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SUMARIO PReERGIO i. 5 x sisentis ¢ 3 eter gs unremie « « oronsnie « cieerniee v vee , BS Aw Leituras selecionadas . Indice ............ PARTE | O ADVENTO DA CULTURA IMPRESSA NO OCIDENTE Uma revolugao despercebida Definigio do salto inicial .. Algumas caracteristicas da cultura impr. aoe A expansio da Reptiblica das Letras .........00.6.. PARTE Il INTERACAO COM OUTROS DESENVOLVIMENTOS A Renascenga permanente: mutagdo de uma revivescéncia cléssica ............. O mundo cristao ocidental dil reformulacao das circunstancias da Reforma ........ As transformagées do Livro da Natureza: a imprensa e o surgimento da ciéncia moderna ...... Conclusao: Transformagao das Escrituras e da natureza . . rado: N 129 167 207 277 301 315 PREFACIO Confesso abertamente que, 20 empreender esta histéria da Imprensa, assumi uma tare- fa demasiado ambiciosa para minha capacidade, e de cujo alcance ndo me apercebi bem de inicio. Joseph Ames, 7 de junho de 1749. C= a interessar-me pelo tema deste livro no inicio da década de 1960, depois de ler a alocugao presidencial de Carl Bridenbaugh a Associagao Histérica Americana, Essa alocugio, que se intitulava “A gran- de transformagao”, enquadrava-se num género apocaliptico, entio muito em voga (e ainda onipresente, infelizmente). Ele chamava a atengao, alar- misticamente, para a extensdo em que uma “tecnologia desenfreada” esta- va cortando todos os liames com o passado, e retratava os estudiosos con- temporaneos como vitimas de uma espécie de amnésia coletiva. A descrigao, de Bridenbaugh, do momento aflitivo vivido pelos historiadores, sua quei- xa a propésito da “perda de memoria da humanidade”, em geral, e sobre o desaparecimento da “cultura comum de leitura da Bfblia”, em particu- lar, parecia constituir mais um elenco de sintomas do que um diagnéstico. Faltava-lhe a capacidade de colocar os alarmes presentes dentro de algum tipo de perspectiva — capacidade essa que o estudo da hist6ria, acima de qualquer outra disciplina, deveria poder dar. Parecia anti-histérico iden- tificar o destino da “cultura comum de leitura da Biblia” com o de toda a civilizagao ocidental, quando a primeira é muito mais recente — sendo o subproduto de uma invengao de apenas quinhentos anos. Além disso, A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA mesmo apés Gutenberg, o habito da leitura biblica continuou sendo inco- mum entre muitos europeus ocidentais e latino-americanos altamente cul- tos, que aderiram ao credo catélico. Seguindo a tradico de ilustres predecessores, tais como Henry Adams e Samuel Morison, o presidente da Associacio Histérica Americana parecia estar projetando sobre o curso total da civilizagao ocidental sua prépria nogo de um distanciamento crescente com respeito a uma infancia provinciana ame- ricana. A medida que as pessoas envelhecem, passam a preocupar-se com uma meméria menos confidvel. A amnésia coletiva, no entanto, nao me parecia 0 diagnéstico correto da dificuldade entao enfrentada pelos historiadores. A jul- gar por minha prépria experiéncia e pela de meus colegas, era lembranga, mais do que o esquecimento, que apresentava a ameaga sem precedentes. Era tal a quantidade de dados despejados sobre nés, de tantas diregdes, e com tamanha velocidade, que nossa capacidade de impor ordem e coeréncia estava sendo for- cada até 0 ponto de quebrar-se (se é que jé nao se havia quebrado). Se havia uma tecnologia “desenfreada”, que estava levando a uma sensagao de crise cul- tural entre os historiadores, no teria ela mais a ver com um aumento na taxa de publicagao do que com os novos meios de comunicacao audiovisual? Enquanto eu remofa esta questo e me perguntava se seria sensato con- tinuar a produzir monografias ou orientar meus alunos universitérios a fazé- lo — dada a indigesta abundancia com que ora nos defrontamos e a dificul- dade de assimilar 0 que temos —, dei com um exemplar do livro A galdwia de Gutenberg, de Marshall McLuhan. Num vivo contraste com a queixa do his- toriador americano, o professor canadense de lingua inglesa parecia sentir um prazer malicioso na perda das perspectivas histéricas familiares. Ele senten- ciou que as formas histéricas de investigacéo estavam obsoletas, e que a era de Gutenberg estava no fim. Mais uma vez, senti que sintomas de crise cul- tural estavam sendo apresentados como se fossem um diagnéstico. O préprio livro de McLuhan parecia antes atestar os problemas especiais causados pela cultura impressa do que dos causados pelos meios de expressdo mais recen- tes. Ele fornecia evidéncias adicionais de como a sobrecarga pode levar a incoe- réncia. Ao mesmo tempo, estimulou também minha curiosidade (j4 desper- tada pelas minhas consideracdes sobre a impressao da Biblia) a respeito das conseqiiéncias histéricas espectficas da grande mudanga ocorrida no campo das comunicagées no século XV, Hé muito me sentia insatisfeita com as expli- cagées, entdo correntes, que eram dadas para as revolugées intelectuais do in{cio dos tempos modernos. Algumas das mudangas a que McLuhan aludia PREFACIO| sugeriam novas maneiras de lidar com alguns problemas de ha muito exis- tentes. McLuhan suscitou, contudo, algumas questées sobre os reais efeitos do advento da imprensa. Tais questdes deveriam ser elucidadas antes que outros assuntos pudessem ser explorados. Quais foram algumas das mais importan- tes conseqiiéncias da mudanga do texto manuscrito para o impresso? Imagi- nando que seria necessdrio um esforgo tremendo para dominar uma biblio- grafia vast{ssima, comecei a investigar o que tinha sido escrito sobre esse tema obviamente importante. Para minha surpresa, nao encontrei nem mesmo uma pequena bibliografia disponivel para consulta. Ninguém havia ainda ten- tado investigar as conseqiiéncias da mudanga nas comunicagées no século XV. Embora reconhecendo que seria necessdrio mais de um livro para reme- diar tal situagao, também senti que um esforco preliminar, mesmo que insu- ficiente, era melhor que nada, e por isso embarquei num estudo de dez anos — com o objetivo primordial de familiarizar-me com a literatura especializa- da (ai de mim, jé imensa e em répida expansio) sobre os primérdios da imprensa e a histéria do livro. Entre 1968 e 1971, foram publicados alguns artigos preliminares, no intuito de suscitar reages de estudiosos e colher bene- ficios de uma critica informada. Meu trabalho completo, A maquina impreaso- ra como agente de transformagao, foi publicado em 1979. Seu texto foi conden- sado, para 0 leitor nao especializado, a fim de constituir a presente versio. Nela foram acrescentadas ilustragdes, mas as notas de rodapé foram elimi nadas. Qualquer leitor desejoso de identificar plenamente todas as citagdes e referéncias deve consultar a edicao integral. Otratamento que dei a matéria esta distribuido em duas partes principais. A primeira enfoca a mudanga ocorrida na Europa Ocidental, do manuscrito para o impresso, e busca esquematizar as principais caracterfsticas da revo- lugo nas comunicacées. A segunda trata da relagdo entre a mudanga nas comunicagées e outros desenvolvimentos convencionalmente relacionados com a transigao da era medieval para o inicio dos tempos modernos. (Con- centrei-me nos movimentos culturais e intelectuais, adiando para um livro pos- terior os problemas ligados aos movimentos politicos.) A tiltima parte, por- tanto, retoma desdobramentos conhecidos e busca focalizé-los sob um novo Angulo de vi io. Contudo, a primeira parte cobre terreno pouco conhecido — pelo menos para a maioria dos historiadores (embora nao para especialistas na histéria do livro) — e particularmente desconhecido para esta historiado- ra (que se havia previamente especializado no estudo da Revolugao Fran- cesa e na histéria francesa do inicio do século XIX). A REVOLUCAO DA CULTURA IMPRESSA Enquanto tentava dar conta desse territério pouco conhecido, acabei des- cobrindo (como sucede a todos os neéfitos) que o que parecia relativamente simples a primeira vista se tornava gradualmente complexo, 4 medida que eu aprofundava meu exame, e que novas 4reas de ignorncia se abriam mais rapi- damente do que as antigas iam sendo fechadas. Como seria de esperar de um trabalho de tao longa gestaco, os primeiros pensamentos tiveram de ser substituidos por pensamentos segundos; ¢ até mesmo alguns terceiros pen- samentos tiveram de ser revistos. Especialmente quando escrevia sobre o papel conservador da imprensa (tema a que foi dada particular importancia e por- tanto é repetidamente tratado no livro), ndo pude evitar de perguntar-me se seria sensato apresentar, sob uma forma tio fixa e permanente, pontos de vista que ainda se encontravam em formagio. O leitor nao deve esquecer 0 cara- ter conjetural e provisério do que segue. Este livro deve ser lido como um ensaio extenso, e ndo como um texto definitivo. Também convém observar, desde j4, que o tratamento por mim dado ao assunto € voltado primordialmente (embora de maneira nao exclusiva) para os efeitos da imprensa sobre registros escritos e sobre os pontos de vista de elites j4 letradas. A discussao centra-se na mudanga de uma modalidade de cultura letrada para outra (e nao de uma cultura oral para uma cultura escri- ta). Este ponto merece especial realce, porque vai em sentido oposto as orien- tagGes atuais. Ao tocar no tema das comunicagées, os historiadores geralmen- te tém-se dado por satisfeitos ao observar que seu campo de estudo, ao contrario da arqueologia ou antropologia, se limita as sociedades que lega- ram registros escritos. Para a definig&o dos campos de estudo, a forma parti- cular que assumem esses registros escritos é considerada menos importante do que a questao mais geral de saber se foram deixados quaisquer registros escritos. Tem-se intensificado recentemente o cuidado com este importante aspecto, mediante um ataque bifrontal as velhas definigées do campo, que pro- vém respectivamente de historiadores africanos e, de outro lado, de historia- dores sociais ocupados com a civilizaao ocidental. Os primeiros, necessaria- mente, tiveram de questionar a exigéncia prévia de haver registros escritos. Os tiltimos opéem-se ao modo como tal exigéncia tem dirigido a atengao para © comportamento de uma reduzida elite letrada, favorecendo ao mesmo tempo © esquecimento da imensa maioria dos povos da Europa Ocidental. Novos enfoques esto sendo desenvolvidos, muitas vezes com a cooperacao de afri- canistas e antropélogos, para tratar de problemas levantados pela histéria dos “inarticulados” (como sao por vezes chamados, de modo estranho, os povos wo PREFACIO presumivelmente falantes, mas sem a escrita). Esses novos enfoques sao titeis nao somente para corrigir um velho desequilibrio elitista, mas também para acrescentar muitas novas dimensées ao estudo da histéria ocidental. Nao ha davida de que muito se ter a ganhar, em termos de enriquecimento e apro- fundamento da compreensio histérica, com os trabalhos que ora se desenvol- vem sobre mudangas demogréficas e climaticas, estrutura familiar, criagao de menores, crime e punigao, festivais, funerais e revoltas por comida — para mencionar somente algumas das novas searas que esto sendo cultivadas. Embora seja proveitosa para muitas finalidades, a atual voga em favor da “hist6ria de baixo para cima” nao é muito apropriada para compreender os propésitos deste livro. O antropélogo e historiador da Africa pré-colonial, Jan Vansina, ao explorar “os relacionamentos entre a tradigdo oral e a histéria escrita”, omite naturalmente a diferenca existente entre a hist6ria escrita pro- duzida por escribas e a histéria escrita posterior 4 imprensa. Quando explo- ram o efeito da imprensa sobre a cultura popular, os historiadores da Europa Ocidental dirigem naturalmente a ateng&o para a substituigao da cultura popular oral pela que resulta do advento da imprensa. Tanto num como nou- tro caso, a atencdo é desviada dos tépicos que serao explorados nos préxi- mos capftulos. Isso nao quer dizer que a difusao da escrita seré completamen- te ignorada. Novos t6picos trazidos pela tradugio e popularizagao da lingua verndcula tiveram repercussées significativas dentro e fora da Comunidade do Saber. Nao obstante, nao é a expansao dessa capacidade de ler e escre- ver, mas a maneira como a imprensa alterou as comunicagées edcritas dentro da Comunidade do Saber 0 que constitui o principal objeto de atengao deste livro. Ele se preocupa mais do que tudo com o destino da émpopular (e atualmen- te fora de moda) “alta” cultura das elites profissionais leitoras do latim. Também considerei necessério, afastando-me da moda, manter uma posi- gio provinciana e concentrar-me em algumas poucas regides localizadas na Europa Ocidental. Em conseqiiéncia, a expresso “cultura impressa” é utili- zada no correr deste livro num sentido ocidental provinciano: refere-se a desen- volvimentos ocorridos no Ocidente posteriormente a Gutenberg, pondo de lado sua aplicagao possfvel para com desenvolvimentos anteriores a Guten- berg na Asia. Alids, no somente fatos anteriores acontecidos na Asia, como também outros, posteriores — na Europa Oriental, no Oriente Préximo e no Novo Mundo —, também foram exclufdos. Oferecem-se por vezes visdes oca- sionais de possiv de salientar o significado de certas caracteristicas que parecem peculiares a perspectivas comparativas, mas somente com 0 intuito u A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA cristandade ocidental. Uma vez que mensagens muito velhas afetavam os usos a que se destinava 0 novo meio, e tendo em vista que a diferenga entre trans- missio mediante c6pia manual e mediante cépia impressa ndo pode ser per- cebida sem a travessia mental de varios séculos, tive de ser muito mais elds- tica com os limites cronolégicos do que com os geogréficos, volvendo ocasionalmente ao Museu Alexandrino e as praticas cristas primitivas; deten- do-me vez por outra a contemplar manuscritos e papelarias medievais; ante- cipando-me para observar os efeitos da acumulagao e das mudangas decor- rentes do aumento de produgio. Um comentario final necessdrio: como indica o titulo da minha versio inte- gral, considero a imprensa como wm agente, e nao como 0 agente — e muito menos como o dinico agente — de mudangas na Europa Ocidental. E neces- sério estabelecer estas distingdes porque a propria idéia de explorar os efei- tos produzidos por uma determinada inovacao levanta a suspeita de que este- ja sendo favorecida uma interpretagéo monocausal, ou que se tenda ao reducionismo e ao determinismo tecnolégico. E claro que ressalvas feitas num prefacio devem ser recebidas com as devidas reservas, pois sé transmitem certeza na medida em que forem cor- roboradas pelo corpo do livro. Apesar disso, parece-me recomendavel escla~ recer desde j4 que meu objetivo é enriquecer, e nao empobrecer a compreen- sao histérica, e que considero interpretagdes que langam mao de uma tinica varidvel contrérias a tal objetivo. Na qualidade de wm agente de mudangas, a imprensa modificou os métodos de coleta de dados, os sistemas de arma- zenamento e recuperagio, bem como as redes de comunicagao utilizadas pelas comunidades cultas em toda a Europa. Merece atengao especial, porque gerou resultados especiais. Neste livro, tento descrever esses efeitos e sugerir como podem ser relacionados com varios outros desenvolvimentos conco- mitantes. A idéia de que esses outros desenvolvimentos possam ser reduzi- oa 4 mera mudanga nas comunicagées parece-me absurda. A maneira como eles foram reorientados por tal mudanga parece-me, contudo, digna de ser exposta. Se me alinho com os revisionistas e revelo insatisfagao com prati- cas correntes, é para criar mais possibilidades para uma dimensao de mudan- ga histérica até hoje negligenciada. Quando divirjo de explicagées conven- cionais multivaridveis (como ocorre em varias ocasides), nao o fago para substituir muitas varidveis por uma s6, mas sim para explicar por que mui- tas varidveis, h4 muito presentes, comegaram a interagir de modos diferen- tes. Isso significa que uma pessoa deve usar sua capacidade de discernimen- 2 PREFACIO toe ponderar sobre o peso relativo das diferentes hipéteses. Deixar de con- signar inovagées significativas também pode distorcer perspectivas. Estou convencida de que o prolongado desprezo de uma mudanga nas comunica- ges levou ao estabelecimento de perspectivas cada vez mais distorcidas, com 0 correr do tempo. Agradego a varias instituigdes pelo apoio parcial que me deram no perio- doem que trabalhei neste livro. A Universidade de Michigan, em Ann Arbor, ea Fundagao John Simon Guggenheim Memorial ajudaram-me no inicio do trabalho. Terminei a obra durante meu estagio como “Fellow” no Centro de Estudos Avangados nas Ciéncias de Comportamento, em Stanford, onde contei com o apoio da National Endowment for the Humanities e da Fun- dac&o Andrew W. Mellon. Bb PARTE I O ADVENTO DA CULTURA IMPRESSA NO OCIDENTE UMA REVOLUCAO DESPERCEBIDA o final do século XV, a reprodugio de materiais escritos comegou a trans- ferir-se da escrivaninha do copista para a oficina do impressor. Essa mudanga, que revolucionou todas as formas de aprendizado, foi particular- mente importante para o estudo da histéria. Desde entao, os historiadores pas- saram a dever muito a invengio de Gutenberg; a imprensa intervém no seu trabalho desde o infcio até o fim, desde a consulta aos ficharios até a revisio do texto final. Uma vez que os historiadores sao geralmente 4vidos por inves- tigar mudangas capitais, e dado que esta mudanga transformou as condigées de exercicio de seu préprio oficio, seria normal esperar que tal mudanga atrai- ria alguma atengao dos historiadores em geral. No entanto, qualquer inves- tigagao histérica levard & conclusio contréria. E emblemdtico que a deusa Clio tenha conservado em suas m&os um pergaminho manuscrito. Fez-se tao pouco caso da mudanga para as novas oficinas que, apés quinhentos anos, a musa da histéria ainda permanece do lado de fora. No dizer de um sociélo- go, “A Histéria é testemunha do efeito cataclismico que tiveram sobre a socie- dade as invengées de novos meios de transmissao de informagées entre as pes- soas. Disso sio exemplos o desenvolvimento da escrita e, mais tarde, o da imprensa”. Na medida em que historiadores de carne e osso, que produzem a A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA artigos e livros, testemunham sobre 0 que aconteceu no passado, 0 efeito do desenvolvimento da imprensa sobre a sociedade, longe de parecer um cata- clismo, é notavelmente insignificante. Muitos estudos sobre as transforma- Ges ocorridas nos tiltimos cinco séculos nada dizem a esse respeito. Existe, é claro, uma bibliografia ampla, cada vez mais extensa, sobre a his- t6ria da imprensa e temas relacionados. Jé apareceram varias obras que com- pendiam e resumem partes dessa vasta literatura. Eo caso de Rudolph Hirsch, que passa em revista os problemas ligados a “impressao, venda, leitura”, duran- te o primeiro século apés Gutenberg. Foi recentemente traduzida para o inglés uma obra, mais extensa e bem organizada, de autoria de Febvre e Martin, dada a lume pela primeira vez numa série francesa dedicada a “evolugao da huma- nidade”, e que cobre com maestria os trés primeiros séculos da imprensa. Cober- tura maior ainda, abarcando “quinhentos anos”, foi realizada por Steinberg, em seu excelente e sucinto exame da matéria. Todos esses trés livros resumem dados recolhidos dentre numerosos estudos esparsos. Contudo, no correr des- sas obras, as profundas implicagées histéricas desses dados so, quando muito, apenas sugeridas, jamais explicitadas de fato. A exemplo do que ocorre na seco dedicada a imprensa na Nova Edigéo Cambridge de Histéria Moderna, 0 conteido dessas sinteses raramente entra no tratamento de outros aspectos da evolu- cao da humanidade. Segundo Steinberg, “A histéria da imprensa é parte integrante da hist6- ria geral da civilizacao”, Infelizmente, esta afirmago nao é aplicdvel a hist6- ria escrita, tal como esta se apresenta hoje, embora seja provavelmente cor- reta em relago ao curso real dos eventos humanos. Em vez de serem integrados a outros trabalhos, os estudos dedicados a histéria da imprensa sao isolados e mantidos artificialmente estanques em relagdo ao resto da literatura histé- rica. Teoricamente, tais estudos sao centrados num tépico que repercute em muitos outros campos. Na realidade, eles raramente so consultados por estudiosos que operam em quaisquer outras 4reas, talvez porque sua relevan- cia a respeito dessas ainda nao esteja clara. “A natureza exata do impacto que a invengio e disseminago da imprensa tiveram sobre a civilizagao ocidental ainda permanece sujeita a interpretagdes.” Esta declaracdo parece minimi- zar a questao. Existem poucas interpretagdes, mesmo de natureza inexata ou aproximada, a que os estudiosos poderiam recorrer, a fim de levar a cabo outras investigages. Os efeitos causados pela imprensa suscitaram muito pouca con- trovérsia. Nao porque fossem coincidentes as opinides sobre o tema, mas por- que praticamente nenhuma opiniao foi exposta de forma explicita e sistemé- iB 1. UMA REVOLUGAO DESPERCEBIDA tica. Na realidade, mesmo os que parecem admitir que houve mudangas fun- damentais curiosamente deixam de nos dizer quais foram elas. “Nem os eventos politicos, constitucionais, eclesidticos e econémicos, nem ‘os movimentos sociolégicos, filosdficos ou literérios podem ser plenamente compreendidos”, nos diz Steinberg, “sem tomarmos em consideragao a influén- cia que o advento do prelo teve sobre eles”. Todos esses fatos e movimentos tém sido submetidos a um exame acurado por geragées de estudiosos, no intui- to de entendé-los mais completamente. Se a imprensa exerceu alguma influén- cia sobre eles, o que explica que tal influéncia tenha sido tao pouco notada, raramente sugerida e muito menos discutida? Convém formular essa pergun- ta, pelo menos para sugerir que os efeitos produzidos pela imprensa nao sio nada dbvios. Embora possam ter sido encontrados por estudiosos que explo- ram outras Areas de interesse, é provavel que eles tendam hoje a passar des- percebidos. Localiz4-los e explicit4-los — sob uma forma esquemética ou ndo — €algo mais facil de dizer do que de fazer. Nio se sabe ao certo o que tém em mente os autores, como Steinberg, quando se referem ao impacto da imprensa sobre todos os campos da ativida- de humana — politico, econémico, filoséfico, e assim por diante. Em parte, pelo menos, eles parecem estar assinalando conseqiiéncias indiretas que devem ser inferidas e se relacionam com o consumo de produtos impressos ou com mudangas de habitos mentais. Tais conseqiiéncias, é claro, tm grande signi- ficagao histérica e repercutem na maioria das formas de empreendimentos huma- nos. Nao obstante, é dificil descrevé-las precisamente ou sequer determinar exatamente o que elas sio. Uma coisa é descrever como os métodos de pro- dugio de livros foram se modificando a partir da segunda metade do século XV, ou avaliar taxas de crescimento da produgao. Outra coisa é decidir como © acesso a uma maior quantidade (ou variedade) de registros escritos afetou as maneiras de aprender, de pensar e perceber das elites letradas. Do mesmo modo, mostrar que a padronizagao foi conseqiiéncia do prelo nada tem a ver com decidir como as leis, as Iinguas ou construgdes mentais foram afetadas pelo advento de textos mais uniformes. Ainda hoje muito pouco sabemos sobre o modo como 0 acesso a materiais impressos afeta o comportamento huma- no —apesar de todos os dados obtidos de seres vivos e responsivos; apesar de todos os esforgos desenvolvidos por analistas de opiniao publica, por pesqui- sadores de opiniao ou cientistas do comportamento. (Um rapido olhar sobre controvérsias recentes a propésito da desejabilidade ou nao de censurar mate- riais pornogréficos mostra-nos como somos ignorantes.) Os historiadores que 9 SS... A REVOLUCAO DA CULTURA IMPRESSA tém de ir além do timulo para reconstruir formas passadas de consciéncia encontram-se em posigao particularmente desvantajosa para lidar com esses temas. Teorias sobre mudangas (desigualmente espagadas no tempo) que afetam processos, atitudes e expectativas de aprendizagem no se prestam, de qualquer modo, a formulagées simples, nitidas, que possam ser facilmente comprovadas ou integradas em relatos histéricos convencionais. Os problemas gerados por alguns dos efeitos mais indiretos trazidos pelo salto do manuscrito para o impresso provavelmente jamais serao vencidos inteiramente. Contudo, tais problemas poderiam ser enfrentados mais dire- tamente, se outros empecilhos nao estivessem pelo caminho. Dentre os efei- tos de longo alcance que devem ser assinalados contam-se muitos que ainda afetam observagées atuais e que operam de modo particularmente intenso sobre todo estudioso profissional. Assim, 0 acesso constante a materiais impressos é um dos pré-requisitos para 0 exercicio da propria tarefa de his- toriador. F dificil observar processos que penetram tao intimamente em nos- sas préprias observages. A fim de podermos avaliar as mudangas ocasiona- | das pela imprensa, por exemplo, é necessdrio examinar as condigées que | existiam antes de seu advento. E as condigées inerentes A cultura manuscrita | 86 podem ser observadas olhando através da cortina dos materiais impressos. Até mesmo uma familiaridade superficial com as descobertas dos antro- pélogos, ou observagées ocasionais de criangas em idade pré-escolar, podem ajudar-nos a lembrar o abismo que existe entre cultura oral e cultura escri- ta. Em conformidade com isso, varios estudos tém salientado a diferenga que existe, respectivamente, entre mentalidades formadas com base na palavra escrita e na palavra falada. E muito mais dificil especular sobre 0 abismo que separa nossa experiéncia da de elites letradas que se baseavam exclusivamente em textos copiados mao. Nao existe nada de andlogo em nossa experiéncia ou na de qualquer ser vivo no mundo ocidental de hoje. Por isso, as condigées existentes na cultura do manuscrito devem ser art ficialmente reconstrufdas pelo recurso a livros de histéria e guias de refe- réncia. E, na maior parte das vezes, essas obras tendem mais a esconder que a revelar 0 objeto de tal pesquisa. Os temas da era do manuscrito sao proje- tados em épocas posteriores, ¢ as grandes tendéncias posteriores A imprensa so projetadas em épocas mais antigas, o que torna dificil vislumbrar a exis- téncia de uma cultura literdria distinta baseada na cépia manual. Nao exis- te sequer um termo de uso consensual que designe o sistema de comunica- Ges escritas que existia antes do advento do prelo. 2 1, UMA REVOLUGAO DESPERCEBIDA Os escolares a quem se pede tragar viagens antigas em alto-mar sobre mapas sem legendas tendem a nao dar-se conta de que nao existiam mapas mundiais uniformes na era em que as viagens foram realizadas. Estimula-se um esque- cimento semelhante, j4 agora em nfvel muito mais sofisticado, quando se recorre a técnicas modernas, cada vez mais refinadas, para cotejar os manus- critos e produzir edigdes confidveis deles. Cada edigao posterior nos revela mais do que o que se sabia antes sobre 0 modo como determinado manuscri- to foi composto e copiado. Conseqiientemente, cada edigao torna mais dift- cil imaginar como se mostraria um determinado manuscrito diante do estu- dioso do tempo da escrita manual, o qual sé dispunha, para consulta, de uma ‘inica versio manuscrita e nenhuma orientagao segura quanto ao local e data de composigao, titulo ou autor. Os historiadores aprendem a distinguir as fon- tes manuscritas dos textos impressos; mas nao aprendem a avaliar com igual cuidado como se apresentavam os manuscritos numa época em que era incon- cebivel tal tipo de distingo. Da mesma maneira, quanto mais preparados esti- vermos para dominar os eventos e datas contidos em livros de histéria moder- nos, menos condigdes teremos para avaliar as dificuldades que se antepunham aos estudiosos escribas, que tinham acesso a registros escritos variados, mas careciam de cronologias, mapas ¢ outros guias de referéncia de todo tipo, hoje de uso corrente. Por isso, quaisquer tentativas de reconstruir as condigdes que precede- ram a imprensa nos conduzem a uma dificuldade académica. Toda recons- trugo pressupée o recurso a materiais impressos, circunstancia que emba- gaa percepgao das condigdes que existiam antes que tais materiais se tornassem disponfveis. Mesmo quando essa dificuldade é parcialmente vencida por estudiosos sensiveis, que conseguem desenvolver um feeling correto das épo- cas, ap6s manusearem massas enormes de documentos, ainda assim tais ten- tativas de reconstrugdo tendem a ser desalentadoramente incompleta A prépria teia de relagées em que consistia a cultura do manuscrito era to esgarcada, irregular e multiforme, que sé nos é possfvel delinear algumas poucas tendéncias de longo alcance. As condigées entdo existentes nas pro- ximidades das livrarias da velha Roma, na Biblioteca de Alexandria ou em certos mosteiros e cidades universitarias medievais permitiram a elites letra- das desenvolver uma cultura “livresca” relativamente sofisticada. Apesar disso, todos os acervos de bibliotecas estavam sujeitos 4 contracao, e todos os textos manuscritos eram pass{veis de adulteragao, apés terem sido copia- dos numerosas vezes, com 0 correr do tempo. Além do mais, fora de certos 2 [A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA Escriba medieval escrevendo sob ditado, retratado num aniincio gravado em madeira para a firma de J. Badius, na obra de William de Ockham, Dialogus (Lyon, J. Trechsel, civ 1494), Reproduzi- da mediante gentil permissio de John Ehrman, da obra A distribuigto de lives por catdlogo até 18000.C., de Graham Pollard e Albert Ehrman (Cambridge, The Roxburghe Club, 1965). centros especiais transitérios, a teia da cultura manuscrita era tao fragil, que mesmo as elites letradas confiavam fortemente na transmissio oral. Uma vez que as cépias executadas nos “escritérios” eram feitas sob ditado, e que as composigées literérias eram tidas como “publicadas” mediante sua leitura em voz alta, pode-se dizer que até mesmo o aprendizado “pelo livro” dependia da confianga depositada na palavra falada — o que produzia uma cultura hfbri- da semi-oral, semiletrada, sem qualquer equivalente preciso nos dias de hoje. Saber o que se entendia por publicagao antes da imprensa, ou como exata- mente eram transmitidas as mensagens na era dos escribas, sao indagagées a 2 1. UMA REVOLUGAO DESPERCEBIDA que nao se pode responder em termos gerais. E as descobertas a esse respei- to tendem a variar enormemente, dependendo da data e do lugar. Vereditos conflitantes costumam ocorrer especialmente com relagao ao tiltimo século antes do advento da imprensa — época em que o papel ja se tornara dispo- nivel e em que o homem letrado tendia a tornar-se seu préprio escriba. Os especialistas em incundbulos, que lidam com informagées de documen- tos em frangalhos, tendem a insistir em que uma similar falta de uniformida- de caracteriza os procedimentos utilizados pelos impressores primitivos. E sem diivida temerdrio fazer generalizagdes sobre os primérdios da impren- sa, motivo por que se deve estar sempre prevenido contra a tendéncia de pro- jetar sobre um passado distante o produto das edigdes padronizadas moder- nas. Nao obstante, convém igualmente precaver-se para ndo tornar menos nitida a diferenga fundamental entre o dltimo século da cultura manuscrita € 0 primeiro século posterior a Gutenberg. A cultura criada pela imprensa em suas origens foi suficientemente uniforme, de modo que podemos medir sua diversidade. Temos condigées de avaliar sua produgao, chegar a médias, delinear tendéncias. Dispomos, por exemplo, de estimativas aproximadas da produgao total de todos os materiais impressos durante a chamada era dos incu- ndbulos (isto é, 0 perfodo compreendido entre a década de 1450 e 1500). Do mesmo modo, podemos dizer que a tiragem “média” das edigdes primitivas varia- va entre duzentos e mil exemplares. Nao ha cifras comparaveis para os tlti- mos cinqiienta anos de cultura manuscrita. Na realidade, nao temos cifra alguma. Qual foi a tiragem da “edicdo média” entre 1400 e 1450? A pergun- ta praticamente nao faz sentido. E 0 uso do termo “edigao”, quando aplicado as c6pias de um livro manuscrito, praticamente constitui um anacronismo. As dificuldades que encontramos para avaliar a produgiio de textos manus- critos nos indicam que o proceso de quantificagao nao pode ser aplicado as condigées da cultura manuscrita. Os dados de produgéio mais geralmente cita- dos, obtidos com base nas memérias de um vendedor florentino de livros manuscritos, mostram-se totalmente indignos de confianga. A Florenga qua- trocentista, de qualquer modo, tem muito pouco em comum com outros cen- tros italianos (tais como Bolonha), para nao falar de regiées transalpinas. Na realidade, nenbuma regio € tipica. Nao existe o livreiro, o escriba ou mesmo © manuscrito “tipico”. Mesmo pondo de lado os problemas apresentados pelos produtores de livros e mercados seculares (que so desesperadoramente com- plexos), e considerando somente as necessidades dos religiosos as vésperas do advento da imprensa, mesmo assim teremos de enfrentar uma notavel diver- A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA sidade de procedimentos. Os estoques dos livros para as ordens monacais varia- vam de acordo com a ordem; os frades mendicantes nao seguiam as normas adotadas pelos monges. Os papas e cardeais freqiientemente recorriam as “ati- vidades multifarias” dos cartolai italianos; os pregadores compunham suas préprias antologias de sermées; ordens semilaicas buscavam fornecer carti- Ihas e catecismos para todo o mundo. A auséncia de uma produgio média ou de um procedimento tipico consti- tui um formidavel obstaculo, quando se tenta descrever o cendrio em que se deu o advento da imprensa. Tomemos, por exemplo, uma afirmagao com pre- tensio de sintese, enganadoramente simples, feita por mim quando comegava a tentar descrever a revolugao da imprensa. A produgao de livros no século XV, dizia eu, passou dos seriploria para as oficinas de impressio. Essa afirmagio foi criticada por nao levar em conta uma mudanga anterior, dos veriptoria para as papelarias. No decorrer do século XII, donos de papelarias leigos comecaram a substituir escribas monacais. Os livros requeridos pelos professores univer- sitdrios e pelas ordens mendicantes passaram a ser fornecidos mediante um sis- tema de “produgao”. Os copistas j4 nao eram reunidos numa mesma sala, mas trabalhavam sobre diferentes partes de um determinado texto, recebendo do dono da papelaria o pagamento por peca executada (0 assim chamado siste- ma da peti). A produgio de livros, segundo aquele critico, j4 havia saido dos scriptoria trés séculos antes do advento da imprensa. Talvez valha a pena determo-nos um pouco mais naquela objegao. Sem diivida, deve-se considerar 0 surgimento do papeleiro leigo em cidades uni- versitdrias e outros centros urbanos durante os séculos XII e XIII. Eimpor- tante o contraste entre o trabalho gracioso de monges, que labutavam pela remissio de seus pecadbs, e 0 trabalho assalariado de copistas leigos. Pesquisas recentes realcaram o emprego de um sistema de “producao” e levantaram diivi- das sobre antigas crengas em scriptoria leigos ligados a lojas de papelaria. Por esse motivo, convém ser extremamente cauteloso no uso da expressao serip- toria, no contexto das condigées existentes no fim da Idade Média — mais cautelosa do que fui, em minha versao preliminar. Contudo, é importante, por outro lado, abster-se de atribuir demasiada énfase a tendéncias langadas em centros como Paris, Oxford, Bolonha e outras cidades universitérias no século XII, nas quais os exemplares eram repro- duzidos rapidamente, para atender a necessidades institucionais especiais. Exige-se cautela quando, tomando regulamentos universitdrios destinados a controlar copistas, os estendemos as praticas efetivas de papeleiros uni- 4 1, UMA REVOLUGAO DESPERCEBIDA versitdrios — para nao falarmos de livreiros que atendiam a clientela no universitdria. Importa ainda ter em mente que determinados padrées rela- tivamente claros do século XIII podem tornar-se imprecisos na parte final do século seguinte. Durante o perfodo compreendido entre 1350 e 1450 — século crucial no preparo de nosso cenério —, as condigées existentes eram geralmente andrquicas, e alguns hdbitos presumivelmente obsoletos foram retomados. Os scriptoria monacais, por exemplo, comegavam a viver a sua ultima “idade de ouro”. A existéncia de scriptoria monacais até mesmo além dos primérdios da imprensa é demonstrada de modo fascinante por uma obra que é freqiiente- mente citada como uma curiosidade entre os livros dos primeiros dias da imprensa: De laude ucriptorum, da autoria de Johannes Trithemius. Nesse tra- tado, o abade de Sponheim nao somente exortava seus monges a copiar livros, como explicava as razées pelas quais os “monges nao devem parar de copiar devido a invengao da imprensa”. Dentre outros argumentos (como o da utili- dade de manter ativas mios que poderiam estar desocupadas, incentivando desse modoa diligéncia, a devocao, o conhecimento das Escrituras, e assim por dian- te), o autor compara algo ilogicamente a palavra escrita num pergaminho, que iria durar mil anos, com a palavra impressa sobre papel, que teria uma sobre- vivéncia mais curta. Nao se mencionou o possfvel uso do papel (ou pergami- nho raspado) por copistas, ou de pele, para u estudioso cristdo, o abade conhecia perfeitamente escritos anteriores que ha- versio impressa especial. Como viam oposto o durdvel pergaminho ao papiro perecivel. Seus argumentos revelam sua preocupagio em preservar uma forma de trabalho manual que parecia especialmente apropriada para os monges. Resta saber se ele estava realmente preocupado com o aumento do uso do papel — na qualidade de biblié- filo ardente ea luz de antigas adverténcias. Suas atividades, contudo, revelam claramente que, como autor, ele nao dava preferéncia ao trabalho manual em detrimento do trabalho impresso. Tanto que mandou imprimir logo seu Low- vor dos escribas, assim como outras obras suas de mais peso. Com efeito, utili- zou tanto uma determinada oficina impressora em Mainz (atual Mogtincia), que “ela bem poderia ser chamada de Editora da Abadia de Sponheim’”. Mesmo antes de 1494, época em que o abade de Sponheim deu o salto do ceriptorium para a oficina impressora, os cartuxos da Cartuxa de Santa Bar- bara, em Col6nia, jé estavam aderindo aos impressores locais para dar mais amplitude a seus esforgos, uma vez que se tratava de uma ordem de reclusos obrigados, pelo voto do siléncio, a pregar “com as préprias mos”. Como regis- ee A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA trado em outros relatos, o mesmo aconteceu fora de Colénia, e nao somente entre os cartuxos. Um certo ntimero de ordens beneditinas reformadas tam- bém mantinham ocupados os impressores locais; em determinados casos, mongese freiras mantinham suas préprias impressoras monacais. Merece cer- tamente mais atengo o possivel significado da interferéncia de um empreen- dimento capitalista num espaco religioso. Nessas condigées, excluir comple- tamente a formula “dos wcriptoria para a oficina impressora” parece tao inadequado quanto tentar aplic4-la de modo irrestrito. Mesmo reconhecen- do a significago de mudangas que afetaram a produgao de livros no século XII, nao devemos equiparé-las ao tipo de “revolugao do livro” que ocorreu no século XV. Esta ultima, diferentemente da primeira, assumiu uma forma cumulativa e irreversivel. A revivescéncia dos scriptoria monacais durante 0 século anterior a Gutenberg foi a ultima de seu género. DEFINICAO DO SALTO INICIAL Deveriamos observar a forga, 0 efeito e as conseqiiéncias de invengdes que em nenhum campo foram tao evidentes como nestas trés, que eram desconhecidas dos antigos, a saber: a imprensa, a pélvora e a biissola. Pois essas trés alteraram a aparéncia e o estado do mundo inteiro. Francis Bacon, Norum organum, Aforisma 129. ualquer pessoa provavelmente ganhard mais seguindo 0 conselho de Bacon do que meditando sobre as razdes pelas quais ele deve ser seguido por outros. Esta tarefa claramente ultrapassa a competéncia de qual- quer individuo, pois requer a convergéncia de muitos talentos e a elaboracao de muitos livros. Além disso, é dificil obter colaboracao alheia, enquanto a relevncia do tépico para os diferentes campos de estudo permanece obscu- ra. Antes de conseguir qualquer ajuda, parece necessério desenvolver algu- mas hipéteses provisérias que relacionam a passagem do manuscrito para impresso com desenvolvimentos histéricos relevantes. Essa empreitada, por sua vez, parece requerer um ponto de partida pouco convencional, além de uma reformulacao do conselho de Bacon. Em vez de tentar lidar com “a forga, o efeito e as conseqiiéncias” de uma tinica invengdo pés-classica que estd ligada a outras, preocupar-me-ei com uma importante transformagao, que constituiu em si mesma um vasto conglome- rado de mudangas. A indecisio sobre o que se deve entender por advento da imprensa contribuiu, creio eu, para reduzir o interesse sobre suas pos- siveis conseqiiéncias e as tornou mais dificeis de rastrear. E dificil desco- brir o que aconteceu numa determinada oficina de Mainz nos anos 1450. 27 A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA No curso de outras indagagées, parece quase prudente deixar de lado um evento tao problematico. Isso nao se aplica ao aparecimento de novos gru- pos ocupacionais, que empregavam novas técnicas e instalavam equipamen- tos novos em novos tipos de oficinas, ao mesmo tempo que expandiam redes comerciais e buscavam novos mercados, a fim de aumentar os lucros auferidos com as vendas. Desconhecidas em toda a Europa até meados do século XV, as oficinas de impressores eram encontradas em todos os cen- tros municipais importantes j4 por volta de 1500. Elas acrescentavam um novo elemento cultura urbana em centenas de cidades. Negligenciar tudo isso, ao tratar de outros problemas, pareceria pouco prudente. Por esse moti- Vo, entre outros, passaremos por alto o aperfeigoamento de um novo pro- cesso de impressao baseado no uso de tipos méveis, e nao nos deteremos na vasta literatura dedicada a explicar a invengao de Gutenberg. Uti- lizaremos 0 termo “imprensa” como um rétulo conveniente, como se fosse uma expressio abreviada para nos referirmos a um conglomerado de ino- vagées (ocasionando 0 uso de tipos de metal méveis, tinta a base de dleo, prensa de madeira manual, e assim por diante). Nosso ponto de partida nao seré uma oficina impressora em Mainz. Ao contrério, comegaremos onde terminam muitos estudos: depois de terem sido postos em circulagao os pri- meiros produtos impressos datados, e apés se terem langado ao trabalho os sucessores imediatos do inventor. Assim sendo, 0 advento da imprensa é considerado como o estabelecimen- to de prelos em centros urbanos além da Rendnia, durante um periodo que se inicia na década de 1460 e que coincide, de modo aproximado, com a era dos incundbulos. Os estudos dedicados a este ponto de partida foram tao pou- cos, que ele nao recebeu ainda qualquer etiqueta convencional. Poder-se-ia falar numa mudanga basica em determinado modo de produzir livros, numa revolugao dos meios de comunicagao ou da mfdia; ou talvez, de modo mais simples e mais explicito, num salto do texto manuscrito para o impresso. Seja qual for o termo utilizado, deve-se entender que ele abarca um amplo feixe de mudangas relativamente simultaneas e inter-relacionadas, cada uma das quais requer estudo detido e tratamento mais explicito — como vai sugerido no répido esboco a seguir. Em primeiro lugar, impée-se dar maior énfase ao marcante acréscimo havido na produgao de livros e A redugao drastica conseguida no nimero de homens-horas necessérios para fabricd-los. Hoje em dia, ha uma tendéncia a imaginar um aumento crescente na produgio de livros durante o primeiro sécu- 28 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL lo da imprensa. Aplica-se um modelo evolucionério da mudanga a uma situa- Ic do que mais parece requerer um modelo revolucionério. Um homem nascido em 1483, ano em que se deu a queda de Constantinopla, bem que poderia, em seu qiiinquagésimo aniversério, olhar para trés e contemplar uma vida duran- tea qual haviam sido impressos cerca de 8 milhdes de livros, mais talver do que todos 0s escribas da Europa haviam produzido desde que Constantino fundara sua cidade, no ano 330 d.C. O que foi a produgio efetiva de “todos os escribas da Europa” é matéria inevitavelmente polémica. Mesmo que se deixe de lado o problema de tentar estimar a quantidade de livros que deixaram de ser catalogados e foram pos- teriormente destrufdos, é necessdria muita cautela ao lidar com os dados hoje disponfveis, uma vez que levantam freqiientemente pistas falsas com respei- to 4 quantidade de livros envolvidos. Uma vez que era usual registrar como um tinico livro qualquer conjunto de textos distintos, desde que estivessem enca- dernados em um mesmo par de capas, torna-se muito dificil precisar a quan- tidade efetiva de textos existentes numa determinada colec4o manuscrita. O fato de que objetos contados como em um livro continham, freqiientemente, uma combinagao varidvel de muitas obras constitui outro exemplo da dificul- dade de quantificar dados gerados na era dos escribas. Uma situacdo seme- Ihante ocorre quando temos de enfrentar o problema de calcular o ntimero de homens-horas necessdrios para a c6pia de livros manuscritos. Pesquisas recen- tes acabam de tornar virtualmente intiteis as velhas estimativas baseadas no niimero de meses que 45 escribas, a servico de um vendedor de livros manus- critos de Florenca, Vespasiano da Bisticci, levaram para produzir duzentos livros para a Biblioteca Badia, de Cosimo de Medici. Assim sendo, 0 néimero total de livros produzidos por “todos os escribas da Europa” desde 330, ou mesmo desde 1400, com toda a probabilidade per- maneceré indefinido. Nao obstante, é sempre possivel fazer algumas compa- rag6es, que colocam a produgio das impressoras em nitido contraste com as tendéncias anteriores. “Em 1483, a Impressora Ripoli cobrava 3 florins por quinterno, para compor e imprimir a tradugao dos Didlogos de Platao, feita por Ficino. Um escriba poderia ter cobrado 1 florim por quinterno para copiar o mesmo trabalho. A prensa de Ripoli produziu 1 025 cépias; o escri- ba teria completado uma. Tendo em vista este tipo de comparacio, parece equivocado sugerir que “a multiplicagio de cépias idénticas” foi meramente w ‘A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA intensificada” pela imprensa. O processo de copiar 4 mao poderia ser muito eficiente, nao hé diivida, quando se tratava de duplicar um edito real ou uma bula papal. No século XIII, foram produzidas tantas cépias de uma Biblia entdo recentemente editada, que alguns estudiosos de hoje julgam poder refe- rir-se a uma “edi¢do” parisiense de um manuscrito da Biblia. Contudo, pro- duzir uma s6 “edicao” integral de qualquer texto constitufa dificil empreita- da naquele século. Aquela solitaria “edigdo” manuscrita do século XIII bem poderia ser comparada com o grande ntimero de edigées da Biblia produzi- das nos cingiienta anos que vao de Gutenberg a Lutero. Além do mais, quan- do a mo-de-obra de escribas era empregada para multiplicar editos ou pro- duzir uma “edigdo” integral das escrituras, ela estava sendo desviada de outras tarefas. | Muitos textos valiosos escaparam por pouco a destruigao; intimeros outros desapareceram. A sobrevivéncia, em tais casos, dependeu muitas vezes da cir- cunstancia de que uma c6pia esporddica fosse feita por um estudioso interes- | sado, que agira como seu préprio escriba. Em vista da proliferagao de textos | “dnicos” e da acumulacao de variantes, constitui prética duvidosa dizer que “c6pias idénticas” tenham sido “multiplicadas” antes da imprensa. Este ponto especialmente importante quando se tem em mente a literatura técnica. Era de tal magnitude a dificuldade de produzir uma cépia “idéntica” de uma obra técnica significativa, que a tarefa nao podia ser confiada a quaisquer assala- riados. Homens de saber tinham de engajar-se em “copiar como escravos” qua- dros, diagramas e termos nao-usuais. A produgdo de edigées completas de | conjuntos de tabuas astronémicas nao se limitou a “intensificar” tendéncias anteriores. Ela as reverteu, ao criar uma situagao nova, que liberou tempo para a observagio e a pesquisa. Na vez anterior em que fora introduzido na Europa do século XIII, con- vém observar, o papel nao tivera de modo algum um efeito “similar”. A pro- dugao de papel atendeu entao as necessidades dos comerciantes, burocra- tas, pregadores e literatos; acelerou o ritmo da correspondéncia e permitiu Dois mapas (nas paginas seguintes) que revelam a disseminagio da imprensa na Europa Ocidental durante a era dos incundbulos. Estes mapas, tragados por Henri-Jean Martin, mostram a dissemi- nago da imprensa antes de 1471; de 1471 a 1480; de 1481 a 1490; e de 1491 até 1500. Reproduzi- dos da obra Litpparition du lire (da série Enolution de Ubumanité), de L. Febvre e H.-J. Martin (Paris, Albin Michel, 1958, defronte da pégina 272), mediante gentil permissio de H.-J. Martin e Edigdes Albin Michel. 0 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL SPY Wa EpeOS — ove 00 «oor 0 O8FI PIZFI Pd © Ue YSN@YdWI Vd OYOVNIWASSIC ¥ A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA A DISSEMINAGAO DA IMPRENSA Antes de 1481 ‘© (Locais mostrados no mapa anterior) © De 1481 a 1490 © De 1491 a 1500 0 100 200 300 Se Escala em milhas 52 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA que um maior nimero de homens de letras agissem como seus préprios escribas. Mas ainda se necessitava da mesma quantidade de homens-horas para produzir um determinado texto. Multiplicaram-se as lojas de papelei- ros, ou cartolai, em resposta a uma demanda crescente por cadernos, tabu- letas, folhas preparadas e outros artigos. Além de vender materiais de escri- tae livros escolares, bem como servigos e materiais de encadernacdo, alguns comerciantes passaram também a auxiliar os colecionadores de livros que 60s patrocinavam, procurando localizar obras mais valorizadas. Mandavam copié-las, atendendo a encomendas, e conservavam alguns exemplares para vender em suas lojas. Contudo, sua participagéo no comércio de livros era mais ocasional do que se poderia imaginar. As atividades dos cartolai eram variadas [...] Os que se especializavam na venda e pre- paragio de materiais para a produgao de livros, ou na sua encadernagio, provavelmen- te pouco, ou nada, se interessavam pela produgao ou venda de manuscritos e (mais tarde) de livros impressos, novos ou usados. Até mesmo 0 comércio de livros a varejo empreendido por Vespasiano da Bisticci, o mais conhecido mercador florentino de livros, que atendia prela- dos e principes e “fazia todo o possfvel” para atrair clientes e fazer negécios, jamais esteve a ponto de transformar-se num comércio por atacado. Apesar dos métodos geralmente agressivos com que Vespasiano promovia suas ven- das e correlacionava livros e clientes, ele jamais deu sinais de “ter ganhado muito dinheiro” com todas as suas transagdes. Nao hd diivida de que ele con- quistou clientes notdveis e angariou considerdvel celebridade como “o prin- cipe dos editores”. Sua loja foi enaltecida por poetas humanistas em termos similares aos que foram utilizados mais tarde em louvores dedicados a Guten- berg e Aldus Manutius. Talvez seja ainda mais notdvel a sua fama péstuma — alcangada somente no século XIX, depois da publicagao de suas memé- rias, e da utilizagdo destas por Jacob Burckhardt. A obra de Vespasiano, Vidas de homens ilustres, contém uma referéncia aos livros manuscritos ricamente enca- dernados, existentes na biblioteca do Duque de Urbino, e dé a entender, em tom esnobe, que um livro impresso se sentiria “envergonhado” em tao elegan- te companhia. Essa referéncia, isolada, feita por um mercador de livros atf- pico e obviamente preconceituoso, foi reproduzida e expandida em muitos comentarios enganosos sobre 0 suposto desdém que os humanistas da Renascenga teriam alimentado em relago aos objetos vulgares produzidos pelas 4 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL méquinas. Na realidade os bibli6filos florentinos j4 mandavam comprar livros impressos em Roma desde 1470. Sob a diregao de Guidobaldo da Montefel- tro, a Biblioteca ducal de Urbino adquiriu edigdes impressas e (envergonha- damente ou nao) mandou-as encadernar com as mesmas capas magnificas entdo usadas para os manuscritos. A mesma corte patrocinou o estabelecimento de uma impressora pioneira em 1482. O comentario de Vespasiano mostra que ele estava sendo vitima de devaneios nostalgicos e irrealizdveis, tanto assim que nao conseguiu de seus clientes principescos apoio suficiente para conti- nuar seu comércio exclusivista. Seu principal concorrente em Florenga, Zanobi di Mariano, conseguiu manter-se em atividade até sua morte em 1495. “A disposigéo de Zanobi para vender livros impressos — um tipo de comér- cio que Vespasiano havia rejeitado — explica sua sobrevivéncia como livrei- To nos anos traigoeiros do final do século XV. Lidando exclusivamente com manuscritos, Vespasiano teve de encerrar seu comércio em 1478.” Sé depois de Vespasiano ter fechado as portas é que se pode dizer que come- gou um auténtico comércio de livros por atacado. Logo que Gutenberg e Schoeffer terminaram a tiltima folha de sua monumental Biblia, © financista da firma, Johan Fust, tomou para si cerca de uma diizia de exemplares, a fim de verificar a melhor maneira de colher os frutos de seus pacientes investimentos. E para onde se voltou ele, em primeiro lugar, para converter suas biblias em dinheiro? Dirigiu-se a Paris, entio a maior cidade universitéria na Europa, onde mais de 10 mil alunos lotavam a Sorbonne e outras faculdades. E 0 que encontrou ele naquela cidade, para seu amargo desprazer? Uma corporagiio bem organizada e poderosa, a guilda do forte comércio livreiro, a Confrérie des Libraires, Relieurs, Enlumineurs, Ecrivains et Parcheminiers [...] fundada em 1401 [...] Alarmados pelo aparecimento de um foras- teiro detentor de tesouro to inaudito, quando constataram que ele estava vendendo uma Biblia atrés da outra, chamaram logo a policia e apresentaram seu abalizado veredicto de que tal quantidade de livros valiosos s6 poderia estar na posse de um sé homem median- tea ajuda do préprio diabo. Fust teve de fugir para salvar a pele, ou sua primeira via- gem de negécios teria terminado numa vexatéria fogueira... Esta histéria, tal como referida por E. P. Goldschmidt, pode ser tao infun- dada quanto a lenda que associava a figura de Johann Fust a do dr. Fausto. A reagao adversa ali narrada nao deve ser considerada como tfpica; muitas refe- réncias a esse perfodo inicial so, na pior das hipéteses, ambivalentes. As mais freqiientemente citadas costumam associar a imprensa aos poderes divinos, no aos diabélicos. Contudo, as referéncias mais conhecidas provém dos antincios SSS ‘A REVOLUGAO DA CULTURA INPRESSA bombasticos ou prefacios compostos precisamente pelos primeiros impresso- res, ou entao dos editores e autores que trabalhavam nas oficinas de impres- sio. Tais pessoas tendiam a adotar uma visio mais favordvel do que os mem- bros das corporagdes, que tinham feito dos livros manuscritos o seu ganha-pao. Os Libraires parisienses poderiam ter boas razées para estar alarmados, embo- ra se estivessem antecipando aos fatos: o valor de mercado dos livros copiados Amo s6 veioa cair depois da morte de Fust. Outros membros da confrérie jamais poderiam prever que a maioria dos encadernadores, rubricadores, desenhistas de iluminuras e caligrafos passariam a estar mais ocupados que nunca, tao logo 0s primeiros impressores se estabelecessem. Quer vissem a nova arte como a dédiva ou maldigao, quer aatribufssem a Deus ou ao Diabo, o fato é que o aumen- toinicial de produgao impressionou os observadores contemporaneos como sendo algo tao notavel, a ponto de sugerir uma intervengao sobrenatural. Até mesmo os incrédulos estudiosos modernos podem ficar perturbados, ao tentar calcu- lar o ntimero de bezerros que foram necessdrios para suprir peles em quanti- dade suficiente para editar em papel velino a Biblia de Gutenberg. Nao deve- ria ser dificil chegar ao consenso sobre a idéia de que o aumento ocorrido na segunda metade do século XV foi abrupto, e nao gradual. Se em vez da quantidade considerarmos a qualidade, torna-se muito mais dificil vencer o ceticismo. Quando se coloca uma cépia manuscrita tardia de um dado texto ao lado de uma das primeiras versées impressas, a tendéncia mais imediata é achar que nao houve mudanga alguma, muito menos uma mudanga abrupta ou revolucionéria. Por tras de cada 10 impresso por Peter Schoeffer hi um manuscrito publicado [...] iais e a decoragao das rubri- A decisio sobre os tipos de letras a usar, a selego das ini cas, a determinacao do comprimento e largura de cada coluna, o planejamento das mar- gens [..] tudo estava predeterminado pela c6pia manuscrita precedente Nao somente os primeiros impressores (como Schoeffer) buscaram copiar um determinado manuscrito 0 mais fielmente possfvel, como também os escri- bas do século XV retribufram a gentileza. Como nos demonstrou Curt Bih- ler, um grande ntimero de manuscritos executados no final do século XV foram copiados de livros impressos primitivos. Assim, tanto o trabalho manual como 0 executado no prelo mantiveram-se quase indistingufveis na aparén- cia, mesmo depois que o impressor comegou a afastar-se das convencées dos escribas e a explorar algumas caracteristicas novas inerentes & sua arte. 56 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL E preciso dar o peso devido a circunstancia de que havia novas caracte- risticas e que elas foram exploradas. A despeito dos seus esforgos no sentido de reproduzir os manuscritos o mais fielmente possivel, o fato é que Peter Schoeffer, impressor, estava seguindo procedimentos diferentes dos adota- dos por Peter Schoeffer, escriba. A auséncia de quaisquer mudangas vistveis no produto combinava-se com uma mudanga completa nos modos de produ- 40, dando origem a uma combinagio paradoxal de continuidade aparente e mudanga radical. Por isso, a semelhanga temporaria entre o produto do tra- balho manual eo do trabalho impresso parece dar apoio a tese de uma mudan- ga evolutiva muito gradual; e, no entanto, podemos também sustentar a tese oposta, se sublinharmos a sensfvel diferenca entre os dois modos de produ- cdo e observarmos as novas caracterfsticas que comegaram a surgir antes do final do século XV. O trabalho do escriba era necessariamente orientado pela aparéncia super- ficial do texto. Ele se empenhava totalmente em procurar tragar letras espa- gadas uniformemente, dentro de um padrao simétrico e agradavel. Procedi- mento completamente distinto exigia-se para orientar os compositores. Neste caso, era necessdrio fazer marcagdes no manuscrito, enquanto se ia analisan- do 0 seu contetido. Desse modo, todo manuscrito que vinha as maos do impressor tinha de ser examinado de uma maneira nova — que dava ocasiio sea logese tal biomed ie itd (oquar de fee hominis. pase apis puueuae de. cm ‘pai qui te onan ° te gee : Sofpastonubat oi A eprimmni quenns cue qui: rider perme mantnrapubel mele loquixic ot tamales aabiacs quite -Iyoe erm mmfters cog (uftrant:afrebicierofotim’ ur une genenl preBemro: mifruenuss, parc emai auto birds quinted, i Sermche 2 is qeatcier ne eptata Hyori mfic eobomnabie # opt. GeneGaeemianid miner cree abla? gma diame num, nie (iene nconblare cape Duo ear. Ruri pot dns frum Su ia a eg moi ain abn one ne nf xa Canara Eyes fie ap nuigdiouc foe fi Robt orale leer sa s->maters ee ete cmacadttmes or arent nafaa fi laine eangicuiue vod ‘fen aubine bethany aduo-rinaure bifaphteautons sreanfffasoraus font. Une etch nue oi cob rubra logorur re um texto manuscrito ¢ um impresso € demonstrada por estas duas péginaa, « primeira das quais extraida de uma Biblia manuscrita (a Biblia Gigante de Mainz), ea segunda, de uma Biblia impressa (a famosa Biblia de Gutenberg). Reprodu: das por especial cortesia da Divisio de Livros Raros e Colecies Especiais da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos SSS A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA Por sua vez a mais revisdes, mais corregées e mais cotejos do que nos textos copiados & mio. No espaco de uma geracio, os resultados desse reexame apon- taram uma nova diregao — néo mais no sentido da fidelidade as convengées dos escribas, mas buscando servir a conveniéncia do leitor. O cardter comer- cial altamente competitivo do novo modo de produgio de livros incentivou a adocao relativamente rapida de toda e qualquer inovacao que valorizasse uma determinada edigdo junto aos compradores. Muito antes de 1500, os impres- sores jé faziam suas experiéncias com 0 uso de “ ipos graduaveis, titulos de paginas, notas de rodapé, indices, cabegalhos ilustrados, referéncias cruza- das [...] muitos outros artificios & disposigio do compositor” — todos indi- cadores da “vitéria do operador de buril sobre o escriba”. As paginas de rosto tornaram-se cada vez mais comuns, facilitando o preparo de listas de livros e catélogos, ao mesmo tempo que constitufam amincios em si mesmas. As ilus- tragdes feitas 4 mao foram sendo substitufdas gradualmente por xilografias e estampas — inovagio que acabou contribuindo para revolucionar a litera- tura técnica, pela introdugao de “mensagens pictéricas que podiam ser repe- tidas com exatidio” em todos os tipos de obras de referéncia. O fato de que imagens, mapas e diagramas idénticos podiam ser vistos simul- taneamente por muitos leitores esparsos constituiu por si sé uma espécie de revolugio. Esta observagio foi feita de modo incisivo por William Ivins, anti- go curador de gravuras do Metropolitan Museum. Embora a énfase particu- lar dada por Ivins & “mensagem pictérica que podia ser repetida com exati- dao” tenha sido bem acolhida entre historiadores da cartografia, sua propenso ao exagero provocou objegées de outros especialistas. As imagens pass{veis de repetigao, argumentavam eles, datam dos antigos selos e moedas, ao passo que uma reprodugao exata nao tinha muito a ganhar com 0 uso de blocos xilo- graficos, que se gastam e quebram apés longo uso continuo. Neste ponto, como em qualquer outro, nao convém subestimar ou exagerar as vantagens da nova tecnologia. Embora se admita que as xilografias podiam danificar-se ao serem copiadas para incluso em diversos tipos de texto, convém considerar também, por outro lado, o estrago que ocorria quando imagens feitas 4 mio tinham de ser copiadas para centenas de livros. Embora alguns desenhistas de iluminuras medievais dispusessem de livros de padrées e de técnicas de perfuracao, a reprodugao precisa de detalhes sutis permaneceu fugidia até 0 advento da xilografia e da gravura. Blocos e pranchas tornaram possivel pela primeira vez a repeticao de material visual ilustrativo. Quando confiados a artesdos experientes no uso de bons materiais e sob adequada supervisao, 58 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL até mesmo os problemas decorrentes de uso e desgaste podem ser minimiza- dos: as partes rombudas puderam ser agucadas, os detalhes esmaecidos pude- ram ser reavivados, de modo a garantir-se uma durabilidade notavel. Nao é tanto pela importincia que dé & imagem impressa, mas antes por subes- timar 0 significado do texto impresso, que Ivins parece perder-se no caminho. Embora ele mencione de passagem que “a histéria dos impressos como uma série integrada” se inicia com seu uso “como ilustragées em livros impressos de tipos méveis’, em outros lugares sua andlise tende a apartar o emprego das figu- ras impressas do destino dos livros impressos. Seu tratamento d4 a entender que os novos aspectos da repetitividade se limitavam as mensagens pictéricas. E nés sabemos que esses efeitos nao estavam limitados a figuras ou, no caso em tela, a figuras e palavras. As tabelas matemdticas, por exemplo, também foram transformadas. Para estudiosos interessados na mudanga cientifica, o que acon- teceu com os ntimeros e as equagées certamente tao importante como 0 que aconteceu com as imagens ou as palavras. Além disso, muitas das mais impor- tantes mensagens pictéricas produzidas durante o primeiro século de impren- sa empregavam varios dispositivos — bandeirolas, chaves alfanuméricas, linhas apontando para o desenho etc. — destinados a relacionar imagens aos textos. ‘Tratar material visual ilustrativo como uma unidade a parte corresponde a per- der de vista os elos vinculadores, que eram tao importantes na literatura téc- nica, porque expressavam relagdes entre palavras e coisas. Mesmo tendo em vista que a impressdo tipografica e a impressio manual podem ter-se originado como inovagées distintas, que eram utilizadas inicial- mente para fins diversos (assim, as cartas de baralho e imagens de santos eram estampadas com base em blocos de madeira, enquanto as iluminuras, feitas & mo, continuavam a decorar muitos dos primeiros livros impressos), as duas técnicas em breve se tornaram integradas. A utilizagio da tipografia para os textos levou ao uso da xilografia para as ilustragGes, com o que foram selados os destinos do escriba e do desenhista de iluminuras. Ao considerar-se a manei- ra comoa literatura técnica foi afetada pelo deslocamento do manuscrito para © impresso, parece razodvel adotar a estratégia de George Sarton, que con- templava “uma invengao dupla: tipografia para o texto, gravura para as ima- gens”, Convém dar mais importancia ao fato de que as letras, os niimeros e as figuras, tudo ja podia ser repetido nos iiltimos anos do século XV. E talvez mais significativo salientar que o livro impresso tenha proporcionado novas formas de interacao entre esses diferentes elementos, do que a transformagao sofrida pela figura, pelo mimero ou pela letra tomados separadamente. ee A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA A preparagio da cépia e do material ilustrativo destinado a edigées impres- sas também provocou um rearranjo nas artes e rotinas ligadas 4 produg30 de livros, Ndo somente as novas técnicas (como fundigao de tipos e prensa- gem de livros) envolviam verdadeiras mudangas ocupacionais, como a pro- dugao de livros impressos também reunia num sé local talentos tradicionais de varias espécies. Durante a era dos escribas, a fabricacao de livros havia ocorrido sob os auspicios distintos representados por donos de papelarias e copistas leigos nas cidades universitérias; iluminadores e miniaturistas trei- nados em ateliés especiais; mestres ourives e artesdios de couro associados a guildas especiais; monges ¢ irmaos leigos reunidos nos veriploria; funciondrios da realeza e secretdrios papais ativos em chancelarias e cortes; pregadores que compilavam por conta prépria livros de sermées; poetas humanistas que agiam como escribas de si préprios. O advento da imprensa levou a criagao de um novo tipo de estrutura de loja; a um reagrupamento que gerou conta- tos mais estreitos entre trabalhadores diversamente capacitados e incentivou novas formas de trocas interculturais. Por esse motivo, nao é raro encontrar ex-padres entre os primeiros impres- sores, ou ex-abades atuando como organizadores ou corretores de texto. Por outro lado, muitos professores universitérios, que amitide também se exerci- tavam nesses labores, passaram a ter contato mais préximo com mecAnicos e metalirgicos. Outras formas proficuas de colaboracao aproximaram astro- nomos e gravadores, ou fisicos e pintores, assim desvanecendo velhas divi- s6es de trabalho intelectual e incentivando novas maneiras de coordenar a agao do cérebro, dos olhos e das maos. As antigas dificuldades de financiar a publicagio de grandes volumes em latim — que eram usados no fim da Idade Média por faculdades de teologia, direito e medicina — levaram por sua vez A formagao de sociedades que agregavam locais. Finalmente, as novas corporagées financeiras, formadas para permi- icos negociantes e estudiosos tir aos mestres impressores contratar mao-de-obra e suprimentos necessarios, puseram em contato representantes da sociedade e do meio académico. Na qualidade de elemento-chave em torno do qual giravam todos os arran- jos, o préprio mestre-impressor funcionava como ponte entre sos. Ele era respons4vel nao s6 por conseguir dinheiro, como pelo suprimen- rios univer- to de insumos e mao-de-obra, ao mesmo tempo que tinha de desenvolver complexos esquemas de produgio, lidar com greves, tentar avaliar as condi- g6es dos mercados livreiros e angariar 0 apoio de assistentes preparados. Tinha de manter-se em bons termos com as varias autoridades que asseguravam pro- 0 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL tegdo e empregos lucrativos, sem se esquecer de cultivar e promover autores e artistas talentosos, que poderiam angariar lucros ou prestigio a sua firma. Nas cidades em que sua empresa prosperava e ele pessoalmente atingia uma posigao de influéncia junto aos seus concidadaos, sua loja tornava-se um ver- dadeiro centro cultural que atrafa os literatos locais e personalidades famo- sas estrangeiras, ao constituir um local de reuniées e centro de mensagens para uma Comunidade do Saber cosmopolita e crescente. Alguns vendedores de livros manuscritos haviam exercido, sem diivida, fun- Ges similares, antes do advento da imprensa. JA se mencionou que os huma- nistas italianos eram reconhecidos a Vespasiano da Bisticci por muitos dos ser- vigos que mais tarde seriam prestados por Aldus Manutius. Mas, na verdade, a estrutura da loja a que presidia Aldus era muito diferente da conhecida por Vespasiano. Como protétipo do capitalista primevo e herdeiro de Atico e seus sucessores, o impressor abragou uma gama de atividades mais ampla. A casa de Aldus em Veneza, que abrigava cerca de trinta pessoas, foi recentemente descrita por Martin Lowry como uma “quase incrivel mistura de colénia penal, casa de pensao e instituto de pesquisa”. Poder-se-ia consagrar um estudo muito interessante a uma comparagao entre a cultura ocupacional do impressor Peter Schoeffer e a do escriba Peter Schoeffer. Diferentemente do salto entre dono de papelaria e editor, o salto do escriba para o impressor representou uma mudan- ga ocupacional auténtica. Embora Schoeffer tenha sido o primeiro a dar o salto, muitos outros seguiram o mesmo caminho antes do fim do século. Ajulgarmos pela excelente monografia de Lehmann-Haupt, muitas das atividades pioneiras de Schoeffer estavam relacionadas com a passagem do comércio a varejo para uma indiistria por atacado. “Durante algum tempo, © comércio com livros impressos se manteve dentro dos estreitos canais do comércio de livros manuscritos. Dentro em pouco, contudo, a vaga nao péde mais ser contida.” Foram localizados novos pontos de distribuigdo; impri- miram-se folhetos, circulares e catdlogos de vendas; os préprios livros eram levados Reno abaixo, para além do Elba; para o ocidente, em dire- go a Paris; para o sul, em direg&o a Suica. O impulso no sentido de abrir, novos mercados era acompanhado de esforgos para manter os concorren- tes sob controle, mediante a oferta de melhores produtos, ou, pelo menos, a impressio de um prospecto anunciando 0s textos “mais legiveis” da firma, indices “mais completos e mais bem arranjados”, “mais cuidadosa revisio de textos” e edigdo. Eram objeto de atengio os funciondrios que serviam is bibli6filos arcebispos e imperadores, nao somente porque eram potenciai a A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA a4 AND. UESALII DE CORPORIS QVINTA Este exemplo de material ilustrativo/visual com remissées ao texto é extratdo da obra De humani cor- poris fbricalbriseptem, de Andreas Vesalius (Basiléia, Johann Oporinus, 1555, p. 224-5). Reproduzido mediante gentil permissio da Folger Shakespeare Library, 2. DEFINICAO DO SALTO INICIAL HUMAN FABRICA LIBER Ih as ZL ia _v imager referent, que primus > fecundsm G-tertixem par corum quid monent masealorum re~ AC Primus e fecundus long Puli ab offe v references ti oe coer ede ai O Dexter duersm mnfeulorirngui abe v referenceincartilaginem eae file inferunir. r P Dexter dusruom muslorum, quis petlorvaffe acum imicancileryngs cercilagin infermcur. AA baie fui exterias Leas, comgeies nity per aria arteriainterieris mena ingulari, > ext cerebrinerserum pers ee eicgge gc its > cape fiero cal ema Singli carafe fngaes fini catocsng toh oth cones i mea ees tends ifn ik a pln scar nipespredy eto bedpe et 1) BNR X Quoi bic cm nia pce gu ipa able mine often isin Galeniurba peri cle tri ly Fa, cml sutherland tri trace mean ae, pene fol mote ‘Dexen lareris clawiculaom hic & peEloris off axnlfimus, adhe, ne bumere connes jdbc mon Z feta feruentem gua thorac seem pomlorid ery sa i Shs «¢ Sarna bamern fen fapul clair praca b Sever demir nek cole pie € Beene apolar articulpeculiariam quar tum ab interior i eapula proceffis farmmsem ellomr a d Ligemensiem veres,ab apice interior’ cel teriorem | exter capitis bumeriinfercum, . chen nae reas ch ee me € teres bgamentumyex acetabuls fede, ad ext te io cee ei mmm or ‘us fled lyamenndc infa, fslcraamance, orn een rma gone faa eNom f Parkead cachOrrmbonnomtp eects fin ip, 1 afl eeimencns io Cie resin, nbn maf J pride tna fain ficult eta endny Wh efaake Poh ik €lpdice mpd eng poole naiar TF sm aes gui eagle bef pronase fipernria cerca. , Dexuer reer abdeins feaeram Ae m carne re abdomen ingle on six jmie na princi dem manera enon forman main. Te i. tomer p ad pert eEh abrerina maar fer com gan Tete fedefugra yest mes epranmmbslcam conftencecanca magna mato faguntar quant alias con ‘eendant. Cteriom 4 notabic exe eliguorum arden fealeram mere tents ad ranuefin 1 thdamin rer racinpetead petra fdem comes Pers + lena gue carne nf prin fi qu tina nr nome prin acaadceie Af, rem m etcernere Intercapedne igi a rad pertinent, fefertrfmicabdemias maf tendo ow 1, membranaexcernt ue maeaipars.¢ antemindiercerncam mafia dem, prima ote > fcandathora chen ltd creche pest z eran sem, Cordon era af ba rmaeadacreonfira. Parma nacanarinfrpionefoneruedelincamente wafer rele moun prefs quibns oblige endencis maf nerufa exer prtnacsin cone = Linea hac porinncader nates madd oli ofendemis gua erenfr domi maja inchnlsenmrane femme edna ier pa _y Fanferis abderinis fens, Oblique endens abdominal ah ab dominic refexas & Usfrm 6 A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA OFFICINE TYPOGRA- PICTURE OF A PRINTING OFFICE PHICA DELINEATIO. SEN Zire fnioorg pssaue prodidit und Singula chalcographi munera rite gregis. This cut, the work of Thymius' accurate hand Et correGorum curas,operasd;regentum, Shows all at once how printing shops are manned ‘Quasd; gerit leétor, compofitord vices. The masters duties, the corsectors chores, tt valgus hleam. taqui legis bello The work of readers and composiors Fac iteratd animi fedulitate fais, To this small book then you'l apply your mind ‘Sic meritz cumulans hinc fertilitatis honores, Good reader, if you'te not the vulgar kind, Ceu pi€tura oculos, intima mentis ages. So that a picture in your mind may rise LLLF To match this picture that’s before your eyes. LILA, Um mestre impressor em sua of cina. Os versos latinos e a xilogravura apareceram pela primeira vez na obra de Jerome Hornschuch, Orthotypagraphia (Leipzig, M. Lantzenberger, 1608). A traducao em inglés foi extrafda de uma edigio fac-similada, organizada e traduzida por Philip Gaskell e Patri- Bradford (Biblioteca da Universidade de Cambridge, 1972, p. XVI). Reproduzida mediante gen- til permissio da Biblioteca da Universidade de Cambridge. e censores, mas também porque constitufam fregueses virtuais que expe- diam um fluxo continuo de ordens para a impressio de decretos, editos, bulas, indulgéncias, cartazes e panfletos. No final do século, Schoeffer havia galgado uma posigio de eminéncia na cidade de Mainz. Comandava uma “extensa organizagio de vendas’, associara-se também a uma operagao con- junta de mineragao e fundara uma dinastia de impressores. Apés sua morte, © acervo de tipos passou para seus filhos, ¢ a firma Schoeffer, sempre em operacio, expandiu-se pelo século seguinte, para abarcar também a impres- sao de miisica. Como estd sugerido no trecho anterior, h traste entre as atividades do impressor de Mainz eas do escriba de Paris. Entre ‘4 muitos pontos de possfvel con- ct 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL os donos de papelarias que serviam as faculdades universitérias, os escribas leigos que prestavam servigos as ordens mendicantes e os copistas semilai- cos que pertenciam a comunidades fundadas pelos Irmaos da Vida em Comum, nao faltavam de todo iniciativas competitivas e comerciais. Tais iniciativas, contudo, eram fracas, quando comparadas com os esforcos do velho Schoef- fer e seus concorrentes, no sentido de recuperar os investimentos iniciais, pagar os credores, consumir resmas de papel e manter empregados os impressores. Ovendedor de livros manuscritos, ao contrério do que ocorria com o impres- sor, ndo tinha por que se preocupar com méquinas paradas ou com trabalha- dores em greve. Alguém ja lembrou que o simples fato de instalar um prelo hum mosteiro, ou num tipo de associagéio com uma ordem religiosa, j4 cons- tituia uma fonte de perturbacdo, pois trazia “uma multiddo de preocupacdes com dinheiro e propriedade” a um espaco previamente reservado A medita- cao e aos trabalhos pios. Na qualidade de publicistas que defendiam seus préprios interesses, os primeiros impressores publicavam listas de livros, circulares, cartazes. Colocavam o nome de sua firma, o emblema e endereco de sua loja no fron- tispicio de seus livros. Com efeito, a utilizagao por eles dada as paginas de rosto desde jé acarretava uma inversio significativa em relagio aos proce- dimentos dos escribas, uma vez que elas se colocavam na frente; e 0 colofio do escriba aparecia em tiltimo lugar. Eles estenderam suas técnicas promo- cionais, de modo a incluir os artistas e autores das obras por eles publica- das, com isso contribuindo para a criagdo de novas formas de celebridade pessoal. Os mestres de célculos e fabricantes de instrumentos, a semelhan- ga de professores e pregadores, também ganharam com os antincios nos livros, que espalhavam sua fama além das lojas e salas de aulas. Os estudos dedi- cados & formagio de uma intelligentsia leiga — nos quais se reconhece uma nova dignidade aos oficios artesanais, ou se admite uma visibilidade maior ganha pelo “espirito capitalista” — bem que poderiam atribuir mais atengao a esses primeiros praticantes das artes da propaganda. Por outro lado, o fato de que eles dispunham de um novo aparelho publi- citdrio colocou os primeiros impressores numa posig&o extremamente vanta- josa em relagio a outros empresérios. Eles nao s6 buscavam conquistar mer- cados cada vez mais amplos para seus produtos, como também contribufam para a expansio de outros empreendimentos comerciais, com os quais lucra- vam igualmente. Que efeitos teve o aparecimento de novas técnicas publici- tarias sobre 0 comércio ¢ a indistria do século XVI? Talvez j4 conhecamos 6 A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA algumas das respostas. E outras provavelmente poderio ainda ser encontra- das. Vrios outros aspectos da impressao de pequenos trabalhos avulsos e das transformagées por ela trazidas merecem estudos mais aprofundados. Por exemplo: os calendérios ¢ indulgéncias impressos, que foram inicialmente executados em Mainz, nas oficinas de Gutenberg e Fust, ustificariam pelo menos tanta atengao quanto as bfblias, muito mais conhecidas. Com efeito, a produ- g4o de indulgéncias em quantidades macigas ilustra de modo claro o tipo de mudangas que muitas vezes passam despercebidas, fazendo com que, mais tarde, suas conseqiiéncias sejam mais dificeis de avaliar do que talvez devessem ser. Em contraste com as varias mudangas esbogadas acima, as modificagées ligadas ao consumo de novos produtos impressos so mais intang{veis, indi- retas e dificeis de tratar. Desse modo, é indispensdvel deixar uma larga mar- gem de incerteza, quando se examinam essas modificagées. A propésito do espinhoso problema de estimar as taxas de alfabetizagao, antes e depois do advento da imprensa, parecem-me irrefutaveis os comen- trios de Carlo Cipolla: Nio 6 facil tirar uma conclusio geral dos dados esparsos que eu citei e dos dados igual- mente esparsos que eu nao citei [..] Eu bem poderia prosseguir concluindo que, no final do século XVI, “havia mais pessoas alfabetizadas do que geralmente se supe" [...] Do mesmo modo, também poderia concluir que “havia menos individuos alfabetizados do que geralmente se acredita’, uma vez que, na realidade, ninguém sabe o que significa a expres- so “geralmente se acredita’ [...] Poder-se-ia arriscar afirmar que, no final do século XVI, a taxa de analfabetismo da populagio adulta na Europa Ocidental ficava abaixo de 50% nas cidades de dreas relativamente mais adiantadas, e acima de 50% em todas as 4reas rurais, bem como nas cidades de Areas mais atrasadas. Esta assertiva ¢ horrivelmente vaga [..], mas os dados disponiveis sobre o assunto nao nos permitem ser mais precisos. Tendo em vista os elementos fragmentérios dispontveis, bem como as pro- longadas flutuagées resultantes, parece-nos mais prudente deixar de lado os controversos problemas ligados a difusio da alfabetizagao, até que outros temas tenham sido explorados com maior cuidado. Um ponto que merece ser ressal- tado (e que ser repetidamente ressaltado neste livro) é 0 fato de que existem outros tépicos que merecem ser explorados — além da expansao do publico leitor e da “disseminagao” das novas idéias. Ao considerarmos as transforma- G6es iniciais geradas pelo advento da imprensa, seja como for, as mudangas sofridas por grupos jé entdo alfabetizados devem receber tratamento priori- % 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL trio em relagio ao problema, sem diivida fascinante, de quao rapidamente tais grupos se expandiram. Quando a atengdo se concentra nos grupos jé entao alfabetizados, torna- se claro que sua composicao social requer maior reflexao. Teré a imprensa ini- cialmente servido ao clero e ao patriciado, como uma “arte divina”?, ou deve- rfamos antes imagind-la como “amiga do pobre”? Ela foi descrita dos dois modos pelos contemporaneos, e provavelmente teve as duas fungées. Ao nos recor- darmos das fungées de escriba realizadas por escravos romanos, ou mais tarde por monges, irmaos leigos, clérigos e notarios, podemos concluir que o traba- lho de escrever jamais coincidiu com a condigao social de elite. Pode-se igual- mente supor que a situaco de letrado era mais compativel com as fungdes seden- tarias do que com as cagas e cavalgadas tao ao gosto de muitos cavalheiros e lordes. Sob essa luz, pode ser equivocado imaginar que a recém-criada impren- sa pés a disposigao de pessoas menos favorecidas alguns produtos até ento usados exclusivamente por pessoas com mais recursos. Parece mais provavel que muitas Areas rurais tenham permanecido intocadas até a chegada da era da estrada de ferro. Dada a grande populagao rural européia no inicio da Idade Moderna, bem comoa persisténcia de dialetos locais, que impunham uma bar- reira lingiifstica adicional entre o mundo falado e o escrito, é provavel que somen- te uma parcela muito pequena da populagdo total tenha sido afetada pela mudanga inicial. Nao obstante, no interior dessa populagao relativamente pequena e predominantemente urbana, um espectro social razoavelmente extenso pode ter sido atingido. Na Inglaterra do século XV, por exemplo, mer- cadores e escribas engajados no comércio de livros manuscritos j4 atendiam as necessidades de humildes padeiros e comerciantes, como também de advo- gados, dignitarios e fidalgos. A proliferagao de comerciantes alfabetizados nas cidades italianas do século XIV nao é menos notdvel que a presenga de um comandante militar analfabeto na Franga do final do século XVI. Seria um equtvoco, contudo, imaginar que o desaprego pela leitura era uma caracteristica peculiar 4 nobreza, embora parega plausivel que o enfado com 0 pedantismo latino fosse compartilhado igualmente por aristocratas e ple- beus leigos. Também se nos afigura duvidoso descrever os primeiros pibli- cos ledores como pertencentes 4 “classe média”. 5 preciso ter extremo cui- dado quando se tenta associar géneros de livros a grupos de leitores. Muitas € muitas vezes, toma-se como certo que obras “incultas” ou “vulgares” refle- tem gostos de “classe baixa”, apesar de catdlogos de biblioteca e listas de auto- es nos oferecerem provas em contrério. Antes do advento da alfabetizagao Ee A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA em massa, as obras mais “populares” eram aquelas que atrafam diversos gru- pos de leitores, e nao somente a plebe. As divisdes entre os piiblicos ledores em latim e em lingua verndcula sio | muito mais dificeis de correlacionar com o status social do que se sugere em muitos estudos. F fato que 0 médico do século XVI que usava latim era con- siderado superior ao cirurgido, que nao o fazia, mas também é verdade que nenhum dos dois tinha chance de pertencer aos escaldes mais elevados da socie- | dade. Na medida em que o movimento de tradugao para o vernaculo se des- tinava aos leitores que desconheciam o latim, ele visava freqiientemente a atrair pajens e aprendizes, mas também a aristocracia rural, os fidalgos e os corte- sos, bem como lojistas e balconistas. Nos Paises Baixos, uma tradugao do latim para o francés muitas vezes era destinada a cfrculos cortesaos relativa- mente fechados, passando ao largo da populacao urbana leiga, que s6 conhe- cia os dialetos da Baixa Rendnia. Enquanto isso, uma tradugao para o “holan- dés” poderia destinar-se a pregadores que necessitavam em seus sermées citar passagens da escritura, e nao necessariamente a populagio leiga (que freqiien- temente é tida como destinatéria exclusiva de trabalhos devocionais em “ver- ndculo”). Tutores empenhados em educar jovens principes, instrutores da corte ou de escolas religiosas, capelaes que traduziam do latim atendendo a pedi- dos da realeza haviam sido pioneiros em introduzir técnicas de “populariza- do”, antes mesmo que o impressor se langasse em sua empreitada. Mas o mais vigoroso {mpeto dado a popularizagao, antes do advento da imprensa, veio mesmo da necessidade, sentida por pregadores, de manter suas congregagées acordadas e reter a atengao em varios tipos de ajuntamentos ao ar livre. Diferentemente do pregador, o impressor 6 podia fazer suposi- Ges sobre a natureza do piiblico interessado em seu trabalho. Assim sendo, deve-se ter cuidado extremo ao tomar os titulos das primeiras obras impres- sas como se fossem guias seguros sobre seu ptiblico ledor. Exemplo disso é a descrigao freqiiente da Biblia ilustrada do século XV, primeiro tirada como manuscrito e em seguida impressa manualmente, como sendo a Biblia “do pobre”. Tal descrigao é talvez anacrénica, por ter sido baseada na abrevia- gao do titulo completo latino dado a esses livros. Com efeito, a Biblia paupe- rum praedicatorum tinha como alvo nao os homens miserdveis, mas os pobres pregadores, que sé tinham conhecimentos superficiais de latim e considera- vam de mais facil entendimento as ligdes das Escrituras desde que contas- sem com livros ilustrados como guias. Os analistas mais exigentes tém suge- rido a necessidade de distinguir entre o ntimero real de leitores, calculado 8 2. DEFINIGKO DO SALTO INICIAL com base em catdlogos de bibliotecas, listas de subscrigées e outros dados — mesmo tendo em vista, é claro, a circunstancia de que muitos compradores de livros se preocupam mais em exibi-los do que em Ié-los —, e os alvos, mais hipotéticos, visados pelos autores e editores. Com demasiada freqiiéncia, os titulos e prefacios sio considerados como prova do ntimero real de leitores, embora saibamos que eles nao sao nada disso. As informagées sobre a disser ago da leitura e da escrita [..] tém de ser suplemen- tadas pela andlise de seu contetido; esta, por sua vez, fornece prova circunstancial sobre a composigao do pal 0 leitor: um livro de culinéria [...] reimpresso oito ou mais vezes no século XV, era obviamente lido por pessoas interessadas no preparo de alimentos; assim, o livrinho Doctrinal des filles, sobre a conduta de mocas, devia ser consultado pri- mariamente por “donzelas” e “madames” Essa “prova circunstancial’, contudo, é altamente suspeita. Sem fechar ques- tao sobre o corpo de leitores dos mais antigos livros de culinéria (cujo caré- ter no me parece nada dbvio), os livrinhos referentes A conduta das moci- has talvez apresentassem igualmente interesse para os tutores, confessores ou educadores do sexo masculino. A circulagao de livros impressos sobre nor- mas de etiqueta tinha ramificagdes psicolégicas muito amplas; ndo se deve ignorar sua capacidade de aumentar a ansiedade dos pais. Além do mais, tais obras eram provavelmente lidas também por autores, tradutores e editores de outros livros de etiqueta. Impée-se ter sempre em mente o fato de que auto- res e editores constitufam um grupo muito amplo de leitores. Até mesmo aque- les poetas do século XVI, que evitavam impressores e circulavam seus ver- sos em forma manuscrita, bem que se aproveitaram da possibilidade de ter acesso a materiais escritos. Alguém jé sugeriu que os livros que descreviam 98 sistemas de escrituragao por partidas dobradas eram lidos menos por comerciantes do que por autores de livros de escriturago mercantile pro- fessores de contabilidade. Pode-se especular se nao haveria mais poetas e auto- res teatrais do que pastores entre os que estudaram os chamados Almanagues 00 pastor. Dada a adulteragao de dados transmitidos no correr dos tempos, e vistos os falsos remédios ¢ receitas impossfveis contidas nos tratados médi- cos, é de desejar-se que tais compéndios tivessem sido estudados mais por poe- tas do que por médicos. Dados, por outro lado, os exéticos ingredientes des- critos, pode-se supor que poucos boticdrios chegaram de fato a tentar a coccao de todas as receitas contidas nas primitivas farmacopéias impressas, # ae A REVOLUGAO DA CULTURA IMPRESSA embora pudessem ter-se sentido obrigados a entulhar suas prateleiras com aqueles produtos bizarros, para a eventualidade de que a nova publicidade pudesse provocar a demanda por tais itens. Defrontamo-nos com enigmas de dificil solugao, ao tentarmos decifrar os fins, pretendidos ou reais, de alguns dos primeiros manuais impressos. Qual seria, por exemplo, o interesse em publi- car, em lingua verndcula, manuais que delineavam procedimentos com os quais | j4 estavam familiarizados todos os praticantes proficientes de certos oficios? E oportuno relembrar, de qualquer modo, que comegava a tornar-se evidente, durante o primeiro século da imprensa, a disténcia entre a prética aplicada na loja e a teoria aprendida na sala de aula; e que muitos dos chamados guias e manuais praticos continham na realidade conselhos impraticdveis, quando no lesivos as pessoas. Embora possam ser adiadas certas conjecturas sobre transformagdes sociais e psicolégicas, convém, neste passo, salientar certos pontos. Como sugere Altick, é necessdrio distinguir entre a condigao de alfabetizado e a leitura habitual de livros. Nao se pode dizer, de modo algum, que todos os que domi- naram a palavra escrita, até os dias de hoje, se tenham tornado membros de uma comunidade de leitores de livros. Além do mais, aprender a ler é diferen- te de aprender pela leitura. A confianga no treinamento pelo aprendizado, na comunicagao oral e em artificios mneménicos especiais, havia caminhado junto com a conquista das letras na era dos escribas. Com o advento da impren- sa, contudo, a transmissao de informagées escritas tornou-se muito mais efi- ciente. Nao foi sé o artesao fora da universidade que se beneficiou com as novas oportunidades de ensinar a si préprio. De igual importdncia foi a oportunida- de, agora aberta a alunos brilhantes, de ultrapassar os limites alcangados por seus mestres. Alunos bem dotados nao precisavam mais sentar-se aos pés de um determinado professor a fim de aprender uma lingua ou especializacao ac démica. Ao contrario, eles passaram rapidamente a poder conquistar maes- tria por si préprios, mesmo tendo de obter certos livros sorrateiramente, as | escondidas de seus professores — como fez o jovem e futuro astrénomo Tycho Brahe. “Por que devem os velhos ter preferéncia sobre os jovens, agora que é posstvel a estes tiltimos, mediante estudo diligente, adquirir os mesmos conhecimentos?”, perguntava-se o autor de um livro de histéria do século XV. A medida que o aprendizado nos livros foi ganhando realce, diminufa a importincia dos processos mneménicos. Jé nao eram mais necessérias a rima ea cadéncia para se preservarem certas férmulas e receitas. Transformou- se a natureza da meméria coletiva. 50 2. DEFINIGAO DO SALTO INICIAL No romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, damos com um estudioso, mergulha- do em profunda meditagao, no seu gabinete -] 0 qual contempla fixamente o prime ro livro impresso que veio perturbar sua colegio de manuscritos. Entao [...] ele mira a imensa catedral, cuja silhueta se desenha sobre o céu estrelado [...] “Ceci tuera cela”, diz ele. O livro impresso destruird o edificio. A pardbola que Victor Hugo desenvolve, com- parando a construgao, repleta de imagens, com a chegada a sua biblioteca de um livro impresso, bem poderia aplicar-se ao efeito causado pela disseminagio da imprensa sobre 0s invisfveis templos da meméria do passado. O livro impresso tornaré desnecessérias essas imensas mem

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