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HANNAHARENDT Peer cent iatt {A vida do esprio, Volume 1-0 pensar Copyright® 1971 by Hannah Arend Copyright© 1978, 1977 by Harcourt, Ine A vida do esptito, Volume 2 O querer Copyright® 1978 by Harcour, Ine Publicado mediante acordo com Harcourt, In. CIPBRASIL, CATALOGAGAO.NA-FONTE SINDICNTO NACIONAL 005 EDITORES DE LIVROS, Ry Arend Hannah 1906-1975, arty “Aide doespiritos 0 pease 0 ere lg Hawa Ded. Arends fradugio Cesar Ange R de Ales, Aig ‘Abanches Helena Franco Mating. 2 ed = Rio de Janet: Cislizago Bases, 2010 “Tiadugio de: Te if of the ind Aréndice jar Excertos da conferecia sb sai police de Kant BuNS7ERS 200784 1. Flsofia. Lita, s.c017 cpus Todos os dtctos reservados, Proibida a reprodusi, armazensmento fom transmissio de partes deste iro, através de quaisquer meios, sem préviaautorizaio por escrito Este lvro foi revsado segundo o novo Acordo Orogritica dd Lingua Porwgsesa Diseltos dnt teaduyso adguiridos pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA, Um selo da EDITORA JOSE OLYMPIO. Rus Argentina 171 ~ 20921-380 Rio de Janeiro, RJ ~ Tels 25 Seja um leitorpreferencal Record CCadastrese «recehainformagoes sobre nosios langamentos enossss promogse. Ateadimento vend diteta a0 Iior: direro@record comb ou (21) 2585-20002 Impressa no Brasil 2010 Numquam se plus agere quam nibil cunt ageret, swumguam: minus solum esse quam cum solus esset. Caio. Cada wm de nds é como um homem que 8 as coisas em um sonbo e acredita conhecé-las perfeitamente, e entdo desperta para descobrir que ndo sabe nada. Platio, Politica AVIDA D0 EsPiRiTO Ihoso que os homens possam executar atos corajosos ou justos mesmo que nao conhegam e nao possam explicar © que so coragem ¢ justiga? (17, A RESPOSTA DE SOCRATES A pergunta “o que nos faz pensar?” apresentei respostas historicamente representativas, oferecidas por fildsofos profissionais (exceto por Sélon). Pela mesma razao, essas so respostas dibias. A pergunta, quando levan- tada pelo profissional, nao surge das suas prOprias experiéncias enquan- to esté pensando. Ela é formulada de fora — seja esse lado de fora constituido pelos seus interesses profissionais como pensador, seja 0 seu. préprio senso comum questionando uma atividade fora de ordem na vida normal. E as respostas que recebemos sio sempre muito gerais e vagas para fazer sentido na vida cotidiana, onde o pensamento, afinal, cons- tantemente ocorre, interrompendo os processos comuns da vida — do mesmo modo como a vida cotidiana constantemente interrompe o pen- samento. Se despojamos essas respostas de sen contetido doutrinério, que sem dévida varia enormemente, tudo o que obtemos sfo confissbes de uma necessidade de concretizar as implicagées do espanto platOnico, a necessidade (em Kant) que a faculdade da razio tem de transcender 0 limites do cognosctvel, a necessidade de reconciliar-se com o que de fato €e com 0 curso dos acontecimentos no mundo — a “necessidade da fi losofia” em Hegel, que pode transformar as ocorréncias externas nos nossos préprios pensamentos — ou, enfim, a necessidade de buscar 0 significado de tudo 0 que € ou ocorre, como eu mesma disse, de modo no menos vago e geral. E essa impoténcia do ego pensante para explicar-se que fez dos filé- sofos, dos pensadores profissionais, uma tribo tao diftcl de lidar. Porque © problema é que 0 ego pensante, como vimos — a diferenga do eu que evidentemente coabita em todo pensador —, nfo tem qualquer impulso préprio para aparecer em um mundo de aparéncias. Ele é um persona- gem escorregadio, invistvel nd apenas para os outros, mas também para © proprio cu, impalpavel e impossivel de ser apreendido, Isso em parte 0 PENSAR se dé porque ele é pura atividade, ¢ em parte porque —como disse Hegel ‘uma vez —“[como] ego abstrato, ele est liberado da particularidade de todas as outras propriedades, disposigdes etc.; ¢ é ativo apenas em rela~ io a0 geral, a0 que é 0 mesmo para todos os individuos”.” Em todo caso, visto a partir do mundo das aparéncias, da praca do mercado, 0 eo pensantd vive escondido, lathe biosas. E nossa questéo (o que nos faz pensar?”) de fato pergunta pela maneira como podemos trazé-lo a uz do dia, como provocé-lo, por assim dizer, a manifestar-se. O melhor, ena verdade o tinico modo que me ocorre para dar conta da pergunta, é procurar ur modelo, um exemplo de pensador nao pro- fissional que unifique em sua pessoa duas paixdes aparentemente con- traditrias, a delpensar e a de agit) Essa unido no deve set entendida como a Ansia de aplicar seus pensamentos ou estabelecer padres teéri- cos para a aco, mas tem o sentido muito mais relevante do estar & von tade nas duas esferase ser capaz de passar de uma & outra aparentemente coma maior facilidade, do mesmo modo como nds avangamos € recua- mos constantemente entre o mundo das aparéncias ¢ a necessidade de tefletir sobre ele. Melhor talhado para esse papel deve ser um homem ue no se inclua nem entre os muitos nem entre os poucos (uma distin- Gio que remonta, no minimo, a Pitégoras), que nao tenha nenhuma pre- tensao a ser um governante de homens, nem mesmo a de estar mais bem preparado para aconselhar, pela sua sabedoria superior, os que estio no poder, mas tampouco que se submeta docilmente as regras: em resumo, um pensador que tenha permanccido sempre um homem entre homens, {que nunca tenha evitado a praca ptiblica, que tenha sido um cidadio entre cidadaos, que ndo tenha feito nem reivindicado nada além do que, em sua opinido, qualquer cidadao poderia e deveria reivindicar. Nao deve ser facil encontrar esse homem. Caso ele possa representar para nds a real atividade de pensar,jentdo nao teré deixado atrés de si nenhum cor- po doutrindrio. Nao se terd dado ao trabalho de escrever seus pensa- ‘mentos, mesmo que deles restasse algum residuo tangivel, pronto para ser registrado depois que cle tivesse acabado de pensar. Vocés ja terdo percebido que estou pensando em Sécrates. Nao saberfamos quase nada sobre cle, pelo menos nada que pudesse nos impressionar muito, se ele A VIDA Do ESPiRITO ‘do tivesse causado uma enorme impressio sobre Plato. Talvez nio sou- béssemos nada sobre ele, nem mesmo através de Plato, se ele nao tives- se decidido dar a vida no por um credo ou uma douttina especifica — ele nao tinha nenhum dos dois —, mas simplesmente pelo direito de examina as opinides alheias, pensar sobre elas e pedir a seus interlocu- tores que fizessem o mesmo. Espero que o leitor nao pense que escolhi Sécrates por acaso. Mas é necessério prevenir: hé muitas controvérsias em torno do Sécrates hist6rico, e, embora este seja um dos temas mais fascinantes do debate ‘erudito, vou ignoré-lo* para apenas mencionar de passagem o que é pro- vavelmente o principal motivo de discérdia —a saber, minha crenga de que existe uma linha diviséria nitida entre o que € autenticamente socratico ea filosofia ensinada por Plato. O maior obstaculo aqui é 0 fato de que Platao usou Sécrates como 0 filésofo no apenas nos pri- meiros didlogos, claramente “socréticos”, como também mais tarde, quando muitas vezes fez de Séctates o porta-voz de teorias e doutrinas inteiramente no-socréticas. Em muitos momentos, 0 préprio Plato marcou as diferengas. No Banquete, por exemplo, 0 famoso discurso de Diotima nos diz que Sécrates nao sabe nada a respeito dos “grandes mistérios” ¢ talvez nao os possa compreender. Em outros momentos, porém, as fronteiras tornam-se indistintas, decerto porque Plato ainda podia contar com um piblico leitor que percebesse algumas enormes inconsisténcias — como quando ele deixa Sdcrates dizer, no Téeteto,” que “os grandes fil6sofos, (...) desde a juventude, ignoraram o caminho da praca piblica”, uma palavra de ordem antissocratica, se € que algum dia ele chegou a proferi-la. E, contudo, para piorar a situacao, isso de modo algum significa que 0 mesmo diélogo nao possa fornecer informa- g6es totalmente auténticas sobre o Sécrates real.¥? Ninguém, penso eu, contestaré a sério que minha escolha seja histo- ricamente justificavel. O mais dificil de justificar talvez seja a transfor- magio da figura hist6rica em um modelo, pois nao ha diivida de que alguma transformacio se faz necesséria, quando a figura em questo deve desempenhar a fungao que Ihe designamos. Etienne Gilson)em seu grande livro sobre’ Dante) escreveu: na Divina comédia, “um personagem (...) 190 0 PENSAR conserva (...) tanto de sua realidade histérica quanto a fungao represen- tativa que Dante Ihe atribui e que dele exige”.'*' £ facil conceder esse tipo de liberdade aos poetas e chamé-lo de licenga poética — mas nao é to facil concedé-la quando nao-poetas aventuram-se a dela se servir. Com ‘ou sem justificativas, no entanto, é precisamente o que fazemos quando construimos “tipos ideais” —ndo a partir do nada, como nas alegorias € abstragdes personificadas, tao caras aos maus poetas ¢ a alguns eruditos, ‘masa partir da multidio dos seres vivos passados on presentes que pare- ‘cem ter um significado representativo. E Gilson ao menos indica a ver- dadeira justificativa desse método (ou técnica) quando discute 0 papel representativo que Dante atribui a Tomas de Aquino: 0 Tomas real, aponta Gilson, nio teria feito o que Dante o fez. fazer — 0 elogio de Siger de Brabante. Mas a tinica razo pela qual o verdadeiro Tomé teria se recu- sado a fazer esse clogio seria uma certa fraqueza humana, um defeito de caréter, como diria Gilson, “a parte de sua constituigio que ele teria que ter deixado na porta do Paraiso para poder entrar”. Hi vétios ago ) _no Socrates |de Kenofonte} cuja credibilidade hist6rica est acima de jue Sécrates teria que deixar na porta do Paraiso. A primeira coisa a chamar nossa atengfo nos dilogos socriticos de Platéo E que eles séo todos aporéticos. A argumentagio nao leva a lugar nenhum ‘ou gira e JPara saber o que é a justiga, é preciso saber o que € ‘ conhecimento. E para saber isso, € preciso ter uma nog&o prévia nio examinada do conhecimento."* Por isso, “um homem nfo pode tentar descobrir o que sabe ou 0 que nao sabe. $e ele ja sabe, nao hé necessidade de investigacio. Se ele nao sabe (..) nem sequer sabe o que & pata ser buscado”.! Ou, no Eutifron: para ser pio, € preciso saber o que €a pie- dade. As coisas que agradam aos deuses sio pias; mas elas sio pias por- que agradam aos deuses ou agradam aos deuses porque so pias? = Nenhum dos logoi, dos argumentos, fica sempre no mesmo lugar; eles dio voltas. Sécrates, fazendo perguntas para as quais ele nfo conhe- ce a tesposta, coloca-os em movimento; e quando as afirmagbes voltam soe cle. ae ale 191 a AVIA Do EsPiaITO 0u a felicidade.' Pois os t6picos desses primeiros didlogos lidam com conceitos muito simples ¢ cotidianos, tais como surgem toda vez que as pessoas abrem a boca e comegam a falar. A introdugéo em geral é a se- ‘uinte: sem diivida ha pessoas felizes, atos justos, homens corajosos, belas coisas para ver ¢ admirar, como todos sabem; o problema reside em nossos substantivos, que sio provavelmente derivados dos adjetivos que aplica- ‘mos a casos particulares tais como nos aparecem (nés vemos um homem feliz, percebemos 0 ato corajoso ou a decisio justa). Em resumo, 0 pro- blema comeca com palavras como felicidade, justica, coragem e outras que hoje em dia chamamos de conceitos —a “medida nio-aparente” de Sélon (aphanes metron), “a mais dificil de compreender, para o espitito, ¢, contudo, a que circunscreve os limites de todas as coisas”,!™ e que Plato um pouco mais tarde chamou de ideias perceptiveis apenas para 08 olhos do espirito. Essas palavras fazem parte da nossa fala cotidiana ¢, mesmo assim, nao podemos delas dar conta. Quando tentamos defini las, tornam-se escorregadias; quando comegamos a discutir seu signifi- cado, nada mais fica no lugar, tudo comeca a mover-se. Assim, em vez de repetir 0 que aprendemos com Arist6teles, a saber, que Sécrates foi 0 homem que descobriu o “conceito”, perguntaremos 0 que Sécrates fez a0 descobri-lo. Pois certamente essas palavras faziam parte da lingua grega antes que ele tentasse fazer com que os atenienses ¢ ele proprio se des- sem conta do que eles todos tinham em mente — na firme convicgio, € claro, de que nenhum discurso seria possivel sem elas. Hoje isso j4 nao é tao certo. Nosso conhecimento das Ifnguas ditas primitivas mostra que o procedimento que agrupa diversos particulares sob um nome comum a todos nao é de modo algum evidente ou natural. Essas linguas, cujo vocabulério ¢ muitas vezes impressionantemente rico, carecem daqueles substantivos abstratos, mesmo em relacio a objetos claramente visiveis. Para simplificar a questo, tomemos um substanti- vo que ja nao nos parece mais abstrato. Podemos usar a palavra “casa” para um grande mimero de objetos — para a cabana de barro de uma tribo, paca o palicio de um rei, para a casa de campo de um citadino, para o chalé na aldeia, para o apartamento na cidade —, mas dificil- mente a empregamos para as tendas de alguns némades. A casa em si ¢ a" orensar 1120 Lacan por sijauto kath'auto, que nos faz usar a palavra para todos esses edifi- s particulares e muito diferentes entre si, nunca é vista, seja pelos olhos do corpo, seja pelos olhios do espirito, Toda casa imaginada, por mais, abstrata que seja e por mfnimos que sejam os tragos que a tornam reco- nhecivel, jf € uma casa particular. Essa outra casa, invisivel, da qual ja precisamos ter uma nogio para reconhecer edificios particulares como casas, foi explicada de diferentes modos e chamada por diferentes no- ‘mes na histéria da filosofia; isso no nos intefessa aqui, embora possamos achar a casa menos dificil de definir do que palavras como “felicidade” ou “justiga”. A questio aqui é que casa implica algo consideravelmente_! » menos tangivel do que a estrutura percebida por nossos olhos. Ela signi- fica que alguém é por ela “abrigado” e que nela alguém “habita”, como nao poderia fazer em nenhuma tenda, montada hoje e desmontada ama- nha. A palavra “casa” é a “medida oculta” que “circunsereve os limites de todas as coisas” relacionadas ao habitar. E uma palavra que nao exis- tiria sem o pressuposto do que se pensa sobre ser abrigado, habitar, ter um lar. Como palavra, “casa” é uma abreviatura para todas essas coisas, © tipo de abreviatura sem a qual o pensamento e sua rapidez caracteris- tica seriam absolutamente impossfveis. A palavra casa é como um pensa~ mento congelado que 0 ato de pensar tem que degelar sempre que pretende encontrar o seu significado original. Na filosofia medieval, esse tipo de pensamento era chamado “meditagio”, e a palavra era entendida | como diferente e até mesmo oposta a contemplagio. Em todo caso, esse tipo de reflexio ponderativa nao produz definigdes e, neste sentido, nao produz nenhum resultado, embora alguém que tivesse ponderado sobre o significado de “casa” pudesse ter tornado sua propria casa mais agradavel. Mesmo assim, diz-se que Sécrates acreditava que a vireude pudesse ser ensinada. E parece que ele realmente achava que falar e pensaP’sobre.a iedade, a justiga, a coragem e coisas do género poderiam tornar os ho- mens mais pios, justos e corajosos, embora nem definigdes nem “valo- res” Ihes fossem dados para que padessem orientar sua conduta futura, As convicgGes reais de Sécrates sobre tais assuntos podem ser mais bem ilustradas pelas comparagbes que cle fazia a respeito de si mesmo. 193 A VIDA DO ESPIRITO ‘ Autodenominaya-se um|moscardo ¢ uma parteira. Segundo Platdo, al- guém chamou-o de “arraia-elétrica”, um pcixe que, ao contato, paralisa € entorpeces e Sécrates admite a semelhanga, desde que seus ouvintes reconhegam que a “arraia-elétrica paralisa os outros apenas por estar ela ‘mesma paralisada... Néo € que eu deixe os outros perplexos, ja conhe- cendo as respostas. A verdade € que ew Ihes transmito a minha prépria perplexidade”." Esta é evidentemente, a expressio concisa do énico modo como o pensamento pode ser ensinado — embora Sécrates, como ele repetidamente dizia, nao ensinasse nada, pela simples razdo de que nada tinha a ensinar; ele seria “estéril” como as parteiras na Grécia, mulheres que jé tinham pasado da idade de dar & luz. (Jf que ele nio tinmha nada para ensinat, nenhuma verdade para divulgar, foi acusado de nunca revelar scu proprio ponto de vista [gnome] —como nos informa Xenofonte, que o defende dessa acusagao.)' E como se, ao contréri dos filésofos profissionais, cle sentisse a necessidade de verificar com seus semelhantes se suas perplexidades também eram por eles compartilha- das — ¢ isso € totalmente diferente da propensdo a encontrar solucdes, para enigmas, ¢ entdo demonstré-las aos outros. — J Examinemos rapidamente as trés comparagées. Na primeira, Sécrates é um moscardo: ele sabe como ferroar os cidadaos que, sem ele, vo “con- tinuar a dormir pelo resto de suas vidas”, a menos que alguém venha desperté-los. E para que os desperta? Para o pensamento € para a inyes- tigacao, uma atividade sem a qual, a seu ver, a vida nao valia a pena n sequer era totalmente vivida. (Sobre esse assunto, no apenas na Apolo- ‘gia como em outras ocasides, Sécrates diz quase o contririo do que Plato © faz dizer na “apologia melhorada” do Fedon. Na Apologia, Sécrates diz a seus pares cidadaos por que ele deveria continuar vivo ¢ por que, embora a vida Ihe fosse “muito cara”, ele nao tem medo de morrer. No Fedon, ele explica aos amigos como é dificil suportar a vida e por que alegra-se em morrer.) ‘Na segunda comparagio, Sdcrates é uma parteira: no Teeteto, diz que sabe trazer A luz os pensamentos alheios porque ele mesmo € esté- rils mais ainda, gragas a essa esterilidade, ele rem a pericia da parteira e ~ 4 © PENSAR pode decidir se esté lidando com uma gravidez real ou ilus6ria, da qual agenitora deve ser aliviada. Mas nos dilogos praticamente nenhum dos interlocutores de Sécrates jamais produziu um pensamento que nao fos- se um falso feto, que Sécrates considerasse merecedor da vida. De fato, le fazia 0 que Platdo disse sobre os sofistas no Sofista, certamente pen- sando em Sécrates: ele purgava as pessoas de suas “opinides”, isto 6 daqueles preconceitos nao examinados que os impediriam de pensar — ajudando-os, como disse Platao, a livrar-se do que neles hé de mau, as “opiniées, sem no entanto torné-los bons, mostrando-Ihes a verdade.'” \\ Em terceiro lugar, Séerates, sabendo que nao sabemos, recusa-se con- ) judo a deixar tudo por isso mesmo e desistir de suas préprias perplexi- dades; e, como a arraia-elétrica, permanece paralisado e paralisa os que com ele entram em contato. A arraia-elétrica, & primeira vista, parece ser 0 conttario do moscardo: ela paralisa, enquanto o moscardo desper- ta. No entanto aquilo que do lado de fora é visto como paralisia — do ponto de vista dos negécios humanos comuns — é sentido como o mais alto grau de atividade e de vida, Isso pode set confirmado a despeito das ja do pensamento, por raras evidéncias documentadas sobre a exper um certo mimero de afirmagées dos fildsofos, através dos séculos. “Sécrates, o moscardo, a parteira, a arraia-elétrica, néo é portanto um fil6sofo (cle nada ensina ¢ nada tem a ensinar), nem um sofista, pois nao pretende tornar os homens sbios. Quer apenas mostrar-lhes que eles nfo sao sibios, e que ninguém é sabio— uma “busca que 0 mantém to ocupado que sequer deixa tempo para os negécios ptiblicos ou priva- dos”." E mesmo quando se defende vigorosamente contra a acusagéo de corromper os jovens, em momento nenhum afirma torné-los melho- |. ‘res, Nao obstante, sustenta que o aparecimento da atividade de pensar € + \investigar em Atenas representa em si mesma o maior bem algum dia concedido a cidade.!"! Desse modo, ele preocupa-se com a utilidade do + | pensamento, embora nao tivesse, neste como em todos 0s outros assun- | “tos, uma resposta bem definida, Podemos ter certeza de que um didlogo sobre a pergunta “para que serve o pensamento?” terminaria com as ‘mesmas perplexidacles|que todos os outros didlogos. ‘A vipa 00 eseinito Jofisva oe VE Se tivesse havido uma tradigao socratica no pensamento ocidental se, nas palavras de Whitehead, a hist6ria da filosofia fosse uma colegio de notas de pé de pagina, nfo para Platio, mas para Sécrates (o que, sem vida, teria sido imposstvel), nao encontrariamos nela nenhuma res- L,, Posta para nossa pergunta, mas sem davida muitas variantes da prépria ergunta. Sécrates mesmo, consciente de que estava lidando com invisi-~ veis em sua investigagio, usou uma metéfora para explicar a atividade de pensar — a metafora do vento: “Os ventos sio eles mesmos invist- veis, mas o que eles fazem mostra-se a nés e, de certa maneira, sentimos quando eles se aptoximam.”"2 Encontramos a mesma metéfora em {| Séfocles, que (na Antigona) relaciona o “pensamento ripido como o ven- to” dentre as coisas dibias, “assombrosas” (deina) com que os homens so abengoados ou amaldigoados."" Em nossos dias, Heidegger as vezes © fala do “tafio do pensamento” e usa explicitamente a metéfora no tini= co lugar de sua obra em que fala diretamente de Sécrates: v 7 Durante toda a sua vida e até a hora da morte, Sécrates nao fez mais do que se colocar no meio desta correnteza, desta ventania [do pensamien- 4 oh enela manter-se. Eis por que ele é 0 pensador mais puro do Ocidente. 4 Fispor que ele nio escrevew nada) Pois quem sai do pensamento e come \,_ aa escrever tem que se parecer com as pessoas que se refugiam, em um abrigo, de um vento muito forte para elas (...). Todos os pensadores pos- teriores a Sécrates, apesar de sua grandeza, sio como estes refugiados. O Pensamento tornou-se literatura. Em uma nota explicativa posterior ele acrescenta que set o pensador “mais puro” ndo significa ser 0 maior." - No contexto em que Xenofonte — sempre ansioso por defender seu mestre com seus préprios argumentos vulgares contra acusagées igual- mente vulgares — menciona a metafora, ela nao faz muito sentido. Mesmo assim, até ele indica que o vento invisivel do pensamento se ma- nifestava nos conceitos, virtudes e “valores” com que Sécrates lidava em suas investigagdes. O problema é que este mesmo vento, sempre que surge, tem a peculiaridade de varrer para longe todas as suas manifestagdes o rensan anteriores: eis por que o mesmo homem pode ser entendido, ¢ entender asi mesmo, 20 mesmo tempo como um moscardo e como uma arraia- elétrica. £ da natureza deste elemento invisivel desfazer e, por assim di- x 1. zer, degelar o que a linguagem, 0 veiculo do pensamento, congelou como | {| pensamentos-palavras (conceitos, frases, definigdes, doutrinas), cuja“im- | ) poténcia” c inflexibilidade Platdo tao brilhantemente denuncia na Séti- \ma carta. A consequéncia € que olpensamento\tem incvitavelmente um | feito destrutivo e\corrosive sobre todos os ertérios estabelecidosyvalo- res, padres para o bem ¢ para o mal, em suma, sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral ¢ ética. Estes pensamen- tos congelados, Sécrates parece dizer, ocorrem tao facilmente que até | dormindo pademos fazer uso deles; mas se 0 vento\do pensamento que |) * agora provoquei sacudiu vocé do seu sono § deixou-o totalmente des- [., perto e vivo, vocé vera que pode dispor apenas de perplexidades, ¢ 0 ig} (melhor que se pode fazer com elas € partilhé-las com os outtos. > Le Assim, a paralisia induzida pelo pensamento é dupla: ela ¢ inerenté 0 parar para pensar, & interrupcio de todas as atividades — psicologi- camente, podemos definir um “problema” como uma “situagao que, por alguma razo, retém, em grande medida, um organismo em seus esforgos para atingir um objetivo""’ —, e pode ter também um efeito atordoan- te, depois que a deixamos, nos sentindo inseguros sobre o que parecia acima de qualquer diivida enquanto estévamos impensadamente engaja- dos em fazer alguma coisa. Se 0 que estamos fazendo é aplicar regras gerais de conduta a casos particulares, tal como eles ocorrem na vida cotidiana, encontramo-nos paralisados porque esse tipo de regra ndo resiste ao vento do pensamento. Tomando de novo o exemplo do pensa- ‘mento congelado inerente & palavra “casa”: uma vez que pensamos em seu significado implicito — habitar, ter um lar, abrigar-se —, ndo estare- mos mais tio dispostos a aceitar tudo o que a moda do dia prescreve para nossa prépria casa; mas isso nao € uma garantia de que se vai en- contrar uma solucio aceitivel para o que se tornou “problemitico”. Isso nos leva ao diltimo ¢ talvez. maior risco desse empreendimento perigoso ¢ sem resultados. No circulo de Sécrates havia homens como ‘lcibfades e Critias — e Deus sabe que eles nao eram de modo algum os A VIDA DO Espiaito piores entre os seus autodenominados disefpulos —, que se revelaram uma verdadeira ameaga a polis, e isso nao porque tivessem sido paralisa- dos pela arraia-elétrica, mas, a0 contrério, porque foram despertados pelo moscardo. Foi para a licenciosidade eo cinismo que foram despertados. Nao satisfeitos em terem aprendido como pensar sem ter uma doutrina, transformaram os ndo-resultados da investigagio socrética sobre pen. samento em um resultado negativo: se nao podemos definir 0 que é a Piedade, scjamos impios — 0 que é quase o contririo do que Sécrates sperava atingir quando falava de piedade. A tbuisca de significado, que implacavelmente dissolve e reexamina todas as doutrinas e regras aceitas, pode a qualquer momento voltar-se contra si mesma, produzir uma reversio dos antigos valores ¢ declarar {que estes contrarios sao “novos valores”. Em certa medida, isto é o que Nietzsche fez quando inverteu o platonismo, esquecendo que um Plato 420 contrério ainda é Plato; ou o que Marx fez quando virou Hegel de cabeca para baixo, produzindo, neste processo, um sistema de Histéria éestritamente hegeliano. Tais resultados negativos do pensamento entra- To na mesma rotina impensada de antes; no momento em que forem aplicados 20 dominio dos negécios humanos, é como se nunca tivessem sido submetidos ao proceso do pensamento. O que nés geralmente chamamos de “niilismo” — que somos tentadas a datar historicamente, deplorar politicamente e atribuir a pensadores que, segundo se diz, tive. ram “pensamentos perigosos" —é um risco inerente & propria atividade de pensar. Nao hé pensamentos perigosos; 9 proprio pensamento € per {Cri i 5 ii Figoso, mas o niilismo ndo € 0 seu produto, O niflismo & antes 0 reverso do convencionalismo; o seu credo consiste em negacies dos atuais valo- res ditos positivos, aos quais ele permanece aprisionado. Todo exame cxftico tem de passar, pelo menos hipoteticamente, pelo estigio de nega- S20 de opinises e “valores” aceitos, quando busca seus pressupostos e implicagées técitas. Neste sentido, 0 niilismo pode ser visto como um Petigo sempre presente para o pensamento. Mas esse perigo nio surge da convicgio socritica de que uma vida ‘no submetida a questionamento nao vale a pena ser vivida. Ao contra- Ho, cle surge do desejo de encontrar resultados que dispensariam o pensar, a © PENSAR © pensamento é igualmente perigoso para todos os credos e, por si mes- ‘mo, ndo dé origem a nenhum novo credo. Seu aspecto mais perigoso do ponto de vista do senso comum é que o que era significative durante a atividade do pensamento dissolve-se no momento em que se tenta aplicg- loa vida de todos os dias. Quando o ponto de vista da opiniso cotidiana se apodera dos “conccitos", isto é, das manifestagdes do pensemento na fala comum, e comega a traté-los como se fossem resultados cognitivos, a tinica conclusio s6 pode ser a de que nenhum homem é sibio. Na pra tica, pensar significa que temos de tomar novas decisées cada vez que somos confrontados com alguma dificuldade. A auséncia do pensamento, contudo, que parece tio recomendavel em assuntos politicos ou morais, também apresenta riscos. Ao proteger con- tra 0s petigos da investigacao, ela ensina a aderir rapidamente a tudo 0 que as regras de conduta possam prescrever em uma determinada época para uma determinada sociedade. As pessoas acostumam-se com mais facilidade & posse de regras que subsumem particulares do que propria- mente ao seu contetido, cujo exame inevitavelmente as levaria & perplexi- dade. Se aparecer algném, nao importa com que propésitos, que queita abolir 0s velhos “valores” ou virtudes, esse alguém encontraré um cami- nho aberto, desde que ofereca um novo eédigo. Precisaré de relativa- mente pouca forga e nenhuma persuasio — isto é, de provas de que os novos valores sao melhores do que os velhos— para impor 0 novo cédi ‘g0. Quanto maior € a firmeza com que os homens aderem ao velho c6- digo, maior a facilidade com que assimilarao 0 novo. Na pritica, isso significa que os mais dispostos a obedecer sero 0s que foram os mais respeitaveis pilares da sociedade, os menos dispostos a se abandonarem 0s pensamentos — perigosos ou de qualquer outro tipo —, a0 passo gue aqueles que aparentemente eram os elementos menos confiaveis da yelha ordem serao os menos déceis. Seas questées da ética e da moral fossem realmente 0 que a etimologia dessas palavras indica, nao seria mais dificil mudar os costumes ¢ habi- tos de um povo do que suas maneiras A mesa, E a facilidade com que tai: mudangas ocorrem, sob certas circunstincias, sugere realmente que todo <, A VIDA DO ESPIRITO mundo estava dormindo profundamente quando elas ocotreram, Estou me referindo, é claro, ao que houve ita Alemanha nazista, em certa me- dida, também na Réssia stalinista, quando subitamente os mandamentos basicos da moralidade ocidental foram invertidos: no primeiro caso, 0 mandamento “nao mataras”; €, no segundo, “no levantaras falso teste- munho”. E tampouco o que veio depois poderia nos consolar, isto & a inverséo da inversio, 0 fato de ter sido tio surpreendentemente facil “reeducar” os alemaes apés 0 colapso do Terceiro Reich, tio facil mes- mo que se poderia dizer que a reeducagio foi automatica, Na verdade, nos dois casos, trata-se do mesmo fendmeno. Voltando a Sécrates, os atenienses Ihe disseram que 0 pensamento era subyersivo, que o vento do pensamento era um furacio a varrer do mapa 5 sinais estabelecidos pelos quais os homens se otientavam, trazendo _desordem as cidades ¢ confundindo os cidadaos. E, embora Sécrates ne- | gue que o pensamento corrompa, ele tampouco alega que aperfeigoe alguém. O pensamento apenas desperta, ¢ isso Ihe parece um grande bem para acidade. Mesmo assim, Sécrates nao diz que emprcendeu todas essas investigag6es para se tornar um grande benfeitor. No que diz respeito a ele mesmo, a tinica coisa que se pode dizer que uma vida sem pensa- ‘mento seria sem sentido, embora o pensamento jamais torne alguém s4 bio ou dé respostas as perguntas que ele mesmo levanta. O significado \\ do que Sécrates fazia repousava nessa simples atividade. Ou, em outras | Palavras: pensar ¢ estar completamente vivo so a mesma coisa, ¢ isso | implica que o pensamento tem sempre que comecar de novo; é uma ati vidade que acompanha a vida ¢ tem a ver com os conceitos como justiga, felicidade e virtude, que nos sio oferecidos pela prépria linguagem, ex- ~\pressando o significado de tudo o que acontece na vida ¢ nos ocorre enquanto estamos vivos. WOU» BLOS Fav © que chamei de “busca” do significado aparece, na linguagem socrstica, como 0 amor, no sentido grego de Eros, nao no sentido cristao de agape. }0 amor, como Bros, é antes de tudo uma falta; deseja o que néo tem. Os / " [homens amam a sabedoria e comesam a filosofar porque nao sao sabios. SAAN) & x 0 pensan Hob/2 ‘Amam a beleza e fazem 0 belo, por assim dizer — philokalowmen, como disse Péricles na Oracdo fianebre"* —, porque eles nao sio belos. O amor €0.tinico assunto sobre o qual Sécrates se diz. conhecedor; e essa habilida- de guia-o também na escolha de companheiros e amigos: “Embora eu seja ingil para todas as outras coisas, este dom eu tenho: reconhego imediata- ‘mente 0 amante ¢ © amado.”"” Ao desejar 0 que nao tem, o amor estabe- Jece uma relagio com o que nao esta presente. Para trazer & luz e fazer aparecer essa relacio, os homens procuram falar dela — assim como 0 amante procura falar do amado. E porque a busca empreendida pelo pen- samento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento 36 | podem ser coisas merecedoras de amor —beleza, sabedoria, justica etc. O | mal ¢ a feiura quase por definicio esto excluidos da consideragio do pensamento. Eles podem apresentar-se como deficiéncias, consis feiura na auséncia da beleza e o mal, kakia, na auséncia de bem, Em si, nio tém raizes préprias nem esséncias onde o pensamento possa se firmar. Se © pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original, ento 0 mesmo processo tem que dissolver tais conceitos “negativos” até sua auséncia de significado original, isto é, até o nada, do ponto de vista do ego pensante. Bis por que Sécrates acreditava que ninguém pudesse fazer 0 mal voluntatiamente — o mal, como dirfamos ns, nfo tem esta- tuto ontolégico: ele consiste em uma auséncia, um algo que nao é. Demécrito, que compreendia o logos, a palavra, como acompanhamento da ago — da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais, distinguindo-as assim da mera semblancia —, por isso mesmo desaconselhava a que sc falassc dos maus atos: ao ignorarmos o mal, pri vando-o de qualquer manifestacao na faa, ele se torna uma mera semblanci que nao projeta nenhuma sombra.'"* Quando abordamos o espanto admirativo c afirmativo de Plato, encontramos a mesma exclusio do mal tal como ele se desdobra em pensamento; € a encontramos em quase to dos os filésofos ocidentais. Ao que parece, a Gnica coisa que Sécrates ti-| « nbaa dizer sobre a conexao entre o mal c a auséncia de pensamento € que | | © 5 pessoas que no amam a beleza, a justiga ca sabedoria sio incapazes de \ " pensar, enquanto que, reciprocamente, aqueles que amam a investig ) ¢, assim, “fazem filosofia”, sio incapazes de fazer o mal a Wedd A VIDA DO ESPIRITO 18. 0 DOIS-EM-UM Aonde chegamos em relagio a um dos nossos principais problemas — a saber, em relagio & possfvel conexdo entre a auséncia de pensamento € 0 mal? Chegamos a conclusio de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socritico, o amor da sabedoria, da beleza e da justiga so capazes de pensamento ¢ dignas de confianca. Em outras palavras, chegamos as “naturezas nobres” de Plato, as poucas a respeito das quais se pode di- zer que “nao fazem 0 mal voluntariamente”. No entanto nem mesmo em seu caso é verdadeira a concluséo implicita e perigosa de que “todo mundo quer fazer 0 bem”. (A triste verdade € que na maioria dos casos omal é praticado por pessoas que jamais se decidiram a fazer 0 bem ou 0 mal.) Sécrates, que diferentemente de Platio considerava todos os as- suntos ¢ conversava com todas as pessoas, niio pode ter acreditado que 86 0s poucos sio capazes de pensamento, nem que 86 alguns objetos de pensamento, visiveis aos olhos da mente bem treinada, mas inefiveis no iscurso, conferem dignidade € relevancia & atividade de pensar. Se hd algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o mal, esse algo deve ser alguma propriedade inerente & propria atividade, independen- temente dos seus objetos. Socrates, esse amante das perplexidades, fez poucas afirmagées positivas Entre elas ha duas, intimamente ligadas, que tratam do assunto. Ambas ocorrem em Gérgias, o didlogo sobre a revérica, a arte de dirigir ¢ con- Vencer os muitos. O Gérgias nao faz parte dos didlogos socrticos da juventudes foi escrito pouco antes de Platio tornar-se diretor da Acade- mia. Além disso, o proprio tema do dislogo é uma arte ou uma forma de discurso que pareceria perder todo sentido se fosse aporético. E, apesar disso, ele € aporético, exceto pelo fato de que Platio concluiu-o com um daqueles mitos sobre o além-mundo de recompensas e puni¢6es que apa- rentemente — isto é, ironicamente — resolvem todas as dificuldades. A seriedade desses mitos é puramente politica e consiste no fato de eles se dirigirem A multidao. Os mitos do Gérgias certamente nao sio. socriiticos, ‘mas mesmo assim sio importantes, porque revelam, embora de uma for- 202 © PENSAR ma nio-filos6fica, o reconhecimento platOnico de que os homens volun- tariamente cometem atos maus. Isso acarreta a admissio suplementar de gue Platdo, assim como Sécrates, nfo sabia como tratar filosoficamente esse fato perturbaclor. Podemos nao saber se Séerates acreditava realmente gue a ignordncia causasse © mal, ou que a virtude pudesse ser ensinadas no entanto é certo que Plato achava mais prudente fiar-se em ameacas. ‘As duas sentencas afirmativas de Sécrates so as segnintes: a primei- ra, “é melhor sofrer 0 mal do que o cometer”. Ao que Cilicles, 0 inter- locutor no didlogo, responde o que todo grego teria respondido: “Sofrer ‘mal nio € digno de um homem, mas de um escravo, para quem é me- Ihor morrer do que viver, para quem nao € capaz de socorrer nem a si mesmo nem &queles que para ele so importantes.”""” A segunda afirma- io é: “Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desa- finasse e produzisse rufdo desarménico, e [preferiria] que multidoes de homens discordassem de mim do que eu, sendo um viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me.”™ Ao ouvir isso, Calicles, responde que Sécrates esta “enlouquecido pela eloquéncia” e que seria melhor para ele ¢ para todos se ele deixasse a filosofia.'* E nisso ele tem suas razes. Foi sem diivida a filosofia, ou antes, a experiéncia do pensamento que levou Sécrates a tais afirmagoes — em- bora, é claro, ele nio tenha se langado em sua empreitada com 0 objeti- vo de chegar a elas, assim como nao foi para serem “felizes” que outros fildsofos se langaram as suas préprias investigagdes.' (Seria um grave cengano — penso eu —compreender essas afirmagées como o resultado de reflexdes sobre a moralidade; elas sao insights, é verdade, mas da experiéncia, e, no que diz respeito ao préprio processo do pensamento, elas so no maximo subprodutos incidentais.) Para nés é dificil compreender como deve ter soado paradoxal a pri meira afirmacéo na sua 6poca; apés milhares de anos de uso e abuso, ela soa como moralismo barato. Ea melhor demonstragio de como é dificil para leitores modernos aprender a forca da segunda afirmacao 6 0 fato de que as palavras-chave “sendo um” (que precedem “seria pior para mim estar em desacordo comigo mesmo do que com multidées inteiras”) fre- quentemente sio ignoradas pelos tradutores. A primeira é uma afirma- S40 subjetiva que significa: € melhor para mim sofrer 0 mal do que o cometer. E no didlogo em que ocorre, ela é contestada simplesmente por outta aflrmacdo igualmente subjetiva que, evidentemente, soa muito mais Plausivel. O que fica claro € que Cilicles Sécrates esto falando de “eus” diferentes: © que é bom para um é mau para outro. - “Masse, por outro lado, encaramos essa proposicao do ponto de vise ta do mundo, que € distinto daquele dos dois falantes, teriamos que di- 2er: © que conta é que o mal foi feito; ai é irzelevante saber quem se saiu melhor —o autor ow a vitima. Na qualidade de cidadios, nbs deve mos evitar que o mal seja cometido, porque est em jogo o mundo em que todos nés — o malfeitor, a vitima e o espectador — vivemos. A ci- dade foi injuriada. Nossos eédigos legais levam isso em consideracio, ao distinguir crimes em que a acusagio é obrigatéria ¢ transgressdes que Pertencem a0 dominio privado dos individuos, que podem querer ou ‘nao mover uma agéo, Poderiamos quase definir um crime como aquela fransgressdo da lei que exige punigio, nao importando quem foi injuria- do; a vitima pode estar disposta a perdoar e a esquecer,¢, se houver a Ssuspeita de que o malfeitor certamente ndo voltard a fazer o mal, pode nao haver perigo para as outras pessoas, No entanto a lei da terra nio Permite essa escolha, porque a comunidade como um todo foi violada, Em outras palavras, Sécrates no estd falando aqui na pessoa do ci- dado, de quem se sup6e preocupar-se mais com © mundo do que con- sigo mesmo; ele fala aqui como um homem devotado principalmente 20 pensamento, como se ele dissesse a Cilicles: se vocé estivesse, como €u, apaixonado pela sabedoria, e se sentisse a necessidade de pensar sobre tudo € examinar tudo, voce saberia que é melhor sofret 0 mal do que o Praticar, caso nao haja alternativa, caso 0 mundo seja como voc’ o des. Creve, dividido entre fortes e fracos, onde “os fortes fazem o que estd em Seu poder, ¢ 05 fracos sofrem 0 que t&m que softer” (Tucfdides). Mas € claro que o pressuposto aqui é: se vacé estd apaixonado pela sahedoria ¢ belo filosofar; se voce sabe o que significa investigat. Ao que eu saiba, ha apenas uma outra passagem na literatura grega gue diz o mesmo que Sécrates, quase com as mesmas palavras. “Mais desgracado [kakodaimonesteros] do que o injuriado € 0 malfeitor”, le- 208 © PENSAR mos em um dos fragmentos de Demécrito, o grande adversério de Parménides, que, provavelmente por esta mesma razo, nunca é mencio- nado por Platéo.' A coincidéncia parece notavel, porque Demécrito, ao contrario de Sécrates, ndo estava particularmente interessado em assuntos humanos, mas parece antes ter estado bastante interessado na experiéncia do pensamento, Chega a parecer que aquilo que somos ten- tados a compreender como uma proposigéo puramente moral na verda- de tem origem na experiéncia do pensar enquanto tal. E isso nos leva a segunda afirmagio, que é de fato 0 pré-requisito para a primeira, Bla também é altamente paradoxal. Sécrates afirma ser uum ¢, por isso mesmo, nao querer correr 0 risco de entrar em desacordo consigo mesmo. Mas nada do que é idéntico a si mesmo, verdadeira ¢ absolutamente Unt, assim como A é A, pode estar em harmonia ou de- sarmonia consigo mesmo; no minimo dois tons sempre sio necessérios para produzir um som harmonioso. Certamente quando apareco e sou visto pelos outros, sou um; de outro modo, seria irreconhecivel. E en- quanto estou junto a outras pessoas, pouco consciente de mim mesmo, sou tal como aparego pata os outros. Chamamos de consciéncia (literal. mente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) 0 fato curioso de que, em certo sentido, ew também sou para mim mesmo, embora quase nio parega para mim — o que indica que 0 “sendo um" socritico nao é tao Pouco problemético como parece; eu nao sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse jiltimo caso, claramente eu nao sou apenas um, Uma diferenga se instala na minha Unicidade. Conhecemos essa diferenca sob outros aspectos. Tudo 0 que existe em meio a uma pluralidade de coisas nao & simplesmente o que é, em sua identidade, mas também é diferente de outras coisas; esse ser diferente Pertence & sua prépria natureza. Quando tentamos apreendé-lo em pen- samento, querendo defini-lo, devemos levar em conta essa alteridade (altereitas) ou diferenga. Quando dizemos o que uma coisa é, temos que dizer 0 que ela ndo é, sob pena de falarmos apenas por tautologias: toda determinacao € uma negagao, como diz Espinosa. Ha uma curiosa pas- sagem do Sofista, de Plato, pata a qual Heidegger chamoua atengio, € 205 A VIDA DO EsPiRITO que trata do problema da identidade e da diferenca, O Estrangeiro afi ma que no diélogo de duas coisas — por exemplo, repouso e movimen- to—, “cada uma é diferente [da outra], mas, para si mesma [é] a mesma” (bekaston heauto tauton).'* Ao interpretar a sentenca, Heidegger da énfase a0 dativo, heautd, pois Platdo nao diz, como seria de esperar, hekaston auto tauton, “cada uma em si {tomada fora de contexto] € a mesma coisa”, no sentido tautolégico em que A é A, onde a diferenga surge da pluralidade de coisas. Segundo Heidegger, esse dativo significa que “cada coisa é restituida a si mesma, cada uma em si éa mesma para si [porque ela é] consigo mesma (...) A mesmidade implica a relagdo de ‘com’, isto é, uma mediagZo, uma conexdo, uma sintese: a unificagéo em “uma unidade”." A passagem examinada por Heidegger se localiza na parte final do Sofista, sobre a koindnia, a “comunidade”, a qualidade que as ideias tem de ajustar-se ¢ de misturar-se umas as outras, e especialmente sobre a possivel comunidade de Diferenga e Identidade, que parecem ser con- trdrias. “O diferente ¢ sempre dito com referéncia a outras coisas” (pros alla),! mas seus contrérios, as coisas “que so 0 que séo em si mesmas” (kath’bauta), participam da “Ideia” da diferenca, & medida que se “refe- rem de novoa si mesmas”. Elas so as mesmas para si ou consigo mesmas, de tal forma que cada eidos é diferente do resto, “nao em virtude da sua prépria natureza, mas porque participa do cardter da Diferenga”,!”’ isto é, no porque tenha uma relagao com outra coisa da qual ele é diferente (pros ti), mas porque ele existe em meio a uma pluralidade de Ideias; “todo ente, na condigio de ente, encerra a possibilidade de ser conside- _tado diferente de alguma coisa”."* Em nossos termos, onde quer que hhaja uma pluralidade — de seres vivos, de coisas, de ideias— ha diferen- $9, ¢ essa diferenga néo vem do lado de fora, mas é inerente a cada ente sob a forma da dualidade, da qual surge a unidade como unificagio. Essa construgo —a implicacao de Plato, bem como a interpretagao de Heidegger — parece-me err6nea) Tirar uma simples coisa do seu contex- to, do meio das outras coisas, ¢ olhd-la apenas na sua “relago” consigo. mesma (kath’hauto), isto é, na sua identidade, nao revela nenhuma dife- A : © PENSAR renga, nenhuma alteridade; quando cla perde a relago com algo que ela | nao 6, petde também a propria realidade e adquire um bizarro caréter de fantasmagoria. E 0 que ocorre frequentemente nas obras de arte, es-) pecialmente nos trechos em prosa do primeiro Kafka ou em algumas pinturas de Van Gogh, onde um objeto singular, uma cadeira ou um par de sapatos é representado. Mas essas obras de arte sao coisas-pensamen- to, € 0 que Ihes confere 0 seu significado — como se elas nio fossem apenas elas mesmas, mas para elas mesmas — é precisamente a transfor macio sofrida quando © pensamento delas se apropriou. Em outras palavras, 6 a experiéncia do ego pensante que est sendo transferida para as coisas. Pois nada pode ao mesmo tempo ser em sie para si mesmo sendo o dois-em-um que Sdcrates dlescobriu ser a essén- cia do pensamento, ¢ que Platio traduziu em linguagem conceitual como © diélogo sem som — eme emauto — de mim comigo mesmo.” Mas, novamente, nao é a atividade de pensar que constitui a unidade, que unifica 0 dois-em-um; ao contrério, 0 dois-em-um torna-se novamente Um quando 0 mundo exterior impée-se ao pensador e interrompe brus- ‘camente o processo do pensamento. Quando o pensador é chamado de volta ao mundo das aparéncias, onde ele sempre € Um, é como se a dualidade em que tinha sido dividido pelo pensamento se unisse, violen- tamente, voltando de novo & unidade. Existencialmente falando, o pen- samento é um estar-s6, mas nio é solido; o estar-s6 &a situagio em que ‘me fago companhia. A soliciio ocorre quando estou sozinho, mas inca paz de dividir-me no dois-em-um, incapaz de fazer-me companhia, quan- do, como Jaspers dizia, “eu faltoa mim mesmo” (ich bletbe mir aus), ou, em outras palavras, quando sou um e sem companhia, O fato de que o estar-s6, enquanto dura a atividade de pensar, trans- ~-forma a mera consciéncia de si — que provavelmente compartilhamos __com os animais superiores —em uma dualidade é talver. a indicagio mais ~_ convincente de que os homens existem essencialmente no plural. E€ essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeita ‘7 atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta ¢ quem respon- de, © pensamento pode se tornar di 10 porque ele se sub- mete a esse processo de perguntas e respostas, a0 dilogo do dialegesthai, lético € cr 207, A VIDA DO ESPIRITO © qual 6, na verdade, uma “viagem através das palavras” (poreuesthai _ dia ton logon)'*® em que constantemente levantamos a pergunta socréitica bisica: 0 que vocé entende por...? S6 que este legein, este dizer, é sem som ¢, portanto, é tao répido que sua estrutura dialdgica torna-se um tanto dificil de detectar. 0 ctitério do didlogo espiritual nao € mais a verdade, que exigitia respostas para as perguntas que me coloco, esteja ela sob a forma da Intuigdo que compele com a forca da evidéncia sensorial, ou sob a forma das conclusdes necessirias de um calculo de consequéncias, como o ra- ciocinio matematico ou l6gico, cuja forga de coergio tepousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural. O tnico critério de pensamento socritico é a conformidade, o ser consistente consigo mes- mo, homologein autos heauto." O seu oposto, o estar em contradi¢io consigo mesmo, enantia legein autos heauto,'® de fato significa tornar- se seu proprio adversario. Eis por que Aristételes, em sua primeira for- mulago do famoso principio da(nio-contradicio, afirma explicitamente gue ele é um axioma: “Temos que acreditar nele porque (...) ele nao se dirige & palavea externa [exo (...) logos, isto é, 4 palavra falada ¢ enderegada a outra pessoa, amiga ou adversiria}, mas ao discurso inzer- no a alma; ¢ embora possamos sempre levantar objecdes contra a pala yra externa, nem sempre podemos fazé-lo contra o discurso interior”, porque o parceiro é a prépria pessoa, ¢ € impossivel que eu queira tor- nar-me meu préprio adversério.'* (Podemos observar, neste caso, como um insight, feito a partir da experiéncia factual do ego pensante, perde- se quando & generalizado em uma doutrina filoséfica — como “A nio pode ser Be A sob as mesmas condigées e 20 mesmo tempo” —, uma transformagio realizada pelo proprio Arist6teles quando discute o mes- mo assunto em sua Metafisica.)"* Uma leitura minuciosa do Organon, do “Instrumento” —, nome dado a partir do século VI d.C. a0 conjunto dos primeiros tratados légicos de Arist6teles—, mostra claramente que 0 que hoje chamamos “légica” nao era originalmente compreendido como um “instrumento do pensamen- to”, do didlogo interior empreendido “dentro da alma”. Ao contrario, “logica” designa a ciéncia de falar ¢ argumentar corretamente quando O rensag estamos tentando convencer 0s outros, ou explicar 0 que afirmamos, partindo sempre, como Sécrates, de premissas mais faceis de serem aceitas pela maioria dos homens ou pela maioria dos considerados geralmente ‘como os mais sdbios entre estes. O axioma da ndo-contradigio, nos pri- meitos tratados apenas decisivos para o dislogo interno do pensamento, ainda nao tinha sido estabelecido como a regra mais basica para o dis- curso em geral. $6 depois que esse caso particular tornou-se 0 exemplo condutor para todo pensamento é que Kant, que na Antropologia tinha definido pensar como “conversar consigo mesmo (..) ¢, portanto, tam bém escutar interiormente”,"® pdde relacionar a prescrigao de “pensar sempre consistentemente ¢ de acordo consigo mesmo” (“Jederzeit mit sich selbst einstimmig denken”) entre as maximas que devem ser consi- derades “mandamentos imutaveis para a classe dos pensadores”."%5 Em poucas palavras, a realizacio, especificamente humana, da cons- ciéncia no dislogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferenca e aalteridade, caracteristicas to destacadas do mundo das aparéncias. tal como € dado ao homem, seu habitat em meio a uma pluralidade de coisas, so também as mesmas condigdes da existéncia do ego mental do homem, j4 que ele 56 existe na dualidade. E esse ego — 0 eu-sou-eu — faz a experiéncia da diferenca na identidade precisamente quando ele no est relacionado as coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. (ssa dualidade original, alids, explica a futilidade da busca de identida- de, to em voga. Nossa moderna crise de identidade s6 poderia ser re- solvida se nunca ficdssemos a 56s € nunca tentassemos pensar.) Sem aquela ligdo original, a afirmagio de Sécrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparéncias é Um nfo teria sentido. A consciéncia no € 0 mesmo que o pensamento os atos de consciéncia tém em comum com a experiéncia dos sentidos o fato de serem atos “in- tencionais” ¢, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante néo pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa})e este-ato é dialético: ele se de- senrola sob a forma de um diflogo silencioso. Sem a consciéncia, no sen- tido da consciéncia de si mesmo,)o pensamento seria impossivel. O que © pensamento torna real, no meio desse processo infinito, é a diferenca AVIA pO Espinito na consciéncia, diferenga dada como um simples fato bruto (factume brutunt); 6 apenas sob essa forma humanizada que a consciéncia torna-se a caracteristica notéria de um homem, e nao de um deus ou de um ani- ‘mal. Do mesmo modo como a metéfora preenche a lacuna entre o mun- do das aparéncias ¢ as atividades do espirito que ocorrem dentro dele, 0 dois-em-um socrético cura o estar s6 do pensamento; sua dualidade ine- rente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. - Para Sécrates, a dualidade do dois-em-um significava apenas que quem quer pensar precisa tomar cuidado para que os parceiros do didlogo es- {ejam em bons termos, para que eles sejam artigos. O parceiro que des- perta novamente quando estamos Alertas\e,s6s € 0 ‘nico do qual nunca podemos nos livrar — exceto parando de pensar. E melhor sofrer uma “injustica do que cometé-la, porque se pode continuar amigo de um so- fredor; quem gostaria de ser amigo e de ter que conviver com um assas- sino? Nem mesmo outro assassino. No fundo, é a essa consideracao bastante simples sobre a importancia do acordo de uma pessoa consigo mesma que.o Imperativo Categérico de Kant recorre. Subjacente a0 imperativo “aja apenas segundo uma maxima tal que voce possa ao mes- ‘mo tempo querer que ela se torne uma lei universal” esté a ordem: “Nao _ se contradiga.”""” Um assassino ou um ladréo ndo pode querer fue man- damentos como “tu matards” ou “tu roubards” se tornem leis vilidas para todos, jé que ele teme, evidentemente, pela prépria vida ou pela proprie- dade. Quem abre uma excecao para si mesmo se contradiz. Em um dos didlogos contestados — 0 Hipias Maior que pode, ainda assim, oferecer um testemunho auténtico sobre Sécrates, mesmo que no tenha sido escrito por Platao —, Sécrates descreve essa situagio de ma- neira simples e precisa no fim do diélogo. Na hora de voltar para casa, Sécrates diz a Hipias como “ditosamente afortunado” era ele, que tinha se revelado um parceiro singularmente estapido em comparagio com 0 pobre Sécrates, que € aguardado em casa por um sujeito muito irritante que vive a interrogé-lo. “Ele é meu parente préximo e vive na mesma casa.” No momento em que esse sujeito ouvir Sécrates concordar com as opinides de Hipias, cle perguntaré “se [Sdcrates] nao se envergonha de discorrer sobre um belo modo de vida, quando a série de interroga-

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