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Apresentacdo geral © capitulo Il, que agora se inicia, corresponde ao dominio da Educagio Literéria. Esté organizado em seis subcapitulos, cada um dos quais centrado no estudo das obras literérias indicadas no Programa. De uma breve observacio dos contetidos programéticos do dominio da Educagao Literaria jer paginas 712, facilmente se conclui que estes seguem um critério diacténico, ou seja, 0s textos so apresentados por ordem cronolégica. Nesse sentido, no 10.°ano, 0s textos lterérios a estudar vo, sensivelmente, desde o século Xilao século XV Este percurso diacrénico nao exclui, contudo, uma reflexéo sincrénica, isto é, uma reflexdo que envolve 0 tempo historico em que cada um desses textos foi produzido (contextualizacio histérico-literéria). © primeico subcapitulo é dedicado a poesia trovadoresca e nele serao analisadas as diferentes manifes- tagées literdrias que essa poesia assumiu: + cantigas de amigo; + cantigas de amor; + cantigas de escémnio e maldizer. Para cada um destes géneros potticos serdo tidos em conta os seguintes aspetos: + Representagtes de afetos e emocoes + Espacos medievais, protagonistas e circunsténcias + Linguagem, estilo e estrutura Miniatura cde um cavalelro de angaem iste, Primeiramente, estes aspetos serao apresentados em linhas gerais. Numa segunda fase, serdo analisa- jos em subt6picos e em funcdo das cantigas especificas exploradas. opin tt -Edueacdo era Contetdos essenciais a. Contextualizacao historico-literaria Espacos medievais, protagonistas e circunstancias Poesia trovadoresca ¢ designagao dada 20 conjunto de composicdes posticas medievais,enquadra-2 das em diferentes géneros, destinadas a serem cantadas, e que foram produzidas em Portugal, na Galiza,e® também nos reinos de Castela, Ledo e Aragao, por poetas que, para além de comporem esses poemas? ~ cantigas -, tocavam e cantavam, sendo por isso chamados trovadores. Regra geral, os trovadores eram de origem nobre e dedicavam-se ao oficio de compor e musicar poemas apenas por prazer, por deleite, sem dafretirarem qualquer proveito material. A poesia trovadoresca floresceu durante a Idade Média, mais concretamente durante o periodo que se estende de meados do século Xi a meados do século XIV. Em termos hist6ricos, politicos, sociais e econémicos, as seguintes expressdes permitem-nos caracteri- zar esse periodo: + Teocentrismo + Reconquista Crista + Feudalismo + Cultura monéstica vs. cultura profana A sociedade medieval 6 profundamente marcada pela religio, vivida de forma intensa e permanente. Deus €0 centro do mundo e de toda a vida do ser humano ~ teocentrismo. As romarias, as peregrinacées, as festas religiosas eram momentos de demonstracio de fé, de devogio, mas também de contacto entre as Populacées, de alegria e diversdo, ja que traziam consigo a musica, a danca, o canto. A importancia de Deus e da fé crista ¢ ainda atestada pela luta contra os infids, levada a cabo nas Cruzadas quer a oriente erusalém) quer a ocidente, como aconteceu na Peninsula Ibérica, Este é,alids, um periodo de lutas e guerras, motivadas nao s6 por questées religiosas, como também Por questdes politicas, geogréficas ou mesmo pessoais, No século Xll, a Peninsula Ibérica estava dividida ‘em muitos reinos. Para além do Condado Portucalense, depois transformado no reino de Portugal, havia 05 reinos da Galiza, Ledo, Castela, Navarra, Atago, Catalunha, Estamos no inicio das nacionalidedes ibéri- €a5, pelo que as lutas entre estes reinos eram frequentes e as fronteiras muito volateis, Por outro lado, a Peninsula Ibérica vivia a Reconquista Crista. Com efeito, nos séculos Xil e Xl, os mo- harcas portugueses, com a ajuda da classe guerreira e de cruzados vindos de outras regides da Europa, conseguiram expulsar 05 muculmanos e assim definiro territério de Portugal tal como hoje o conhecemos (a ditima conquista foi a de Faro e data de 1249). A sociedade medieval era também fortemente estratificada. Cada classe social tinha um papel bem definido ¢ cada um sabia exatamente o seu lugar e 0 que deveria fazer. Em linhas gerais, a funcao de cada ‘um dos principais grupos socials - clero, nobteza e povo - podia ser resumida da sequinte forma: + Clero ~ rezar, transmitir valores. + Nobreza ~ combater, defender as terras pelas armas. + Povo - lavrar a terra, realizar trabalhos manuals, integrar 0 exército. A sociedade estava organizada segundo o feudalismo, sistema politico, econémico e social caracteri- | zado pela diviséo da propriedade (feudo), conjugada com a divisdo, a fragmentacio da soberania, e polas obrigacdes reciprocas entre vassalos e suseranos. Vejamos melhor 0 que isso significava. 56 Feudalismo - Em sentido lato: sistema de orga- nizaczo econdmica, social, cultural e politica ca- racteristica da [dade Média europeia, cujos tracos fundamentais se baseiam nos lacos de dependén- cia pessoal que unem a maioria dos homens entre si numa sociedade fortemente hierarquizada, em que a classe militar desempenha o papel mais importante e em que o poder politico se fragmenta em insténcias auténomas, independentes do Estado, para beneficio dos seus detentores, que, em virtude de tais poderes, mantém as classes dependentes sob a tutela econémica, Em sentido estrito: “con- junto de instiruigdes que criam e regulam obriga- oes de obediéncia e de servico, sobretudo militar, da parte de um homem livre chamado vassalo para com outro homem livre chamado senhor, e obrigagoes de protecdo e sustento da parte do senhor para com 0 vassalo”; estas tiltimas concre- tizam-se por meio da “concessao ao vassalo de um bem chamado feudo” (F.Ganshof), Polis Bacciopdia Verb da Sociedade eco Fstado, _uminure sobre pergaminho de Limbourg Brothers, vol.2,Lisboa, Verbo, 1884, p.141¢ 1412-16, ‘Assim, em troca de varios servicos prestados a um senhor, que podia ser o proprio rel, o vassalo recebia ‘uma terra, um feudo, e com ela autoridade, poder. Dai falarse em fragmentacao da soberania, jf que mui- tos vassals (senhores da nobreza) tinham liberdade de atuacdo face ao rei, por exemplo. Por sua vez, todos aqueles que trabalhassern naquele feudo deviam vassalagem ao senhor dessa terra. Havia, pois, um sistema de obrigacées e de deveres que assegurava nao s6 a manutengao da hierarquia social, como também a transmissao e a permanéncia de valores importantes como a lealdade, a fidelidade, a coragem, a honra, Todavia, no caso de Portugal, muitos historiadores, em vez de falarem em feudalismo, preferem antes 1, que implicava a posse de um territério, uma relaco entre senhores os seus dependentes (trabalhadores), mas nao uma autonomia face a Coroa e 20 poder do rei. No fundo, podemos dizer que, entre nés, 0 feudalismo nao se manifestou com tanta intensidade como em Franca, por exemplo. falar num regime senhor Dos trés grupos sociais anteriormente referidos, 0 clero era aquele que mals contacto tinha com as Letras, nomeadamente os monges, que, nos conventos, estudavam, compilavam e produziam os livros manuscritos.O clero tinha, portanto, acesso a uma literatura e a uma cultura escrita ~ cultura monésti Ja a nobreza e sobretudo 0 povo usufrufam apenas da literatura e da cultura oral ~ cultura profana, cultura mondstica diziarespeito a obras e tratados de devogao ou outros textos de preparacao dos clérigos, sempre escritos em latim. A cultura profana incluia poemas e narrativas em verso, um repertério musical ¢ literario que era divulgado nas feiras, nas romarias, nos castelos, através de cantores e miisicos ambulantes ‘ou através de poetas que declamavam poemas e cantavam, a troco de uma remuneragio - 0s jograis. Os trovadores e os jograis tiveram um papel fundamental na sociedade. Por um lado, divertiam os senhores € 0 rei, nas suas casas e na corte. Por outro lado, ao desempenharem a sua atividade, estavam jé 2a criar um patriménio literério, ainda que oral. E allés, desse pattiménio oral que nasce a literatura portuguesa e, em especial, 2 poesia trovadoresca, 57 Copiot-Educagd0 etna B (Osmais antigos textos literdrios em lingua portuguesa sdo composigées em verso coligidas em cancioneiros de fins do século XIII e do século XIV, que retinem textos desde fins do século XI. Mas devemos supor muito anterior a tal época produgdo versificatéria e cantada testemunhada or estes textos escritos. A literatura oral, com efeito, s6 se fixa por escrito em época tardia da sua ‘evolucdo, quando as condicdes ambientes jé divergem muito daquelas que lhe deram origem. Conhecem-se trés cancioneiros ou coletineas, alids estreitamente aparentadas entre si, de cantigas de autores diversos em Ingua galega ou portuguesa. O mais antigo, 0 Cancioneiro da Ajuda, foi provavelmente compilado ou copiado em fins do século XII. Os outros, o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancutti) e 0 Cancioneiro da Vaticana (com uma varlante recentemente descoberta), sao cépias, realizadas em Itélia no século XVI, a partir de uma compilagao que data provavelmente do século XIV. [.] Na realidade, 05 cancioneiros néo constituem colegdes de poesia nacional, mas sim de poesia peninsular em lingua galego-portuguesa. Tudo se passa como se ocorresse no Ocidente ibérico uma s6 literatura romanica, mas polidialetal, consoante os géneros |. Anténio José Saraiva @ Oscar Lopes, Histéria da Literatura Portuguesa, 17 sedicso, Porto, Porto Editora, 2001, pp 45.47 (com supreesdes) Da leitura deste excerto, comprovamos as origens remotas da poesia trovadoresca e o facto de primei- ramente se ter manifestado de modo oral. Por outro lado, ficamos a saber que as composic6es trovadores- cs foram reunidas em trés coletneas: + Cancioneiro da Ajuda - encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, e contém pouco mais de 310 cantigas (64 no tém correspondéncia nos outros dois cancioneiros). + Cancioneiro da Biblioteca Nacional - copia mandada fazer pelo colecionador italiano Angelo Colocci; documenta o maior numero de composicdes. + Cancioneiro da Vaticana ~ contém 1205 cantigas de diversos trovadores galaico-portugueses, de fins do século Xia meados do século XIV. E ainda referida a lingua em que essas composigées foram escritas: © galego-portugués. Com efeito, no século Xi, quer o portugués quer © galego estavam em formacéo e ndo eram linguas distintas. No Norte de Portugal, na regido de Entre Douro e Minho, e na Galiza falava-se galego-portugués. Contudo, ‘sta lingua falada e literéria era nao s6 usada por trovadores portugueses e galegos, como também por trovadores leoneses, castelhanos, aragoneses e catalaes. Enesta regio, entre 0 rio Douro € 0 rio Minho, pasando pela Galiza (ndo excluindo, todavia, os reinos de Ledo e Castela), onde se fala galego-portugués, que a poesia trovadoresca vai floresc + de forma autéctone, isto é, resultando da tradigéo lirica popular jé existente nessa zona; + por importacao, ou seja, resultando de poemas e temas provenientes de outras zonas, em particular de Franca, e em especial da zona da Provenca. No primeiro caso, estéo as cantigas de amigo, composigées mais simples, marcadas pelo sentimenta- lismo e pela saudade. No segundo, estéo as cantigas de amor, de cardcter culto e convencional. O apare- Cimento de umas e outras esta relacionado com vérios aspetos. Vejamos alguns. ‘Antes da poesia lirica galego-portuguesa néo se sabe bem o que existiu, visto que nao ha registos escritos. Porém, alguns estudiosos defendem que o territério correspondente ao Nordeste de Portugal e a Galiza 1 Poesia roracoresca poderd, nos séculos XI e Xil, ter sofrido a influéncia de poemas de origem drabe - moaxds. Com efeito, no Sul da Peninsula, os mogarabes (cristaos sob o dominio muculmano) compunham pequenas composicoes amorosas em que, frequentemente, uma donzela se queixava do abandono do seu habib (0 seu amigo). Por outro lado, sabe-se que foram varios os poetas oriundos do Sul de Franca (por exemplo, da zona da Provenca) - 0s chamados trobadors - que viajaram até Portugal e 8 Galiza e que ai divulgaram a sua poesia. Tratava-se de uma poesia de amor que tinha como destinatéria uma mulher, habitualmente casada, a quem o poeta prestava vassalagem. Numa analogia com o feudalismo, o poeta (vassalo) devia prestar homenagem e submeter-se & sua senhor (suserano), de acordo com os principios da cortesia (boa educa- $40, civilidade), da mesura (autodominio, ceriménia) do respeito, que enformavam todo um cédigo amoroso. Esta poesia foi cultivada na langue doc, lingua falada no Sul de Franca. ‘A poesia dos trobadors alcangou uma grande notoriedade e acabou por propagar-se a outras zonas, entre elas 0 Nordeste de Portugal e a Galiza, gracas a varios fatores como: + romarias e peregrinagées, em especial a perearinacéo ao santuério de Santiago de Compostela, muito conhecido na época e que atrafa intimeros peregrinos; + casamentos e aliangas ao nivel da realeza e da aristocracia, que significavam o contacto com outras ‘manifestacdes culturais e a vinda de poetas do Sul de Franga como parte da corte (D. Afonso Henriques asou com D, Mafalda, de Saboia, ¢ D. Sancho I com D. Dulce, da Provenca: D. Dinis casou com uma princesa de Aragao, reino onde a poesia era bastante apreciada e valorizada); + proximidade entre Portugal e Franca, mantida através de relacSes comerciais ¢ de lacos afetivos: ‘Afonso Il, pai de D. Dinis, Frequentou a corte de Luis IX, em Franca; + deslocagbes de cavaleiros franceses que vieram ajudar na Reconquista Crista e que trouxeram con- sigo novos habitos culturais, novos gostos (foi o caso do proprio conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques, que tinha ascendéncia francesa). O desenvolvimento da poesia trovadoresca também se explica pelo papel de incentivo que alguns monatcas desempenharam. Na verdade, ao assumirem a sua veia postica, alguns monarcas funcionaram como um exemplo e um modelo a seguir. Tal foi o caso de Afonso X, 0 Sdbio (1221-1284), rei de Leo e Castela, autor de composigées profanas e de poemas religiosos - Cantigas de Santa Maria -, e de D. Dinis (1261-1325), que comp6s diversas cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escérnio e de maldizer. Mas entre os varios autores de poesia trovadoresca em galego-portugués nao se contam apenas reis. Ha muitos trovadores e jograis, de diferentes proveniéncias e estatutos. Por outro lado, esta poesia contava ainda com outros intérpretes, como as mulheres que acompanhavarn os trovadores ¢ 0s jograis e que dan- cavam — as jogralesas. Eis uma breve lista dos intérpretes da poesia trovadoresca e da funcio que cada um desempenhava: > ‘Trovador - compositor, quase sempre fidalgo (podia até ser rei), de poesia. Jogral - executor (geralmente de baixa condigao) que vivia do lucro da arte de cantar ou tanger versos préprios ou alheios. Segrel - cavaleiro-trovador, da pequena nobreza, que andava de corte em corte a cantar ea declamar; fazia-se acompanhar de um jogral ou substituia-o. Menestrel - era, no século XIII, um miisico-poeta (por vezes confundia-se com o jogral, s6 que vivia sob a protecao de um nobre e andava de corte em corte). Soldadefra ou jogralesa - cantadeira ou dangarina, a soldo, que acompanhava 0 jogral (tinha, ‘muitas vezes, um comportamento de moral duvidosa), 59 CO —<_<_$ ee oni coc ea b. Representacées de afetos e emogées Sendo uma manifestacao cultural, a poesia trovadoresca feflete, de forma trabalhada, representada, 3 vivencias do seu tempo, mas fé-lo subjetivamente,jé que trata de sentimentos, emocées, atitudes. 3 Um dos temas predominantes desta poesia é 0. amor, No entanto,o sentimento amoroso pode assumir = diferentes matizes que, em titima andlise, nos permitem distinguir dois géneros: i + cantigas de amigo; + cantigas de amo: ) As cantigas de amigo apresentam, na voz de uma donzela (o sujeito poético é feminino), os sentimentos por ela vividos relativamente ao seu amigo que pode estar longe, ausente (por sua vontade ou por forca das circunstancias - guerra, defesa da fronteira, viagem), levando-a por isso amanifestar saudade, tristeza, mégoa, angtistia, temor. Mas o sentimento que nutre pelo amigo pode também levé-la, noutras ocasides, a expressar alegria, sensualidade, confianga, em festas, tomarias, peregrinacées. F muito comum a donzela revelar aquilo que sente a sua mae, as ami- gas ou até & propria Natureza, funcionando todas elas como confidentes desse amor, umas vezes de forma silenciosa, outras vezes intervindo e respondendo aos anseios, as duividas, aos medos da donzela. Esta ligagdo & Natureza e esta vertente de confidéncia emprestam a cantiga de amigo uma espontaneidade e uma naturalidade préprias. Nas cantigas de amor a voz é masculina e o sentimento amoroso é vivido por um homem que se coloca ao servico de uma mulher, regra geral, casada. A dama mostra-se normalmente distante, fria ou até indiferente e é colocada numa posicio superior ao poeta, que lhe presta um servigo de vassalagem seguindo 0 eédigo de amor cortés. 0 sujeito masculino vive, assim, uma paixdo infeliz - cota de amor -, porque nao pode ser concretizada. Nestas composigdes vamos, entio, encontrar, por um lado, emogGes em crescendo que dizem respeito a esse sofrimento de amor, como a dor, a angistia, o desespero, a loucura ea propria morte, e, por outro, emocdes que fazem parte do quadro do elogio cortés que estas cantigas reproduzem. O amador louva a sua amada, a sua senhor, e traca todo um retrato idealizado da mesma, realgando quer as suas caracteristicas fisicas (cabelo loiro, pele clara), quer as suas caracteristicas morais (bom senso, bem falar). Para prestar um bom servico a dama, 0 poeta deve ser discreto e nao a nomear, deve respeité-la e deve submeter-se a ela, Tudo isto sao, na verdade, convengées derivadas da poesia provengal. Dai as cantigas de amor nos parecerem, habitualmente, menos esponténeas que as. cantigas de amigo. Para além destes dois géneros, a poesia trovadoresca comporta ainda uma dimenséo satiica, expressa rnas chamadas cantigas de escérnio e maldizer. Na verdade, os trovadores e os jograis sentiram também necessidade de apontar 0 dedo a algumas figuras da sociedade,a algumas situacdes ou comportamentos, fizeram-no, quer de forma direta, nomeando os visados e usando uma linguagem clara, sattrica, por vezes até violenta e grosseira ~ eantigas de maldizer -, quer de forma indireta, nao especificando concreta- ‘mente quem era ou qual era o alvo e recorrendo a uma linguagem mais camuflada, irénica ~ cantigas de escémio. Numas e noutras, verifica-se uma inten¢o critica, moralizadora e por vezes cémica, O.amor cortés ¢ 0 seu caracter dramatico, evidenciado na morte de amor, 0 oficio da criacéo postica, i mas também os comportamentos imorais de alguns elementos do clero ou a vida miserdvel de alguns elementos da nobreza sao alguns dos temas destas cantigas. Nesse sentido, as cantigas de escérnio ‘maldizer oferecem-nos um retrato mais completo da sociedade daquele tempo e de alguns dos seus 60 —_protagonistas. 1 Poesia roracoresea Linguagem, estilo e estrutura Para compreendermos o alcance desta poesia, ¢ imprescindivel considerar a linguagem, o estilo e a estrutura que subjaz a cada um dos géneros jé referidos. Embora muitos dos aspetos que se prendem com estes trés tépicos sejam mals visiveis através da leitura e da andlise de cantigas especificas, o que faremos nos pontos d),¢) ef), importa aqui explicitar algumas marcas destas composicées, sobretudo no que diz respeito a estrutura, ou seja, 8 organizacao, 20 arranjo que os versos assumem nas composi¢ées poéticas. Nesse sentido, chamamos a atencio para o facto de as cantigas de amigo se caracterizarem por uma estrutura estroficae ritmica que aproxima a poesia da musica. Esse efeito resulta do facto de estas cantigas recorrerem, frequentemente, a dois processos (em simultaneo ou isoladamente): 0 refrSo ~ repeticso de lum ou mais versos no final de cada estrofe ~e o paralelismo. Sobre este ultimo, vejamos a explicacdo e o exemplo abaixo. p O paralelismo constitui uma das caracteristicas estruturais da lirica galego-portuguesa, con- sistindo na repeticao simétrica de palavras, estruturas ritmico-métricas ou contetidos seménticos. "Nas cantigas de amigo, 0 paralelismo consubstancia-se frequentemente no leixa-prem, um pro- cesso de articulagio estréfica, pelo qual 0 2.° verso da 1 estrofe retomado no 1. verso da 3. estrofe, e 0 2.° verso da 2. estrofe é repetido no 1.° da 4.» estrofe, e assim sucessivamento, mantendo invarivel o refréo, ao mesmo tempo que cada par de disticos realiza um paralelismo semantico, como, por exemplo, na seguinte cantiga de Martin Codax: Eno sagrad’ en Vigo, bailava corpo velido: amorey! En Vigo, no sagrado, bailava corpo delgado amor ey! Bailava corpo velido, ‘que nunca ouvera amigo: amor ey! Bailava corpo delgado, ‘que nunca ouvera amado: amor ey! Que nunca ouvera amigo, ergas no sagrad’en Vigo: amor ey! Que nunca ouvera amado, ergu'en Vigo, no sagrado: amor ey! : (cvess) Lingua Portuguesa com Acordo Ortgrifco [en lina). Porto: Porto Editor, 2009-2015, : [consult.2015-04-15) Disponive! na Internet: | /wwwnfopedia pt 62 Cpitl Eeos60 orca Oparalelismo pode ser classificado como: + perfeito ou puro se a repeticio tem encadeamento (0 2° verso de uma estrofe é 0 1° verso dag estrofe alternada subsequente); + imperfeito, se esté isolado em cada par de estrofes. Nas cantigas de amor também se pode observar o tefrao e até o paralelismo, embora nao sejam proces~ ‘50s téo comuns. Quanto ao estilo, podemos dizer que diz respelto as opgdes que cada autor toma relativamente a varios aspetos, entre os quais se contam, por exemplo, a selecdo ¢ 0 uso de recursos expressivos. Entre aqueles que podemos encontrar nes cantiaas, destacamos a comparacao, a ironia ea personificacao, Veremos exemplos concretos desses recursos e de outros, mais & frente. Para ja, apresentamos apenas uma defini- (80 genérica de cada um: D + Comparagiio - relacao de semelhanca entre duas entidades, duas realidades que assim se aproximam, estabelecida por uma expresso comparativa. Ex: “e quen for loucana, como nds, loucanas” + Ironia - manifestacdo através da qual se da a entender o contrério do que se diz; por exemplo, parece que se esté a elogiar, quando, na verdade, se esté a ctiticar, a ridicularizar ou mesmo a desprezar algo ow alguém. Ex: “feze-sel em seus cantares morrer; / mais ressurgiu depois ao tercer dia” (alusdo a ressurreigao de Jesus Cristo) + Personificagao - atribuicao de qualidades, comportamentos, sentimentos tipicos dos seres humanos a seres inanimados, a animais irracionais, a ele- mentos da Natureza ou a objetos. Ex. “e eu hen vos digo que é san’ e vivo” (resposta das flores do pinheiro & ergunta do sujeito poético da cantiga) Ao falarmos na linguagem, no estilo e na estrutura das cantigas, devemos também ter em conta alguns termos usuais da poética trovadoresca: 5 + Ata-finda ~ processo métrico que consiste no encadeamento de versos e de estrofes entre si até ao fim da cantiga; consiste na ligacao sintatica e ideolé- gica entre as estrofes, + Copla- estrofe. + Distico - estrofe de dois versos. + Dobre - repeticao, ao longo do poema, de palavras na mesma posi¢ao do verso ou estrofe. + Finda - estrofe final de um a trés versos, espécie de conclusao; os poemas podem ter mais do que uma finda. + Leixa-prem - artificio poético que consiste em comecar uma estrofe pelo verso da parelha de coplas anterior (por exemplo, 0 segundo verso de dois disticos paralelos ¢ 0 primeiro verso dos dois disticos seguintes).. + Mozdobre - repeticdo, 20 longo do poema, de formas diferentes da mesma palavra, no mesmo ponto do verso ou estrofe.

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