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Eelucagéo, Socuadacte & Cultura, n® 14, 2060, 103-119 ANTROPOLOGIA DA LITERATURA A MULTICULTURALIDADE NUM CORPUS LITERARIO PORTUGUES Anti Souta tiie Bie trabalho apresenta uma abordagem bolistica do multicultural a partir de dois projectos de investigagao — sobre a escola e os ciganos ~ cujo objec- tivo € a pesquisa, seleccdo, organizacdo, sistematizacdo e andllise de um patriménio literdvio portugués produzido, predominaniemente, nos tiltimoas dots séculos, e reporiado ao conjunto do territério nacional Apds breve and- lise da forma como emergem no corpus literdtrio as seis dimensoes do multi- cultural classe social, género, nacionalidade, lingua, religidio, etnicidade-, questiona-se trés ortodoxias que tém dificultado o desenvolvimento de uma Antropologia da Literatura Que escolas havia na metrépole a ensinar ao mundo uma antropologia aabissal dos povos~ negros,iskamicos, judaicas ~ que o destino nos dera ‘por compantbeiros na via sacra da Historia Onde estava uma literatura digna de tal nome que fosse a crstaltzacdo deslumbradaa desses encontros cruciais de racas e sangues* Miguel Torga, A Crtagdo do Mundo (O Sexto Dia) Dois projectos de investigacio centrados na literatura CO presente texto parte do cruzamento de dois projectos de investigagao em curso; um, individual e académico - «A Escola através da Literatura: -, & TTBSE de Seta gvucacag SOCIEDADE & CUITURAS ‘outro, de equipat e institucional - Nos romances de um escritos ¢ de um jornalista, e no didrio de uma ptofessora, focam-se as questdes do relacionamento interétnico entre criancas € jovens afticanos, macaenses, chineses e portugueses e, em particular, o desen- volvimento conflitual da sua identidade étnica, enquanto estudantes num liceu de Mocambique, em diversos estabelecimentos de ensino de Macau, ¢ num, internato do centro do pais «Todos 0 tratavam de “escanumba", como se ele, Josefo Mendo, fosse qual- que: Banzana selvagem Mas, ai! pouco a pouco foi-se merguibando naquela ideia que eles tinkam jetto sungir na sua cabeca Sentia as seus Idbtos grossos, grossos como se fos- sem inchados Quando se isolava no seu canto, e & noite na cama, ao escuro, ou durante as aulas, ou enquanto estudava, ou quando passeava na forma, todo o dia, a todas as horas, passava a sua mao fina, escura, na sua cabega. Entdo, sentia borrorizado que o seu cabelo nao era liso como 0 de toda a gente. Sentia que na sua cabeca havia uma carapinbal Tinba 15 anos e ndo sabia como, em tantos anos, jamais dera por isso! Foi preciso a Europa revelar-lbo.» (tha Doida, Joaquim Ferrer, 1945: 365) 5 se seré um tema que abordarei, com a colaboragzo de Ruben Cabral e Carlos Cardaso, num pr6- ximo nimero da revisa Kducardo, Sociedade ¢ Culivas: Expetiacias do vivide através da Literatura Pomuguesa: Bscolas ¢ Muitculturalidades er¥OAl dg SOCIEDADE & CULTURAS Em suma, o projecto da escola assenta numa literatura mais «memorialista», baseada num exercicio retroactivo de recomposigio de cendtios € interaccées, facilitado pelo maior conhecimento e proximidade do escritor aos contextos educativos (convém salientar que todos eles frequentaram a instituigio escolar © muitos ficaram pot ki como docentes: Sebastiio da Gama, Vergilio Ferreira, José Régio, José Rodrigues Miguéis, Tomas da Fonseca, Vitorino Nemésio, Ruben A, Ruy Belo, Augusto Abelaira, Eduarda Dionisio, M" Rosa Colago, Joao de Melo, etc) Quanio ao projecto dos ciganos, o seu suporte narrativo assenta numa -des- ctigio- etnogrifica, mais diferida, fruto de um maior afastamento do escritor face a esse grupo social, do qual se tem, nalguns casos, um conhecimento muito difuso; ¢ dai que alguns textos aparecam eivados de preconceitos Estamos cientes que ambos os projectos de investigagdo, potenciam fortes debates em tomo de dois eixos (que no irei aqui desenvolver): memérias € testemunhos, sealidade ¢ ficco; mas importa nao deixar de ter sempre pre- sente que, neste dominio, -a reconstrugio do real é a propria verdade do literd- tio» (Rocha, 1992: 38) ‘rés ortodoxias a questionar Procura-se, com estes dois projectos, sustentar 2 ousadia metodologica de uma Antropologia da Literatura (seria essa a sua designacao®} enquanto campo de interseccao multidisciplinar da Antropologia e da Literatura (ou dos Cultural Studies) e, no caso vertente, também das Ciéncias da Educacio Cruzar saberes de diversas disciplinas sociais € humanas é hoje uma otientaglo cada vez mais pattithada (Comissio Gulbenkian sobre a Reestruturacao das Ciéncias Sociais, 1996) E neste quebrar de basteiras disciplinares, num reconhecimento de humildade cientifica das limitagdes proprias de todas elas, o movimento de © Pmbora cscule uma outra promovida pela Gradive, Revwe Européenne ¢ Anthropologie Litéraire, ‘caja 2 surgiu em 1996; a sua “sede’ (ISPA) € 0 conteddo dos artigos até agora publicadas evi- dencia © enfoque excusivo da pscologia, ou com muais precsio, da psicandlse; se estivéssemos no tempo da Presenga talvez a patithissemos evUCACdg sociepade & CULTURAS aproximacio faz-se nos dois sentidos, como o atesta Italo Calvino nas Seis Propostas para o Préximo Milénio Habituado como estou a considerar a litera- tura como procura do conbecimento, para me mover no terreno existencial tenbo necessidade de considerd-lo extensivel @ antropologia, & etnologia, a smitologia’ (sublinhados nossos) (1990: 42) Esta Antropologia da Literatura wilhard necessariamente os caminhos da cultura erudita € da diacronia, quase sempre evitados pelos antropdlogos, por que «alheios: 4 especificidade fundadora da disciplina, como a ortodoxia acadé- mica nos ensinou Sabemos 0 perigo que core quem se afoita a «andar no arame: das rupturas € inovagdes: no caso presente, hi o tisco de pér em causa ‘um percurso € uma historia de uma disciplina — fragil, cultivada em nichos aca- démicos, com dificuldades em impor a sua utilidade social - mas que, ¢ talvez por tudo isto, tem as suas Ancoras, a8 suas segurancas, os seus «clissicos, que deram provas de eficicia e reconhecimento Bourdieu jé alertara para esses ris- cos: «A ruptura que & preciso operar para fundar uma ciéncia rigorosa das obras culturais [ ] implica uma verdadeira conversdo da maneira mais comum de pensar e de viver a vida intelectual, uma espécie de époché da crenga commumente concedida as coisas da cultura e ds maneitas legitimas de as abordar + (1992: 216) Debrucemo-nos entio sobre as trés wortodoxias: - 0 objecto, o trabalho de campo, a sincronia ~ que nos propomos questionar (uma heresia, ditto alguns): 1) Quanto ao objecto: a Antropologia, como ci€ncia social auténoma, tem 0 seu aparecimento intrinsecamente associado ao periodo histérico em que o Ocidente, através da expansao colonial, «descobre» sociedades bem distintas € as incorpora na sua étbita politica e econdémica Jean Copans afirma mesmo que, nesta disciplina, «0 campo empirico é imposto a reflexdo tedrica. ndio é um pensamento & procura do set objector (1971: 32) E assim, estas sociedades ~ apodadas de primitivas, arcaicas, atrasadas, Agrafas, ou mais eufemisticamente, tradicionais ¢ exéticas ~ de reduzida dimensio e aparente simplicidade, consti- tuem-se no objecto primeiro da antropologia Com a descolonizagao, a antropologia do distante exdtico deu lugar a uma -anthropology at home»; face a um disappearing object: (que s6 o turismo hoje yocASag SOCIEDADE & CULTURAS em dia tenta desesperadamente negar, teimando vender viagens aos «iltimos paraisos do homem), 0 retorno ao Ocidente implicow, de inicio, apenes uma mudanca de tertitério No essencial, replicou-se aquis © que se fazia Ms: pro- curdmos 0 outros, 0 exdtico, o «em vias de extincdo., e, logicamente, partimos para o mundo rural; nas cidades, ficamo-nos pelos grupos minotitérios dos baittos pobres, marginais e degradados de preferéneia (como Oscat Lewis tinha feito, nos anos 60 na cidade do México, com Os Filbos de Séinchez, naquela obra por muitos considerada como -literatura de realismo social-) Ultimamente, reencontramos as minorias étnicas, agora imigradas Mergulhamos na complexi- dade, pot uma questio de sobrevivéncia disciplinas, mas demos prioridade & diferenga social e cultural: © olhar do antropdlogo, sobre a sociedade moderna, continua preso dessa heranga do passado Mais ainda, este regresso a casa ps-nos em concoréncia com a ciéncia- -itmai — Sociologia — que, nao tem cessado de rectamar uma espécie de aratado de tordesilhas:, tematico € tedrico-metodolégico (Cabral, 1998), para a divisto assimétiica) do trabalho nas novas mega-urbes, remetendo-nos a uma espécie de

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