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Tema XVI ICMS-COMUNICACAO Tributacao do comércio eletrénico audiovisual Sumdrio: 1. Preambulo. 2. Repartigao constitucional das competéncias tributirias como indicador do campo possivel para a incidéncia tributéria, 3. O ambito de incidéncia do ISSC, consoante a previsio constitucional. 3.1, Contetido semantico do vocabulo “comunicagao”. 3.2. “Comunicacio” e “prestagio de servigos de comu- niicagao”: realidades distntas. 3.3. Conclusdes acerca da materialidade do ISSC. 4. Faixa de incidéncia do ISS, segundo a previsio constitucional, 5. Modelo constitu- cional do Imposto sobre Operagies Relativas a Circula- go de Mercadorias— ICM. 6. Aatividade de transmissi0 de sons ¢ imagens pela Internet (streaming sound and video) e a nao incidéncia do ISSC e do ISS. 7. A ativ’ dade de reprodugio, pelo consumidor, em seu proprio equipamento informatico, dos dados fornecidos no site da transmissora de imagens e sons — download a im- possibilidade légica de incidéncia do ICM 1. PREAMBULO © coméreio eletrénico de produtos audiovisuais tem avangado a passos largos. Hoje, é possivel adquirir obras cinematograficas e musicais de todos os géneros com muita 99 121/428 PAULO DE BARROS CARVALHO agilidade. Varias empresas da velha economia dedicadas & venda de livros convencionais, CD’s e DVD’s, construfram paginas eletrénicas pelas quais o consumidor assiste ou ouve as transmiss6es de sons (streaming sound) e imagens (streaming video), ou realiza o download, armazenando-os em discos rigi- dos ou em outras midias. As obras audiovisuais, cuja circulacao é feita por meio de comércio eletrénico, prescindem da materialidade representa- da pelas folhas de papel ~no caso dos livros ~ e do plastico~na hipétese de CD’s e DVD’s —, acarretando intimeras implica- g6es para o direito tributério, como sera demonstrado nas li- nhas seguintes. O presente estudo, portanto, cumpre a finalidade de compreender os seguintes questionamentos: 1. Hé, nas operagées de streaming sound, streaming video ou de comércio de download de arquivos digitais de dudio ou video, realizadas de forma onerosa por meio da rede mundial de computadores, a incidéncia do Imposto sobre a prestagao de Servico de Comunicagao~ ISSC? 2. Pode entio, nesses mesmos casos, haver a incidéncia do Imposto sobre a prestagdo de Servicos de Qualquer Natureza ~ ISSQN? 3. Ou, nas hipoteses descritas, teria lugar o Imposto Sobre Operagées de Circulagéo de Mercadorias - ICM? 2. REPARTICAO CONSTITUCIONAL DAS COMPETEN- CIAS TRIBUTARIAS COMO INDICADOR DO CAMPO POSSIVEL PARA A INCIDENCIA TRIBUTARIA Em certa acepgao, competéncia legislativa é a aptidao de que sao dotadas as pessoas politicas para expedir regras 100 122 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO juridicas, inovando 0 ordenamento positive. A competéncia tributéria, por seu turno, é uma das parcelas entre as prerro- gativas legiferantes de que sao portadoras aquelas pessoas, consubstanciada na possibilidade de instituir normas juridicas tributdrias. O tema das competéncias legislativas, entre elas 0 da competéncia tributaria, é, eminentemente, constitucional. Uma vez fixados os limites do poder legiferante, pelo cons- tituinte, a matéria se da por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura em nivel infraconstitucional. A Cons- tituigéo da Reptiblica é extremamente analitica, relacionan- do as hipéteses em que as pessoas juridicas de direito publi- co, por intermédio dos respectivos poderes legislativos, estao habilitadas instituigdo de tributos. E, no que concerne aos tributos nao-vinculados (de acordo com a classificagao de Geraldo Ataliba), os elementos relevantes para sua fisiono- mia juridica encontram-se estipulados no sistema constitu- cional tributério brasileiro de modo minucioso, uma vez que as situagées susceptiveis de integrarem o critério material dos impostos de competéncia da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios foram previstas, respecti- vamente, nos arts. 153, 155 e 156, remanescendo aberta apenas a faixa de competéncia tributdria da Unido, em face da possibilidade residual estabelecida no art. 154, I do Texto Supremo. Nesses termos, observa-se quao rigido é o sistema cons- titucional tributério brasileiro, aspecto que nao pode ser igno- rado pelo legislador (em sentido amplo) infraconstitucional. Diante de tanta minticia e da rigidez inerente A Consti- tuigo brasileira, a questo relativa A incidéncia ou nao da norma juridica de um imposto sobre determinado aconteci- mento do mundo social pressupée anélise preliminar das dis- posigées constitucionais correspondentes a figura do tributo. E o que farei em seguida, a fim de examinar se pode ter-se 101 123 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO como constitucional a percussao das regras-matrizes do ISSC, do ISSQN ou do ICM sobre o comércio eletrénico de produtos audiovisuais. 3.0 AMBITO DE INCIDENCIA DO ISSC, CONSOANTE A PREVISAO CONSTITUCIONAL Nos termos do art. 155, II da Carta Magna, compete aos Estados e aos Distrito Federal instituir impostos sobre “opera- cées relativas & circulagao de mercadorias e sobre prestagées de servigos de transporte interestadual e intermunicipal e de co- municagio, ainda que as operagées e as prestagées se iniciem no exterior”. Dentro da materialidade do aludido imposto, co- nhecido por ICMS, inclui-se a “prestacdo de servico de comu- nicacao” (ISSC). E nessa parcela da competéncia impositiva do Estado que focalizarei a atencdo em primeiro lugar, tendo em vista demarcar o dominio de sua abrangéncia. Torna-se impe- rioso, para tanto, uma anilise mais atilada do significado da expresso “prestacdo de servico de comunicagao”, empregada pelo constituinte. Apenas por esse meio ser possivel identificar, com exatidao, o quadro de eventos que integram o critério ma- terial da regra-matriz de incidéncia desse imposto. 3.1, Contetido semantico do vocébulo “comunicagao” Partindo da premissa de que, ao interpretarmos os textos juridico-positives, devemos construir, por meio de discurso cientifico préprio, o contetido semantico dos vocdbulos que nao pertencerem a chamada “linguagem ordindria”, passarei a fazé-lo no que alude ao termo “comunicagao”. Animados por tal propésito, importa observar o significado a ele atribuido pela Semiética, disciplina que estuda os elementos repre- sentativos no processo comunicacional. Utilizando a Teoria Geral dos Signos empregados por uma linguagem qualquer, 102 124 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO estaremos mais autorizados a dizer, de forma precisa, que é e como funciona a comunicacio. Apalavra “comunicagao”, assim como a quase totalidade dos termos idiomaticos conhecidos, padece do problema da ambiguidade. No falar quotidiano, e até mesmo em obras que pretendem esclarecer o significado de determinados signos (dicionrios), “comunicagao” seria uma palavra usada em oca- sides diversas, com sentidos variados. Cientificamente, porém, a situagao é outra. “Comunicagdo” deve ser entendida em conformidade com a disciplina que estuda os signos, isto é, a Semiética, abandonando-se a ambiguidade e vagueza dos sentidos resultantes dos usos comuns. Na acepgao mais geral, 0 termo “comunicagao” designa qualquer processo de intercambio de mensagem entre um emissor e um receptor”. Para que isso seja possivel, porém, necesséria a coalescéncia de determinados componentes que, segundo Roman Jakobson”, sao seis: remetente, mensagem, destinatério, contexto, cddigo e contacto. Utilizando esses ele- mentos para descrever o processo da interacéo comunicacional, temos a seguinte situagdo: O (1) remetente envia (2) mensagem ao (3) destinatério. Para ser eficaz, a mensagem requer um (4) contexto a que se refere, apreensivel pelo destinatario, e que seja verbal ou susceptivel de verbalizagao; um (5) cédigo total ou parcialmente comum ao remetente e ao destinatario; e, fi- nalmente, um (6) contacto, um canal fisico e uma (7) conexdio psicolégica entre o remetente e o destinatdrio, que os capacite aentrar e permanecer em comunicagao. Umberto Eco", por sua vez, define o processo comunica- tivo como a passagem de um sinal que parte de uma fonte, por 33. Gérard Durozoi e André Roussel, Diciondrio de Filosofia, Trad, Marinha Appenzeller, Campinas: Papirus, 1993, p. 95. 34, Linguistica e comunicagao. Sao Paulo: Cultrix, p. 123. 35. Tratado Geral de Semistica, 2 ed., Sdo Paulo: Perspectiva, 1991, p. 5. 103 125 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO meio de um transmissor, ao longo de um canal, até um desti- natario. Também J. Teixeira Coelho Netto™ adota semelhante definigéo de processo comunicacional. Segundo o autor, wa mensagem ¢ elaborada pela fonte, com elementos extraidos de um determinado repertério, sendo transmitida por um canal e decodificada por um receptor, que, para tanto, utilizaré ele- mentos extrafdos de outro repertério, o qual deve ter algum ponto em comum com 0 repertério da fonte. Em sintese, o processo comunicacional, seja ele de que espécie for, apresenta a seguinte esquematizagao: contexto emissor ~ canal ~ mensagem - cédigo - receptor — conexao psicolégica Esclaregamos o significado de cada um desses elemen- tos: (1) emissor: 6 a fonte da mensagem, aquele que compor- ta as informagées a serem transmitidas; (2) canal: é o supor- te fisico necessario a transmissao da mensagem, sendo o meio pelo qual os sinais so transmitidos (6 0 ar para 0 caso da comunicagao verbal, mas pode apresentar-se em formas di- versas, como faixas de frequéncia de rddio, luzes, sistemas mecAnicos ou eletrénicos, etc.); (3) mensagem: é a informagao transmitida; (4) cédigo ou repertério: é 0 conjunto de signos e regras de combinagées préprias a um sistema de sinais, 36. Semidtica, informacao e comunicagdo, 3 ed., Sao Paulo: Perspectiva, 1990, p. 123. 104 126 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO conhecido e utilizado por um grupo de individuos ou, em outras palavras, é 0 quadro das regras de formagao (morfolo- gia) e de transformagao (sintaxe) de signos; (5) receptor: a pessoa que recebe a mensagem, o destinatdrio da informagao; (6) conexéo psicol6gica: é a concentragao subjetiva do emissor e receptor na expedigdo e na recepcao da mensagem; e (7) contexto: é 0 meio envolvente e a realidade que circunscrevem 0 fendmeno observado. Releva enfatizar que podemos, perfeitamente, isolar-Ihe os elementos componentes, numa proposta de feigéo anali ca, a despeito de ser a comunicagao una, significa dizer, um processo que nao se constitui de elementos separaveis de todos os demais, ou de acontecimentos afastados do contexto em que se verificam. Pela abstracao, exemplifica Lourival Vilanova™, é possivel, numa maga, considerarmos em sepa- rado sua cor, forma, peso e cheiro, efetuando, assim, uma separacio abstrata. Mediante esse recurso, separa-se o inse- pardvel, sendo possivel empregé-lo sempre que pretendemos aprofundar o exame de determinado objeto. Foi o que fizemos, a fim de proporcionar melhor compreensao da estrutura co- municacional. Coneluo o presente tépico afirmando que o processo comunicativo, segundo teéricos das comunicagées e linguistas, consiste na transmissao, de uma pessoa para outra, de infor- magao codificada. O esquema da comunicagéo supée, portan- to, a transmisséo de uma mensagem, por meio de um canal, entre um emissor e um receptor, que possuem em comum, ao menos parcialmente, o repertério necessario para a decodifi- cagdo da mensagem e que esto conectados psicologicamente. Eis 0 contetido semantico cientificamente atribufdo ao vocd- bulo “comunicagao”. 37. As estruturas légicas ¢ 0 sistema do direito positivo, Sdo Paulo: Noeses, 2008, p. 49. 105 127/428 PAULO DE BARROS CARVALHO 3.2. “Comunicacao” e “prestagao de servicos de comunicacao”: realidades distintas Partimos do pressuposto de que o vinculo comunicacional se instaura com 0 ciclo formado pela emissao, transmissio e recepcao de mensagens, de modo intencional ou nao. Apresen- ta enorme amplitude, verificando-se sempre que houver dois ou mais sujeitos em contingéncia de interagao. Toda vez, por- tanto, que alguém difundir informagio, ainda que nao desti- nada a receptor determinado (porém, determindvel) e mesmo que de forma inconsciente, esse alguém estaré realizando um processo de comunicagao. Prestar servico de comunicagao, por seu turno, consis- te na atividade de colocar A disposig4o do usuério, os meios e modos necessarios & transmissao e recepcao de mensagens, diferindo, nessa medida, da singela realizago do fato comu- nicacional. Em outras palavras, a prestacao de servigo de comunica- cdo s6 se verificar4, portanto, quando houver a jungao simul- tanea dos elementos constitutivos da prestacao de servigo, de um lado, e do processo comunicacional, de outro, de tal forma que a atividade exercida pelo prestador tenha por escopo rea- lizar a comunicag4o entre 0 tomador do servigo e terceira pessoa, mediante pagamento de um valor. Pode falar-se em prestagio de servico de comunicagao quando o emissor da mensagem aparece como tomador do servigo, que, mediante remuneracao, contrata o prestador para que este exerca a fungdo de canal, proporcionando os meios que tornem possivel a transmissao de mensagens ao destinatério. O receptor nAo integra o vinculo da prestagao do servigo, sendo sua presenga necessria apenas para que se efetive a comunicagao. Os participantes do liame comunicativo (emis- sor e receptor) nao prestam servigo de comunicagao um para © outro, nem para terceiros. Ambos apenas se comunicam. 106 128 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO Presta servigo de comunicagao tao 6 a pessoa (fisica ou juri- dica) que proporciona e mantém em funcionamento os meios fisicos necessdrios A concretizagao do vinculo comunicacional (ex.: terminais, centrais, linhas de transmissao, satélites etc.). Assim, se alguém, por seus préprios meios, transmite informa- g6es a outrem, esse alguém nao presta servigo, mas tao somen- te se comunica. Do que foi dito infere-se que a comunicagao pode ocorrer de dois modos: (1) de forma pessoal, havendo transmissao de mensagem prépria; e (2) com intermediagao, em que h trans- missao da mensagem de terceiros. Apenas a segunda hipétese sujeita-se A incidéncia do ISSC, pois, como ninguém presta servigo a si mesmo, somente se o canal transmissor configurar pessoa diversa do emissor é que teremos a prestagao de servigo de comunicagao sujeita & incidéncia tributéria, Enquanto na comunicagao a mensagem é recebida diretamente do emissor, na prestacdo de servico de comunicagao a mensagem, de pro- priedade do emissor, é transmitida por um individuo diverso (prestador de servicos). O simples fato de alguém possuir meios tecnolégicos para distribuir sua propria mensagem, portanto, ndo implica prestagdo, por ele, de servigos de comunicacéo. Fagamos a comparagao entre os esquemas que seguem abaixo, relativos 4 comunicagao e A prestacao de servigos de comunicagao, a fim de observarmos os tragos distintivos entre ambos os processos. Na comunicagao temos duas possibilidades: emissor (A) — canal (A) - receptor (C) ou emissor (A) - canal (B) - receptor (C). No primeiro caso, tem-se comunicagao realizada com os meios pertencentes ao emissor (A), funcionando ele préprio como canal transmissor da mensagem. Eis a comunicagao, simplesmente considerada. No segundo, 0 emissor necesita de uma outra pessoa (B) que efetue a transmissao de sua men- sagem, fazendo-a chegar ao receptor (C). H4, agora, prestagao de servico de comunicacao. 107 129 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO Sintetizando: no processo comunicativo puro e simples, quem efetua a transmissao da mensagem ¢ o préprio emissor; na prestag4o de servigo de comunicagao, o emissor contrata alguém (prestador do servigo) para que disponha o canal por onde ser transmitida a mensagem. 3.3. Conclusées acerca da materialidade do ISSC Pelo exposto, creio nao haver diividas sobre as diferengas entre “comunicagao” e “prestacao de servigo de comunicagao”, realidades que nao se confundem. Assim, na conformidade do estatufdo no artigo 155, II, da Constituigao da Reptiblica, nao basta a simples “comu- nicagao” para que incida, validamente, a regra-matriz do ISSC. A percussdo do tributo somente sera legitima se, e somente se, ocorrer no plano da realidade sensivel e for comprovada por linguagem competente a “prestagao de servigo de comunicagao”. Isto aconteceré quando o liame comunicacional é insta- lado mediante fornecimento, pelo contratado (prestador de servigo), dos meios e modos necessarios A transmissdo e con- sequente recepgao de mensagens entre o contratante (emissor) e outra pessoa (receptor), apresentando-se o contratado, pres- tador de servigos (terceiro), como agente transmissor de infor- magées veiculadas entre o emitente e o destinatdério da men- sagem. Logo, a hipétese tributaria do ISSC consiste na opera- cao de intermediar a emissao e a recepgdo de mensagens entre duas ou mais pessoas. Faz-se imperioso o oferecimento de um canal pelo prestador de servigo, para que a relagao comunica- tiva se instale e se mantenha. Sobre esta operagdo, desde que vislumbrado contetido econdmico, podera incidir o ISSC. No se pode admitir, mesmo porque no ha previsao constitucional, a incidéncia do tributo em tela sobre a locugao 108 130 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO “realizar comunicagao”. Refletindo sobre o assunto, e partindo da premissa de que nao hé fato social sem comunicagao ~ vis- to ser impossivel travar contato sem comunicar-se — teriamos, numa proposta de redugao ao absurdo, de aceitar o ISSC per- cutindo sobre toda a gama de fatos sociais, eventos que, por si s6, sequer denotam capacidade contributiva, razao pela qual, sustentar a incidéncia do ISSC sobre a pura e simples comu- nicagao, representa inusitado absurdo. Concluindo, posso afirmar que a incidéncia do ISSC dar- -se-4 apenas quando verificar-se uma atividade em que, por forga de remuneragao, um individuo (A) fornega condigées materiais a outro individuo (B) a fim de que este se comunique com outra pessoa (C), agindo como transmissor da mensagem na relacao comunicacional. Imprescindivel a existéncia de um prestador de servigo tornando possivel e intermediando a co- municacio entre emissor e receptor. Registre-se, outrossim, que tendo sido a competéncia tributdria minuciosamente tracada na Constituigéo, nao deve 0 intérprete buscé-la em leis complementares, leis ordinarias, ¢, muito menos, em convénios. A Lei Complementar n. 87/96, em seu art. 2°, III, prevé a incidéncia do ISSC sobre prestagdes onerosas de servigos de comunicacéo, por qual- quer meio, inclusive a geragdo, a emissao, a recepgao, a transmissao, a retransmissao, a repeticao e a ampliagao de comunicagao de qualquer natureza. Como, porém, nao pode a lei complementar ampliar ou alterar o campo de incidéneia do ISSC, constitucionalmente previsto, cumpre-nos interpreta-la considerando que se refe- re, sempre, a situagées caracterizadas como prestagdo de servigo de comunicagao, ou seja, apenas e tao somente quando aemissdo, transmissdo, retransmissio e recepgdo de mensagens 109 131/428 PAULO DE BARROS CARVALHO forem efetuados por pessoa diversa do emissor e do receptor. Se tais atividades forem executadas pelo préprio emitente da mensagem, haverd simples “proceso de comunicagao”, nao tributavel por meio do imposto de que falamos, como j4 exaus- tivamente demonstrado. 4. FAIXA DE INCIDENCIA DO ISSQN, SEGUNDO A PREVISAO CONSTITUCIONAL Como no poderia deixar de ser, também 0 Imposto sobre Servicgos de Qualquer Natureza (ISSQN), de competéncia mu- nicipal, encontra sua materialidade previamente referida no Estatuto Maior. E 0 que se depreende da leitura do art. 156, III, que dispée competir aos Municipios instituir impostos sobre “servigos de qualquer natureza, nao compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Identifiquemos, agora, o contetido significative da expres- so “servigos de qualquer natureza” empregada pelo Consti- tuinte para fins de incidéncia desse gravame. Ao iniciar a anélise da expresso, logo no exame do primeiro instante, percebe-se que o conceito de “prestago de servico”, nos termos da previsao constitucional, nao coincide com o sentido que Ihe & comumente atribufdo no dominio da linguagem ordinéria. Na dimensio de significado daquela frase no se incluem: a) o servico ptiblico, tendo em vista ser ele abrangido pela imuni- dade recfproca (art. 150, VI, “a”, da Carta Fundamental); b) 0 trabalho realizado para si proprio, despido que é de contetido econémico; e c) o trabalho efetuado em relagao de subordina- cdo, abrangido pelo vinculo empregaticio. Margal Justen Filho, ao versar 0 tema do critério material do ISSQN, assim como estabelecido na atribuigao constitucio- nal de competéncia, e pondo énfase na exclusao das atuosida- des praticadas segundo as regras do Direito do Trabalho, afirma que éa 110 132/428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO prestacdo de utilidade (material ou nao) de qualquer na- tureza, efetuada sob regime de Direito privado mas nao sob regime trabalhista, qualificdvel juridieamente como execucdo de obrigacdo de fazer, decorrente de um contra- to bilateral.” Como jé anotei linhas atrds, para que se configure a pres- taco de servigos é necessdrio que acontega 0 exercicio, por parte de alguém (prestador), de atuagao que tenha por obje- tivo produzir uma utilidade relativamente a outra pessoa (tomador), a qual remunera o prestador (prego do servigo). Prestar servicos é atividade irreflexiva, reivindicando, em sua composigao, o carater da bilateralidade. Em vista disso, torna- -se invariavelmente necessdria a existéncia de, no minimo, duas pessoas, uma na condigdo de prestador e outra na de tomador, nao podendo cogitar-se de alguém que preste ser- vigo a si mesmo. Outro elemento caracterizador da prestagdo de servigos est4 na necessidade da atividade realizada pelo prestador apresentar-se sobre forma de uma obrigacao de fazer. Ademais, ressalte-se que a incidéncia do ISS somente serd valida se 0 servico estiver definido na Lei Complementar a que faz alusao 0 artigo 156, III, da Constituigéo, desde que, obviamente, conforme-se nas caracterfsticas de obrigagao de fazer. Realmente, os Municfpios somente poderdo fazer incidir validamente o ISSQN sobre os servicos tipificados e delineados em Lei Complementar, vefculo introdutor que ostenta especial hierarquia nos vastos quadrantes do direito. Tal expediente, como é sabido, visa a evitar conflitos de competéncia entre as entidades tributantes, assegurando que somente o ISSQN incida sobre os servigos definidos denotativamente em lei complementar: Se, por um lado, impée-se a previsao do servigo 38. ISS, a Constituicdo de 1988 ¢ o Decreto-lei n. 406, in Revista Dialética de Direito Tributério, vol. 3, p. 66. lil 133/428 PAULO DE BARROS CARVALHO tributavel em lei complementar, para que a incidéncia do ISSQN seja valida, por outro, a Constituigao da Reptiblica prescreve que, uma vez descrito o servigo sujeito ao tributo em tela, sobre © mesmo nfo poderé incidir qualquer outro, excetuando-se 0 imposto extraordinario de competéncia da Unido, fundado em motivo de guerra ou sua iminéncia. Desse modo, como regra, podemos concluir que a definigao em lei complementar atua como condigao necesséria para a valida incidéncia do ISSQN (atuagao positiva) e, também, como regra juridica de coloragao negativa (atuacdo negativa), impedindo que outras regras im- positivas provenientes dos Estados, do Distrito Federal e da Unido (com excegao do imposto extraordinario) incidam valida- mente sobre a mesma realidade. Assim, e concluindo este tépico, para que o ISSQN inci da de forma valida, nao basta que ocorra a prestacao de servi- co com contetido econémico, fundada em relagao de Direito Privado, excetuando-se as relagées trabalhistas. Impée-se, definitivamente, que o servico que se pretende tributar esteja minuciosamente definido em Lei Complementar. Faz as vezes deste instrumento a Lei Complementar n. 116, de 1° de agosto de 2.003, que veicula ampla lista dos servigos sujeitos a inci- déncia do ISSQN. 5. MODELO CONSTITUCIONAL DO IMPOSTO SOBRE OPERACOES RELATIVAS A CIRCULACAO DE MERCADORIAS - ICM Sob a sigla “ICMS”, procura-se significar diversos im- postos, dentre os quais o Imposto sobre Servigo de Comunica- cdo (ISSC), objeto de nossa atengao paginas atrs. Detenhamo- -nos, agora, no Imposto sobre Operagées Relativas a Circulagao de Mercadorias, doravante denominado simplesmente “ICM”, procurando compor sua estrutura significativa, partindo do enunciado prescrito no artigo 155, II, da Constituicéo da Re- piiblica, vazado nos seguintes termos: 112 134/428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (od) II- operagées relativas & circulacao de mereadorias... Tenhamos presente que o nticleo da materialidade impo- sitiva é o termo operagées, substantivo plural, e que o restante so adjuntos adnominais, cujo papel é adjetivar aquela palavra, estabelecendo a qualificagao da gama de operagées que inte- ressam & composigao do feitio concebido. Em outras palavras, os adjuntos so titeis na medida em que podemos asseverar, com seguranga, que o ICM nfo incide sobre a realizagéo de quaisquer operagées, mas somente sobre aquelas responsdveis pela circulacao de mercadorias. Tenho para mim que o vocdbulo operagées, no contexto constitucional, exprime o sentido de atos ou negécios juridicos habeis para provocar a circulagio de mercadorias. Adquire, neste momento, a acepgao de toda e qualquer atividade, regra- da pelo direito, e que tenha a virtude de realizar aquele evento. Osigno circulagao, por sua vez, expressa a transferéncia da propriedade de uma mercadoria, de uma pessoa para outra. Exsurge & mais limpa evidéncia que a mutagao patrimonial hé de operar-se sob 0 palio de um titulo jurfdico. Mesmo porque, se assim nao fosse, o ordenamento juridico nao poderia consi- deré-la legitima, pois a tinica forma que o direito positivo pre- vé, de passagem de um bem do patriménio de A para o patri- ménio de B, é aquela que corresponda a um entre os muitos simbolos juridices. A anilise pelo plano semAntico da linguagem juridica culmina com o termo mercadorias, palavra utilizada pelo Constituinte com o nitido vezo de reduzir o campo significati- vo do voc4bulo circulagdo, indicando, desse modo, que nem toda a circulacéo estaria abrangida no tipo proposto, mas uni- camente aquelas de mercadorias. 113 135 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO Nao se presta 0 vocdbulo, de proporcéo unfvoca, para designar, nas provincias do direito, sendo a coisa mével, cor- pérea ou intangivel, que esta no comércio, equivale a dizer, entre os bens suscetiveis de serem negociados. A natureza mercantil do produto nao esta, absolutamente, entre os requi- sitos que lhe sao intrinsecos, mas na destinagao que se Ihe dé. E mercadoria a caneta posta & venda entre outras adquiridas para esse fim. Nao o serd aquela que mantenho em meu bolso e que se destina ao meu uso pessoal. Nao se operou a menor mutagao na indole do objeto referido. Apenas sua destinagao veio a outorgar-lhe atributos de mercadoria. Confere-lhe o tom de univocidade, 0 artigo 481 do Cédigo Civil, ao veicular, por meio de linguagem prescritiva, definigao estipulativa do termo mercadoria, como toda coisa mével, ob- jeto de um ato ou negécio juridico compra e venda, onde esta presente o intuito lucrativo. Desse modo, para concluir esse tépico, podemos afirmar, com assomos de cientificidade, competir aos Estados e ao Dis- trito Federal instituir imposto sobre a realizado de atos ou negécios juridicos mercantis, dos quais decorra a transferéncia da propriedade, de objeto mével, corpéreo ou incorpéreo, de um para outro sujeito de direito. A contrario sensu, qualquer tributacao pelo ICM cujo suporte factico nao esteja composto pelos elementos supraditos ser4 invlida, com a irradiacao dos efeitos previstos pelo direito positivo. 6. A ATIVIDADE DE TRANSMISSAO DE SONS E IMAGENS PELA INTERNET (STREAMING SOUND AND VIDEO) E A NAO INCIDENCIA DO ISSC E DO ISSQN Aatividade consistente na transmissao de sinais de ima- gem e som pelo ambiente virtual é denominada streaming. Seu exercicio pode desdobrar-se na transmissao pura e simples de 114 136 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO miisicas ou obras televisivas (webcasting) a serem escolhidas pelo consumidor, ou na emiss4o simultanea e inalterada de um programa tradicional de rédio ou televisao (simulcasting). A diferena reside na possibilidade do usudrio escolher a faixa musical ou a imagem que deseja ouvir ou ver. Ambas, no en- tanto, so espécies do género streaming, conotando todas as caracteristicas do termo. Eis a atividade exercida por diversas livrarias e empresas especializadas no comércio de mtisica e video: por intermédio de paginas virtuais, transmitem, por equipamentos préprios, sinais de obras musicais e televisivas cujos direitos autorais e fonograficos, de regra, nao lhes pertencem. Levando-se em conta que transmite programagao inse- rida em sua base de dados, por meio de equipamentos pré- prios, nao ha de falar-se em prestago de servigo de comuni- cagéo, mesmo admitindo-se que a transmissora participe de um processo comunicacional. Na realidade, todos nés parti cipamos de fatos de comunicagao, uma vez que, dentro do contexto social em que vivemos, é impossivel ndo nos comu- nicarmos de alguma maneira, ainda que de modo involunté: rio. Todavia, conforme penso ter demonstrado, a comunicagao por si sé é insuficiente para propiciar a incidéncia do ISSC, tornando-se imprescindivel a efetiva prestagao de servico de comunicacao, inexistente, alias, no caso do comércio eletré- nico de obras audiovisuais. Como a prépria transmissora faz chegar os sinais de som e imagem, criptografados em sua base de dados, ao ambiente virtual, que podera ser acessado por qualquer computador que esteja conectado a rede mundial, exerce, simultaneamen- te, as fungées de emissora e transmissora da mensagem. Ora, ainda que se considere que as empresas transmissoras nao detém os direitos autorais relativos as informagées por ela veiculadas, nao prestam servigo oneroso de comunicagao, pois para que este se configure juridicamente seria indispensavel 115 137 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO que o prestador e o tomador do servico fossem sujeitos de direito distintos. Significa dizer que, sendo a mensagem e os meios para transmiti-la de titularidade da emissora, nao ha de cogitar-se de atividade prestacional concernente a servigo de comunicagao. Na prestagao de servigos de comunicagao hé, imprete- rivelmente, no minimo, trés pessoas envolvidas: emissor (tomador), prestador do servigo e receptor. Tal circunstancia pode ser observada nos servigos prestados pelo sistema de telefonia, uma vez que, exclusivamente com os meios propi- ciados pela companhia telefénica, faz-se possivel a comuni- cacao entre emitente e destinatario. Quadra advertir, no exemplo dado, ser o transmissor pessoa diversa do emissor e do receptor, pois somente dessa forma é licito pensar em prestagao de servigo. Ao mesmo tempo, tratando-se de men- sagem enviada por seu titular, que também dispée dos meios para transmiti-la, descabe entrever servigo de comunicagao, mas sim, singelo fato comunicacional. Desse modo, quando a transmissora dos sinais de som e de imagem transmite, em seu préprio site, obras televisivas, musicais e programas de radio cujos direitos autorais lhe pertencem, ou quando trans- mite programagdo por ela mesma criada, est transmitindo mensagem prépria e em nome proprio, nao de terceiros. E simples comunicagao, jamais prestagao de servigo de comu- nicagao. Por outro lado, mesmo quando os direitos autorais nao lhes pertencem, mas as gravadoras ou aos produtores, ainda assim nao hé prestagao de servigo de comunicagao, porquanto as empresas transmissoras enviam mensagens de sua base de dados, sem a presenga dos autores do video ou da misica. A comunicago se instala entre empresa deten- tora do site e o consumidor conectado a rede mundial de computadores. Note-se: no desempenho de sua atividade, 0 processo comunicacional se instaura, unicamente, entre transmisso- ra e visitante do site que acessa o programa televisivo ou 116 138 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO musical. Este tiltimo nao se comunica com terceiros, por meio da transmissora. Aquilo que ocorre é tao somente o envio de mensagens pela transmissora e seu recebimento pelo usuario. Nessa conjuntura, no se afigura prestacéo de servico de co- municacio pela proprietria do site. A titularidade conjunta da mensagem (que nao se confunde com os direitos autorais que a tém por objeto) e do meio transmissor (canal) deixam fora de cogitacao a hipétese de servigo prestado e, por via de consequéncia, a percuss4o do ISSC, que nao pode incidir sobre mero ato comunicacional. Poder-se-ia cogitar da incidéncia do ISSC sobre o ser- vigo de comunicagao prestado pelo provedor de acesso A Internet, contratado pelo usuario que pretende conectar-se a pagina virtual de cliente de empresa que abastece infor- magées em rede de internet, para, como por exemplo, ouvir as mtisicas e assistir As imagens transmitidas. Neste caso, porém, poderia admitir-se que o prestador do servigo de comunicacao, a principio, é 0 provedor de acesso contratado pelo consumidor, jamais a transmissora das mensagens”. Usuario e transmissora apenas se comunicam, evento sobre © qual nao poderé percutir validamente a regra-matriz do Issc. Diga-se outro tanto com relagao ao ISS. Em sua ativida- de, 0 que as empresas dedicadas ao comércio eletrénico de obras audiovisuais efetuam é a transmissao de dados cripto- grafados para que o consumidor possa, mediante equipamen- to préprio (computador), armazené-los e usufrui-los. Em se tratando de programas audiovisuais, 0 consumidor passa, entao, a ter acesso a um esquema preestabelecido, na hipétese de simulcasting, ou escolher a mtisica ou o video que deseja 39. Entendo que, na hipétese de provedores de acesso & rede mundial de computadores, nao hd prestagao de servigo de comunicagao, como deixa- mos claro no estudo publicado na Revista Dialética de Direito Tributario n. 73:97. 117 139 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO ouvir ou ver, em se tratando de webcasting, desde que, obvia- mente, os sinais relativos aquela miisica estejam compartimen- tadas no banco de dados do site da transmissora, e que 0 usudrio tenha todas as condigées materiais necess4rias para captar algo que esta sendo transmitido ou que esté latente, porém, subsistente. Para que nenhuma divida remanesca, vale registrar que mesmo quando a transmissora de sinais de som e imagens nao é a criadora da programagao, ela adquire seus direitos autorais ou a licenga para transmiti-la, por meio de contrato de distribuicdo, passando a envid-la aos usuarios, por meio de cessdo de direito de uso, objeto de contrato de licencia- mento, consoante previsto no artigo 49, da Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1.998. Considerando que a transmissora con- cede licenga de uso de direitos autorais de que é detentora, nao se pode falar em incidéncia de ISS sobre tal atividade. As cessées de direito de uso nao podem ser alvo desse tribu- to, pois no s4o, como jé insistentemente salientado, presta- goes de servigo. Na oportunidade do julgamento do RE n. 116.121-3, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, decidiram que o ISSQN nao incide sobre a cessdo de direitos de uso, como ocorre, por exemplo, no contrato de locagao de coisas méveis. Efetivamente, a celebracao de contrato pelo qual uma das partes vé-se obrigada a ceder, mediante remuneracéo, 0 direito de uso de determinado objeto mével, nao implica a realizagao de um facere, nticleo da materialidade desse impos- to municipal. Daf a impossibilidade légica de incidir referido tributo sobre a operagao entabulada entre a transmissora virtual e os utentes da rede mundial. £ invélida, portanto, a Lei Complementar n. 116/03, a0 estabelecer como hipétese de incidéncia possfvel do ISSQN, a cesso de direito de uso, como se denota do item 3 e respectivos subitens, da lista de servigos. 118 140 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO 7. AATIVIDADE DE REPRODUCAO, PELO CONSUMI- DOR, EM SEU PROPRIO EQUIPAMENTO INFORMA- TICO, DOS DADOS FORNECIDOS PELO SITE DA TRANSMISSORA DE IMAGENS E SONS - DOWN- LOAD - E A IMPOSSIBILIDADE LOGICA DE INCI- DENCIA DO ICM As operagées denominadas streaming sound e streaming video, ou seja, a transmissao de sons e imagens, pela internet, bem como as operagées de venda e compra realizadas em am- biente virtual, permitindo ao consumidor reproduzir, em seu préprio computador, referidas obras visuais e musicais, nao se enquadram na hipétese de incidéncia do ICM. Realmente, no t6pico 5 deste estudo, consignamos que a regra-matriz de incidéncia do ICM somente incidir de forma valida se, e somente se, houver, em linguagem apropriada, a descrigao de um fato consistente na realizagao de operacao mercantil, da qual decorra a transferéncia de propriedade de uma mercadoria, signo empregado para conotar toda coisa mével, corpérea ou intangivel, objeto de ato ou negécio juridi- co mercantil. Vejamos, entio, se a atividade de reprodugao, pelo usud- rio da Internet, das misicas e imagens veiculadas no site das empresas de comércio eletrénico audiovisual, subsome-se a norma impositiva do ICM. Se a resposta for positiva, a percus- sao sera valida; caso contrario, a norma geral e abstrata que preveja a possibilidade de incidéncia ou a norma individual e concreta que documente tal fenomenologia impositiva serao incompativeis com o sistema constitucional. Pois bem. Consoante asseverei anteriormente, para que o usuario tenha acesso 4s mensagens arquivadas no site, cele- bra-se contrato pelo qual ocorre cess4o de direito de uso das pegas audiovisuais. Essa cessao possibilita ao consumidor ouvir as misicas e visualizar as imagens na propria pagina 119 141/428 PAULO DE BARROS CARVALHO virtual (hipétese mais remota), bem como copiar para seu pré- prio computador as informacées emitidas (hipstese mais re- corrente). Seja como for, transparece nitidamente que nao hé, sob qualquer aspecto, transferéncia de propriedade dos direi- tos autorais. O contrato apenas prevé a cessdo de uso destes direitos. A propriedade continua com os respectivos autores ou empresas dedicadas ao setor literario, musical ou cinema- togrdfico. Por esse motivo, compreende-se, nao podera incidir, validamente, a regra-matriz do ICM, que pressupée, como vi- mos, a transferéncia da propriedade da mercadoria. Neste caso concreto, repito, a propriedade permanece com a transmisso- ra das misicas e imagens, permitindo que o usuario da Internet apenas as ouga, visualize-as ou reproduza-as para poder ouvi- -las ou vé-las quando e quantas vezes quiser. Porém — e esse é um fato eloquente de que nao ha transferéncia de propriedade =o copiar uma misica, por exemplo, sua utilizagao pelo in- ternauta fica limitada a possibilidade de audicdo para si préprio, sendo proibida a divulgacdo para terceiros com intuito lucra- tivo, ou de apropriar-se de seus frutos, limitagées que denotam, nitidamente, a situacdo juridica de quem ndo é proprietario de direitos autorais. Apenas poderemos cogitar da valida incidéncia da norma impositiva do ICM se, e somente se, o bem intelectual estiver associado a um suporte corpéreo, como, por exemplo, os com- pact discs, as fitas cassetes etc., pois, neste caso, estaremos diante de mercadorias, bens susceptiveis de apreensao pelos sujeitos de direito, que podem ser objeto de atos ou negécios juridicos mercantis que lhe transfiram a propriedade. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, na oportunidade do julgamento do RE n. 176.626-3, decidiu, por unanimidade de votos, na esteira do que concluimos acima: (2) IIL. Programa de computador (“software”): tratamento tributério: distingdo necesséria. 120 142/428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO Nao tendo por objeto uma mereadoria, mas um bem incor- Péreo, sobre as operagoes de licenciamento ou cessdo do direito de uso de programas de computador ~ matéria exclu- siva da lide ~ efetivamente nao podem os Estados instituir ICMS: desta impossibilidade, entretanto, nao resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucio- nal de incidéncia do ICMS a circulacao de cépias ou exem- plares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo ~ como a do chamado “softwa- re de prateleira” (“off the shelf”) — os quais, materializando © corpus mechanicum da criacdo intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio. (Rel. Min. Septilveda Pertence, DJ. 11.12.98). Este entendimento prevalece nos dias atuais, como se denota da ementa abaixo transcrita: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINA. RIO. TRIBUTARIO. ICMS. PRODUTOS DE INFORMATI- CA. PROGRAMAS [SOFTWARE]. CD-ROM. COMERCIA- LIZACAO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSI- BILIDADE EM RECURSO EXTRAORDINARIO. 1. 0 Su- premo Tribunal Federal, no julgamento do RE n. 176.626, Relator o Ministro Septilveda Pertence, DJ de 11.12.98, fixou jurisprudéncia no sentido de que “nao tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpéreo, sobre as operacées de ‘licenciamento ou cessio do direito de uso de programas de computador’ ~ matéria exclusiva da lide -, efetivamente nao: podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, ndo resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidéncia do ICMS a circulagéo de cépias ou exemplares dos programas de com- putador produzidos em série e comercializados no varejo como a do chamado ‘software de prateleira’ (off the shelf) —0s quais, materializando o corpus mechanicum da criagao intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio”. Precedentes. 2. Reexame de fatos e provas. In- viabilidade do recurso extraordinario. Stimula 279 do Su- premo Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - Segunda Turma ~ RE 285.870 AgR/SP Rel. Min. Eros Grau, DJ 21.07.08). 121 143 / 428 PAULO DE BARROS CARVALHO Em face do exposto, qualquer que seja 0 enfoque pelo qual se examine a questao, podemos concluir que o ICM nao pode incidir sobre a atividade denominada download de obras audiovisuais, adquiridas por intermédio da rede mundial de computadores. 8. SINTESE CONCLUSIVA Feitas as consideragées que julgo indispensaveis a0 bom equacionamento do problema, volto aos quesitos que propus no inicio deste estudo para respondé-los, clara e objetivamente. 1. Hé, nas operagées de streaming sound, streaming video ou de comércio de download de arquivos digitais de dudio ou video, realizadas de forma onerosa por meio da rede mundial de computadores, a incidéncia do Imposto sobre a prestagao de Servico de Comunicagao~ ISSC? Penso que nao. Tenho assente que a comunicagao por si sé é insuficiente para propiciar a incidéncia do ISSC, tor- nando-se imprescindivel a efetiva prestacao de servico de comunicagao. Nas operagées citadas, em que o emissor é também dono dos equipamentos que constroem o canal pelo qual é transmitida a mensagem, inexiste a situagdo, ficando prejudicada a possibilidade de instituigao desse tipo de tri- buto sobre a matéria. 2. Pode entéo, nesses mesmos casos, haver a incidéncia do Imposto sobre a prestagdo de Servicos de Qualquer Natureza — ISSQN? Como afirmei na resposta do item anterior, nao encontro os tragos caracteristicos de uma prestacdo de servigos, existin- do sim um autosservigo: situacao pela qual o emissor da men- sagem é também proprietario dos equipamentos que abrem 0 122 144 / 428 DERIVACAO E POSITIVACAO NO DIREITO TRIBUTARIO canal no qual ela é transmitida. Considerando a materialidade oferecida aos municipios na Constituigéo, nao é cabida a inci- déncia de ISSQN nessas situacées. 3. Ou, nas hipéteses descritas, teria lugar o Imposto sobre Operagées de Cireulagdo de Mercadorias ~ ICM? Mais uma vez a resposta ser negativa. Isso porque a regra-matriz de incidéncia tributaria do ICM somente tem lugar ali onde houver circulagdo de mercadorias. Esse tipo de operagao pressupée a mudanga de titularidade na propriedade de um determinado objeto, 0 que nao acontece nos contratos cujo objeto é 0 download de uma pega audiovisual. Ocorre, nesses negécios juridicos, a celebragao de contrato de cessao de direito de uso para que os cedidos possam reproduzi-las em seu proprio equipamento. Assim, descabe a incidéncia de ICM nesses casos. 123 145 / 428

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