. S6 para essas revolugdes, da americana e francesa do século XVIII até a revolugdo hingara mais recente, coincidem de maneira direta o ter-participacZo-no- governo € © ser-livre. Mas essas revolugdes € as experiéncias diretas nelas verificadas sobre as possibilidades do agir politico nao puderam, pelo menos até hoje, transformar-se em nenhuma forma de Estado, Desde 0 advento do Estado nacional € opiniao corrente ser obrigagio do governo proteger a liberdade da sociedade para dentro e para fora, se preciso por meio da forga. ‘A participagao dos cidados no governo, qualquer que seja a forma, $6 € tida como necesséria para a liberdade porque o Estado, que necessariamente precisa dispor de meios de forca, precisa set controlado pelos governados no exercicio dessa forga, Acrescente-se a informagao de que, com 0 estabelecimento de uma estera por mais que limitada do agir politico, surge um poder do qual a liberdade s6 pode ser protegida se scu exercicio for fiscalizado o tempo todo. © que hoje entendemos por governo constitucional, nao importa se de natureza mondrquica ou republicana, & em esséneia, um governo controlado pelos governados, restringido em suas competéncias de poder ¢ em sua aplicagio de forca. E indiscutivel que a restrig#o e controle ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do individuo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possiveis € necessérios, para o espago estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espago. Portanto, no se trata, em todo caso, de possibilitar a liberdade de agir e de atuar politicamente; ambos continuam sendo prerrogativa do governo e dos politicos profissionais que se oferecem ao povo como seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses dentro do Estado e, se for @ caso, contra © Estado. A relagao entre politica e liberdade, em outras palavras, também € entendida nos tempos modemos, de modo a ser a politica um meio e a liberdade seu objetivo mais elevado; portanto, a relagio em si no mudou, embora © contetido ¢ a extensio da liberdade se tenham modificado de forma bastante extraordindria, Assim, a pergunta sobre o sentido da politica € respondida por categorias € conceitos que so extraordinariamente antigos € por conseguinte também extraordinariamente vene-riveis. Embora os tempos modernos se diferenciem, de forma tio decisiva, em seus aspectos politicos, de todos os tempos anteriores, assim como também nos aspectos espirituais ¢ materiais. S6 0 fato da emancipacdo das mulheres ¢ da classe operéria, quer dizer de grupos de homens que nunca antes podiam mostrar-se na vida publica, dé um rosto radicalmente novo a todas as questdes politicas. Aquilo que concerne a essa determinagio da politica como um meio para © objetive de uma liberdade situada fora de seu mbito também vale para os tempos modernos, embora nds s6 possamos atestar isso numa medida bastante limitada. Ela 6, entre as respostas modernas para a pergunta sobre o sentido da politica, aquela que continua mais estreitamente ligada 8 tradiga0 da filosofia politica ocidental e, dentro do pensamento estatal-nacional, mostra-se da maneira mais clara no prinefpio do primado da politica externa, abordado por Ranke, mas que serve de base todos os Estados nacionais.” Muito mais caracteristico do cardter igualitério das formas modernas de Estado e da emancipacdo de operdrios e mulheres ocorrida nos tempos modernos, na qual, falando em termos politicos, se manifesta seu aspecto mais revolucionsrio, € ums definigao de Estado derivada do primado da politica interna, segundo a qual "o Estado enquanto portador do poder & uma instituigo indispensfvel para a sociedade" (Theodor Eschenburg”) Entre essas duas concepgdes — entre a opiniio de o Estado e a coisa politica serem uma que vé nele uma instituicao indispensivel para a vida — esté uma contradi¢do intranspontvel da qual, alids, os defensores dessas teses quase nao tm consciéncia, Trata-se de uma grande diferenca se a liberdade ou a vida é cotada como o bem com valor mais alto — como pardmetro pelo qual se orienta e se julga todo o agir politico. Se entendemos por politica algo que, nao importa qual a escala, surgiu em sua esséncia a partir da polis ¢ continua ligado a ela, entdo forma-se, no acoplamento entre politica e vida, ‘uma contradigao interna que revoga e arruina justamente a coisa politica especitis Essa contradicdo manifesta-se da maneira mais palpavel porque sempre foi prerrogativa da politica exigir, em certas circunstincias, 0 sacrificio da vida dos homens que nela participam. $6 que, é claro, essa exigéncia deve ser entendida no sentido de exigit-se do individuo que sacrifique sua vida para o proceso de vida da sociedade; de fato, existe aqui uma relagao que pelo menos impée um limite para o risco de vida: ninguém pode ou deve arriscar sua vida se com isso colocar em perigo a vida da Humanidade, Ainda voltaremos a examinar essa re que como tal chegou & nossa consciéncia porque s6 agora dispomos da possibilidade de por um fim a vida da Humanidade e de toda a vida organica;”' na verdade, quase nao existe uma categoria politica ¢ quase nao existe um conceito politico tradicional que, medido nessa mai jovem possibilidade, nao se tenha demonstrado ultrapassado na teoria e inaplicavel na pritica e, na verdade, justamente porque, em certo sentido, © que esté em jogo hoje, pela primeira vez, também na politica externa, é a vida, ou seja, a sobrevivéncia da Humanidade. Mas essa relagio da propria liberdade com a sobrevivéncia da Humanidade nao risea do mapa a oposigao entre liberdade e vida, na qual se assentou toda « coisa politica e que continua decisiva para todas as vVirtudes especificamente politicas. Até se poderia dizer, com muito direito, que € esse proprio fato, de que hoje © que esté em jogo na politica € a existéncia nua e erua de todos, 0 sinal mais, evidente da calamidade em que nosso mundo caiu — calamidade que, entre outras coisas, consiste em a politica ameacar ser riseada da face da Terra, Pois 0 risco a ser corrido por aquele que lida na esfera politica — na qual deve levar tudo a conselho, antes de sua vida,” — diz respeito nao a vida da sociedade ow da nagdo ou do povo. para o qual ele sacrificaria sua vida; diz.respeito muito mais a liberdade, tanto a prépria como a do grupo ao qual 0 individuo pode pertencer, ¢ com ela a seguranga da existéncia do mundo no qual esse grupo ou esse povo vive, € que ela construiu no trabalho de geragdes para encontrar um alojamento seguro e calculado a longo prazo para agir € conversar — quer dizer para as verdadeiras atividades politicas. * Em circunstancias normais, ou seja, nas circunstancias que eram decisivas na Europa desde a Antigilidade romana, a guerra era de fato apenas a continuagdo da politica por outros meios & isso significa que eli sempre podia ser evitada se um dos adversérios decidisse aceit exigéncias do outro. Tal aceitago poderia custar a liberdade, mas nio a vida. * No original: alojamento de eonfiang. Essas circunstancias, como todos sabemos, hoje nfo existem mais; quando olhamos para trés, elas nos parecem uma espécie de paraiso perdido. Mas se 0 mundo em que vivemos agora também nao deriva e nem se explica — de maneira causai ou no sentido de um processo automético — pelos tempos modernos, mesmo assim ele creseeu no solo desses tempos modernos. No que concetne a coisa politica, isso significa que tanto a politica interna para a qual 0 objetivo mais elevado era a pripria vida como a politica externa que se orientava pela liberdade como © bem mais elevado, viam na forca e no agir violento seu verdadeiro contetido. Por fim, era decisivo que 0 Estado se organizasse, de fato, como ‘portador da forga’ — nio importando se o objetivo dos meios da forga eam determinados pela Vida ou pela liberdade. Em todo caso, a pergunta sobre 0 sentido da politica diz respeito hoje a convenigncia ou inconveniéncia desses meios piiblicos de forga, ela surge do simples fato de a forga que devia proteger a vida ou a liberdade tomar-se tio terrivelmente poderosa que ameaca nfo apenas a liberdade, mas sim a vida. Como ¢ justamente o aumento dos meios estatais de forga que poe em perigo 0 processo de vida de toda a Humanidade, a resposta — em si ja bastante duvidosa — que os tempos modemos oferecem A pergunta sobre o sentido da politica tomou-se hoje duplamente duvidosa. A culpa por ter sido possivel esse monstruoso aumento do meios de forga ¢ exterminio cabe no apenas as invengdes técnicas, mas também ao fato de que o espago puilico-politico tornou- um lugar de forga, nfo apenas no auto-entendimento te6rico dos tempos modernos, mas também na realidade brutal. $6 por isso foi possivel 0 progresso técnico transformar-se sobretudo num progresso das possibilidades de exterminio mtituo, Como em toda parte onde os homens agem em comum, surge 0 poder e como 0 agir em comum dos homens acontece essencialmente no espaco politico, © poder potencial inerente a todos os assuntos humanos se fez valer num espago dominado pela forga. Com isso, surge a ilusdio de que poder e forga seriam a mesma coisa; € nas condigdes modemnas, esse ¢ realmente 0 caso em amplas areas. Porém, poder e forga nio sio a mesma coisa quanto a sua origem ¢ sentido otiginal; em certos sentidos, chegam a set antagonismos. Mas onde a forga, que & um fenémeno do individuo ou da minoria, liga-se ao poder, que 6 possivel entre muitos, surge um aumento monstruoso do potencial de forga — por sua vez, provocado pelo poder de um espago organizado, mas que depois, como todo potencial de forga, aumenta e se desenvolve as custas do poder. A pergunta sobre que papel cabe & forca no trato inter-estatal dos povos, e sobre como dele se pode eliminar 0 uso dos meios de forga, esti hoje, desde a invengdo das armas at6micas, no primeiro plano de toda a politica. Mas o fendmeno do tornar-se-superior da forga as custas de todos os outros fatores politicos & mais antigo: j4 se mostrou na Primeira Guerra Mundial e nas grandes batalhas materiais no teatro de guerra ocidental. O notavel € que esse novo papel funesto de uma forga que se desenvolve de maneira automdtica e aumenta sem cesar, de parte de todos os participantes, pegou os povos, os estudistas e a opinidio ptiblica de forma totalmente despreparada ¢ de surpresa. De fato, o aumento da forga no espago puiblico-estatal consumou-se pelas costas dos homens atuantes, por assim dizer — num século que supostamente € tido como uum dos mais pacificos e menos violentos da Histéria. Os tempos modernos que via com mais, firmeza do que nunea a politica apenas como um meio para a conservagao e fomento da vida da sociedude , em conseqiéneia disso, desenvolveu um esforgo para limitar as competéncias da coisa politica ao mais necessério, puderam imaginar, nao sem raz30, que lidariam com o problema da forga de methor forma que todos os séculos anteriores, O que fizeram, de fato, foi eliminar, por completo, « violencia e 0 dominio direto do homem sobre o homem da esfera na vida social que se alarga sem cessar. A emancipacio da classe operdria e das mulheres, quer dizer, de duas categorias que em toda a hist6ria pré-moderna foram submetidas a forga, indica, da maneira mais clara, © ponto culminante dese desenvolvimento, Nisso queremos deixar em suspenso por enquanto se essa reducdo da violéncia na vida da sociedade pode ser equiparada, de fato, com um ganho de liberdade. Em todo caso, no sentido da tradigio politica, © nio-ser-livre € duplamente determinado. Ele existe quando se & submetido & forga de um outro, mas também existe, e até mesmo mais originalmente, quando se esta sujeito a nua e crua necessidade da vida. A atividade inerente a obrigagao com a qual a prpria vida nos obriga a procurar o necessdrio & o trabalho. Em todas as sociedades pré- ‘modernas, o homem podia libertar-se dese trabalho, forcando outros homens a trabalharem para ele, quer dizer, por meio da forga e da dominacdo. Na sociedade modema, trabalhador nao esté sujeito a nenhuma forga nem a uma dominacio, ele é forgado pela necessidade imediata inerente & propria vida, Portanto, aqui a necessidade substituiu a forga e € duvidoso qual coagao € mais repugnante, a coagio da forga ou a coagio da necessidade. Além disso, todo 0 desenvolvimento da sociedade 86 vai até ali, ou seja, até 0 momento em que a automagao abolir realmente o trabalho, tomando todos os seus membros ‘trabalhadores' na mesma medida — homens cuja atividade, néo importa em que consista, serve sobretudo para obter © necessario para a vida. Também nesse sentido, o afastamento da forga da vida da sociedade teve como conseqtiéneia, em primeira lugar, 0 fato de ser concedido um espago muito maior do que antes a necessidade com a qual a vida coage a todos. Na verdade, a vida da sociedade & dominada nio pela liberdade, mas sim pela necessidade; e nao se trata de um acaso o fato de o conceito de necessidade ter-se tornado to dominante em todas as modernas filosofias da histéria, nas quais © pensamento dos tempos modemos se orienta filosoficamente e procura chegar a um autoconhecimento. © afastamento da forga para fora do ambito do domicflio ¢ da esfera semiptblica da sociedade ocorreu de forma totalmente consciente; para poder existir sem forga na vida cotidiana, 0 homem fortaleceu a forga da mao piiblica, do Estado, da qual a poder continuar senhor por té-la detinido expressamente como um mero meio para o objetivo da vida social, do livre desenvolvimento das forgas produtivas. Nao ocorreu aos tempos modernos que 0s préprios meios de forga poderiam tornar-se ‘produtivos, ou seja, aumentar tanto (e mais ainda até) quanto as outras Forgas produtivas da sociedade; isto porque para ela a verdadeira esfera do produtivo coincidia com a sociedade ¢ nio com o Estado, O Estado era tido como especificamente improdutivo ¢, em caso extremo, como um fendmeno parasitério, Justamente porque se limitou a forga ao ambito estatal que, de mais a mais, estava sujeito, nos govemnos constitucionais, ao controle da sociedade através do sistema de partidos, acreditou-se ter limitado ao mfnimo a propria forga, minimo esse que como tal permaneceria constante. Sabemos que ocorreu o contrétio. A época mais pacifica e menos violenta, vista em te hist6ricos, acartetou o maior e mais terrivel desenvolvimento dos meios de for é paradoxo uparente, O que nio se calculou foi a combinagie especifica de forga e poder que s6 poderia realizar-se na esfera estatal-pablica, porque é nela que os homens agem em conjunto € geram poder, Nao importa quao estreitas sejam as competéncias desse ambito, nem com que exatidao se fazem suas fronteiras através de constituicio € outros controles; 0 simples fato de que ele deve continuar sendo um ambito publico-politico produz poder: e esse poder deve tomnar-se uma calamidade se concentrado quase exclusivamente em torno da forca, como é 0 caso dos tempos modernos, porque essa forga desloca-se da esfera privada do individuo para a esfera publica. Por mais absoluta que possa ter sido a forga do dono da casa sobre sua familia no sentido mais amplo, nos tempos pré-moder-nos — e, com certeza, ela foi grande o bastante para designar © governo da casa de despético no sentido pleno da palavra —, essa forga estava sempre limitada ao individuo que a exercia; era uma forca totalmente impotente que continuava estéril tanto econdmica como politicamente. Por mais funesto que 0 exereicio da forga do dono a casa fosse para os oprimidos, os préprios meios de forga ndo poderiam prosperar nessas circunstincias; nao poderiam tornar-se um perigo para todos porque nao havia um monopélio da forga. Vimos que a concepgao de que a coisa politica € um império dos meios, cujo objetivo & parimetro devem ser procurados fora deles 6 extraordinariamente antiga e também extraordinariamente vener‘vel. Contudo, trata-se daquilo que no mais recente desdobramento se tomnou discutivel, dessas concepgdes que moveram aquilo que originalmente eram fendmenos fronteirigos e marginais da coisa politica — a forga que em certas circunstancias & necessétia para proteger, € o sustento da vida que deve ser assegurado antes que a liberdade politica seja possivel — para o centro de todo agir politico, estabelecendo a forga como meio cujo objetivo mais elevado devia ser a conservacdo € a instituicdo da vida. A crise reside em que o ambito politico ameaga aquilo por cuja causa ele parecia justificado, Nessa situagao modifica-se a pergunta sobre o sentido da politica. A pergunta hoje quase nao é: qual é o sentido da politica if inatio imals citival ao denlimenio doe poor quo por toda partes entent amedpadiou’ pela politica e nos quais os methores se distanciam da politica de maneira consciente que a pergunta seja: tem a politica ainda algum sentido? As opinides sobre o que € a politica de fato servem de base para as questdes que esbogamos em restumo, Essas opinides quase no mudaram no decorrer de muitos séculos. Mudou apenas aguilo que originalmente era contetido de juizos, que provinham diretamente de determinadas i politica a partir da experiéneia do filésofo ou do cristio, bem como a corregao de tais juizos © a justificagio limitada da c politica —, € que ha muito tempo ja se torou preconceito. Os preconceitos sempre desempenham um grande ¢ legitimo papel no espaco ptiblico-politico. Eles dizem respeito Aquilo que todos nés compartilhamos sem querer uns com os outros e onde nao julgamos mai porque quase nao temos mais oportunidade de ter a experiéncia direta. Todos esses preconceitos, silo juizos passados, desde que sejam legitimos e niio meros boatos. Nenhum homem pode viver sem eles porque uma vida sem nenhum preconceito exigiria um estado de alerta sobre-humano, uma prontidio que nao se pode ter de modo constante para a todo momento se encontrar e se deixar atingir pela totalidade da realidade, como se cada dia fosse o primeiro ou © Dia do Juizo Final, Portanto, preconceitos e disparates ndo sio a mesma coisa. Justamente porque os preconceitos sempre tém uma legitimidade inerente a eles & que se deve aventurar-se com eles apenas quando eles nao preencherem mais sua fungdo; significa quando nao mais adequados para tirar uma parte da realidade do homem julgante. Mas é justamente af, quando os preconceitos entram em evidente conflito com a realidade, que comecam a se tornar perigosos, € os homens que nao se sentem mais protegidos deles em seu pensamento, comecam a fantasis- los e transformé-los em fundamento daquela espécie pervertida de teorias, em geral chamadas de ideologias ou de mundividéncias. Contra tais formagSes de ideologia surgidas de preconceitos, de nada adianta a apresentagio de uma visio de mundo oposta A respectiva ideologia corrente, mas sim apenas a tentativa de substituir os preconceitos por juizos. Nisso é {vel que se reduza o preconceito ao juizo nele contide e esse juizo, por seu tumno, & nia nele contida e da qual ele nascew. Os preconceitos que, na crise de hoje, se opdem a uma compreensio tedrica daquilo que esté em jogo, de verdade, na politica, dizem respeito a quase todas as categorias politicas nas quais estamos habituados a pensar — mas sobretudo a categoria meio-objetivo que entende a coisa politica como um fim situado fora de si mesmo, além da concepeao de que o contetido da coisa politica é a fora e, por fim, a conviegio de que o dominio é o conceito central da teoria politica. ‘Todos esses juizos ¢ preconceitos nascem de uma desconfianca contra a politica, em si no injustificada, Mas essa antiquissima desconfianga transformou-se no preconeeito atwal contra a politica, Por tras dela esta, desde a invengao da bomba atémica, o medo muitissimo justificado de que a Humanidade poderia apagar-se do mapa por meio da politica e dos meios de forga A sua disposigfo, E dese medo que nasce a esperangu de a Humanidade ter juizo e, ao invés de se eliminar, elimine a politica, Essa esperanca nao é menos justificada do que aquele medo. Pois a concepgao segundo a qual a politica existiu sempre e em toda parte onde existiram e existem homens, é ela propria um preconceito; o ideal socialista de uma condicao final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, signifiew sem politica, nio é de maneira alguma ul6pivo: $6 € pavoroso.” Esta na natureza de nosso objeto, no qual sempre temos a ver com a maioria € 0 mundo surgido entre ela, a opinido publica nao ser omitida em seu tratamento. Porém, de acordo com essa opinidio publica, a pergunta sobre o sentido da politica acendeu hoje por completo na ameaga a0 homem através da guerra e das armas atémicas. Desse modo, é essencial que comecemos nossa discussaio com uma reflexao sobre a questao da guerra, Fragmento 3c Capitulo TI: A Questo da Guerra* A) A Guerra total?* Quando a primeira bomba atomica caiu sobre Hiroshima, provocando um fim répido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror percorreu o mundo. Naquela época ainda nao se podia saber quio justificado era esse horror. Uma tinica bomba atémica arrasou uma cidade, fazendo em apenas poucos minutos 0 que o emprego sistemético de ataques aéreos precisaria de semanas ow mesmo meses. Que a condugdo da guerra, de novo como na Antigtiidade, podia dizimar nfo apenas os povos com ela relacionados, mas também podia iransformar num deserto o mundo por cles habitado, era do conhecimento dos especialistas desde 0 bombardeio de Coventry e do conhecimento de todo 0 mundo desde os ataques em massa, com bombas, as cidades alemas. A Alemanha jé era um campo de ruinas, a capital do pais um monte de escombros, e a bomba atOmica tal como a conhecemos da Segunda Guerra Mundial — se bem que j4 representasse algo absolutamente novo na hist6ria da ciéneia — estava no cardépio da moderna conduco da guerra e dai no Ambito dos assuntos humanos, ou melhor, inter-humanos, dos quais a politica trata. Nao mais como o ponto culminante, alcangével por um salto ou num curto-circuito, através dos quais por assim dizer, 0 acontecer avanca com velocidade sempre alucinante © Manuscrito reviste ¢ atualizado a partir de Introdugiie: Tem a Po &* Manuscrito revisto ¢ atualizado a partir de: A guerra de exterminio. ainda algum sentido? Além disso, a destruigio do mundo ¢ o exterminio da vida humana por meio da forga no sio novos nem terriveis e aqueles que sempre achavam que uma condenacio pura e simples da forca acabaya no final numa condenacao da coisa politica, s6 deixaram de ter razao ha poucos anos, ‘mais exatamente desde a invengo da bomba de hidrogénio. Na destruigao do mundo, nada é destrufdo a nio ser um produto da mao humana, e a forga que ¢ empregada para isso corresponde, da maneira mais exata, 2 violéncia que é inerente, de forma indissoltivel, a todos os processos humanos de produgao. Os meios de forca necessarios para a destruigao so criados, por assim dizer, 4 imagem semelhanga das ferramemtas de producio, ¢ o instrumentério técnico de cada época abrange ambas as coisas na mesma medida. O que os homens produzem também pode ser por eles destruido; 0 que destroem também pode ser por eles reconstruido. O poder destruir e 0 pocler produzir esto em equilibrio. O vigor que destréi o mundo e Ihe cau! violencia tem o mesmo vigor das mios que violentam a Natureza ¢ destréi uma coisa natural — talvez uma érvore para obter madeira e para produzir algo de madeira —, para moldar o mundo. Porém, nao esté em vigéncia incondicional o fato de que o poder destruir ¢ 0 poder produzir esto em equilibrio. Isso 86 é valido para o produzido por homens, ndo para 0 Ambito menos palpdvel e nem por isso menos real das relagdes humanas, que surgiram através do agir no sentido mais amplo. Mais tarde retornaremos a isso." O decisive para nossa situacio de hoje € que, no verdadeiro mundo material, sé pode haver equilibrio entre destruir e reconstruir enquanto a técnica tenha a ver apenas com puros processos de produgio e tal no é mais 0 caso desde a descoberta da energia atomica, embora vivamos hoje num mundo, em média, ainda determinado pela Revolugio Industrial. * Veja mais adiante neste fragmento, pp. e sees. 108,123 ese ‘Também nesse mundo niio temos mais a ver apenas com cois: ‘que aparecem de novo, transformadas de uma maneira ou de outra, no mundo moldado pelos homens, mas sim com processos naturais gerados pelos homens através da imitagio e conduzidos diretamente para 0 mundo dos homens. Ji € caracteristico desses processos que se desenrolam de modo idéntico ao processo num motor a explosio, produzindo portanto, em termos histGricos, eatéstrofes, ada uma dessas explosdes ou catistrofes propulsionande o processo, Nés nos encontramos, em quase todas as areas da vida, num processo assim, no qual as explosdes e catdstrofes significam no apenas o declinio, mas também um progresso continuo incitado por elas — mas por enquanto nio deve ser levado em consideragio em nosso contexto cariter discutivel dessa espécie de progresso. Talvez a melhor maneira ‘politica’ de imaginar isso seja o fato de a catastréfica derrota da Alemanha ter contribufdo, de maneira essencial, para tornar a Alemanha o pafs mais moderno e progressista da Europa, ao passo que ficaram para tras, 08 pafses que, como a América, ndo sdo tdo exclusivamente determinados pela técnica, nos quais a velocidade do proceso de produgdo e consumo torna supérfluas as catistrofes por enquanto, ou os paises como a Franga que passaram por uma catistrofe palpavelmente destruidora. O equilibrio entre produzir e aniquilar nao € perturbado através dessa técnica moderna e do processo com o qual ela comprometen o mundo dos homens. Pelo contrario, parece que essas capacidades estreitamente andlogas soldaram- se de forma indissoldvel nesse processo, de tal modo que produzir e destruir, mesmo quando executados nas maiores medidas, se manifestam no final como duas fases dificeis de serem separadas uma da outra, do mesmo processo do progresso, no qual — para escolher um exemplo do dia a dia — a demoligo de uma casa € apenas o primeira estagio da construgio, ¢ a construgao dessa casa, planejada apenas para um determinado tempo de vida, jd pode ser inclufda num processo incessante de demolir e reconstruir. ‘Tem-se duvidado, com freqiigncia e com certa razdo, que o homem, em meio a esse proceso do progresso por ele mesmo desencadeado, que transcorre necessariamente de ‘maneira catastréfica, ainda possa continuar sendo senhor e mestre do mundo por ele construido e dos assuntos humanos. Nisso, permanece sendo constemador o surgimento das ideologias totalitarias, nas quais 0 homem ja se entende como expoente desse processo calastr6fico por ele mesmo desencadeado, cuja fungdo essencial consiste em estar a servico do processo do progresso e propulsiona-lo cada vez mais ripido. Porém, a respeito dessa adequabili-dade inquietante, ndo se deve esquecer que isso so apenas ideologias e que também as forgas da Natureza que o homem forgou a permanecerem a seu servigo, ainda devem ser calculadas em cavalo-vapor,* quer dizer, em unidades naturalmente conhecidas, devidamente deduzidas do meio-ambiente imediato do homem. Se 0 homem consegue dobrar ou centuplicar sua propria forga por meio da utilizagio da Natureza, entio se pode ver nisso uma violentagio da Natureza ao se concordar com a Biblia, segundo a qual o homem foi criado para cuidar da terra e para servi-la, € ndo o contrério, ou seja, forgé-la a ficar as suas ordens. Mas nao importa quem serve quem aqui, ou quem foi predeterminado por decreto divino para estar a servigo: de qualquer modo continua incontestivel que a forga do homem, tanto como forga produtiva ou mao-de-obra, é um fenémeno da Natureza, sendo o poder inerente a essa forga. * No original: cavalo-forga, Portanto, € natural que, por fim, enquanto o homem tiver a ver com as forgas da Natureza, permanece num Ambito terrestre-natural ao qual ele e sua propria forga pertencem, pelo fato de ser um ser vivo organico, Isso nao se modifica pelo fato de ele empregar a propria forga junto com a forga retirada da Natureza para produzir algo totalmente nio-natural, ou seja, um mundo — algo que nfo se realizaria sem ele, de ‘maneira apenas ‘natural’, Ou dito de outra maneira: enquanto o poder produzir e 0 poder destruir estiverem em equilibrio, tudo ainda estaré acontecendo de certa forma correta, € © que as ideologias totalitérias declararem sobre a escravizagao do homem nos processos por ele desencadeados €, afinal de contas, um fantasma ao qual se opde © f:to de os homens continuarem sendo senhores do mundo por eles construido e mestres do potencial de destruigio por eles produzido. Tudo isso s6 poderia ser modificado com a descoberta da energia atémica, ou seja, com a invencio de uma técnica propulsionada por processos de energia nuclear. Pois, aqui nao sio desencadeados processos naturais, mas sim processos que nao acontecem na natureza terrestre, Jo conduzidos para a Terra pata produzir 0 mundo ou destruir 0 mundo, Esses préprios processos provém do Universo que cerca a Terra, e © homem que os coage com sua forga, age aguli nfo mais como um ser vivo natural, mas como um ser que, apesar de s6 poder viver sob as condicdes terrestres ¢ de sua natureza, pode, entretanto, ambientar-se também no Universo. Essas forcas universais nao podem ser medidas mais em cavalo-vapor ou alguma outra medida natural e como elas slo de natureza ndo-terrestre, podem destruir a natureza da Terra assim como 0s processos naturais manipulados pelo homem podem destruir 0 mundo construido pelo homem, © horror que se apoderou da Humanidade quando se ouviu falar da primeira bomba at6mica foi um horror em relagao a essa forga oriunda do Universo, quer dizer, no sentido mais verdadeiro da palavra, uma forga sobrenatural; a extensiio das casas e ruas destruidas assim como o néimero de vidas humanas exterminadas 6 tiveram importincia pelo fato de a fonte de energia recém- desco-berta causar, logo em set nascimento, morte ¢ destruigdo na maior escala, possuida de uma tremenda forga simbéilica capaz de ficar gravada na meméria. Esse horror mesclou-se € logo foi sobrepujado pela indignagio nao menos justificada e, no momento, muito mais atual porque a superioridade absoluta da nova arma foi experimentada em cidades habitadas, superioridade essa que poderia ter sido demonstrada tio bem quanto — € politicamente nio com menos eficdcia — num deserto ou numa ilha desabitada. Também nessa indignago ficou-se sabendo com antecipacao de algo do qual s6 sabemos hoje, que na verdade € monstruoso, ou seja, o fato nfo mais negado pelo estado-maior das grandes poténeias, de que uma guerra, depois de posta em andamento, sera conduzida necessariamente com as armas que estiverem a disposigio das respectivas poténcias que a esto travando. Isso s6 ¢ natural se 0 objetivo da guerra nao for mais limitado ¢ seu fim nao for mais um acordo de paz entre os governos em litigio, sendo que a vit6ria deve produzir 0 aniquila-mento estatal ou até mesmo fisico do adversirio, Essa possibilidade s6 foi expressada de maneira vaga na Segunda Guerra ‘Mundial, pois jai estava embutida na exigéncia de uma capitulagio incondicional, apresentada 2 Alemanha [e] a0 Japio, mas 56 foi realizada em todo seu horror quando as bombas atémicas demonsiraram, de repente, para © mundo inteito que, no caso das ameagas de completo exterminio, nio se tratava de conversa fiuda vazia, sendo que ja estavam disponiveis, de fato, os meios necessdrios para isso. Com certeza, hoje ninguém mais duvida que uma terceira guerra mundial, no desenvolvimento consequente dessas possibilidades, dificilmente terminaré de outra maneira que nao com o exterminio dos detrotados, Todos nés jd estamos tao presos no feitigo da guerra total que quase no conseguimos imaginar que, depois de uma guerra entre a Raissia e a América, a Constituigdo americana ou 0 regime atual russo possa sobreviver a uma derrota. Mas isso significa que, numa guerra futura, nao estar em jogo o ganho ou a perda do poder, as fronteiras, mercados de venda e espago vital, quer dizer, coisas que em si poderiam ser alcangadas sem a forga, no caminho da negociagio politica. Com isso, a guerra deixou de ser a lutima ratio das negociagdes que ocorrem em conferéncias, nas quais os objetivos da guerra eram assentados no momento da suspensio das negociagdes, de modo que as agGes militares que eclo-diam depois nada mais eram, de fato, que a continuagao da politica por outros meios. Aqui trata-se muito mais de alzuma coisa que jamais poderia ser, de maneira natural, objeto de negociagdes, truta-se da existéncia nua e crua de um pafs ¢ de um povo. Somente nesse estigio —em que a guerra no pressupde mais como vidvel « coexisténeia das partes inimigas e s6 quer liquidar, de maneira violenta, os conflitos surgidos entre elas — a guerra deixou realmente de ser um meio da politica ¢ comega, na condigao de guerra de exterminio, a romper os limites impostos A coisa politica e, com isso, a Se auto-exterminar. Essa conduedo da guerra total, como se diz. hoje em dia, tem sua origem, como se sabe, nas formas de dominio totalitario, com as quais esté forcosamente associada; a guerra de exterminio € a tnica guetta conveniente ao sistema totalitério, Foram paises de governo totalitério que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram necessariamente a lei de seu agir ao ‘mundo nio-totalitérie. Mas quando um prinefpio de tamanha envergadura vem ao mundo, & quase impossivel limité-lo a talvez um conflito entre paises totalitérios ¢ ndo-totalitérios. Isso ficou patente quando a bomba atémica foi empregada contra o Japao e ndo contra a Alemanha de Hitler, para a qual ela foi originalmente produzida, O revoltante nesse caso foi, entre outras coisas, 0 fato de que se lidava, na verdade, com uma poténcia imperialista, mas nao com uma poténcia totalitaria, © horror que se propaga a todas as considerag6es poli-ticas-morais ea imediata indignagao reagente politica e moral tinham em comum a compreensao do que a guerra total significava, de fato, ¢ o reconhecimento de que a conducao da guerra total era um fato consumado no apenas para os paises de govemo totalitirio e os conflitos por eles causados, mas sim para o mundo todo. Aquilo que a prine: impossivel desde os romanos e, de fato, nos tr8s ou quatro séculos que chamamos de tempos modemnos, posto que nio estava mais no eoragdo do mundo eivilizado o exterminio de povos inteiros e o arrasar de civilizagées inteiras, foi empurrado, de novo, de um s6 golpe, para © ambito do possivel-possfvel-demais. Essa possibilidade, embora nascida como resposta para uma ameaga totalitéria — uma vez que quase nenhum cientista teria pensado em produzir a bomba atémica se ndo precisasse recear que a Alemanha de Hitler pudesse fabricar e empregar a bomba —, tornou-se de imediato uma realidade que quase nao tinha mais a ver com o motivo que causou seu surgimento, Aqui, talvez pela primeira vez nos tempos modemos — embora de maneira nenhuma na hist6ria por nés recordada, ultrapassou-se uma restrigio inerente ao agir violento, segundo a qual a destruicdo resultante dos meios de forga deve ser sempre parcial, deve sempre concemnir apenas a partes do mundo e a um niimero de vidas humanas arranjado, mas jamais ao pais inteiro ou a um povo inteiro. Mas aconteceu com bastante freqiéncia na Histéria o mundo de um povo inteiro ser arrasado, os muros da cidade demolidos, os homens assassinados ¢ a populacio restante vendida como escrava, € s6 os séculos dos tempos modetnos nfo quiseram mais acreditar que isso pudesse acontecer. Sempre se soube, de maneira mais ou menos expressa, que isso representa um dos poucos pecados mortais da coisa politica, Os pecados mortais. ou, falando de modo nio patético, a transposigio da fronteira inerente a0 agir violento consiste em duas coisas distintas: por um lado, o matar diz respeito aqui nio mais a maiores ou menores mimeros de homens — que, alias, morretiam de qualquer forma — mas sim a um povo e sta 0 politica que nao sao imortais na possibilidade e, no é intengio, O que € morto, aqui, nio ¢ algo mortal, mas sim algo possivelmente imortal. Além disso e na mais estreita relagao com isso, a violéncia estende-se aqui nao apenas ao produzido que, por seu lado, também surgiu através da forga e que, por conseguinte, pode ser construido de novo por meio de um esforgo poderoso, mas sim a uma realidade politica-histérica alojada nese ‘mundo produzido, que, como nao foi produzida, tampouco pode ser restaurada de novo. Quando um povo perde a liberdade estatal, perde sua realidade politica, mesmo que consiga sobreviver fisicamente. O que sucumbe aqui é um mundo de relagdes humanas, surgide nao por meio do produzir, mas sim do agir ¢ do falar, que em si jamais chega a um fim € que — embora tecido com a coisa mais fugidia que existe, a palavra passageira e © fato rapidamente esquecido — é priprio de uma solidez tao terrivelmente tenaz que, em certas circunstincias, como talvez no caso do povo judeu, pode sobreviver milénios a perda do palpavel mundo produzido. Isso, porém, é uma excegio e, em geral, s6 pode existir dentro do mundo produzido, através do sistema de relagoes surgidas a partir do agir, no qual © passado continua vivendo na forma da Histéria que fala e sempre persuade, em cujo mundo pedras se aninham até também falarem, testemunharem falando — mesmo que se tenha que desenterré-las do seio da terra, E verdade que todo esse Ambito verdadeiramente humano que forma a coisa politica no sentido mais estreito pode sucumbir através da forga, mas ele nao surgiu da forga e a determinagao nele contida nao é um fim por meio da forga Esse mundo de relagdes nao surgiu através da forga ou do vigor individual dos individuos, mas sim através do estar junto de muitos individuos fazendo com que surgisse o poder e, na verdade, um poder diamte do qual até mesmo a maior forca do individuo se toma impoténcia. Esse poder pode ser enfraquecido por meio de todos os fatores possiveis, assim come pode ser renovado de novo por meio de todos os fatores possiveis; s6 4 forca pode liquidé-lo em definitive, quando esta se torna total € no deixa, textualmente, pedra sobre pedra, homem ao ludo de homem. Ambas as coisas’ estio na esséncia da dominagao total que, em termos de politica interna, nao se contenta em restringir o individuo, porém aniquila todas as relagdes inter-humanas por meio do terror sistemiitico. A ele corresponde a guerra total que nao se contenta com a destruigao de pontos militares importantes isoludos, sendo que arregaga as mangas — e pode arregagar as ‘mangas em termos da técnica — para aniquilar todo o mundo surgido entre os homens. Seria relativamente facil demonstrar que as teorias politicas € os cédices morais do Ocidente sempre tentaram excluir a verdadeira guerra de exterminio do arsenal dos meios politicos; supostamente seria mais Heil ainda mostrar que a eficiicia dessas teorias ¢ exigencias nao andou muito bem das peas. Esta estranhamente na natureza dessas coisas — que, no sentido mais amplo, diz respeito ao nivel de civilizagao que © homem impie a si mesmo — que para elas vale a palavra de Platdo, segundo a qual é a arte poética com as imagens e modelos por ela cunhados* que "forma os descendentes adornando milhares de feitos dos pais da humanidade" ( Fedro, 245)." No original: .. naturera dessas coisas que, no sentido mais amplo, dizem respeito ao nivel de civilizagia dos homens atto-impasto, que para clas vale a palavra de Platio, segundo a qual a arte pottica © as imagens © modelos por ela cunbatlos sao, Nu Antigtidade, pelo menos no que dizia respeito & pura coisa politica, o maior objeto desses adommos formadores foi a Guerra de Trdia, em cujos vitoriosos os gregos viamn seus avés e em cujos derrotados os romanos viam os seus. Assim, eles se tornaram, como Mommsen costumava dizer, "o povo gémeo'“"da Antigiiidade, porque um mesmo € nico empreendimento era tido para ambos como 0 comeco de sua existéncia histérica. Essa guerra dos gregos contra Tréia — que terminou com um aniquilamento to completo da cidade a ponto de, até tempos bem recentes, chegar-se a acreditar que ela nunca existiu — poderia valer, com certeza, ainda hoje como primeiro exemplo da guerra de exterminio. Assim, para uma reflexao sobre o significado politico da guerra de exterminio que nos ameaga de novo pode-se ser permitido recordar mais uma vez esses acontecimentos mais antigos e seus adornos — sobretudo porque nos adornos dessa guerra tanto gregos como romanos determinaram, de uma maneira multiplamente ligada e multiplamen-te oposta para si, € com isso, em certa medida também para nds, 0 que politica devia significar originalmente e que espaco ela* devia ocupar na Historia. Nisso, é de impor decisiva o fato de a cangio de Homero nao calar a respeito do homem vencido, de testemunhar por Heitor nao menos que por Aquiles e — embora a vitéria gtega e a derrota troiana tenham sido decididas e garantidas de antemao no conselho dos deuses — de essa vit6ria nao fazer Aquiles maior e Heitor menor, a causa dos gregos mais justa e a defesa de Troia ndo injusta, Homero também cantou a guerra de exterminio que ficava séculos atras de tal maneira que, em certo sentido, ou seja no sentido da recordagio poética ¢ histérica, anulava de novo o exterminio. Essa grande imparcialidade de Homero — que nao € nenhuma objetividade no sentido da moderna liberdade de valores, mas sim no sentido da liberdade mais completa de interesses e da mais completa independéneia do juizo da Historia, que em comparagao com ela consiste no juizo do homem atuante e de seu conceito de grandeza — esti no comego de todo 0 registro histérico, nfo apenas o ocidental; posto que algo como isso que entendemos por Histéria no existia antes e em parte alguma, o que nio torna o exemplo homérico ‘menos eficiente, pelo menos indiretamente, No manuserito ests eserito "isso", que poderia fazer referGneia& “coisa politica", ao invés de “politica E a mesma idéia que reencontramos na introdugio de Herddoto, quando diz querer impedir que "feitos grandiosos ¢ maravilhosos, tealizados em parte por helenos e em parte por barbaros, caissem no esquecimento"* — ou seja, uma idéia que, como Burckhardt observou um dia com razao, "nenhum egipcio ou judeu poderia ter tido".”” Sabe-se que o esforgo grego para transformar a guerra de exterminio numa guerra politica jamais prosperou além da salvagio dos exterminados e vencidos, feita por Homero — posterior e poeticamente determinada e recordativa da Hist6ria e por essa incapacidade sucumbiram, em tiltima andlise, as cidades-Estados da Grécia, No que dizia respeito & guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinagao da coisa politica. Ela formou a polis em torno da agora homérica, o local de reunido ¢ conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira ‘coisa politica’ — ou seja, aquilo que 86 é proprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os barbaros e a todos os homens nao-livres — em torno do conversar-um-com-o-outro, 0 conversar~ com-0-outro ¢ 0 conversar-sobre-algu-ma-coisa, e viu toda essa esfera como simbolo de um peitho divino, uma forga convincente e persuasiva que, sem violencia e sem coacio, reinava entre iguais e tudo decidia, Em contrapartida, a guerra e a forga a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa politica, que surgia e [era] valida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violéncia em relagio a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua propria opinidio, comportava-se de maneira ‘apoli-tica’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de prinefpio dos cidadaos, entre os quais nao devia haver nenhum reinante ¢ nenhum vassalo, Justamente porque o agir guerreiro nao pode dat-se sem ordem e obedigncia e ser impossivel deixar-se as decisdes por conta da persuusiio, um ambito no-politice fazia parte do pensamento grego. Entretanto, a esse ambito pertencia, no fundo, tudo aquilo que entendemos por politica externa; aqui, a guerra ndo é a continuagio da politica com outros meios, mas sim, ao contrario, © negociar ¢ o firmar tratado eram sempre entendides como uma continuagao da guerra por outros mei com os meios da astiicia e da fraude. Mas, a eficacia do homérico sobre © desenvolvimento da polis grega no se esgotou nessa climinagao apenas negativa da forga para fora do Ambito da coisa politica, o que 6 teve como consequéneia as guerras, tal como antes, serem conduzidas segundo o principio de que o mais forte faz. 0 que pode, e © mais fraco suporta o que precisa suportar.” © verdadeiro homérico na representaco da Guerra de Trdia s6 teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em si forma de organizacio 0 conceito da luta como uma forma de convivio humano nfo apenas legitimo, mas também o mais elevado, em certo sentido. O que em geral se chama de espirito agonal dos grezos e que, sem dtivida, ajuda a explicar (se € que alzo assim deve ser explicado) que nés encontremos, nos poucos séculos de seu apogeu, uma genialidade maior e mais, significativa — concentrada em simplesmente todas as éreas do espitito — do que em qualquer outra parte, no é, de maneira alguma, aquele esforgo para se mostrar como © melhor sempre € em toda parte, do qual Homero ja fala e que, de fato, possufa tamanha importancia para os gtegos: existe, inclusive, em set idioma um. verbo para isso, de modo que aristeucin (ser 0 melhor) podia ser entendido ndo apenas como um esforgo, mas sim como uma atividade que preenchia a vida, Essa competicio miitua tinha seu prottipo na luta de Heitor e Aquiles que, independente de vit6ria e derrota, dé oportunidade a cada um deles de se mostrar como & de verdade — para se por em evidéncia realmente ¢ com isso tomar-se completo, de fato. FE muito marecido com a guerra entre gregos ¢ troianos, que dé a ambos a oportunidade de se manifestar por completo, e que corresponde a uma contenda dos deuses que nio apenas dé o pleno ignificado a luta que estd sendo travada na tetra, mas também indica, da maneira mais clara, que nos dois lados hé algo de divino, muito embora um desses lados esteja consagrado para a derrota. A guerra contra Troia tem dois lados, e Homero a vé com os olhos do troiano nao ‘menos que com os olhos dos gregos. Essa maneira homérica de demonstrar que todas as coisas tém dois lados, que s6 se manifestam na luta, também serve de base para a palavra de Heréclito, de que a guerra "€ o pai de todas as coisas’."' A violencia da guerra em todo seu terror origina- se aqui ainda diretamente na forga e poténcia do homem, que s6 pode dar provas dessa forca inerte nele se for enfrentado por alguma coisa ou alguém e entio possa demonstrit-la. © que em Homero manifesta-se ainda nio-separado — a violenta forga dos grandes feitos € a forca inresistivel das grandes palavras que os acompanham e que justamente por isso convencem a reunido de homens, que véem e ouvem — encontramos mais tarde, jd separadas com bastante clareza uma da outra, nas competigdes — as tinieas ocasides em que a Grécia inteira se reunia para admirar as forgas desenvolvidas sem violencia — e nos desafios de orul6ria e no incessante falar miituo dentro da polis. Nisso, a bila-teralidade das coisas que em Homero se dew imediatamente no duelo, recai exelusivamente no mbito do falar, onde toda vitéria torna-se tio ambigua quanto a vitria de Aquiles, ¢ uma derrota pode tornar-se tio gloriosa quanto a de Heitor. Mas nos desafios de oratoria nao se fiea nos dois kados dos oradores que se manifestam neles como pessoas, se bem que € inerente a cada discurso, de maneira imperiosa, ndo importa 0 quio ‘objetivo possa apresentar-se, ele também revelar-se para o orador, de uma forma dificil de se aprender, mas nem por isso menos penetrante e essencial. Aqui. a bilateralidade com a qual Homero péde poetar a Guerra de Troia como um todo, torna-se uma infinita variedade dos assuntos discutidos: desde que discutidos por tantos na presenca de muitos outros, so atraidos, para a luz da publicidade, onde sio forgados, por assim dizer, a revelarem todos seus lados. Somente em (al universalidade uma tinica e mesma coisa pode revelar-se em toda sua realidade, sendo preciso ter presente que cada coisa possui tantos lados e pode revelar-se em tantas perspectivas quantos homens nela participam. Uma vez que 0 espago pablico-politico € para 0 regos a coisu comum (koinon), na qual todos se retinem, ele € o Ambito onde s6 entdo todas as coisas podem revelar-se em toda sua universalidade, Essa capacidade fundada em tiltima andlise na imparcialidade homérica, de ver a mesma e tinica coisa primeito de lados opostos e depois de todos 05 lados, que nao tem rival na Antigiidade € até nosso tempo ainda nao foi superada em su intensidade emotiva, ainda serve de base para os truques dos sofistas cuja importincia para a libertagio do pensamento humano das ligagdes dogméticas ¢ subestimada, quando, seguindo-se © exemplo de Platio, se a condena moralmente. Contudo, essa extraordindtia capacidade do argumentar tem importancia de segunda categoria para a constituigao da coisa politica, que se realizou pela primeira vez na polis. O decisivo nio é dar-se voltas em argumentos, nem se que possa por alirmagies de cabeca para baixo, mas sim que se adquiriu a eapacidade de ver, de fato, as coisas de diferentes lados: isso significa, politicamente, que passou-se a saber abranger as muitas posigdes possiveis no mundo real, a partir das quais a mesma coisa pode ser contemplada e nas quais apresenta os aspectos mais distintos, apesar de seu cariter particular sso 6 muitissimo mais que a eliminagio do proprio interesse, na qual s6 se ganhou coisas negativas e, além disso, ainda existe o perigo de, com a interrupcio do interesse, se perder a ligago com o mundo e a simpatia por seus objetos e as coisas que se passam nele. A capacidade de se ver a mesma coisa dos pontos de vista mais distintos permanece no mundo dos homens, apenas troea a sua prépria posigio natural pela posigdo dos outros, com os quais se ests junto no mesmo mundo; consegue-se assim uma verdadeira liberdude de movimento no mundo do espiritual, que corre em paralela exata com a liberdade de movimento do fisico. © persuadir- lum-a0-0Utro @ 0 convencer-um-20-0utro que era o verdadeiro modo do trato politico dos cidadios livres da polis, pressupunha uma espécie de liberdade que nio era ligada imutavelmento, em termos espirituais ou fisivos, ao proprio ponto de vista ou posig Seu ideal caracteristico ¢ com isso 0 pardmetro para a especifica aptidao politica situa-se na Phronesis, aquela compreensio do homem politico (do politikos, nfo do estadista qe nio existia em absoluto dentro desse mundo) que tem tio pouco a ver com sabedoria que Aristételes alé pide definir em acentuada oposigdo a sabedoria dos fil6sof0s. Compreensio num estado de coisas politico no significa outra coisa que ganhar e ter presente a maior visio geral das possiveis posigdes e pontos de vista, dos quais o estado de coisas pode ser visto e a partir dos quais pode ser julgado. Quase nio se falou dessa phronesis através dos séculos, que em Aristoteles é a verdadeira virlude cardinal da coisa politica. $6 a encontramos de novo em Kant 1a explanagio da razio saudavel do homem como um bem do juizo. Ele a chama de "maneira de pensar ampliada” e a define expressamente como a capacidade "[de] pensar no lugar de todos, 6s outros". mas infelizmente continua sendo caracteristico que essa capacidade politica par excellence quase no desempenha um papel na filosofia politica prépria de Kant, do desenvolvimento do imperativo categérico. Pois a validade do imperativo categérico ¢ deduzida do "pensamento-em-unfs-sono-com-si-mesmo"," ¢ a razo legislativa no pressupde os outros, n apenas um eu nio contraditorio. Na verdade, o verdadeiro bem politico na filosofia de jadora, mas sim o discernimento do qual é préprio conseguir nio se privadas subjetivas do juizo".* No sentido da polis, © homem politico, em sua exceléncia peculiar, era ao mesmo tempo o mais livre, porque tinha a maior liberdade de movimento em virtude de sua compreensio, sua lade de tomar em consideragdo todas as posigies Mas é importante ter presente que essa liberdade da coisa politica dependia, por completo, da presenga © da igualdade de direitos de muitos. Uma coisa s6 pode mostrar-se sob muitos aspectos quando muitos estio presentes, aos quais ela aparece em respectivas projecdes diferentes. Quando esses outros com direitos iguais ¢ suas opinides particulares so abolidos, como talvez numa tirania na qual tudo e todos sdo sacrificados para o ponto de vista do tirano, hinguém € livre e ninguém esté apto para a compreensio, nem mesmo o tirano. Além disso, essa liberdade da coisa politica, que em seu aperfeigoamento mais elevado coincide com a compreensio, niio tem © mfnimo a ver com nosso livre-arbitrio, ou com a libertas romana, ou com © cristio liberum arbitrium; de fato, tem to pouco a ver que falta a palavra para tal no idioma grego. O individuo em seu isolamento jamais é livre; ! s6 pode sé-lo quando adentra 0 solo da polis e age nele. Antes de a liberdade se tornar uma espécie de distingao de um homem. ou de um tipo de homem — talvez do grego contra os barbaros —, ela é um atributo de uma determinada forma de organizacio de homens entre si, e nada mais, Seu local de origem jamais esta situado num interior do homem, nao importa com que forma, em sua vontade ou em seu pensamento ou em seu sentir, mas sim no interespago que s6 surge quando muitos se retinem & que 86 pode existir enquanto . ficarem juntos. Existia um espago da liberdade e era livre aquele nele admitido, e nio-livre aquele dele excluido. O direito de admissio e, portanto, de liberdade era um bem para o individuo que sobre o destino de sua vida nao decidia de maneira diferente da riqueza e da satide. Assim, a liberdade era para 0 pensamento grego enraizada, lizada a uma posigao e limitada espacialmente, ¢ as fronteiras do espago da liberdude coincidiam com os muros da cidade, da polis ou, dito de forma mais exata, da agora nela encerrada, Fora dessas fronteiras situavase, por um lado, o estrangeiro no qual no se poderia ser livre, posto que nele nfo se era mais um. cidadao ou, melhor, um homem politico; e por outro, a casa particular na qual tampouco se poderia ser livre porque faltavam os demais com igualdade de direitos, que juntas eonstitufam 0 espago da liberdade, Esse Gltimo era de importincia ainda mais decisiva para o eonceito romano moldado de maneira bem diferente, sobre o que é a coisa politica, a coisa publica, a res publica ou repuilica. Para os romanos, a familia eafa tanto no Ambito dos nao-livres que Mommsen traduziu a palavra familia, de maneira sumaria, por "servidao'.* Porém, a razio para essa servidao 6 dupla; em primeiro lugar, residia em que p pater familias, o dono da casa, reinava como um verdadeiro monarea ou déspota sozinho sobre sua casa multiforme, composta de mulher, filhos e eseravos; portanto, faltavam-the as pessoas com igualdade de direitos diante das quais ele poderia aparecer em liberdade, Em segundo lugar, essa casa dominada por um nao podia ser admitida em nenhum certame ou competigio, porque precisava formar uma unidade que 86 poderia ser destruida por interesses, posigSes e pontos de vista antagénivos. Com isso, deixava de existir, de maneira automética, aquela multiplicidade de aspectos nos quais 0 verdadeiro contetido do ser-livre, do agit-e-conversar-em-liberdade estava livre para se mover Resumindo, a ndo-liberdade era o pressuposto de uma unidade que no foi fendida, tao constitutiva para a vida em comum na familia quanto a liberdade e a luta de um com o outro para a vida em comum na polis, Com isso, 0 espago livre da coisa politica apresenta-se como uma illha, na qual o principio da forga e da coagao € eliminado das relagées dos homens. O que fica de fora desse estreito espaco, a familia, por um lado, ¢ as relagdes da polis com outras unidades politieus, por outro, continua sujeito ao prinefpio da coagio e uo direito do mais forte Assim, segundo a concepgio da Antigtidade, 0 status do individuo é to exclusivamente dependente do espago no qual ele se move de cada vez que o mesmo homem, como filho erescido de um pai romano, “era subordinado «seu, proprio pai. na condigio de cidado [poderia] cair no caso de dar-Ihe ordens como senhor Retornemos a0 nosso ponto de partida, Tentamos recordar a guerra de exterminio de Tréia em seus adomos homéricos para nos lembrar quio bem os gregos deram conta do elemento exterminador da forga, que destrufa o mundo e a coisa politica. Como se os gregos houvessem separado a luta sem a qual nem Aquiles nem Heitor jamais poderiam ter-se revelado, de fato, tentando provar quem eram, da coisa guerreira-militar da qual a forga € oriunda, e, com isso, transformando-a num elemento integrante da polis € da coisa politica, ao passo que deixavam por conta de seus poetas e historiadores a preocupagio com o que devia ser dos vencidos e derrotados nas guerras seguintes, Contudo, deve-se observar que sua propria obra, mas niio a atividade através da qual ela surgiu, tommou-se de novo parte da polis ¢ da coisa politica — no diferente das estituas de Fidias e outros artistas cujas obras pertenciam ao estoque da coisa politica piblica palpivel no mundo, 20 passo que eles mesmos, por causa de sua profissio, no cram tidos como iguais ¢ cidadios livres. Nisso continua decisiva, para a cunhagem do ipo grego de homem na polis, a figura de Aquiles, © empenho constante para se distinguir, para ser sempre 0 melhor de todos e ganhar fama imortal, A necesséria presenga de muitos no geral e de muitos de igual categoria em especial, o local de reunido homérico da agora, que no caso da expedigio contra Trdia s6 péde manifestar-se porque muitos ‘eis’, quer dizer, homens livres, que viviam isolados em suas casas associaram-se para um grandioso empreendimento que precisava de todos — no fundo, de cada um porque $6 nesse estar juntos, longe da casa natal e de sua estreiteza, era possivel ‘ganhar fama: o estar junto homérico dos hersis era despido também de cariter temporério que dependia da aventura, A polis ainda ests inteiramente ligada agora homérica, * mas esse local de reuniio é agora perpétuo, no o acampamento de um exército que depois do trabalho feito se retira J de novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda aquilo que tem direito perante deuses e homens por causa da grandeza de seus feitos © palavras — a fama imortal. Entio, assim esperava a polis em seu ‘apogeu (tal como sabemos através do discurso de Péricles”), ela mesma assumiria possibilitar a Iota sem toda violéncia e garantir a gléria sem poeta e sem versos, a tinica maneira pela qual os mortais podem tomar-se imortais. Os romanos eram 0 povo gémeo dos gregos porque deduziam sua origem enquanto povo do ‘mesmo acontecimento, a Guerra de Tria, "porque no se achavam romd-tidas, mas sim enéides", achavam-se descendentes dos troianos, assim como os gregos. julgavam- descendentes dos aqueus. Desse modo, deduziam conscientemente sua existéncia politica de uma derrota, a qual se seguiu uma nova fundagio em terra estranha, mas na verdade nao a nova fundagdo de um novo inaudito, mas a fundagao renovada para algo velho, a fundagao de uma nova patria e de uma nova casa para os penates, os deuses do rebanho real em Tréia, que Enéias salvou na fuga junto com pai filho sobre o mar para o Lécio. Tratava-se, como nos diz Virgilio no aperfeigoamento definitivo do adorno grego, siciliano e romano do ciclo de lendas troianas, da anulagao da derrota de Heitor e do aniquilamento de Tréia: "Um novo Paris acende-me de novo 0 fogo que abala as ameias de Pérgamo".” a tarefa de Enéias e, visto a partir dessa tarefa, através de Heitor a vit6ria € mantida afastada dos gregos durante dez anos, ¢ no de Aquiles: Heitor torna-se o verdadeiro her6i da lenda, Mas isso nao é decisivo. O decisivo € que, na repetigao da Guerra de Troia em solo italiano, invertem-se as relagdes do poema hhomeérico. Se Enéias 6 ao mesmo tempo o sucessor de Paris e de Heitor, entio ele atica de fato 0 fogo por uma mulher, mas nfo por Helena e uma adiiltera, mas sim por Lavinia, uma noiva, e igual a Heitor cle encontra a ira implacdvel e a eélera invencfvel de um Aquiles, ou seja, ao Tumnus que se identifica expressamente — "comunica a Priamo ento que encontraste aqui também a Aquites’;"® mas quando se chega no duelo, Tumnus foge, quer dizer, Aquiles, e Enéias, quer dizer Heitor, © persegue. Assim como é evidente que Heitor ndo poe a fama acima de tudo ‘mesmo na representacdo homérica, mas sim que "tomba um defensor lutando por seus altares domésticos", a Enéias ndo pode ser arrancado 0 pensamento na alta fama e grandes feitos de Dido, porque "nao Ihe parece que 0 proprio louvor valha 0 esforgo e flagelos":"' mas apen: lembranga no fitho e descendentes, a preocupacio com a continuidade da geragio e sua fama que para os romanos continha a garantia da imortalidade terrena. Essa origem — primeiro transmitida como lenda e depois adornada cada vez de forma mais consciente e rica — da existéncia politica romana a partir de Troia e da guerra que se travou em tomo da cidade pertence, sem diivida, aos acontecimentos mais estranhos e excitantes da histéria ocidental. E como se comparasse aqui a bilateralidade poé-tico-espiritual ¢ a imparcialidade do poema homérico com uma realidade plena e cumprida que realiza algo nunca antes realizado na Hist6ria; ao que parece, tampouco pode ser realizado nela, ou seja, a plena justica para com a causa dos vencidos nao de parte da posteridade julgadora — que sempre pode dizer com ¢ desde Catdo: victrix causa diis placuit sed victa Catoni” — mas de parte do préprio decorrer hist6rico. J € bastante inaudito que Homero cante a gldria dos vencidos , assim, no proprio poema glorifi-cante mostra que um mesmo e tinico acontecimento pode ter dois lados & que © poeta, ao contririo da realidade, no tem o direito de, com a vit6ria de um lado, abater & ‘matar © outro lado, pela segunda vez. Porém, o mesmo se passa na realidade — € se pode esclarecer com fucilidade © quanto a auto-interpretagdo des povos & parte integrante de tal realidade, quando se pensa que os romanos, enquanto sucessores dos troianos, defenderam, em seu primeiro contato demonsirdvel com os gregos, a Mion de mesma origem —, parece muito ‘mais inaudito; pois 6 como se no comeco da historia ocidental houvesse, de fato, uma guerra no sentido de Hericlito, [ou seja, uma guerra] que se tomou "o pai de todas as coisas” porque forcou © mesmo e tinico acontecimento a se manifestar em seus dois lados, que originalmente eram virados de costas um para 0 outro. Desde ento, nao existe para nés, tanto no mundo fisico como no mundo hist6rico-politico, nada mais que se (orne coisa ou fendmeno em plena realidade, quando descoberto ¢ classificado em sua riqueza de aspectos € mostrado de todos os lados e todos os Angulos possiveis no mundo dos homens, chega ao conhecimento © a articulagao, Somente a partir dessa perspectiva determinada como romana, na qual 0 fozo & atigado de novo para abolir o exterminio, talvez possamos compreender o que & em si, de verdade, a guerra de exterminio © por que no deve ter nenhum lugar na politica, independente de todus as considerages morais. Se for correto que uma coisa s6 é realmente no mundo do histérico- politico, assim como no mundo do fisico, quando mostrar-se e puder ser percebida de todos os lados, entio ela sempre precisard ser observada e definida por uma pluratidade de homens ou de povo, ou de uma pluraidade de Angulos, para se fazer realidade possivel ¢ garantir sua continuidade. Em outras palavras, s6 surge mundo porque hi perspectivas, e s6 existe por causa de uma correspondente ordem de coisas. Se um povo, ou um Bstado, ou apenas um determinado gnupo de homens, & exterminado porque, em todo caso, tem uma posigdo qualquer no mundo que ninguém pode duplicar sem dificuldade, que apresenta uma visio de mundo s6 realizével por ele —, ento nao é apenas um povo, um Estado ou uma certa quantidade de homens que morre, sendo que uma parte do mundo comum € aniquilada — um lado do mundo mostrado antes, mas que jamais poderé mostrar-se de novo. Por conseguinte, o ani-quilamento iguala-se aqui nio apenas a uma espécie de fim do mundo, sendio que atinge também os aniquiladores A rigor, a politica ndo tem tanto a ver com os homens como tem a yer com 0 mundo surgido entre eles € que sobreviverd a eles; na medida em que se torna destruidora & causa fins de mundo, ela destr6i e se aniquila a si mesma. De outra maneira: quanto mais povos houver no ‘mundo que tenham entre si essa relagdo e outras, mais mundo se formaré entre eles e maior e mais rico seré 0 mundo. Quantos mais pontos de vista houver num povo, a partir dos quais possa ser avistado o mesmo mundo, habitado do mesmo modo por todos ¢ estando diante dos olhos de todos, do mesmo modo, mais importante ¢ mais aberta para o mundo serd a nagao. Mas acontecer 0 contrério e, através de uma tremenda catdstrofe, s6 restar um povo na face da Terra € se esse povo chegar ao ponto em que todos véem e entendem tudo a partir da mesma perspectiva e vivem entre si em plena unanimidade, entio 0 mundo tera chegado ao fim, no sentido hist6rico-politico, e os homens sem mundo que restarem na face da Terra quase mais, ada terdo em comum conosco — tanto quanto aquelas tribos sem mundo e sem relagdes que vegetavam de um lado para outro, encontradas pela humanidade européia na descoberta de ‘novos continentes, que foram tomadas de volta para o mundo dos homens ou exterminadas, sem de que também eram homens. Em outras palavras, s6 pode haver homem na verdadeira acepeaio onde existe mundo, ¢ s6 pode haver mundo no verdadeiro sentido onde a pluralidade do género humano seja mais do que a simples multiplicagtio de uma espécie. Por conseguinte, é da maior importincia que a Guerra de Tréia repetida em solo italiano, 2 qual © povo romano atribui sua existéncia politica e hist6rica, nfo terminasse de novo. por seu lado, com © aniquilamento dos derrotados, mas sim com uma alianga € um tratado, Nao se tratava apenas de aticar o fogo de novo para simplesmente inverter o desenla-ce, mas sim de inventar um novo desfecho para tal fogo-guerra, Contrato e alianga, de acordo com sua origem € seu conceito cunhado to ricamente pelos romanos, estio ligados, do modo mais estreito, com a guerra entre povos e, segundo a concepgao romana, representam a continuagae natural, por assim dizer, de toda é qualquer guerra. Nisso também ha algo de homérico ou talvez alguma coisa que ja existia antes do préprio Homero quando ele ps méos & obra para dar sua cunhagem postica definitiva ao ciclo de lendas troianas. Residia no reconhecimento de que também o encontro mais hostil de homens faz. surgir alguma coisa que s6 é comum a eles, justamente porque — como Plato um dia expressou — "tal como o agente faz, 0 sofredor também sore" (Gérgias,476),.” é assim e nio de outra maneira, de modo que quando fazer e sofrer passam, podem tornar-se posteriormente os dois lados de um mesmo acontecimento. Mas com isso 0 proprio acontecimento j4 foi transformado de luta em uma outra coisa, que s6 se tora acessivel para o olhar retroativo € enaltecedor do poeta ou do historiador. Politicamente, porém, 0 encontro que ocorre na luta $6 pode manter-se como encontro quando a luta é interrompida antes do aniquilamento do vencido ¢ dela surge um estar junto de novo tipo. Todo tratado de paz, mesmo quando nao for verdadeiro, mas sim um ditado, trata de uma reorganizagio dag que ja existia antes da conflagragio das hostilidades, e também do que se manifesta no decorrer das hostilidades como algo em comum do agente e do sofredor. Uma tal transformagao [do simples aniguilamento em algo diferente e duradouro|* ji se encontra na imparcialidade homérica que nio deixa morrer pelo menos a gléria € a honra do vencido e através da qual 0 nome de Aquiles permaneceu ligado para sempre ao de Heitor. Mas, no caso dos gregos, tal transformagao do estar junto hostil permaneceu totalmente limitado ao poético e retroativo e nao pode tornar-se diretamente eficaz na politica + Acréscime formulado por causa de una frase que foi esquevida numa inserg Portanto, contrato € alianca enquanto concepcdes centrais da coisa politica sio, em termos histéricos, nao apenas de origem romana, mas também ambas as coisas sao estranhas, em stia esséncia mais profunda, ao carter grego e & sua concepgao do Ambito da coisa politica, ou seja, a polis. O que sucedeu quando os descendentes de Tréia chegaram em solo italiano foi nada ‘mais nada menos do que o fato de a politica surgir exatamente ali onde no caso dos gregos chegava em suas fronteitas e achava um fim, ou seja, no ambito intermedidrio nao entre os cidadios de igual categoria de uma cidade, mas sim entre os povos estranhos entre si e que se defrontavam em desigualdade, que s6 a luta reuniu. & verdade que, como vimos, também no caso dos gregos a luta e com ela a guerra foi o comego de sua existéncia politica, mas apenas até © ponto em que, nessa luta, tomaram-se eles mesmos ¢ uniram-se para se assegurar da confirmagio definitiva e perpétua da prépria ess8ncia. No caso dos romanos, a mesma luta tomnour-se aquilo em que reconheciam a si mesmos e aos parceiros; quando a luta chegou ao fim, no se retiraram de novo para si mesmos ¢ a sua glétia nos muros de sua cidade, mas haviam ganho algo novo, um novo Ambito politico assegurado através do tratado com o qual os inimigos de ontem tornaram-se os aliados de amanha. Falando politicamente, 0 contrato que liga dois povos faz surgir um novo mundo entre eles oii, de m . garante a continuagio da existéncia de um mundo novo, s6 comum a eles, surgido quando eles se encontraram na luta e, no fazer e no sofrer, produziram um igual. Essa solugao da questo da guerra — quer tenha sido originalmente propria dos romanos ou tenha surgido apenas posteriormente no recordar e no sdomar da guerra de exterminio de Troia — € a origem tanto do conceito de lei como da importincia extraordinéria que a lei e a formacio da lei experimentaram no pensamento politico romano. Pois, a lex romana, em completa diferenca e até mesmo em oposi¢io aquilo que o gregos conheciam por nomos, significa originalmente "liga fda, contrato tanto no direito de Estado como no privado. Portanto, uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza nfo através de um ato de forga ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou um acordo miituo. O fazer da lei, essa ligagdo duradoura que se segue A guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado & conversa e a réplica daf a algo que, tanto na opiniao dos gregos como na dos romanos, estava no centro de tudo que é politico Nisso, porém, é decisivo que $6 para os romanos a atividade legisladora e com isso a propria lei cafam no Ambito da verdadeira coisa politica, ao paso que segundo a concepgio grega a atividade do legislador era to radicalmente separada das verdadeiras atividades € ocupagdes politicas dos cidadaos dentro da polis que o legislador nem ao menos precisava ser cidadkio da idade, podendo ser contratado de fora — como um escultor ou um arquiteto a quem se podia encomendar 0 que fosse preciso para a cidade. Em contrapartida, a lei das doze tabuas de Roma, se bem que em seus pormenores possa ter sido determinada por modelos gregos. no é obra de um tinico homem, mas sim 9 contrato entre duas partes em luta, o patriciado e os plebeus, que precisava do assentimento de todo © povo, aquele consensus omnium ao qual a historiografia romana sempre atribuiu "um papel singular" (Altheim™) quando da redagio de leis. Para esse tipo de contrato ¢ importante que — no caso dessa lei bdsica a qual remonta, de falo, a fundagdo do povo romano, do populus romanus — nao se trata de conciliar as partes em litigio no sentido de ser abolida pura ¢ simplesmente a diferenca entre patriciado e plebeus, Ocorreu 0 contr uma expressa proibigdo de casamento, mais tarde abolida de novo, entre patricios ¢ plebeus aceniuava a separagio, de maneira mais expressa do que antes. $6 foi conciliada a relacio de inimizade. Mas o aspecto legal especifico da regulamentacao, no sentido romano, residia em que, a partir de entao, um contrato, uma eterna ligagao, ligava entre si a patricios e plebeus, A res publica, a questio piblica que surgiu a partir desse contrato e que se tomou a repiblica romana, estava localizada no espago intermediario entre os parceiros antes inimigos. Portanto, a lei €, aqui, algo que institui de novo relagdes entre homens, ¢ quando liga homens entre si, nao 0 faz no sentido do diteito natural no qual todos os homens so identificados, com um voto da conseigneia da natureza, por assim dizer, como bons e maus; ndo no sentido de mandamentos proferides de fora para todos os homens do mesmo modo, mas no sentido do acordo enti*€entfaertes. E assim como tal acordo s6 pode realizar-se quando é defendido o interesse de ambas as partes, no caso da protolei romana, também tratava-se de "estabelecer uma lei coum. que levasse em conta as duas partes” (Altheim), Para avaliar corretamente a extraordinéria fecundidade politica do conceito romano de lei além da coisa moral, que deve continuar secundaria em nossa reflexio, € preciso rememorar, em poucas palavras, a concepgio grega, moldada de modo bem diferente, daquilo que originalmente ¢ lei. A lei, como os gregos entendiam, nao era acordo nem contrato, nao surgi. entre os homens no falar de duas partes e no agir e contra-agir e, por conseguinte, no & algo inserido no ambito politico, mas é, em esséncia, imaginado por um legislador e precisa ser aprovado, antes de poder entrar na verdadeira coisa politica. Como tal, € pré-politi-ca, no sentido de ser constitutiva para todo © ulterior agir politico e © lidar politicamente entre si. Assim como os muros da cidade [com] os quais Hericlito compara a lei, precisam ser construidos primeiro antes de poder existir uma cidade identificdvel em sua forma ¢ em suas fronteiras, a lei determina a verdadeira fisionomia de seus habitantes, através da qual ela se distingue e sobressai de todas as outras cidades e seus habitantes. A lei é a circunvalacao- fronteira produzida e feita por um homem, dentro da qual nasce entio © espago da verdadeira coisa politica, no qual muitos se movem livremente. Por isso, Plato invoca Zeus, o protetor das fronteiras e dos marcos, antes de pér maos & obra e promulgar suas leis para uma cidade recém- fun-dada, Trata-se, em essncia, de estabelecer fronteira e nio { de ligacio e unio. A lei & por assim dizer, aquilo segundo j a qual uma polis forma sua vida a seguir, que no pode ser abolida sem remtincia & propria identidade, e cuja violaedo ° é igual A transposigdo de uma fronteira imposta a existéncia ! e que, por conseguinte, é Hibris A lei no vale no lado de fora da polis, sua forga obrigatoria estende-se apenas sobre 0 espaco que ela encerra e limita, Violar a lei e deslocar-se para fora das fronteiras da polis eram, para Sécrates, a mesma e tinica coisa, no sentido mais textual da palavea Nisso é decisivo que a lei — se bem que encerre o espago no qual os homens vivem entre si sob a rentincia A fora — tem algo de violento e, na verdade, tanto no que diz respeito a seu surgimento como a sua esséncia, Ela surgiu através de produgio e no do agir; o legistador & igual ao urbanista e a0 arquiteto, ndo ao estadista e ao cidadao, A lei produz o espaco da coisa politica e contém o violento-brutal, proprio de todo produzir. Como tal, uma coisa feita esta em oposiedo ao que surgi de maneira natural, no precisando de ajuda alguma, nem de deuses nem de homens, para ser. Assim, € proprio de tudo que nio é natureza e nao surgiu através de si mesmo, uma lei pela qual € produzido, cada um depois do outro, ¢ entre essas leis nfo existe nenhuma relagio, tampouco quanto entre aquilo por elas imposto, "Uma lei", assim expressou Pindaro num famoso fragmento (n° 48, ed. Boeckh) também citado por Plato, "é 0 rei de todos, dos mortais © dos imortais, e, ao criar justia, desempenha a coisa mais violenta com mao prepotente”."° Em relagio aos homens a ela subordinados, essi coisa violenta expressa-se porque as leis ordenam, porque elas so os senhores € comandantes da polis na qual mais ninguém tem o direito de dar ordem a outra pessoa de igual categoria. Assim, as leis so pai e déspota de uma s6 vez, como Sécrates explica a9 amigo em Criton (50-51)" — e isso ndo apenas porque a coisa despstica predominava na casa da Antigtiidade, determinando também a relagdo entre pai e filho, de modo a insinuar "pai € déspota", mas também porgue a lei produziu o cidadio, por assim dizer, assim como © pai erou o filho (pelo menos tanto pressuposto de sua existéncia politica como 0 pai € a condig30 da existéncia fisica do filho) e, por conseguinte, na opinido da polis — embora no mais. na opinido de Plato e de Séerates —, cabe a ela a educagio do cidadao (Apalogie — Nomoi) Porém, como a relugio de obediéncia a lei ndo tem um fim natural como a relagio de obediéncia a0 pai, a rela¢io entre senhor e escravos pode ser comparada de novo, de modo que o cidadio livre da polis era, em relagao a lei, quer dizer, em relagao a fronteira dentro da qual ele era livre e [onde] situava-se espaco da liberdade — um “filho e escravo" durante toda a vida. Assim, os gregos, que dentro da polis no estavam subordinados a forga do comando de nenhum homem, puderam advertir aos persas para no subestimarem sua forca de combate, pois todos eles temiam a lei de sua polis nio menos do que os persas ao grande rei. Como quer que se interprete esse conceito grego de lei, de maneira nenhuma a lei poderia servir* para construir uma ponte enire um povo e outro, entre uma coletividade politica dentro do mesmo povo outa, * Coma quer que se suctsinterpotar esa le entondia A mancits grega, de mancia alguna petri servi Também no caso da fundacdo de uma nova coldnia, a lei da cidade-mae nao bastava, senio que aqueles que se mudavam para fundar uma nova polis precisavam de novo de um legislador, de um nomothetes, de um compositor de leis, antes que 0 novo Ambito politico pudesse ser reconhecido como assegurado. E evidente que, sob essas condigdes, basicas, era simplesmente impossivel a formagao de um reino —e também € verdade que, através das guerras persas, foi despertada uma espécie de consciéncia nacional helénica, a conscigncia do mesmo idioma e da mesma constituigao politica de toda Hélade. A unio de toda Hélade teria conseguido preservar 0 povo grego do declinio; nesse caso, a verdadeira esséncia grega também teria declinado, Talvez se avalie a distincia que separava essa concepgdo de lei enquanto dnico comandante ilimitado da polis da romana, da maneira mais facil se nos lembrarmos que Virgilio o Latino, a quem Enéias vai, considera como povo “aquele que sem grilhies & leis... se atem por impulso proprio aos costumes do deus mais velho" (VII, 203-4).° A lei s6 surge ali porque trata-se agora de fazer um contrato entre os estabelecidos e os recém-chegados. Roma foi fundada sobre esse contrato, e se a missio de Roma € "por sob a lei toda a orbe" (VII, 231): entao, isso nao significa outra coisa que atrelar toda a orbe num sistema de contrato para © qual esse povo era o tinico qualificado, porque sua prdpria existéncia histérica derivava de um contrato. Se se quiser expressar isso em categorias modernas, entio & preciso dizer que no caso dos romanos a politica comegou como politica externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o pensamento grego, estava situado fora de toda a politica. Também para os romanos 0 dmbito politico s6 podia surgir ¢ existir dentro da coisa legal; mas esse Ambito surgia e se multiplicava ali onde diferentes povos se encontravam entre si, Esse encontro € guerreiro, e a palavra latina populus significava originalmente "mobilizagio para o exército” (Altheim),”° mas essa guerra nao € o fim, porém 0 comego da politica, ou seja, de um espaco politico novo, surgido do tratado de paz ¢ de alianga. Pois esse também é o sentido da "cleméncia” romana tao famosa na Antigiiidade, do parcere subiectis, da deferéncia para com os vencidos através da qual Roma organizou primeiro as tegides e povos da Itilia e depois as possessies fora da Italia. Nem mesmo a destruic’io de Cartago é um reparo a esse principio levado a efeito na realidade politica de verdade, o principio de jamais aniquilar, mas de sempre aumentar ¢ firmar novos tratados, Aniquilado ali nao foi o poder militar, ao qual Cipido ofereceu condigées tio inauditamente favordveis depois da vitoria romana a ponto de o historiador moderno perguntar-se se ele agiu mais em seu interesse ou mais no interesse de Roma (Mommsen).*! e tampouco foi a poténcia comercial concorrente no Mediterraneo, mas sim sobretudo "um governo que nunca cumpria a palavra ¢ jamais perdoava" ¢, desse modo, encarnava 0 verdadeiro prinefpio politico anti-romano contra 0 qual a diplomacia romana era impotente e que teria aniquilado Roma, se nao tivesse sido aniquilado por Roma. Cato pode ter pensado assim, ou pelo menos de maneira parecida, ¢ Ihe seguem 0s modernos historiadores que justificam a destruigdo da cidade, a tnica rival de Roma ainda existente na escala mundial da época, Nao importa como possa aparecer essa justificagao: em nosso contexto, é decisive que justamente a justificag3o nio correspondia ao pensamento romano e nao péde ser imposta pelos historiadores romanos. Teria sido romano deixar a cidade inimiga existir na condicao de adverséria, da maneira como tentou 0 mais velho Cipiio, o vitorioso sobre Anibal;* romano foi lembrar 0 destino dos antepassados e, como 0 destruidor da cidade, Emiliano Cipiio, desfazer-se em pranto sobre as ruinas da cidade e, pressentindo a propria desgraga, citar Homero: "Vira o dia em que a santa Hion eaird, / 0 proprio Priamo © 0 povo do rei derrubado a lanca";*” por fim, romano foi deduzir 0 comego do declinio a partir dessa vit6ria, que terminou com um aniquilamento que tornou Roma uma poténcia mundial, deducio essa que costumavam fazer quase todos os historiadores romanos até Taito. « No original: 0 vencedor de Anibal Em outras palavras, romano foi saber que o outro lado da propria existéncia, justamente quando se revelou como tal na guerra, deve ser poupado e mantido vivo — nao por misericérdia para com os outros, mas sim por causa do aumento da cidade que a partir de entao devia abranger também esse estrangeiro numa nova alianga. Entdo, esse bom-senso determinou que os romanos lutassem, a despeito de todos os seus interesses imediatos, de maneira decidida em favor da liberdade ¢ independéncia dos gregos, mesmo que tal procedimento, em vista da situagdo existente de fato nas poleis grezas, se apresentasse muitas vezes como imprudéncia sem sentido. Nao porque se quisesse reparar na Grécia aquilo que se pecou em Cartago, mas porque se julgava justamente o carter grego como o verdadeiro reverso correspondente ao romano. Para 6s romanos era como se Heitor encontrasse Aquiles mais uma vez c the oferecesse a alianga depois da guerra travada, $6 que, infelizmente, nesse meio tempo Aquiles ficou velho © impticante. Aqui também seria errado adotar parimetros morais © pensar num sentimento moral que se estend coisa politica. Cartago foi a primeira cidade com a qual Roma teve a ver: era igual a Roma em termos de poder e, 0 mesmo tempo, encarnaya um principio posto 0 romano. Por conseguinte, nessa cidade foi demonstrado pela primeira vez que o prinefpio politico romano do tratado ¢ da alianga nio era aplicdvel em toda parte, que possuia seus limites. Para compreender isso, devemos ter presente que as leis com as quais Roma organizou primeiro as regides romanas e depois os paises do mundo nfo eram apenas contratos em nossa acepeao, sendo que visavam a uma ligagio duradoura, ¢ que portanto continham, em esséncia, uma alianga, Desses aliados de Roma, os soci — que eram quase todos os antigos inimigos derrotados — resultou a societas romana que nada tem a ver com sociedade, mas sim com associagao e a relagdo nela contida, © que 0s romanos aspiravam nio era tanto aquele Imperium Romanum, aquele dominio romano sobre povos e terras que, como sabemos desde Mommsen, tocou-Ihes mais contra a propria vontade ¢ Ihes foi impingido, quanto uma Societas Romana, um sistema de alianga fundado por Roma e infinitamente dilatavel, no qual povos e terras estavam ligados a Roma nao apenas através de tratados tempordrios e renovaveis, mas sim por aliangas eternas. Os romanos falharam no caso de Cartago justamente porque ali s6 seria possivel, no miximo, um tratado entre iguais com os mesmos direitos, uma espécie de coexisténcia, falando em termos modernos, ¢ porque tal tratado moderno estava fora das possibilidades do pensamento romano. Isso nao deve ser atribuido a nenhum acaso ¢ tampouco a uma burrice, O que os romanos nao conheciam © que tampouco podiam conhecer dentro da experiencia bisica du qual era determinada sua existéncia politica do comego ao fim, cram justamente aquelas caracteristicas inerentes ao agit que haviam determinado que os gregos se limitassem ao nomos € por lei entendessem nao uma ligagdo € uma relagao, mas sim uma fronteira, algo que encerrava, impossivel de ser transposto. Pois era inerente Jo agir, justamente porque segundo sua esséncia esti sempre produzindo relagGes e ligacdes para onde quer que se estenda, um descomedimento €, como Esquilo achava, uma insaciabilidade que s6 podia ser mantida dentro dos limites, a partir de fora, através de um nomos, uma lei na acepgao grega. O descomedimento, como os gregos achavam, nao reside no descomedimento do homem atuante e sua Hibris, mas sim no fato de as relagdes surgidas através do agir, sio e devem ser de tal espécie que entram no ilimitado. Toda relagio causada pelo agir recai, porquanto liga homens atuantes, numa rede de relagdes e relacionamentos na qual desencadeia novas relagies, muda de maneita decisiva a constelagao de relacionamentos jd existentes e segue alastrando-se sempre & pondo em ligagio & ‘movimento cada vez mais do que © homem atuante poderia prever. O nomos grego opoe-se a essa investida contra o ilimitado e restringe 0 negociaclo Aquilo que se passa dentro de uma polis entre homens, e liga de volta na polis aquilo que esté situado do outro lado dessa polis, com que a polis tem de entrar em contato em seus feitos. Segundo o modo de pensar grego € 36 com isso que © agir se torna politico, quer dizer, vinculado a polis © com isso i mais elevada forma de convivio humano. Do nomos que limita e impede que ele se volati-lize num mesmo sistema de relagdes que crescem sem cessar, 0 negociado recebe a forma permanente, que o transforma em ptoeza, que pode ser lembrado e conservado em sua grandeza, significando sua transcendéncia, Com isso, 0 nomos opde-se A fugacidade de tudo que & mortal, fugacidade caracterfstica e sentida de maneira tio nitida pelos gregos da era trdgica, a fugacidade da palavra falada assim como do volatilizar-se do ato consumado, Os gregos apagaram essa forca produtora de formas de seu nomos, tornando-se incapazes de constituir um reino; nao ha nenhuma divida de que, no final, toda Hélade sucumbiu ao nomos das poleis, das cidades-Estados que decerto se multiplicaram ao colonizar, mas jamais puderam unir-se e juntar-se numa ligagao duradoura. Mas se poderia dizer com 0 mesmo direito que os romanos tornaram-se vitimas de sua lei, de sua lex que, é verdade, thes possibilitou instituir ligagdes e aliangas duradouras onde quer que chegassem, mas ilimitadas em sie, desse modo, muito contra sua propria vontade & sem nenhuma vontade de poder ou mesmo o de poder, thes impés 0 dominio sobre a orbe, dominio esse que. to logo aleancado, s6 poderia sucumbir de novo em si mesmo. No entanto, quase reside na natureza da prépria coisa que, com a queda de Roma, sucumbisse para sempre 0 ponto central de um mundo ¢ com ele talvez a possibilidade especificamente romana de centrar © mundo inteiro em torno de um ponto central, ao passo que ainda hoje, quando pensamos no declinio de Atenas, podemos supor que com isso nfo desapareceu para sempre, de maneira

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