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A METÁSTASE
O assassinato de Marielle Franco e o avanço das milícias no Rio
ALLAN DE ABREU
“Agora é Bolsonaro, porra”, disse o aspirante a deputado Rodrigo Amorim na campanha de 2018, segurando a placa com o nome de Marielle. Ao seu lado, o
futuro governador Wilson Witzel FOTO_REPRODUÇÃO
N
o primeiro semestre de 2001, o professor Marcelo Baumann
Burgos reuniu 22 alunos do curso de ciências sociais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro para um
estudo sociológico na favela Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade.
Pesou na escolha da comunidade, além de seu tamanho – 40 mil
habitantes na época e 80 mil hoje –, o fato de ser uma das poucas da
capital fluminense sem narcotraficantes. Isso facilitava o trabalho dos
pesquisadores e era motivo de elogios da parte de Burgos – o
professor chegou a definir Rio das Pedras como “um oásis em meio à
barbárie”.
V
era Araújo trabalha há trinta anos como jornalista e se
especializou na cobertura de temas relacionados à segurança
pública no Rio. Em março de 2005, numa reportagem que
publicou no jornal O Globo, mostrou que onze grupos de
paramilitares controlavam 42 favelas na capital, principalmente na
Zona Oeste. Pela primeira vez, o termo “milícia” foi utilizado para
identificar esses agrupamentos de policiais e ex-policiais. A escolha se
deu por um motivo prosaico, me disse a repórter: era uma palavra
curta, mais fácil de ser encaixada no título de uma reportagem de
jornal do que o termo “paramilitares”.
M
arielle Franco esteve com Marcelo Freixo na investigação
parlamentar contra os milicianos. Por nove anos, entre 2007 e
2016, a jovem negra criada no Complexo da Maré – um
conjunto de dezesseis favelas onde moram 130 mil pessoas, na Zona
Norte – foi assessora de Freixo. Ao mesmo tempo que cursava
ciências sociais na PUC-Rio, ela coordenava na Assembleia
Legislativa a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania,
presidida pelo deputado. Em 2016, Marielle decidiu concorrer pela
primeira vez a um cargo público. Candidatou-se a vereadora pelo
PSOL e obteve a quinta maior votação na cidade – 46 mil votos, a
maior parte deles oriundos da Zona Sul.
Seu mandato foi marcado pela defesa das mulheres, dos negros e das
minorias, e também por duras críticas à violência policial. “Mais um
homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM.
[…] Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”,
escreveu Marielle no Twitter em 13 de março do ano passado, a
respeito da morte de um rapaz na favela do Jacarezinho. Na noite do
dia seguinte, ela própria seria assassinada no Centro do Rio, aos 38
anos de idade.
O
relógio no painel do carro marcava 21h14. Fazia menos de dez
minutos que Marielle, a sua assessora, Fernanda Chaves, e o
motorista Anderson Gomes haviam deixado a Casa das Pretas,
na rua dos Inválidos, no Centro da cidade, depois do debate “Jovens
Negras Movendo as Estruturas”, organizado pelo PSOL. “Não sou
livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes
dela sejam diferentes das minhas”, disse Marielle no encontro,
citando a escritora norte-americana Audre Lorde – negra, feminista e
gay, como a vereadora. “Vamos que vamos, vamos juntas ocupar
tudo”, concluiu diante do público de pouco mais de vinte mulheres.
Foi aplaudida, abriu o sorriso grande que lhe era característico e
levantou-se, ajeitando a saia com estampas florais e a blusa azul-
marinho de alças finas. Na saída, uma amiga a convidou para ir a um
bar na Lapa. Marielle disse estar cansada e preferiu ir para casa, na
Tijuca. Habitualmente, ela embarcava ao lado do motorista, mas
naquele dia sentou-se atrás, ao lado da assessora, a bordo de um
Agile branco.
Nenhum dos três percebeu, mas, assim que o Agile deixou a rua dos
Inválidos, foi seguido por um Chevrolet Cobalt prata – o veículo com
placas clonadas estava no local desde as sete da noite, quando
Marielle chegou à Casa das Pretas para o debate. No banco traseiro
do Cobalt, um homem segurava uma submetralhadora alemã HK
MP5, calibre 9 milímetros, conhecida pela precisão de seus disparos.
N
o dia seguinte ao crime, 15 de março, o então ministro da
Segurança Pública, Raul Jungmann, e a procuradora-geral da
República, Raquel Dodge, desembarcaram no Rio. A dupla se
reuniu à tarde na Cidade da Polícia, no bairro do Jacaré, Zona Norte,
com Rivaldo Barbosa, o general do Exército Walter Souza Braga
Netto, na época interventor na segurança pública do estado, e o
procurador-geral de Justiça no Rio, José Eduardo Gussem. Na
reunião, Dodge anunciou que iria instaurar uma apuração preliminar
do caso no Ministério Público Federal (MPF). Embasaria assim um
possível pedido ao Superior Tribunal de Justiça para que a
investigação fosse feita pela Polícia Federal e pelo MPF, e não mais
pelas autoridades fluminenses. Uma emenda de 2004 à Constituição
Federal prevê a federalização na investigação de crimes quando há
“graves violações aos direitos humanos” e se constata a incapacidade
das forças de segurança estaduais para elucidar o delito. “Certamente
a participação da Polícia Federal é importante nesse episódio”, disse
Raquel Dodge em entrevista coletiva, após a reunião.
Naquele mesmo dia, ela nomeou cinco procuradores do MPF do Rio
para “acompanhar todos os atos referentes às investigações” das
mortes de Marielle e Anderson, com o objetivo de instruir o pedido
de federalização das investigações ao STJ. O grupo de procuradores,
entretanto, só teve tempo de solicitar à Polícia Civil informações sobre
a estrutura da Divisão de Homicídios do Rio. Em 21 de março, o
procurador-geral Gussem ingressou com um pedido no Conselho
Nacional do Ministério Público para que a apuração dos
procuradores federais fosse suspensa. “O Ministério Público do
Estado do Rio de Janeiro vê-se surpreendido por uma
incompreensível, desproporcional e prematura violência
institucional”, argumentou.
U
m mês após os assassinatos, o repórter Antônio Werneck
recebeu na redação do jornal O Globo o telefonema de uma
pessoa que disse haver um grande “furo” à espera dele na
Superintendência da Polícia Federal do Rio. Werneck – que trabalha
no jornal há 29 anos – especializouse, como Vera Araújo, em
investigações na área de segurança pública. Quando o jornalista
chegou à PF, encontrou três delegados federais: Hélio Khristian
Cunha de Almeida, conhecido como HK, Lorenzo Martins Pompílio
da Hora e Felício Laterça. HK não tem currículo que se possa
admirar: em 2002, quando trabalhava em Belém, capital do Pará, foi
denunciado pelo MPF por corrupção passiva ao aceitar passagem
aérea de um empresário investigado por corrupção pela própria PF.
Quatro anos depois, já no Rio, HK foi novamente denunciado à
Justiça por concussão (extorsão de dinheiro praticada por funcionário
público), ao supostamente forjar um inquérito por crime
previdenciário contra um empresário carioca e exigir dele 5 milhões
de reais para arquivar a investigação. O delegado foi absolvido em
primeira instância, os procuradores recorreram e o TRF da 2ª Região o
condenou a dois anos e meio de prisão por corrupção passiva. Como
o crime pelo qual foi condenado (corrupção) difere daquele pelo qual
fora denunciado pelos procuradores (concussão), HK conseguiu
anular a decisão. Ainda não há data para um novo julgamento – a
defesa do delegado garante que vai provar sua inocência.
M
enos de uma semana depois da publicação da reportagem de
Werneck com acusações do sargento Ferreira contra Siciliano e
Orlando de Curicica, o delegado Giniton Lages foi ouvir esse
último em Bangu 9. Curicica admitiu ter se encontrado com Siciliano
em um restaurante da Zona Oeste, mas disse que se limitou a
cumprimentar o vereador. Também negou ter participado das mortes
de Marielle. No dia seguinte, o advogado de Curicica convocou a
imprensa para apresentar uma carta escrita pelo cliente. No
documento, o miliciano identifica nominalmente o PM que o delatou
– até então, os jornais vinham omitindo a identidade dele – e o ataca.
“Não tenho qualquer envolvimento nesse crime bárbaro”, escreveu.
“O policial Rodrigo Ferreira não tem qualquer credibilidade, haja
vista o mesmo chefiar as milícias do Morro do Banco [em Itanhangá,
Zona Oeste] em conjunto com o tráfico de drogas da região.” A
notícia sobre a carta, divulgada inicialmente pelo jornal O Dia, teve
pouco destaque na edição impressa d’O Globo.
O
Escritório do Crime reapareceria na imprensa em 1º de
novembro, quando os jornalistas Vera Araújo e Chico Otávio
publicaram no site do jornal O Globo uma entrevista com
Orlando da Curicica feita por escrito. O carioca Otávio construiu sua
reputação com reportagens investigativas sobre políticos do Rio. Em
parceria com Araújo, o repórter havia mergulhado na cobertura do
caso Marielle – “sem dúvida o maior que já cobri nessa área”, ele me
disse.
O
Ministério Público Estadual do Rio passou por uma dança de
cadeiras importante no decorrer das investigações. Desde o
início, o caso Marielle esteve sob os cuidados de Homero das
Neves Freitas Filho, titular da 23ª Promotoria de Investigação Penal,
responsável por acompanhar os inquéritos da Delegacia de
Homicídios na capital. Em junho de 2018, em entrevista ao jornal O
Globo, o promotor esbanjava otimismo: “Dentro dos recursos
disponíveis, considero que os avanços na investigação são grandes,
com reais possibilidades de identificação e prisão dos executores e
mandantes.”