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A pesquisa em historia engloba profundidade de estudo, originalidade interpretativa e riqueza na argumentagao. Oensino da disciplina costuma se pautar por uma surpreendente distancia em relagdo aquela riqueza, assumindo, freqdentemente, forte teor oficialesco e tedioso. ‘Como superar essa situagao? E possivel aproximar pesquisa e ensino de historia, chegando a identificé-los? Para o ensino ser pesquisa basta que os professores assem o resto da vida atualizando-se ou, como sucata, sendo reciclados? Para a pesquisa ser ensino 6 suficiente um recettudrio psicopedagégico? sprright © by Marcos A. da Silva, 1995 ‘Nenfuma parte desta publcasae pole ser gravada, armazenada ean sistemas eletronicos, forocopiada, reprodizcla por meios mecinieos ou outros quisquer ‘sem autorizagio previa da etora Primcita edigao: 1995 1? reimpeessio: 2003 Courdenagao editorial ¢ de produgav: Célia Rogalsla Preparagae: Liege M. S. Marucci Revive: Hennque 8. Neves ¢ Izabel C. M. Rodrigues ‘Capa: Sonia Gutierrez Dados inuscnacionsis de Catalogagio na Puliatdo ICP) (mara Brass oo vo, SP Bea fone? Hants Ent 3. ene Penge Ta Traces pre eatloe Stara editora brasiliense s.a. Fue Alri, 22 Tetuapé - CEP 03310-010 -Sdo Paulo - SP Fone/Fax: (Oxxtt) 6198-1488 ‘email brasiienseactuol com br ‘Winweditoatrasiionse com br livraria brasiliense s.a. ua Emilia Marengo, 215 Tetuape — CEP 03336-000 ~ Sdo Paulo -SP FonafFax: (xx) 6875-0188 Este livro vai para professores que lutam por dignidade, historiadores que ensinam e aprendem c alunos que querem mais Nota do Autor: © presente texto retoma questies que esbocei ‘em curso de gradusgao ministrado na USP, curso de extensio desenvolvido na UnB, conferéncias aprescntadas na PUC/SP © na Unesp/Assis, seminério realizado no Cong ménio Histérico © Cidadania” e assessorias prestadas a profes- sores de hist6ria na CENP (SE/SP, 1986/1987) © na DOT (SMEISP, 1989/1992); agradego a Olga Brites (PUCISP) polas sugesties feitas. esso “Patri- Sumario Introdugao ~ O prazer da historia Potencialidades - O acesso ao prazer Lugares de historia Escola e produgio de saberes histéricos.. O imediato como referéncia permanente . Do puro passado ao puro presente?... Uma crise do sentido. Indo além da identificagao ..... ‘Toda hist6ria é imediaia, nenhuma historia € imediata . Patrimonios histricos soo Suportes como fazeres 2... A aparente unanimidade ..... Usos do requinte O patriménio dos carentes .... Para os patrimOnios serem de todos . Seducio & critica Historia escolar também é patriménio « Memoria ou experiéncias de saberes . Nada espontineo nem inercial Mais que matéria-prima lo MARCOS \. DASILNA, O oral e 0 audiovisual . Identidades simultineas Conclusdo —O direito & historia... Vocabulario critico ... Sugestoes de leinura.. B 16 79 Introdugdo O prazer da histéria O historiador Mare Bloch, de ascendéncia judaica, lecionava na Sorbonne, Paris, quando se iniciou a Segun- da Guerra Mundial, Apés a derrota francesa e o comego da Repiiblica de Vichy, transferiram-no para instituigdes menos prestigiadas — Clermont-Ferrand e Montpellier. Ele entrou na Resistencia antinazista no inicio de 1943. Foi preso, torturado morto em meados do ano seguinte. Nessa etapa final de vida, imediatamente antes de ade- 4 Resisténcia, Bloch escreveu Apologia da histéria ou oficio de historiador. Tal reflexao sobre um campo de sa ber (a hist6ria) e aqueles que o animam (os historiadores) se inicia com a pergunta de um jovem ao pai historiador: para que serve a historia? Bloch considera a pergunta pertinente porque permite discusses a respeito da legitimidade da historia. Dentre tan- tas consideragdes sobre experitncias entdo vividas (politi- caeuropéia entreguerras, vit6rias dos nazistas) e sobre o tra- balho intelectual para a adecuada produgao de saberes histéricos, evoca uma resposta, confessando ser ele mesmo prova de sua veracidade: a hist6ria serve para distrair e di- verti, seduz, “tem prazetes estéticos que Ihe sto préprios”. Cerca de 35 anos depois, © historiador Jean Ches- neaux, no livro Devemos fazer tébula-rasa do passado?, luz das experiéncias internacionais de 1968, polemi- 2 MARCOS A. DASILVA zando contra 4 histéria supostamente neutra, social e poli- ticamente, produzida em universidades € outras institui- Ses eruditas da época, usou aquele trecho de Bloch como exemplo de uma “falsa evidéncia” do referido esti Jo de fazer conhecimento hist6rico: 0 intelectualismo, Em contrapartida, Chesneaux defendeu a hist6ria como rela~ cdo ativa com o passado, atendendo a demandas de movi- mentos © grupos sociais dominados do presente, con- cluindo 0 volume com um capitulo intitulado “Qual histéria para a Revolugao’ Potencialidades Seria injusto para com esses dois autores reduzir scu pensamento a dicotomia prazer/luta. Tanto Bloch reflete incentivado por dolorosos conflitos de seu momento, ne- les interferindo, como Chesneaux constréi seus argumen- tos tendo em vista o acesso de mais e mais pessoas & pro- dugao de saber hist6rico, incluindo-o em suas vivéncias como elemento de primeira necessidade. ‘Mais que opor um ao outro, suas diferengas sugerem possibilidades de serem abordadas conjuntamente para se aleangarem outras respostas aos problemas que os mo- tivaram e aos que, sob outros aspectos, continuam a atin- git todos aqueles que escolheram a histéria como espago de trabalho e de reflexao. Quando se fala em hist6ria como distracio, diversio, sedugio € prazer, no se esta, necessariamente, renun- ciando a sua carga critica, A capacidade que possui de aprofundar a (auto)compreensao dos homens: diferentes artes também produzem aquelas experiéncias (pintura, poesia, cinema, teatro etc.) e, simultaneamente, partici- INTRODUCAO—O PRAZER DA HISTORIA pam, quando o querem, de radicais desmontagens de po- deres— governos, valores, grupo: Associar a histéria a diversas lutas ¢ identidades so- ciais, por sua vez, nao elimina doses de sensibilidade em relagdo ao mundo, inclusive no que diz. respeito a torné- Jo mais belo e produtor de felicidades. Dois encontros possiveis entre aqueles focos sao: 1) vivenciar as Iutas beneficiadas pelo conhecimento hist6- rico de forma desmilitarizada e como satisfagao para aque- las pessoas que as realizam; 2) redefinir o prazer destru- tado a partir dos saberes de natureza historia como suficientemente bom para ser usufrufdo por todos. Uma dimensao cabivel da critica feita por Chesneaux a Bloch reside no carter autocentrado, em termos pes- soais ¢ corporativos, do prazer da histéria evocado pelo tiltimo. Bloch salienta ter experimentado aquelas sensa- gGes que a hist6ria suscita e censidera essa pritica comum a outros historiadores, quer na escolha de sua profissao, quer na continuidade de seus afazeres dedicados aquele oficio, tema retomado por Duby em “O prazer do historia- dor”. O prazer aparece, portanto, como face do convivio com o fazer do historiador. Evidentemente, a resposta & questo sobre a serventia da hist6ria passa pela identifica- do daqueles sentimentos e por sua exposigao ao piiblico dos ndo-profissionais. Sobre este dltimo aspecto, entretan- to, Bloch silencia. Para superar aquela suposta oposicdo prazer/luta, um passo importante consiste em evitar a transformagao do prazer da hist6ria em novo néctar de poucos deuses. Nou- tras palavras, se 0 conhecimento hist6rico efetivamente se- duz e diverte oy pesquisadores da dea, se 0 contato com livros especializados e diferentes fontes histGricas (docu- mentos governamentais, objetcs do cotidiano, obras de arte, “4 MARCOS. Da. depoimentos escritos ou orais, fotografias, caricaturas etc.) €tdo bom para os que estudam histéria em profundidade por Lhes permitir dialogar com experiéncias humanas ¢ in- Lerpretar seus trajetos, por que no expandir efetivamente 0 universo das pessoas que desfrutam dessas alegrias? O acesso ao prazer Estando accito que conhecer hist6ria ja suscita prazer em seus produtores habituais (historiadores), sentimento integrante de direitos pelos quais muitos lutam, cabe pen- sar sobre formas de garantir uma relago de tal natureza para mais pessoas que entrarem em contato com saberes histéricos, preservando 0 rigor destes. Uma primeira resposta para a busca de relagdes prazerosas com a hist6ria para pdblicos ampliados pode ser encontrada em géneros artisticos associados a alguns de seus aspectos. Desde o século XIX, por exemplo, romance hist6rico (Walter Scott, Alexandre Dumas, Ale- xandre Herculano, José de Alencar) cativou geragoes, apresentando dngulos das experiéncias sociais — subjeti- vidade, cotidiano, tensdes, o homem comum — que a pro- pria pesquisa erudita na area demorou a assumir plena- mente. Num sentido paralelo, a pintura hist6rica (Goya, Delacroix, Meirelles) tomnou palpaveis ambientes, vesti- mentas, tipos fisicos ¢ outros aspectos da vida social. Tais géneros artisticos foram desdobrados, para geragies mais Tecentes, em narrativas ¢ visdes similares de cinema, quadrinhos e televisio, alargando ainda mais 0 aleance dessas formas de historia. E claro que tais obras garantem certo prazer da hist6- ria como efeito derivado do prazer de textos ¢ imagens, INTRODUGAO—OPRAZER DA HISTORIA Is que © aparato técnico e 0 capital investido, préprios & indkistria cultural, sofisticam crescentemente. Isto significa que o conhecimento histérico deva ser uma arte para seduzir? Colocando a pergunta de outra forma: o prazer € efeito das artes e a hist6ria, para garan- ti-lo, deve abrigar-se nesse campo, renunciando a qual- quer dimensao de ciéncia? A oposiciio prazer/luta, portanto, se desloca para a di ferenga arte/ciéncia. Mais uma vez, pensar nesses pélos como antagénicos resulta em esvaziar tantas de suas pos sibilidades: é to dificil isola: essas dreas de criagio hu- ‘mana entre si quanto ignorar seus lagos com tantas outras experiéncias das sociedades. Defender hoje que histria é tanto mais segura quan- to mais cientifica se configursr conduz a entender ciénei de forma idealizada e autoritéria, como modelo indiscuti vel de tudo, ponto de chegada para qualquer fazer e prova de maior densidade eritica em relagao ao que nao se reduz seus termos Ao mesmo tempo, o desdém para com o artistico per- de de vista suas sutilezas e virtualidades. De nada adianta- ri apenas inverter essa desvalorizagao, afirmando que “ciéncia é poder” e “arte é libertaco”: incorre-se em nova idealizagao autoritéria, atribuindo lugares fixos para pos- sibilidades das préticas humanas Abandonada essa oposica0, resta um novo problema: a historia agrega elementos de arte e cigncia na medida em que compartilha experiéncias do belo e busca de ex- plicagdes, como se observat no livro O estilo da historia de Peter Gay. Identificar o prazer em obras artisticas nao destréi sua presenga noutros trabalhos com pretensdes diversas —com certeza, a maior parte do campo de saber sobre 0 qual falava Bloch, 16 MARCOSA DASIVA, Lugares de historia Fora desses espagos (0 universo da pesquisa, restrito a Poucos, c os produtos artisticos), a experiencia do prazer em historia parece reduzida a raras nesgas: uma aula na Vida, determinada exposicdo de objetos pertencentes a di- ferentes épocas, eventuais documentiirios, evacagdes oca- sionais em conversas ou peri6dicos. Essa escassez de oportunidades indica lugares onde saberes histricos circulam, com freqiientes cargas de desprazer para a maioria dos que no sio especialistas da dea: escolas, museus, arquivos, bibliotecas, monumentos Publicos. Cada um desses mundos abriga, com frequéncia, pro- fissionais dedicados e competentes, esforgando-se para garantir que crianeas. jovens ¢ adultos respeitem os co- nhecimentos histéricos, desejem seus resultados ¢ expan- dam o entendimento da histéria ao longo de suas vidas, Aquelas raras nesgas, com certeza, sdo possibilitadas por essas iniciativas, associadas a demandas dos referidos Piiblicos Denunciar ¢ rejeitar tais espagos so safdas ficeis e inoperantes: € possivel que, sem eles, o quadro da hist6- ria transforme-se cm infinita treva, Cabe pensar sobre os empecilhos ali existentes para que sua remogdo permita, através do prazer da histGria (e de outros saberes, certa mente), uma plenitude ainda instigada pela maioria das pessoas, que poderd fazer parte de seus direitos, Os profissionais de histéria que atuam nesses mun- dos cnfientam graves barreiras no desenvolvimento de atividades. A mais clara de todas é a salarial, que, ao Jongo de décadas, no Brasil, tem produzido visiveis rela- es de subemprego também nas areas de ensino e pes- INTRODUGAO—0 PRAZER HISTORIA 7 quisa — insuficiéneia de remuneragdo para garantir um minimo de sobrevivéncia, inevitivel acimulo de multi- plas ocupagoes, freqiiente autodepreciagio intelectual Outro problema importante, associado ao anterior, é o da escassad autonomia no trabalho, como se verifica em le gislagdes repressivas, desdodradas em regras ¢ praticas gerenciais do mesmo teor, grande peso para a burocracia, cargas horcirias que esgotam o tempo para leituras e refle- XGes permanentes, inexisténcia ou obsolescéncia de ma- leriais especificos a area de conhecimento, massificagio de atividades e instruments, forte defasagem entre dese- jos enecessidades de professores ¢ alunos, por um lado, € contetidos habitualmente explorados no cotidiano das instituigdes de ensino e pesquisa, por outro, Diante de tantas dificuldades, as mesmas raras nesgas se tornam ricos incentivos a discussdo sobre bons conta- tos com a hist6ria. Elas comprovam que ha muita c vidade entre os profissionais de histéria, complementada Por outro tanto de combatividade e desejo de percorrer ¢ produzir saberes junto com scus paiblicos, tocando com estes possibilidades de entender mais e mais o mundo e suas temporalidades. Escola e producdo de saberes historicos Falar sobre outros convivios com a historia, aqueles que incorporam as lutas pelo avesso ao prazer da historia € o situam no conjunto das experiéncias sociais vividas ¢ estudadas nao se reduz.a simples utopia irrealizavel, em- bora eshoce tracos de lugares e experiéneias de conheci- mento ainda parcialmente inexistentes. Discuti-los parte das tantas priticas que a aprendizagem de histéria, em 18 MARCOS DASILNA, escolas e fora delas, jd elaborou e continua a realizar, evi- denciando a profundidade desse campo de conhecimento também sob a Gtica de contatos de muitos com o fazer sa- beres histéricos, socializando seu prazer. Isto significa que refletir a respeito do ensino de histéria, visando a sua pratica como boa experiéneia para todos, ultrapassa o isolacionismo da historiografia sem olhos para tantos de seus circuitos de produgao & circulacdo e de pedagogias descuidadas em relagio aos contetidos que se estudam nessa especifica drea de in- vestigagao. Para atingir tais resultados, é fundamental entender ensino e pesquisa de hist6ria como faces de uma mesma atividade. Até etimologicamente, evocando considera gGes de Le Goff no texto Documento/monumento (do livto Membria/histéria), aquela identidade se manifest © documento (decumentum), que 0 historiador tanto preza, esti indissociavelmente ligado & condigao do eru- dito (doctum) e também & capacidade de ensinar (do- cere). Apenas a ligeireza intelectual das categorias pré- prias a setores do mercado de trabalho consegue alimentar a alegada dissociacao entre pesquisa e ensino, facilitando o funcionamento de cursos universitarios que formam insuficientemente os profissionais e de po- liticas de emprego que contratam tais trabalhadores a partir de sua desqualificacao prévia — “indo sabem pes: quisar, s6 ensinam” ou “pesquisa rende pouco porque tem puiblico restrito” E evidente que defender a identidade entre ensino e pesquisa ndo se confunde com usos vulgarizadores des- ses termos praticados em algumas escolas de 1°, 2° ¢ 3° graus (as vezes, entende-se pesquisar como transcrever informagdes contidas em bibliografia de referenciagao — INTRODUGAO-0 PRAZER DA HISTORIA 0 enciclopédias ou diciondrics — e ensinar como enun- ciagao de contetidos a partir de certas regras psicope- dagégicas separadas do campo de saber estudado) e até em centros de pés-graduacio (oferecimento de cursos isolados entre si, sem qualquer projeto conjunto, e disser- tages de mestrado ou teses Ge doutoramento que se con- tentam com uma ampliagao dos procedimentos escritos para 1°, 2% 3° graus, transcrevendo mais fontes) Identificar pesquisa ¢ ensino significa preservar o ri- gor da producao de saber, préprio a primeira, e 0 com- promisso de sua presenga nacena social ampliada e sob controle de seus agentes, inerente ao segundo, pensando numa sintese desses atributos. Nesse sentido, ha recipro- cidade na alianga (ensino e pesquisa se iluminam, am- pliam c superam simultaneamente) e garantia de que os atos de pesquisar e ensinar continuam a se questionar permanentemente em busca de novos horizontes na pro- dugio de saberes Isto pode parecer apenas tedrico-formal ou, pior ain- da, ut6pico, ingénuo e irrealizavel. Afinal, a formacao dos profissionais de hist6ria no Brasil continua frégil (a maioria deles nao ousa se identificar como historiador quando indica a profissao) e intimeras escolas, privadas ou ptiblicas, ainda se mantém no reino de caréncia (fal- tam livros, instrumentos para reprodugaio de textos, ima- gens e sons, tempo para reflexdo, preparo de atividades e corregiio de trabalhos), pressdes de mereado (programas de vestibulares, livros didaticos, ofertas de treinamentos) € burocracia, A leitura de reflexdes e relatos de experiéncias so- bre o ensino de hist6ria divulgados em revistas especia- lizadas (Cadernos de historia, da Universidade Federal de Uberlandia; Historia & ensino, da Universidade Es- 20 MARCOS. DASILVA tadual de Londrina; Revista brasileira de historia, da ANPUH: Histéria: questoes e debates, da APAH) € co- Ietaneas (Repensando a historia, de 1984: A pratica do ensino de historia, do mesmo ano; O ensino de histé- ria: reviso urgente, de 1986, Historia em quadro-ne- gro, de 1990) brasileiras e 0 contato direto com tantos professores desmentem a mencionada aparéncia, tor- nando mais concretas as nesgas do prazer da historia antes referidas. Hé, com certeza, tentativas ¢ resultados de grande ri- queza que profissionais de histéria desenvolveram, en- frentando intimeras adversidades, ampliando horizontes no entendimento de experiéncias sociais de diferentes épocas. Elas incluem o trabalho com campos temiticos do saber historico, diversos documentos dos periodos e tudados ou recursos de acesso ao seu entendimento, ins- trumentos teGricos e articulagdes com outras dreas do co- nhecimento. Através desses percursos, observa-se a realizagiio de importantes reflexdes originais sobre a historia, no calor das aulas, por professores e alunos que, em tantas oca- sides, permanecem no anonimato de seu cotidiano sem perderem a capacidade de um pensamento auténomo e ctiativo, preservando um didilogo ativo com as tradigées historiograficas classicas, sem uma relagao de mera sub- Jo a elas. A reflexdo sobre o prazer da histéria como direito geral de historiadores/professores/alunos produz efei- tos que ultrapassam a exclusividade do ensino de his- tGria. Ela questiona e redimensiona os estilos consa- grados de pesquisa hist6rica e a difusio de scus resultados, cujo circuito raramente vai além de um cor po de leitores mintisculo: autores de teses, suas ban: mis INTRODUGAO - 0 PRAZER DA HISTORIA \doras ou, no maximo, o universo habitual de uma edigdo em livro ou petiddico especializado —cer- ca de trés mil exemplares. Coloca também sobre ou- tras bases a propria escola e a aprendizagem ali pro- duzida, tornando patente 4 necessidade de inventar priticas e condigdes adequadas a sua transformagiio em espago € atividade criativos, que potencializem in iativas ja existentes. Este livro discute problemas de conhecimento hist6- rico que participam daquele trabalho com pesquisa e en- sino de histéria atentos ao prazer que provocam es suas significagdes sociais como auto-reflexao. Nao pensa so- bre hist6ria a partir de algum lugar “fora” dela. Investig’- la é descobrir-se. De imediato, memoria ¢ patrim@nio, tratados neste volume, sio problemas de conhecimento hist6rico a par- tir dos quais se pensardo possibilidades de elaboraco e apreensao de saber. Trata-se 0 leitor como interlocutor ativo, em didlogo com as questdes aqui presentes, participante da busca por outras palavras que nasgam de situagdes especificas nas relagdes com 0 conhecimenta hist6rico. O imediato como referéncia permanente Agorafobia — medo dos espagos abertos. Agora parece com agora. O medo dos espa- {gos abertos parece com 0 medo do presente. (Marina Lime Antonio Cicero, encane do dio Fug) A expressiio “historia imediata” pode causar certo mal-estar, Ela parece reunir palavras que nao conseguem caminhar juntas sem entrar em conflito. E dificil admitir seu convivio e, pior ainda, sua cooperagao num campo de pensamento estudos que atinja o ensino bisico. ‘Com efeito, falar em histéria é evocar intimeras atitu- des que parecem afastar-se da imediate7. E lembrar, por exemplo, do ato de lembrar, transcen- dendo o imediato, associanco priticas humanas e tam- bém dimensdes da natureza— como sugere, dentre ou- tros, Emmanuel Le Roy Ladurie, no texto “O clima: a hist6ria da chuvae do bom tempo”, pensando sobre 0 es- paco de geleiras, montanhas, florestas ¢ climas ~, ¢ am- pliando 0 campo dos debates sobre aquelas questées a0 investigar suas temporalidade E passear imaginariamente através de diferentes épo- cas, com a pretensdo ou o dom de dialogar com elas, con- forme expressou Jules Michelet em 1869, no texto “O he- m4 MARCOS A. DASILVA roismo do espirito”, homenageando-as como um outro fantasmagérico (tal qual o povo) da historiografia, segun- do a interpretagao de Michel de Certeau sobre esse escrito de Michelet desenvolvida no livro A escrita da historia. E procurar profundas raizes ou tenras ¢ novas folhas daquilo que os seres humanos andaram (e continuam) fa- zendo. E interpretar pacientemente o social, atento a sua es- pessura temporal. Eo imediato? Eis um enjeitado filho da experiéncia! E mais facil di- zer-se 0 que nao é, to medonha se supée, habitualmente, sua face. Trata-se daquilo que, literalmente, no passou ainda por mediagdes. Daf, sugerir isolamento, desarticulagao, superficialidades e incapacidade pensante: nao diz nosso racionalismo que © acesso ao real passa pelo desvela- mento de suas miltiplas determinagoes? Assumir o imediato seria, entio, rogar no universo da hiperempiria, das coisas brutas que nao foram objeto de rellexdo, misturando sensagdes soltas a opinides suspei tas que, desde nossos ancestrais gregos, parecem desqua- lificadas no universo do saber. Aplicado & historia, malgrado toda a repulsa prelimi- har que esse gesto possa provocar em muitos, o imediato se arrisca a aparecer como reino da impaciéncia. Este li- mita a temporalidade experimentada pelos homens as so- lugGes interpretativas faiceis, tendo em vista a perda do espago reservado & cautelosa reflexdo, substituido pela imerséo num vivido bem préximo. Esses temas so, contudo, efetivamente definitivos, claros e assimilados por todos de uma s6 forma? A hist6: ria, como campo de conhecimento, tem configurado (0 IMEDIATO COMO REFERENCTA PERMANENTE 25 sempre esse mundo da complexidade a toda prova, da ampliagdo do pensar sem fronteiras? Quanto ao imedia- to: pode ser tio facilmente descartado ou significa um incontrolavel horizonte de qualquer pritica social, cuja perda tem garantido prodagGes de saberes que ainda nao ousam encarar alguns de seus dngulos? Intimeros profissionais de hist6ria c de outras esferas de conhecimento proximas (jornalistas, sociélogos, fil6 sofos ete.) tém falado numa aist6ria imediata como cam- po legitimo de debate e de reflexao. Ha editoras que pu- blicaram textos sob essa rubsica— no Brasil, isto foi feito pela Alfa-Omega. Analistas e militantes de diferentes movimentos so- ciais ¢ politicos também tém usado a expresso sem maio- res dramas de consciéneia. Pelo contririo, até cobrando dos profissionais de histéria algumas palavras sobre a questio. ensino de historia para diferentes graus participa ativamente dessas discussdes, englobando o vivido por professores e alunos entre stas referencias. Ao invés de apenas rejeitar ou adotar a problematic: da hist6ria imediata no ensino, sem mais, é melhor acom- panhar alguns de seus argumentos e também objecdes contra ela levantadas. Se nao for por outro motivo, esse procedimento, a0 menos, nos absolverd de um possivel grave pecado tedrico: o imediatismo. Do puro passado ao puro presente? Era uma vez o puro pasado. Ele agrupava acontecimentos, pessoas € coisas que nao mais existiam. Sua importancia para quem 0 invoca 26 MARCOSA DASILNA, va, entretanto, exigia que se provasse, com o miximo zelo, estatuto real daquela existéncia pretérita. Muitas vezes, 0 puro passado era entendido ¢ instituido na con- dicdo de origem, lugar de nascimento, inicio de praticas humanas. Daf a necessidade de profissionais ou instituigdes que dedicassem suas vidas 4 recuperagiio, comprovacio e preservagaio de tudo 0 que tinha sido, Costumavam-se es- tabelecer cuidadosos corddes sanitarios entre 0 tempo so- bre o qual se falava (0 puro passado) e o tempo a partir do qual se falava (um ralo e menos importante presente), alegando-se que qualquer mistura entre ambos poderia ser fatal para o adequado conhecimento do primeito. ‘Tomadas essas precaucdes, afirmava-se que o saber resultante daquelas operacdes constituia um patriménio de interesse geral, acumulado ciosamente pelas geragdes, «ser preservado e transmitido em sua pureza. Restava a renga de que, no final do processo, todos seriam felizes para sempre. Nem todo pensamento sobre historia, evidentemente, pretendeu confundir-se com o puro passado. Boa parte dele preocupou-se com os limites impostos por essa identificagao ou até mesmo a rejeitou. Karl Marx, na obra O 18 brumdrio de Luts Bonapar- te, de 1852. afirmou que “a tradigao de todas as geragdes ‘mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” € indicou para a revolugao social a necessidade de “se des pojar de toda veneracZo supersticiosa do passado” Friedrich Nietzsche, identificando a grandeza passada como indicio de possibilidades para outras grandezas. es- tilhagou um procedimento de mera identificagdo passiva entre diferencas, como se observa em seu texto “Da til dade e desvantagem da hist6ria para a vida”, de 1874. (OIMEDIATO COMO REFERENCIA PERMANENTE n Walter Benjamin, no ensaio “Sobre o conceito de his- Loria”, de fins dos anos 30, caracterizou o passaclo como espago de potencialidades fundamentais que s6 podem ser apreendidas pelos projetos alternativos do presente, ¢ também como apavorante monte de rufnas e mortos (os derrotados ¢ esquecidos), cuja visio ¢ impedida pela me- méria dominante e um seu poderoso instrumento — 0 ar- gumento do progresso. Mare Bloch, no livro an‘es indicado, sublinhow a in- consisténcia de um campo de saber supor dedicar-se a “todo o passado”, realeando os limites dessa pretenstio através de uma hipotética drea de conhecimento voltada a“todo 0 presente” Também criticam essa confusdo as correntes histo- riogrificas que, implicita ov explicitamente, esto asso- ciadas a perspectivas politicas (nogdes de revolucao, di- reito ou poder), estéticas (pritica de um estilo, aten¢ao para uma proposta de belo), teGricas (corpos conceituais, modelos explicativos) ou institucionais (projetos de financiamento, suporte material de bibliotecas, aparelha- gens e pessoal) do tempo a partir do qual falam. Cabe re- fletir sobre a possibilidade de alguma pesquisa hist6rica existir alheia a qualquer dessas perspectivas. Contra o puro passado, © que apresentar? Eis a resposta que, ais veres, foi confundida com his- t6ria imediata: o puro presente, Ele agruparia aconteci- mentos, coisas e pessoas contemporaneos de quem fala e ouve (historiadores, alunos etc.), cuja existéncia e impor- laneia sio mais que palpiveis no nivel da prépria vivéncia, requerendo saberes mais aprofundados sobre sua identidade. Nele imerso, experimenta-se dupla sensagao: a facili- dade de acesso a seus elementos — pessoas para exporem 28 MARCOS. DASILVA © que pensam, documentos os mais variados sendo pro- duzidos e circulando, movimentos sociais sendo feitos — © a dificuldade para dar conta de realidades to vastas, com personagens e fontes fugidias (malgrado abundan- tes) e capazes de sugerir falsas evidéncias aos agentes que nelas figuram, Ao mesmo tempo, refletir sobre o puro presente tam- bém é enfrentar as tensOes entre o que se pode mais facil- ‘mente conhecer (universo de experiéneias “acumuladas”, “encerradas” c, portanto, sistematizdveis) eo que é mais dificil saber, porque “em andamento” ou “menos nitido” em seus miiltiplos contornos. Um problema se mantém: vale a pena pensar numa historia imediata que reponha tio fielmente, com peque- nos itens trocados, a configuragao conceitual do puro passado? Afinal, mudados tempos de verbos e duas ou trés palavras, o puro presente carrega muitas das preten- ses de seu pretérito correspondente — factualidade, exterioridade entre periodos, timidez teérica, expectativa objetivista. Ao mesmo tempo, ele alimenta o mito de pas- sado € presente como realidades auto-suticientes, isola- das, evitando questionar 0 estatuto desses termos no campo de experiéncias sociais, Que significa falar em “presente”? Sua contempora- neidade radical aparente evapora-se no prprio momento em que se faz.a pergunta, sobrando como horizonte para resposta & temporalidade: quando qualquer um rebate a guma indagagao, ela ja se tomou pasado, Ocorrendo essa temporalidade, por sua vez, cla nao é espago vazio ou homogénco, que se observa de fora. Ela €constituida por seres humanos, em suas complexas dife- rtengas ¢ relagdes, diante das muiltiplas possibilidades que seus fazeres procuram tomar palpaveis a cada momento. OIMEDIATOCOMO REFFRENCI PERMANENTE 29 Nesses termos, falar em presente é enfrentar projetos diferenciados ¢ alternativos na sociedade, em disputa, configurando simultaneamente miltiplas identidades — classes sociais, géneros, grupos de idade. etnias, corren- tes partidarias ete. Também é preciso pensar sobre 0 “passado”, do qual se fala to desembaragadamente como sindnimo de qual- quer hist6ria. Sua exclusiva anterioridade em relagao a um hoje engloba riscos semelhantes aqueles apontados sobre o presente: perde-se exatamente seu carter plural, sua dimensdo de fazer, as tensas continuidades e rupturas que ele langa, a partir de miikiplos pontos de sua existén- cia, em diregao ao antes e ao depo Uma crise do sentido Associar a historia imediata a um referencial de tem- po—o vivido e testemunhado por seu historiador — é ati- tude jd presente em George W. Hegel. No livro Ligdes sobre a filosofia da historia, redigido em 1830 a partir de cursos que ministrou antes, esse autor vinculou a stéria imediata a nomes prestigiosos (Herédoto, Tuci- dides, Xenofonte, Guicciardini etc.) situando-a, todavia, na escala mais baixa de uma hierarquia entre “diferentes maneiras de considerar a historia”. O prosseguimento ascendente dessa seqiiéncia englobou os varios géneros da historia reflexiva (hist6ria geral, hist6ria pragmtica, histéria critica especial), culminando com a histéria uni- versal filosofica. Uma tradugao involuntdria dessa postura hegeliana dé-se no ensino de histéria quando se admite —e até esti- mula —a histéria imediata como modalidade propedéuti- 30 MARCOS A. DASILVA a, idemtificada ao tempo e ao espago mais préximos do aluno, ¢ apresentada na condigao de motivador ponto de Partida para atividades de estudos hist6ricos, em especial nas primeiras séries da escola elementar. Evidentemente, essa posigao pouco possui em co- mum com a histéria como razao e explicitagao do espiti- to, sempre presente, no sentido hegeliano. Ela preserva, todavia, aquela ambigua atitude em face do imediato — legitimar para melhor reduzir ao menos importante —, mesclando-a a mecanicismos: falar sobre o “mais distan- te” (em tempo e espago) significaria, automaticamente, ampliagao do pensamento; o imediato seria ponto de tida para a recuperagdo de um passado que se descor- tinaria lenta e gradualmente e descmbocaria num presen- te enriquecido pela exposigao de seu trajeto originério; a hist6ria possuiria um sentido ~ 0 da acumulagao linear Igica — que 0 apelo ao imediato apenas tornaria mais acessivel Trata-se de atitude que identifica o referencial de tem- Po, antes aludido, a um elenco de temas descartaveis por- que pouco profundos, quando muito reciclaveis, para se chegar & fonte do suposto sentido da historia. Ao mesmo tempo, o universo dos alunos (que, sob outros dngulos, é também o dos professores) figuraria na cena sob o signo da desimportincia: seria evocado a fim de melhor de- ‘monstrar sua pequenez, que os panoramas informativos de maior duracao, abrangendo milénios, séculos ou déca- das, cuidariam de situar mais claramente A historia imediata, todavia, pode ser marcada nao apenas pela identidade entre tempo dla escrita e tempo da vivéncia. Ela evidencia um papel ativo por parte de quem a experimenta e pensa, construindo historicidade como saber e pritica. Dai caracterizar-se como histéria em pro- (OIMEDIATO COMO REFERENCIA PERMANENTE. 31 dugio © possibilitar estendes para qualquer tipo de co- nhecimento histérico ~ malgrado muiltiplas diferencas leGricas e téc1 esse trago. Que significa falar nesse histéria em produgio, en- globando vivéncia e reflexao? E literal alerta para a di- mensio do social como fazer de diferentes grupos hu- manos, cuja incompletude é menos contingéneia de um género de hist6ria que possibilidade para um estilo de pensar: 0 que aparece come “sentido da hist6ria” cor- responde a solugao dada a disputas entre diferentes gru- pos humanos, configurando-se como meméria e histo- riografia. Tal incompletude e sua correspondente teia de proje- tos em disputa é mais visivel quando se aborda o imedi to. Isto ndo significa que apenas af ela possa se manifes- tar. Compreender essa pluralidade no fazer do presente pode ser instrumento para pens ar sobre outras diversida- des na claboragao do passada, que, por sua vez, existiu como presente de virtualidades. Como 0 imediato de alunos e professores continua a elaborar-se ao longo de sua aprendizagem (e de suas vidas), dedicar-Ihe atengao apenas no inicio de um curso ou série escolar € perder a oportunidade de entender his- toricidades produzindo-se, tanto naquele presente como em miiltiplos passados. Em contrapartida, entendé-lo enquanto referéncia permanente abre perspectivas para uma atitude inda; tiva diante de tantas experiéncias historieas, demonstran- do que 0 “tempo do agora”, referido por Benjamin no texto antes citado, é o da elaboragiio das rel homens, das tentativas e dos projetos que se tentam im- plantar no mundo, das relagdes de poder encenando suas mailtiplas possibilidades 2 MARCOS A. DASILNA, Indo além da identificagdo Isso se opde a uma imagem do imediato como espago de indiferenciagao ¢ superficialidade. O que se obser em sua discussao € a presenga de vozes e propostas que Procuram instituir certa memria das experiéncias so- ciais. Deixar de refletir sobre ele pode ser uma via segura para garantir uma daquelas vozes como tinica represen- tante dos intimeros fazeres historicos, Dessa forma, as relagdes entre passado ¢ presente so muito mais que 0 confronto ou a integragao entre dois blocos homogéneos ¢ bem diferentes da simples continuidade ou relagdo especular. O que se observa é a extrema complexidade das identidades sociais fazendo- se em diferentes momentos, através das mais diversas experiéneias, precisando invocar ¢ inventar tradigdes, como foi sublinhado a partir de diferentes angulos por Chesneaux, no artigo “A reanimagao do passado tradi- cional nas jovens nagdes da Asia e da Africa”, e por Eric Hobsbawm ¢ outros, na coletanea A inveneao das tradigoes. O imediato consegue revelar, entdo, outras faces do tempo de quem fala — professor, aluno etc. -, em didlogo com 0s agentes sociais de diferentes tempos sociais sobre © quais se fala, Enfrentando-se seu suposto cariter de aparéncia ¢ superficialidade, evidenciando, certamente, algumas de suas mediagdes, ele se demonstra universo dotado de virtualidades, expondo dimensoes da historia como produgao de significados pelos grupos sociais nela existentes A reflexiio sobre 0 imediato ajuda a criticar imagens estabilizadas de diferentes temporalidades. Sublinha, in- clusive, que algumas delas nao concebiam o tempo atra- (0 INEDIATO COMO REFERENCTA PERMANENTE 3 vés da pura fragmentagao passado/presente/futuro, antes © entendendo como porta aberta para se realizar a pleni- tude da salvagdio— tema do messianismo judaico, con- forme Benjamin ~ ou ciclo que permite recomegos inte- grais, distintos da acumulagiio sucessiva de experiéncias, de acordo com as indicagées de Mircea Eliade no livro O mito do eterno retorno. Em Benjamin, 0 apelo a teologia judaica serviu para combater a ideologia do progresso ( tempo como acti mulo de conquistas seguras e cada vez melhores) e real- car a profunda importdncia do agora, instante nico para sintonizar os apelos que experiéncias dos derrotados do passado fazem aos dominados ¢ lutadores do presente. Ja Eliade discute a especificidade das concepgdes de tempo de acordo com os fazeres culturais, salientando a profun- da significagdo do sagrado naquelas claboragdes. Benjamin e Eliade contribuem para explicitar que o imediato € concepeao prépriaaos seres humanos que vi- venciaram determinadas historicidades marcadas, princ palmente, pela laicizacdo e pe'o célculo utilitario do tem- po. Um indice disso pode ser a paisagem coalhada de rel6gios digitais nos espagos puiblicos das grandes metré- poles no fim do século XX, antecedidos pelos marcadores de relégios em igrejas, estagdes ferrovidrias e mercados, O imediato, assim, aproxima-se da nogao de cotidia- no como universo do vivido, previsivel ¢ objeto de certo planejamento, préprio ao crescimento do valor de troca ho conjunto das atividades humana Tal aproximagao pode conduzir a pura e simples coin- cidéncia entre imediato c ideologia como mundos de re- produgio, aparéncia e falsa identidade. E também possivel ver no imediato espagos de ten- so, inesperados e potencialidades. Daf, falar sobre ele M MARCOS. DASILVA implica necessariamente escolher questdes, explicar seus significados, definir suas articulagdes com outros tantos problemas. A interpretagao hegeliana da histéria imediata como aquela que jamais reflete perde de vista esses tragos. Quando se recorda que o mesmo Hegel indica, numa ou- tra maneira de considerar a hist6ria — a reflexiva—, um género que merece sua especial rejei¢o, a historia prag- miitica (aquela que Salienta a utilidade moral da historia como repertério de ensinamentos), € possivel concluir que tal autor diminui especialmente a importancia das re- feréncias do presente do historiador que nao passam pelo trajeto do espirito, explicitando-se como razaio quer no nivel do tema (hist6ria imediata), quer na dimensio do uso (historia pragmatica). Sua contrapartida afirmativa reside na hist6ria que transcende fungdes e vivencias. Herdciros mais ou menos infigis de Hegel, os his- toriadores presentistas, como o estadunidense Charles Beard, supdem superar a histéria factual e documenta- lista, de pretensdes objetivistas, apelando para valores do presente como guias para todo conhecimento hist6rico. A critica de Adam Schatf a esses presentistas, no livro His- toria e verdade, € correta no que diz respeito a identifica do destes com a ideologia dominante. Schaff repete, sem © registrar, o argumento de Benjamin contra histo- riadores cientificistas com pretensdes objetivistas, cuja suposta neutralidade foi identificada pelo ultimo autor como efetiva promiscuidade com os horizontes ideolégi- cos dos grupos sociais dominantes, com os valores dos que yenceram em diferentes momentos hist6ricos. Falta a Schaff explorar o imobilismo dos presentistas no que se refere aos seus vinculos com um presente enten- dido como uniforme, sem conflitos nem potencialidades. (OINEDIATO COMO REFERENCIA PERMANENTE 35 O debate sobre historia imediata pode se diferenciar radicalmente dos limites ideol6gicos préprios aos argu- ‘mentos presentistas, evidence ando que sua aniilise contri- bui para superar a produgao de ignorancia corresponden- te a reiteragdo do imediato enquanto tal. A hist6ria imediata, num aparente paradoxo, torna-se importante instrumento para sua propria superagao, Toda histéria é imediata, nenhuma historia é imediata “Tudo €e ao é.." (ode Gumarses Rosa. Grime retin: vredas} “Serd preeso seguir lutundo pelo imediato, companhei‘o, porque Hildertin leu Marx Jo 0 esquece: mas o aberto continua af (..)” (dulto Condzar, Prose da obervauiio) Fernand Braudel, no artigo “Historia e ciéneias so- ciais: a longa duragao”, de 1958, salientou relagdes de es- clarecimento reciproco entre presente e pasado, preser- vando © primeiro como drea do ciemtista social e 0 outro para a ago investigativa do historiador. Suas criticas fo- ram dirigidas aos eventos desarticuladores, que exempli- ficou com o noticidrio jornalistico, em tudo oposto as es- truturas hist6ricas profundas. Estas, sim, seriam capazes de abranger décadas ou séculos ¢ de conter indices explicativos, Em 1978, 0 ensaio “A histria imediata”, de Jean La- couture (incluido na coletanea A histéria nova, organiza- 36 MARCOS DASILNA a por Le Goff), destacou nessa modalidade de conheci- mento histérico as dimensdes de ser escrita no calor da hora, garantira palavra dos agentes abordados e estabele- cerrelagdes diretas entre o analista c seu tema, emergindo como jornalismo rigoroso. Ele associou a hist6ria imedia- ‘a, portanto, ao carter imediato da comunicagao con- a ido © jornal como arquivo dia- tempornea, caracterizs riamente colocado & disposigao dos leitores. Esses autores exemplificam diferentes aproximagdes entre historia ¢ jornalismo que podem contribuir para manter a histéria imediata em seu patamar de referencial preponderantemente temético, englobando certo ritmo de produco. Nesses termos, ela nada mais seria que uma his- 16ria contemporanea radical. Indo além desse nivel tematic — que é, sem dtivida, importante e necessirio como reiteragiio de historicidade Para o presente —, € preciso ressaltar também relagdes en- tre hist6ria imediata e qualquer historia pelo viés dos referenciais implicitos a escolha de diferentes temas e pe- riodos hist6ricos para discussao. Falar sobre democracia ateniense no século V a. C., porexemplo, é também porem agao um olhar analitico do historiador, professor ou aluno que vive outras relagdes teorias de poder, as quais, eventualmente, apelam para ar- gumentos c autoridades atribuidos a época estudada, Discutir os indigenas na América Colonial, noutro exemplo, parte de sociedades que convivem com certas dimensdes desses grupos humanos em seu universo de experiéncias e teorias sociais, Considerando esses exemplos, escolhidos aleatoria ‘mente, € cabivel afirmar que todo saber hist6rico dialoga com niveis de imediato, participa de detinigdes, transfor- magoes ou preservagdes de identidades sociais experi- (0 IMEDIATO COMO REFERENCIA PERMANENTE a7 mentadas por historiadores, professores ¢ alunos dentro e fora de seus universos formais de estudo. Se os anacro- nismos destroem esforgos de conhecimento histérico quando se limitam a transferir significados de uma historicidade para outras (considerar “fase cialistas” certas instituigdes da Antiguidade clissica, por exemplo), o isolamento de algum suposto “puro passa do”, em nome da objetividade, significa interditar a refle- io sobre os papéis ativos de quem debate a histéria na selecdo ¢ organizacao de temas, agentes ¢ explicagées. A historia imediata tem sofrido efeitos dessa interdi io, que a conden, quando muito, aqueles niveis te- miaticos e de ritmo de producdo. O interdito preserva seu carter imediato, donde ser necessério enfrentii-lo para que cla va além da configuragao tao limitada que Ihe é atribuida. Assim como todo saber hist6rico atua sobre as identi- dades sociais de historiadores/professores/alunos, a in- fluéncia inversa também se registra. E através dessa mao. dupla que toda historia se toma imediata. a0 puro imediato como horizonte de Chega-se, en qualquer conhecimento histérico? Isto nao signiticara di- luir aquele interdito, ao invés de enfrenté-lo, superé-lo? E na perspectiva desses riscos que vale refletir sobre a histéria imediata como contribuigao para se pensar que 0 diferentes periodos hist6r:cos, em vez de fatias meca- nicas do tempo, externas a quem os estuda, sao historias em construgao, evocando-se a bela expresso usada por Pierre Vilar no artigo “Hisisria marxista, histéria em construgao” ~ seu uso aqui, ‘odavia, € diferente daquele feito originalmente pelo referido historiador. Dizer que todo periodo histérico € historia em construgao significa criticar a pretensao de esgotar o sentido das experiéncias 8 MARCOS. DASILVA sociais, uma vez que elas se configuram a partir de tenta~ tivas, disputas entre diversos projetos, que, provisoria- ‘mente. tiveram determinados desfechos, anunciados para 0s pésteros como fatos sintetizadores de sua realidade e cristalizados por muitos historiadores/professores/alunos nessa tiltima condigao. Entender cada periodo histérico como histéria em construgao é forma de ultrapassar esses vineulos entre antincio e cristalizagiio de fatos-sintese. O imediato pode aparecer, também, como memria que tenta fazer-se, situando historiadores/professores/alu- nos no ato de produzir conhecimento histérico através da critica aquele proceso. O puro imediato, submetido a diferentes reflexes criticas, desfaz-se enquanto tal, evidenciando que nenhu- ma hist6ria, afinal, é apenas imediata — mesmo naqueles limites de temporalidade e ritmo de produgio assumidos habitualmente pela chamada hist6ria imediata. Até esta liltima articula-se com projegdes de outros temas e perio~ dos, interpretagdes e problemas. Tal como o presente que perde sua identidade no momento em que se pretende conceitudé-lo, a hist6ria imediata ¢ ultrapassada ao articular-se com miiltiplas temporalidades, 0 que se da através da propria nogao de historia que Ihe € subjacente Mais que um paradoxo — toda historia é e nao € ime- diata —, interessa salientar que a superagio do imediato 86 6 possivel através de sua criteriosa consideracao. Isto significa que, se nao passar permanentemente pelo ime- diato como referéncia, o estudo de qualquer histéria con- tinuaré a contribuir para coisificar temas ¢ agentes. Patriménios histéricos (0 senhor no estd comprando apenas vet ras esti cemprando vidas em ruinas. Mais, 0 senhor esti comprando amargura. O senhor esté comprando uma meninazinha entran gando 0 psscogo dlles, trando a fita dos Cahelos dela para amarré-la na erina dos ea- valos, uma meninazinha de cabecinha encos- tada no pescoco dos anima, rogando-thes © focinho com 0 rasto corado, O'senhor esti comprando anos de érduo labor, ides de sol a sok; esté cemprando uma magoa que nio se pode expressar, Mas olhe, sou: hi urna coisa que vai junto com esse montio de trogos que omprou, jan com esses halos to lindos — € uma flor de amargura que erescera na sua casae ali Horescer um dia.” ob Steinbeck. As vinhas dina) “Que tristesa que nes sentia Cada tauba que cata Doia no coragao. (Adonian arbor, Soidons malocad tem a vor cheia de dinheito. (Seo Fivgeral, grande Gatsby) “Primeita ligdo: ser rico ois ser poste é muito feio.” (mas “Curso iminsivo de bas mancias”) 40 MARCOS A. DASILVA Desde 1937, quando se criou no Brasil um Servigo do Patriménio Histsrico e Artistico Nacional, a discussiio so- bre esse campo de debate foi ocupada por arquitetos e al- guns poucos teéricos da cultura, como Mairio de Andrade. Mais recentemente, todavia, cresceu na discussao a presenga de profissionais de histéria, embora, as vezes, separando patrim6nio hist6rico de educagao, identifican- do-o prioritariamente a tarefas de pesquisa como nogao ampliada do universo documental explorada pelos histo- riadores: além dos documentos escritos, preservados em arquivos, edificagées e outros objetos sdo também mate- riais que eles podem estudar, Nessa perspectiva, 0 ensino de histéria tende a ser compreendido como tarefa posterior Aquela pesquisa que abrange o universo de arquivos, patriménio arquitetdnico edemais fontes julgadas significativas, limitando-se a di- fundir resultados. Pode-se, todavia, entender estudo de patriménio hi t6rico e ensino como partes de um mesmo proceso na produgio de conhecimentos, procurando evidenciar mil tiplas virtualidades e opgdes contidas no ensino de hist ria como experiéncia que abrange o dominio ampliado sobre um campo erudito e o didlogo com os universos de vivéneias sociais dos grupos humanos estudados ¢ da- queles que os estudam, Suportes como fazeres O patriménio hist6rico é mais habitualmente identifi- cado it sua face arquitetOnica, Noticidrios jomalisticos re- gistram que cidades (Olinda e Ouro Preto, por exemplo) foram consideradas “patriménio da humanidade” pela Unesco; Srgios governamentais executam ou negligen- PATRIMONIOS HISTORICOS mn ciam o tombamento de edificag6es julgadas significativas hist6ricae artisticamente; o tema é discutido quase exclusi- vamente naquele ambito por profissionais da grea, como Carlos A.C. Lemos no livro O que é patriménio historico. Sem perder de vista a grande importancia dessa esfera edificada, ampliando sugestdes contidas em alguns de seus analistas, é necessdrio incluir no patrim@nio hist6rico outros campos artisticos (pintura, escultura, miisica etc.), objetos cotidianos (utensilios domésticos, instrumentos de trabalho, vestimentas etc.), materiais de diferentes ar- quivos, acervos bibliogréficos, falas e praticas de mailti- plos agentes sociais Essa ampliagao nao se confunde com a simples diver- sidade de “objetos” ou “temas” abordados pelos historia- dores: esti-se diante de fazeres sociais. Para cada material interpretado, hé um contato com lutas, acordos, potencia- lidades, limites. A diferenga entre essas éticas dos objetos/temas (va- lorizados especialmente a partir da vulgarizagao da “No- va hist6ria”, que teve como uma espécie de manifesto 0 volume Histéria — novos objetos, organizado por Le Goff Nora) e dos fazeres pode ser exemplificada através do apelo historiografico cada ver maior As narragdes orais. Encarar tais narragdes como objetoftema € reduzi-las A condigao de fornecedoras de informagées avaliadas a partir de critérios de seguranga e verdade estabelecidos apenas pelo historiador. Nessa perspectiva, o narrador se vé transformado em coisa, fonte inerte, depositario mais ou menos confidvel de dados, Dai ele ser facilmente caracterizado como “superficializante” ou “deformador da verdade”, em con- fronto com o pesquisador, dotado de método, em nome do qual se define o que merece ou ndo crédito. Tal posi- 2 MARCOSA DASILVA io € assumida, dentre outros, por Jerry White. no artigo “Além da autobiografia Narragdes orais ¢ outros itens de patriménio hist6rico, quando assim tratados, slo metamorfoseados em cadave- res apenas dissecados pelo analista, sem se estabelecer um didlogo entre as partes, que poderia ser esclarecedor para ambas —cadaveres nao falam! Esse autoritério monélogo historiogrifico diante do patriménio hist6rico pode facilmente conduzir a caracte- rizacdo dos historiadores eruditos como tinicos agentes confiiveis do processo de conhecimento, tratando seus materiais como passivos pacientes. Diferente é 0 ato de se aproximar daquelas modalida- des de patriménio histérico encarando-as como dimen- ses de fazeres humanos. A.esse respeito, 0 trecho do romance As vinhas da ira, citado em epigrafe neste capitulo, ajuda a pensar so- brea densidade de experiéncias sociais que acompanham objetos aparentemente banais, resumindo trajetrias de vidas ¢ oferecendo nuances inesperadas na avaliagio de seus diferentes momentos. Através do amargo viés sentimental contido nessa passagem do romance, é possivel identificar em suas ima- gens como a perda de determinadas praticas é 0 esmaga- mento de direitos que os personagens ali referidos tive- ram um dia. Eles sempre se lembrarao deles para animar suas lutas, sendo transformados, de gestos amorosos, em Gdio mobilizador. A partir dessa visio sobre patriménio histérico, pode-se pensar na narragao oral como elemento muito importante na pluralizagao das vozes que interpretam historicidades: ao invés do historiador que monologa, tem-se a oportunidade de ampliar a cena da discussio, PATRIMONIOSHISTORICOS 43 englobando vozes que muito raramente tiveram preser- vada sua escrita — se € que seus emissores escreviam... Resulta disso uma imagem do narrador oposta a do vasilhame cheio de fatos, que o historiador apenas trata- ria de consumir: 0 primeiro dialoga com o tiltimo, que, por sua vez, pode também vir a ser questionado em al- gumas de suas proposigdes. Assim, encarar 0 patriménio histérico como fazer é identificar em todos os grupos o intelecto, o pensamento, como, por vias muito diferentes, sugeriram Antonio Gramsci, em Concepgao dialética da histéria, e Claude Lévi-Strauss, em O pensamento selvagem. Gramsci afir- mou que “todos os homens sao “fil6sofos”, portadores de uma “filosofia espontinea” que se expressa em lin- guagem, senso comum, crengas e folclore. Lévi-Strauss, por sua vez, desmontou qualquer resquicio de uma su- posta mentalidade primitiva pré-Idgica, demonstrando a complexiciade ¢ a eapacidade criativa do pensamento mi- tio, evidenciando que os selvagens pensam. Se esses autores ndo pretndem apenas equalizar to- das as formas de pensamento (Gramsci reivindicou a ne- cessidade da consciéncia paru no se manter passivamen- te nos termos de concepgdes dispares e Lévi-Strauss preservou diferengas ndo-hierarquizadas entre ciéncia e mito), seus argumentos permitem avaliar a multiplicida- de de patrim@nios presentes na historia, conduzindo a uma valorizagao deles que nao se confunde com a sub- missao aos seus term A aparente unanimidade As alusdes mais habituais ao patriménio histérico tendem a generalizar socialmente seu Ambito, negligen- 4a MARCOS A, DASILVA ciando sua vinculagao a grupos sociais especificos ¢ su- pondo seu significado igual para todos que podem in- voed-lo. Essa situacdo impde procurar responder & ques- Go: patrimOnio hist6rico de quem? O préprio universo vocabular da palavra patriménio oferece algumas pistas para satisfazer a essa indagacio. Ela remete para pai (pater), heranga paterna, proprieda- des da familia. Desde essa definigdo, o patriménio ja & apresentado através de vieses machistas, reforgando cer- tos niveis de dominagaio — o patriménio de mulheres e fi- Ihos é o que vem do p: ‘Ao mesmo tempo, aqucla nogao remete para um uni- verso de direitos, englobando propriedade, tradigao & identidade. Quando se invoca a expresso patriménio hist6rico, essas categorias fundantes podem ser exacerbadas de tal forma que se perdem, em muitas ocasides, horizontes constitutivos das sociediades estudadas e que estudam. Es- tes slo marcados por aliancas, diferengas ¢ conflitos, pela multiplicidade de experiéncias da temporalidade social que significa pluralidade na construgio de referéncias © identidades e, portanto, na definigdo de patriménios. E assim que as classes sociais, os géneros (homens, mulheres), os grupos de idade (criangas, adultos, idosos), 8 migrantes intemos ¢ estrangeiros mais seus descen- dentes so algumas manifestagdes daquelas multiplicida- des, compelindo a discussio a evitar a ingénua suposi de um patriménio em comum para todos, sempre ou da mesma forma. Essa suposigao uniformizadora de haver um patrim6- nio hist6rico que serve de referéncia para diferentes cate- gorias sociais pode ser melhor entendida através de um exemplo praticamente indiscutivel de edificagao admirada PATRIMONIOSHISTORICOS 4s € preservad: 0 Teatro Municipal de Sao Paulo, que pas- sou por longa c complexa resiauracdo de suas instalagde: de meados dos anos 80 a0 comego da década scguinte. Que justifica essa identificagdo quase imediata de tal prédio a uma amostra de patriménio hist6rico? lico nele feito desde sua construgio, Trata-se de edificio marcado pelo uso de materiais e solugdes arquiteténicas especiais. Seus espagos foram erguidos ¢ ornados em madeiras nobres, pedras caras, metais raros. Existe uma concentragao de saberes artesanais e ar- tisticos marcando cada detalhe, cada ornamento daquele ambiente. O modelo parisiense nio ofusca a prestigiosa assinatura de Ramos de Azevedo, antes toma seu projeto ainda mais precioso (Paris nio era a “capital do século XIX”, conforme expresso de Walter Benjamin, e tal sé- culo nao durou ao menos até acabar a Primeira Guerra Mundial’), complementado por pinturas, esculturas e— Por que nao? ~ pelo préprio cuidadoso trabalho de res- tauragao para “trazer de volta” a pureza de seus mate- riais e formas U: »s do requinte Ha outra dimensio desse prédio que diz respeito a sua definiciio como patriménio historico mas € menos jaramente invocada: o universo de sua utilizagao. Ele € definido pela importaneia técnica de um prédio desse tipo para determinadas produgdes artisticas, como espetiiculos de Gpera e balé, uma vez que dotado de fosso para orquestra, actistica c visibilidade adequadas, palco em dimensdes respeitiveis. 46 MARCOS A. DA SILVA Ao mesmo tempo, o acesso a esse mundo foi marca- do por apropriagdes e exclusdes desde a inauguracao do ‘Teatro Municipal de Sao Paulo, em 1911, definindo cla- ramente quem podia ou nao assistir as suas produces, Sua propria festa inaugural englobou atividades na parte interna, para um puiblico de elite, e comemoragdes na rea exterior, destinadas aos populares. Sua existéncia posterior tratou de preservar e ampliar essas apropriagdes e exclusdes através de pregos de in- gressos, hordrios de espetdculos e regras para freqiiénc = roupas, jGias, penteados etc. As Gitimas regras nao pre- cisaram ser formalizadas para garantir sua eficdcia: até hoje, quando se promovem “atividades populares” na- quele teatro, pessoas pobres demonstram receio de entrar em seu espago. Tal universo de uso do Teatro Municipal de Sao Paulo, convida a pensar sobre a seduco que ele exerce junto a teéricos e executores de politicas de patrimonio historico, luz da-formulacdo de Walter Benjamin sobre a identida- de entre barbirie e cultura, no ensaio “Sobre o conceito de historia’. O fascfnio pela alta cultura (repert6rio de for- mas arquitetOnicas, matérias nobres, espago para determi- nadas grandes manifestagdes artisticas) articula-se com a atrago pela barbarie (exclusdo social, monopdlio de clas- se, limitagdo de acesso a determinadas grandes manifesta- des artisticas).. Apontar essa face do Teatro Municipal de So Paulo ndo significa desprezo pela sua importincia cultural e, sim, identificar uma sociabilidade que faz parte de sua exist@ncia como patrimdnio histérico. Ao tratar o Teatro Municipal de Sao Paulo como pa- trim6nio hist6rico levando em conta essa sociabilidade, coloca-se uma questio: restauré-lo e preservi-lo significa PATRIMONIOS HISTORICOS, a7 sta manutengao fal como jd éem termos de materialida- de (tijolos, pedras, tintas, tecidos, vidros, metais etc.) € fungGes sociais (monopdlio, exclusdes)? Quanto Aquela materialidade, a resposta é positiva, sem ceder & tentagdo de “eternizar” a constragao, mas procurando garantir 0 acesso a sua beleza e adequagio artistica originais para os homens das geragdes que se su- cederam & sua construgio. No que diz respeito as furgdes sociais do prédio, di- ferentes politicas de patriménio histérico, corresponden- tes a diversos projetos de sociedade, esbocario respostas coerentes com seus termos, Nos quadros de um conhecimento hist6rico que ga- ranta profundidade para todos como forma de acesso ao prazer da histéria, é fundamental que um patrim6nio his- t6rico de tal riqueza seja preservado para ser apropriado também por agentes sociais diferentes daqueles que 0 monopolizaram desde sua funclagao, Assim, preservar é também mudar fungdes do pa trimOnio hist6rico considerado, alteragao feita em nome de um respeito A dimensio to especial de sua elaboragao arquitet6nica e de seus fins, qe podera alargar profunda- mente o campo de experiéncias da populagao ampliada com direito a ele. Discutir que um patriménio hist6rico dessa natureza seja apropriado por novos agentes sociais, como direito desses agentes, no se confunde com qualquer postura paternalista, Afinal, grupos populares j@ gostam de 6pera ‘ha muito tempo, para nao falar de autores transformados em “cldssicos” do teatro que jé foram encenados na rua, em igrejas ¢ ambientes ares, atingindo piiblicos so- cialmente diversificados — William Shakespeare e Calde r6n de la Barca, por exemplo 48 MAREOSA DASILVA Grupos populares fruem com prazer altos repert ios artisticos quando tém tal oportunidade, sem a ne- cessidade de adaptagdes empobrecedoras dos originai questao discutida por Julio Cortizar, no ensaio “Alguns ispectos do conto”, incluido na coletiinea Valise de Cro- népio, exemplificada com as emogdes de pessoas po- bres diante de uma encenagio do Hamlet, de Shakes- peare, na Argentina. O patriménio dos carentes Se prédios como o Teatro Municipal de Sao Paulo e seus similares noutras cidades (casas de espeticulo, igre- jas, residéncias de notiveis, sedes de governo etc.) so le- gitimados quase automaticamente como patrimonio hi torico, hd exemplos simetricamente inversos daquilo que muito dificilmente é inclufdo em tal categoria, até porque raramente preservado. Eo caso de cortigos ¢ de outros tipos de moradia des- tinados aos pobres, Eles se caracterizam por precarieda- de, improviso, reaproveitamento ¢ adaptagiio de espacos e materiais, com a aparéncia maior de degradacdo arqui- tet6nica. Desde fins do século XIX, ao menos, sua existéncia foi discutida por 6rgdos governamentais que conviviam de forma tensa com sua presenga, denunciando, com fre- qiiéncia, a ameaga que representavam para a satide puibli- ca (especialmente de fora de seus quadros) devido a suas caréncias higiGnicas, constituindo verdadeiros focos de doengas (vejam-se os comentarios sobre esse tema em Sao Paulo nos artigos “Cem anos de promiscuidade: 0 cortigo na cidade de Sao Paulo”, de Liicio Kowarick ¢ ” Clara Ant, e “Sao Paulo, inicio da industrializagao: 0 es- ago e a politica”, de Raquel Rolnik). Hai uma materialidade dessas edificagdes que funcio- na, ento, como justificativa para a desqualificago social de seus habitantes ¢ delas mesmas. Se essa desquali- ficagio possui certos limites, pois a existéncia de cortigos e exemplos congéneres de habitago para pobres faz par- te da preservagao destes como trabalhadores disponiveis por baixa remuneragdo, uma face de sua eficacia social € reiterar que tais pessoas so dotadas de identidades nega- tivas também no plano do patrimonio historic. Afinal, quem se interessaria por preservar aqueles ambientes pouco belos e, ainda mais, tao infectos? ‘Os moradores daqueles lugares so os que mais dire- tamente podem assumir esse interesse, Nao se trata de su- por uma romantica felicidade de pobreza que justificasse tal atitude. Acontece que, parteles, a moradia possui vas- to universo de uso, muito maior que o par sujeira/feitira, Ela é espago de relacdes sociais, abrigando pessoas que se conhecem de perto, identificando-se por nomes e trajetérias. Daf o lugar onde se vive fazer parte de refe- réncias bisicas para seus moradores, abrigando grupos de relagdes cotidianas que tanto possibilitam informa- ces sobre estratégias de sobrevivencia (emprego, servi ‘¢0s) como se articulam com a satisfagio de necessidades de lazer ¢ retomadas ou reconstrugio de identidades de origem ou imaginadas — regionais, nacionais etc. Outra dimensao dessas moradias € sua relativa proxi- midade, no que diz respeito a meios de acesso, a outros espagos da cidade de grande importancia para as referi- das estratégias de sobrevivencia. Quando politicas governamentais ou setores da opi- nido publica se relacionam com cortigos, favelas ¢ habi- so MARCOSA. DASILVA, tacOes congéneres sob o signo da pura negatividade (de- terioragdo da paisagem, miséria, necessidade de remogiio de seus habitantes para outros locais), desconsideram sua dimensio de patriménio hist6rico enquanto parte das pessoas que neles moram. Os prédios sao tratados como despreziveis e descartaveis, adjetivos que findam englo- bando paulatinamente as proprias pessoas ali instaladas. Qual patriménio hist6rico que se desconsidera nesse caso? Certamente, nao € 0 aparato arquitet6nico dos refe~ ridos sitios, quase sempre marcados de forma intensa por dimensdes de pobreza e exploragdo. A redugao do patri- minio a essa face imediata dos materiais (ao contririo da nobreza apontada no exemplo anterior, convive-se com equipamentos gastos e reutilizados, quebrados ¢ preca- riamente reaproveitados) conduz & perda da sociabilidade propria aquelas pessoas, especialmente um universo de direitos que engloba de forma privilegiada a definigao de uma termitorialidade delas, parte essencial da cidadania que puderam conquistar. E uma face politica do patrimonio historico, talvez menos palpavel que certa materialidade arquitetonica petacular — como aquela dos teatros municipais e simila- res — para outros grupos Sociais, mas extremamente den- sa na configuragao de identidades especificas. Discutir o carter de patrimOnio hist6rico proprio a essas vivéncias sociais como direito de seus integrantes ndo se confunde, também, com postura paternalista. A dimensao de territorialidade € parte de redes de sociabi- lidade que os grupos humanos jé reivindicam como di- reito a ser preservado ¢ ampliado. Trata-se de lugar de vida, cuja perda ultrapassa muito 0 aspecto fisico, na medida em que elimina ligagdes basicas para as pessoas ali residentes. PATRIMONIOS HISTORICOS 3 Tal universo contribui para que se pense nas mesmas pessoas como dimensoes de patrimOnio histérico, assu- mindo sua afirmagao de identidade através dessas formas de convivio e sobrevivéncia. Assim como preservar 0 monumento espetacular pode mudar seu uso, preservar 0 uso desses outros espa- 08 pelos seus utuais ocupantes pode e deve significar também alterar 0 estado material das edificagées e am- pliar 0 conjunto de direitos destrutados por aquelas pes- soas, abrangendo até sua propriedade legal. Para os patrimonios serem de todos Os exemplos do Teatro Municipal de Sio Paulo ¢ dos cortigos paulistanos represen:am situagdes-limite, embo- 12.0 primeiro seja identificado a certo padrio de patri- mOnio hist6rico c outro quase nunca participe de di cussdes sobre o tema. O risco de trabalhar com tais limites € manter o patri- mOnio hist6rico afastado do ensino de histéria praticado cotidianamente. Se as escolas abrigam tanto professores € alunos que freqtientam grandes teatros como alunos ¢ professores que moram em cortigos ¢ favelas, € impor- tante ressaltar os infinitos matizes sociais presentes nas relagdes ali desenvolvidas. Ennessas rmiltiplas nuances sociais, manifestadas nas escolas como diferentes identidades, que uma nogao am- pliada de patriménio histérico encontra espaco privile- giado para ser discutida e articulada ao ensino de historia. A institucionalizagao de patriménio hist6rico (Lei n® 378, de 13 de janeiro de 1937, e Decreto-Lei n? 25, de 30 de novembro de 1937) ¢ do ensino de histéria do Brasil 5 MARCOS A. DASILNA (Decretos de 1931 e 1932, Portaria de 1940) pelo gover- no federal brasileiro, na gestdo de Gustavo Capanema no Ministério da Educagio € Satide, estabeleceu ligagdes entre essas esferas a partir de vieses autoritérios, perti- nentes ao chamado “Estado Novo", formalmente instau- rado em 1937, reforgando a énfase atribufda a hist6ria e 40 patrim@nio hist6rico como trajeto biogréfico da nagio, harménico e cumulativo. ‘As priticas daquele ensino no pais, incluindo suas re~ laces com patriménio hist6rico, evidenciaram tendén- cias a confundir historia e patriménio com certo univer- so de coisas prioritariamente antigas e raras, gerando nogdes como “cidades histéricas” (micleos coloniais mi- neiros, Machu Picchu, Atenas, Williamsburg ete.) ou “centro hist6rico das cidades” (Pelourinho, em Salvador, Patio do Colégio, em Sao Paulo, e outros). O grave risco dessas nogdes € permitir supor a exi téncia de cidades, campo ou periferia a-hist6ricos, refor- cando nos alunos imagens de hist6ria e patriménio como espetiiculos externos as suas experiéneias mais proximas, Por outro lado, € preciso pensar nos incontveis patri- mdnios historicos que professores € alunos, como repre- sentantes dit rica diversidade social, vivenciam de mtilti- plas formas, desde suas identidades étnicas até a propria educagio que experimentam. Algumas iniciativas isoladas j4 comegaram a incluir edificios escolares no patrimonio hist6rico, especialmen- te aqueles mais antigos e suntuosos. Essa atitude € inte- ressante no sentido de se pensar sobre os processos de ensino ¢ aprendizagem através da escola como parte da historicidade, englobando o projeto republicano de en- tender as escolas piiblicas na condi¢do de espagos forma- dores de cidadania, o que, ao mesmo tempo, legitimava a PATRIMONIOSHISTORICOS, negagdo aos analfabetos do difeito ao voto, exclufa ou tras priticas de formagao de cidadania ¢ escolhia os pré- dios escolares para abrigar zonas eleitorais. Ampliando essas iniciativas, é possivel desdobrar tal ‘compreensao de escola © educagdo como patriménio his- torico também para entender o processo educativo en- quanto espaco de investimento financeiro, propriedade heranga para diferentes grupos sociais. Afinal, é comum pais filhos encararem a educagiio como via para a afir- magao social através de projetos de ascensao, lutando para chegarem as boas escolas, mesmo quando pagas ¢ de dificil conquista pelos mais pobres, Evidentemente, essa luta dos que nao herdaram ou- tros patrimonios enfrenta uma educagao formal exclu- dente sob muiltiplos aspectos, produtora de evasio esco- lar, que reforga acesso censitario (de acordo com niveis de renda e propriedade) a determinadas formas culturais, —museus, viagens, livros, espetaculos, linguas etc. A defesa do prazer da hist6ria que englobe a questo do patriménio histérico precisa dar conta, entdo, de dois problemas bésicos: por um lado, o respeito as miltiplas formas de ser social como portadoras de identidades ri- cas e significativas para a compreensio de um mundo que se faz em muitos lugares ¢ por diferentes agentes, entendendo que a educagao se di tanto em seus espacos formais (escolas, museus, bibliotecas) como fora deles — movimentos sociais, cotidiano de sobrevivencia; por ou- tro, a garantia de acesso a parrimOnios daqueles espacos formais de educagio como dimensGes das experiéneias permanentes de formagao € lazer para todos, ultrapas- sando faces apenas simbélicas, ret6ricas e distantes de que se revestem tantos de seus itens para a maioria das pessoas, s4 MARCOSA. DASILVA, Isto significa articular patrimGnio histérico ¢ educa- do em nome de entender e garantir diversas identidades sociais, com diferentes vozes definindo as historicidades vivenciadas ¢ estudando os patriménios ampliados para a condigao de virtualidades assumidas pelos seres huma- nos rumo a novas invengoes da realidade. patriménio histérico mais visivel e acessivel costu- ma derivar de certas instituigdes que preservam uma me- miria de suas trajetérias como forma de legitimar identi- dade e poderes — Estado e Igreja, por exemplo. Ennecessério alargar a nogao de patriménio histérico para poder abranger outras instituigdes e movimentos so- ciais que também preservam poderes c identidades. Eo caso de trabalhadores e moradores de Perus ¢ participan- tes de movimentos por satide piiblica em Sio Paulo, cujas narragdes foram registradas por pesquisadores do Departamento de Patriménio Histérico da Secretaria Mu- nicipal de Cultura de Sao Paulo, entre 1990 e 1992 Isto permite chegar ao entendimento de que 0 aqui- e-agora de alunos, professores e outros interessados — sala de aula, moradia, vias publics, atividades de lazer ¢ formacdo — participa da discussio sobre patriménio histérico de forma ativa. Compreendendo que as pessoas — seus corpos, ves timentas, utensilios de trabalho, moradias, pensamentos desejos, lutas, alianeas — sao patriménio hist6rico, € possivel desdobrar esse debate na direcdo de um ensino de hist6ria que nao precisa se desmaterializar para apre- ender os complexos niveis das experiéncias humanas nem coisificar o social, reduzindo-o apenas a objetos palpaiveis e visiveis, para escapar de uma historicidade idealizada. PATRIMONIOS HISTORICOS Seducdo & critica Pluralizada a nogao de patriménio historico, resta ainda pensar sobre modalidades de relagdes com seu wni- verso, Se edificagdes ou acervos espetaculares (igrejas, co- lees em museus efe.) exercem um fascinio evidente so- bre seu piiblico, outros patrimdnios, por diferentes ra- 2es, podem seguir caminhos piralelos. Um exemplo que mescla arquitetura e colecdo sedu- toras é 0 Museu Paulista, associado por muitos de seus freqiientadores ao Monumento do Ipiranga — tanto que é informalmente denominado “Museu do Ipiranga”, desig- nagio que também remete ao local onde, oficialmente, “proclamou-se a Independencia” Professores de histéria da rede publica municipal paulistana, em 1992, acompanharam grupos de adoles- centes e criangas que o visitavam e ficavam deslumbra- dos com a beleza do prédio e com os itens de seu acervo = diferentes objetos. méveis, veiculos, armas, roupas, {i6ias, pinturas, esculturas ete. Grandes museus (Louvre, Prado, Britinico) e conjun- tos arquitetnicos (Egito e Grécia antigos, América pré- colonial e outros) intemacionais provocam, certamente, reagies similares Aquelas ou até mais intensas que elas. Os docentes que participaram daquela experiéncia no Museu Paulista declararam-se preocupados porque os re- feridos sentimentos de seus alunos dificilmente permiti- riam reflexdes criticas sobre ¢ sociedade que ergueu aqucle prédio, constituiu suas colecdes ¢ é ali apresenta- da. Eles receayam que o trabalho com o museu apenas reforgasse nos jovens compreensdes conservadoras da historicidade, enfatizando a trajet6ria de certos persona- 56 MARCOS. DASILNA gens como se devessem ser modelos para todos e quem nao correspondesse aos scus padrdes estivesse legitima- mente excluido da historia, Na mesma época, professores de hi naquela tede escolar levaram alunos para visitar instalagdes de fa- bricas e outras unidades de trabalho, procurando realizar pequenos “estudos do meio”. Para surpresa daqueles pro- fissionais, os jovens ficaram bem impressionados com espagos e relagdes de trabalho vistos, elogiando higiene, ordem e servigos prestados aos trabalhadores, como era 0 caso de refeigdes ali servidas. ‘Também nessa experiéncia, os docentes lastimaram a dificuldade de seus alunos para desenvolver criticas a0 universo contatado a rapidez com que aderiram aos va- lores que thes eram palpaveis naqucles lugares Um tereeiro grupo de professores explorou espe- cialmente a coleta de narrativas junto as populacGes dos bairros onde as escolas funcionavam, tendendo a opor tais informagdes sobre vivéncias ao universo cultural do jomalismo voltado para crimes (Noticias Populares, Aqui ‘Agora) e identificando esse trabalho a uma expansiio da consciéncia social de alunos e narradores locais, Nese caso, ninguém sentiu as sedugdes antes referi- das, assinalando-se, pelo contrario, certa resisténcia dos alunos ao significado hist6rico daquelas vivéneias narra- das. Os docentes, por seu lado, procuraram situar o mate- rial reunido em contextos explicativos mais gerais—teo- rias sobre o capitalismo e trajet6ria historica do Brasil Nos trés exemplos, ha diferentes modalidades de se- dugao: 0 muscu oferece prédio ¢ objetos de real beleza; os lugares de trabalho expdem atos e procedimentos ju: tificados como seguros e convenientes; as narragdes po- pulares recebem uma atengao que procura corrigir injus- PATRIMONIOS HISTORICOS tigas da hist6ria ensinada (0 siléncio sobre seu universo de experiéncias) e criticar 0 monopolio de vozes domi- nantes em seu estudo. Oreceio dos professores diante da sedugdo vivida por seus alunos, entendendo-a como impedimento de qual- quer critica, merece ser reavaliado, especialmente quando se leva em conta um ensino cue procura garantir o prazer da hist6ria. Os jovens gostaram do primeiro prédio e suas colecées, sentiram-se satisfeitos com o mundo do trabalho ‘eassumiram as vozes populares como importantes e suas. Rejeitar esses objetos de desejo e inibir tais sentimentos pode ser frustrante para os altunos e nao dar conta de ex- pandir sua prépria compreensio, Para superar uma imobilizante oposigio entre critica e seducdio, € conveniente pensar sobre as formas assumi- das pela tiltima nos exemplos evocados, O prédio do museu foi feito mesmo para seduir, com suas referéncias estilisticas e indicagGes hist6ricas e geo gnificas brasileiras desde o saguo (esculturas represen- tando bandeirantes, globos de cristal para abrigar éguas de grandes rios brasileiros) até o saldo nobre (a grande tela O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, mais mé- veis e outros quadros), passando por corredores ¢ jardins. Os alunos nao cometeram, portanto, nenhum crime de lesa-consciéncia, antes demonstraram certa sensibilidade para captar elementos arquitetdnicos e de acervo que Ihes foram oferecidos. Preocupante nao é 0 deslumbramento diante daquilo que foi organizado efetivamente para fascinar e, sim, a dificuldade para, reconhecendo a riqueza desse aparato de sedugao, interpreté-lo em articulagdo com outros te- mas da histéria do pafs menos ou nada atraentes mas ne- Os para sua compreensio ai luz de saberes disponi- cess: 58 MARCOSA DA SILVA veis, Tal articulagao jamais tomard o prédio e seus obje- tos feios ou desinteressantes, antes acrescentard a beleza do pensamento & sua apropriagdo por todos como pa- triménio hist6rico deles. Tal apropriagio, mediada pelo pensamento critico, é dificil de explicitar, porque significa abordar questGes que nunca foram socialmente neutras. A beleza de objetos expostos nos museus e locais se- melhantes resulta, também, de multiplos atos cotidianos de pessoas que jamais a consumiram, S6 isto ja indica ‘que, além de objeto de admiragao, ela ajuda a compreen- der muitas faces de experiéncias sociais, desde os esfor- ‘cos daqueles que a tornaram possivel até os procedimen- tos para sua transformagao em direito de poucos. Instalagdes fabris e outros lugares de trabalho, por sua vez, so organizadas espacial e socialmente visando a0 convencimento daqueles que ali chegam sobre a racionalidade e justeza de seu funcionamento. Como boa parte desses locais, supostamente, difere, neste século das “satnicas fabricas escuras” ~ referidas por Hobs- bawm no artigo “A historia e as satanieas flbricas escu- ras", em relagdo ao livro A situagdo da classe trabalha- dora em Inglaterra, de Friedrich Engels -, sofrendo mesmo a influéncia direta ou indireta do nazismo, com scus programas de “heleza do trabalho”, que valorizam 0 bom aspecto de fabricas e outros locais de produgio, como se discute no artigo “A estética da produgao sob 0 II Reich”, de Anson Rabinbach, aquele convencimento se apoia em certos argumentos e préticas disciplinares, que tomam relagdes de trabalho e de produgdo menos vi- siveis ou as metamorfoseiam em espeticulo de eficién- cia. Assim, obrigagdes minimas de uma empresa (higie- ne, alimentagao) sao apresentadas a visitantes como PATRIMONIOSHISTORICOS so grandes doagdes € ndo como direitos de qualquer pessoa em todos os lugares. Desejar tais itens nao é propriamente ingenuidade, inclusive porque eles nem sempre estio disponiveis nas casas e escolas de muitos alunos, filhos de assalariados ‘como os que ali trabalham. Criticar seu uso por empre- sas, governos e teorias administrativas é uma necessida- de de reflexiio para explicar sua existéncia ¢ ocasional falsificagio com o fim de deslumbrar empregados ¢ ob- servadores. O fascinio pelas narrativas populares procedeu mais dos professores que sugeriram sua coleta ¢ acumulagao. Os alunos, quando as rejeitaram, demonstraram certa des- crenga em relagao a seu efetivo significado como forma de conhecimento. Tal atitude corresponde, todavia, a tra- Jet6ria que grande parte do ensino e da propria indistria cultural faz num sentido desqualificador dessas expe- rigncias, contrapostas a seguranea de outros saberes legi- timados. Ao mesmo tempo, acritica a esse percurso nao pode se confundir com uma suspensio idealizante de qualquer debate sobre os produtos daquelas narrativas, também elas mescladas a preconceitos e (auto) exclusdes. Esses diferentes objetos de sedugio exemplificam a adequagaio de se pensar nos patriménios historicos a par- tir de problematicas de conhecimento hist6rico, capazes de questionar suas justificativas, evidenciando a espe- cificidade de um contato com eles para estudo e reflexao, que nao se limita a visitas ou convivio passageiros, Historia escolar também é patrimonio Sc o debate sobre patrimdnios € importante para ga- rantir 0 prazer da hist6ria no universo proprio & sua oo MARCOS A DASILVA o por professores e alunos, faz-se igualmente ne- cessério refletir sobre itens daquela historia que, audicio- nalmente, é ensinada nas escolas como dimensdes de patriménio. ‘A discussao de fazeres humanos nao significa descar- lar os t6picos habitualmente ensinados como histéria. Ela € contraponto a muitas das abordagens desses t6picos & ‘desempenha tal papel na medida em que também se tem acesso aos termos em que foram construidos seus elen- cos temiticos e interpretativos. Atuar como critica desses elencos nao se confunde com ignoré-los nem os reprodu- zir de forma ampliada e intocada, como se apenas a mas- sificagio dos saberes existentes fosse suficiente para que cles atendessem a necessidades de mais pessoas. Essa massificago 6 pode interessar quando articula- daa garantia do direito a autonomia do pensamento, su- perando submissdes a autoridades e ao coletivo, como discutido por Theodor Adomo no ensaio “Educacao apos Auschwitz” Assim, elencos tematicos e interpretativos j4 presen- tes no ensino de histéria (periodos, personagens etc.) também merecem ser incorporados as modalidades de patrimonio hist6rico, que, como quaisquer outras, reque- rem abordagens a partir de probleméticas de conheci- ‘mento para nao se transformarem em (ou continuarem a ser) informagées isoladas e desvinculadas da inven cotidiana do mundo pelos seres humanos. Memoria ou experiéncias de saberes Por que negar a evidente necessidade da (Alain Reais, isha mew amen) “A meméria € uma forma de protest, Se vocé nfo leribra de algo importante esti au- Comaticamente aceitande, quem sabe, uma atrocidade. (Bl Wiesel “Enevist”, to 91206, 11.1992) “Minha meméria, senhor, & como despe jndouro de lixos.” neg Luis Borges. Funes,o metmeios”) No romance /984, de George Orwell, concluido em 1948, 0 personagem central, Winston Smith, trabalha num Ministério da Verdade (MINIVER), que trata de no- {icias, diversdes, instrucdo e belas-artes. A ocupagiio de Smith nesse emprego é reescrever textos de acorco com as relagdes de poder vigentes a cada momento, eliminando tudo aquilo que apresente al- guma discordancia ou incoeréncia quanto A imagem ofi- cial desejada de personagens. paises e quaisquer outros temas. ea MARCOS A. DASILVA impedimento de tal sociedade enfrentar contradi- es presentes na memsria do trajeto por ela percorrido evidencia conflitos e tensdes sobre os quais 0 governo age repressivamente, visando a seu silenciamento e de- saparigdo. Isto também significa a necessidade de cons- tir permanentemente outras memorias, que assegurem a preponderiincia de um poder onipresente, centralizado e sem alternativas. E uma situagdo coerente com o tratamento dispensa- do, naquele mundo, as identidades das pessoas, subme- tidas a significados indiscutfveis, como expresso na “novilingua” dos lemas partidarios ali vigentes: “Guerra 6 paz. Liberdade é escravidio. Ignordncia é fo Onwell foi um socialista inglés, combatente nas Briga- das Internacionais da Revolucao Espanhola. Esse seu li yro tomou como importante referencial a experiéncia do stalinismo, incluindo 0 culto a personalidade do gover- nante e os mecanismos totalitdrios que procuravam anular as diferengas sob 0 signo da administragao de tudo. ‘Nessas amargas alusdes a revolugdo perdida, o aniqui Jamento de uma meriéria minimamente auténoma e sua substituigdo pela contrafagao que interessasse ao Grande Irmio —o governante que tinha vor.e efigie reproduzi em todos os lugares — eram vieses bisicos para o poder to- tal declarar, 8 sua maneira, um fim da histria muitas déca- das antes de esse assunto fortalecer-se tanto com a dilui- 40 do bloco soviético (fins dos anos 80). Onwell atribuiu a memoria, portanto, amplo espaco na definigo de identidades coletivas, intensamente rela cionado a dominacao, donde sua importancia politica. A destruigdo de certas memérias e a construgao de outras atesta que hé diferengas em seu seio, remissiveis aos di- Versos grupos humanos, com seus projetos, fantasias ¢ MEMORIA OU EXPERIENCIAS DESABERES 6 possibilidades. Memoria e mentira foram aproximadas pela tica da dominagao, através de um Ministério dito “da Verdade”, indicando a caracidade impositiva daque- la forma de poder. Nada esponténeo nem inercial A crescente atengdo que historiadores, antropélogos, filsofos e outros especialistas tém dedicado & memoria ressalta a importincia desse tema para a compreensio de identidades sociais e relagdes de poder. Se essa relevaineia é mais palpavel no que se refere aos poderes visiveis, instituidos, como no Estado total de Onwell. ela também se revela estratégica pura grupos ¢ agentes Sociais aparentemente destitufdos de sua forgae que, através de memsrias prdprias, revelam instrumentos de seu poder, evidenciando a existéncia de varias memé- rias, como foi salientado por Ulpiano T. B. de Meneses no artigo “A hist6ria, cativa dz meméria?”. A esse respeito, Benjamin, no texto “Sobre o conceito de hist6ria’’, argumentou que os grupos dominantes, en- quanto vencedores das lutas sociais em diferentes mo- mentos, agregam aos seus troféus de guerra um monopé- lio da memria como continuidade, metamorfoseada em vontade geral — da nagéio ou do povo, por exemplo. E por esse motivo que a memoria dominante pontua uma crono- logia (sequéncia temporal) e uma periodizagao (recortes naquela seqtiéncia) com aspecto ligico e objetivo. tornan- do seus beneficidrios senhores, também, do tempo social. Tal processo nada tem de automatico ou conspiraté- rio. Sua elaboragdo requer articulagdes politicas em tomo de um projeto de sociedade expressas publicamente atra- 64 MARCOS A. DASILVA vés de diferentes suportes, em miiltiplos lugares. Isso sig- nifica que modalidades de meméria social se expressam a partir de personagens, acontecimentos, monumentos objetos, narrativas, iconografia ¢ tantas outras formas. Elas surgem quer no calor da hora de acontecimentos, quer em sua preservacio de identidade, configurando cialmente fatos que, com freqiiéncia, historiadores/pro- fessores/alunos reiteram, Um exemplo classico, no Brasil, dessa construgio de fato-mem@ria € comentado por Adalberto Marson, no en- saio “Reflexes sobre o procedimento hist6rico”, incluf- do na coletinea Repensando a histéria: a aboligao da es- cravidao, aos 13 de maio de 1888. Marson discute como, naquela data mesmo, definiu-se uma dimensao grandiosa da Aboligao através de diferentes manifestagdes — bata- Ihas de flores, bailes publicos, noticirio na imprensa etc. I claboragao do tema estabeleceu um fato muito preci- so: a escraviddo acabou. Aquele autor comenta outras vores (José Lins do Rego, no romance Menino de engenho, ¢ érgios da im- prensa operiria brasileira; pode-se acrescentar-lhes ma- rinheiros na Revolta da Chibata, de 1910, e dentincias sobre o mundo rural brasileiro mais recente) que apon- taram a continnidade de faces de experiéncia escrava apés aquela data, sem conseguirem, todavia, consolidar sua meméria, funcionando apenas como versdes alter- nativas, em contraponto aquela outra, O que se observa nesse comentirio nao é a pretensio de substituir um fato-meméria (“Abolicdo”) por outro C‘continuidade de dimensies escravistas”) e, sim, 0 pro cesso de elaboraedo social do fato-meméria, que se firma tir de miiltiplos investimentos simbélicos associados, {waco dominante das relagdes sociais neles envolvi- MEMORIA OUEXPERIENCIAS DESARERES 65 das, capazes de submeter outras formas de explicar o mundo aos seus termos. Nesse sentido, a memoria triunfante significa ofere- cer interpretagGes de experiéncias elaboradas quando da eclosaio do fato ~ certa modalidade de histéria imediata ~. apresentada para contempordineos e pésteros como pu- ros fatos. Os historiadores/professores/alunos que preten- dem separar interpretagdes de fatos nao se dao conta de que sempre trabalham com interpretagdes; nao ha fatos origindrios; interpretar aqueles que sao assim supostos € fazer interpretagdo de interpretagdes; pensar que nada se interpreta quando se pretende recuperar puros fatos é re- Por sua interpretagao “inaugural”, que The garantiu a so- brevivéncia como memiéria, A existéncia de vozes altemativas & da memsria insti- tuida articula-se com dimensdes de lutas sociais na cons- trugdo de identidades ¢ nas relagdes de poder, demons- trando que tal proceso de consolidagiio nao fica isolado em certas camadas da sociedade, embora atenda a inte- tesses prioritérios de algumas delas, precisando conven- cer diferentes grupos sobre sua adequagao. Um exemplo dessa construgio ¢ de seu desdobra- mento em persuasio € oferecido pela experiéncia de ‘fim da ditadura” e “redemocratizagao” no Brasil dos anos 80: houve movimentos contra a ditadura, desde os anos 70, que tematizaram muiltiplos direitos (de trabalha- dores, mulheres, indgenas, negros, homossexuais, sem- terra etc.) como dimensdes bésicas da democracia a ela- borar; a partir da “Campanha pelas Diretas”, tal discussdo foi canalizada quase exclusivamente para 0 universo da politica institucional, com os detentores de diferentes mandatos (governadores, deputados, senado- res) a frente; a safda encontrada para aquela situagao — 66 MARCOS. DASILVA eleicao indireta de Tancredo Neves, unifio entre peeme- debistas ¢ dissidéncias pedessistas (“Alianga Democrat ca") — complementou 0 descarte daquelas tematizagoes anteriores, configurando uma “Nova Reptiblica” como esquecimento de lutas ou, no maximo, reducao das ilti- mas a itens ret6rico-burocraticos, Ainda no campo do tiltimo exemplo, conveniente registrar que figuras co-responsaveis pela ditadura (Del- fim Netto, Paulo Malut, José Samey e outros) beneficia- ram-se daquela construcao de memoria através de répida e singular reinsergdo na “nova” cena politica, quer como pretensos experts em certos quesitos (economia, legisla- 4), quer na condigao de ficticios “experientes ¢ compe- tentes administradores”, sendo mesmo eleitos aclama- dos no contexto supostamente pés-ditatorial. Isso foi explorado pelo desenhista Laerte nos quadrinhos “A ‘queda dos paises do Leste”: Maluf, Amin, Marchezan, Magalhies e Delfim Netto aparecem carregados em triunfo no pentiltimo quadro daquela narrativa. Esse exemplo de meméria sobre a mais recente dita- dura brasileira explicita evidencia ser necessario, para os dominantes, convencer outros grupos sociais sobre a logicidade das relagées de poder vigentes, forma de ga- rantir a sobrevivéncia da propria dominagio. ‘Tal memGria se beneficia da definicao de personagens © lugares, reforcando-se através de comemoracées ¢ rememoragdes, sob a forma de diferentes rituais, dos es- peticulos civicos (paradas, solenidades) ao cotidiano me- nos perceptivel —nomes de mas ¢ outros logradouros pti- blicos, personagens em cédulas ou selos etc. Ela se mescla com diferentes niveis de conhecimento histérico através das associagdes que ensino e projetos de Financia mento para pesquisas fazem entre datas, personagens ¢ te- MEMORIA OU EXPERENCIAS DE SABERES o mas: tanto os livros didatices basicos mais banais como sofisticados nticleos académicos brasileiros de pesquisa dedicaram-se, no final dos anos 80 ¢ comego dos anos 90, a modalidades de comemorayao sobre Aboligao, Republi: cae Descobrimento da América, entre outros eventos. Ameméria dominante, para se afirmar, precisa sufo- car ou submeter memGrias autOnomas, provando que sua existéncia se da num espago de lutas, configurando pode- res menos visiveis e muito eficazes na construgdo de identidades sociais. Tal espago de lutas demonstra a existéncia de outras potencialidades no social, pouco palpaveis mas muito significativas para se entenderem tenses e alternativas, evidenciando que os grupos dominados, de forma even- tualmente descontinua mas também intensa, preservam poderes. Nesses termos, ele esboga uma situagao de di- reito a memérias para todos, que se articula politicamente com os debates sobre fortalecimento de cidadania ¢ evi- dencia que o respeito a diferentes mortos —e suas mem6. rias — resulta em respeito aos vivos. Em 1992, na cidade de Sao Paulo, houve iniciativas visando a recuperagao documentada de restos mortais de desaparecidos politicos assassinados nat ditadura brasilei- rade 1964-1984. Aparentemente, tal esforgo poderia remeter apenas a um puro pasado (tais fatos ocorreram naquele terrivel perfodo —e s6) se ele nao convivesse com graves conti- nuidades da experiéncia ditatorial — governo Collor, mi- séria em nome de modernidade, nova respeitabilidade publica adquirida por diferentes figuras de peso daquele regime, irresponsabilidade social do governo FHC — fomento de priticas neofascistas, como agressOes a nor- destinos, negros, judeus, presos ¢ menores. ox MARCOS A. DA SILVA, A recuperagao daqueles restos mortais assumiu, en- {o, o papel de salientar a importancia de nao esquecer experiéncias, Iutando contra a impunidade de criminosos através do impedimento de novos crimes similares aque- les, Ao mesmo tempo, ela ndo pretendeu condenar gene- ficamente os militares (inclusive porque houve responsa- bilidades civis nos referidos crimes, bastando lembrar influentes personalidades da ditadura que, no maximo, prestaram servigo militar obrigatério) e, sim, praticas es- peefficas de determinados militares, numa historicidade precisa. Do ponto de vista das vitimas daquelas violéncias ¢ de seus parentes c amigos, tal recuperaco também signi- ficou a reconquista de identidades emocionais, pessoais ¢ coletivas, como se verificava nas audiéncias puiblicas que ‘marearam as referidas iniciativas. A dor das pessoas liga- das aos mortos identificados mesclava-se a sua capacida- de de comprovar responsabilidades, entender trajetos da sociedade onde aquilo foi possivel e interferir nos novos percursos dessa mesma sociedade Pensar em memérias prprias aos grupos dominados nao se restringe, certamente, a situagdes dessa natureza. Suas manifestacdes em movimentos sociais — contra ca- restia, por creches, moradia e saide, dentre outros — e hum cotidiano de tradigdes (regionais, étnicas, familiares ete.) ampliam 0 campo de discussio sobre meméria, evi- denciando angulos desta como um fazer miiltiplo. A mem6ria é mareada, portanto, por dimensdes de invengao, seleco e combinacdo tematicas no social, que se diferenciam do passivo actimulo, deixando patentes caracteres de disputa em sua definigao. O estabelecimen- to de sua face dominante nos quadros de determinada historicidade, embora assoviado a referida vontade de MEMORIA OU EXPERIENCIAS DESARERES cy monopélio, enfrenta tensdes ¢ lutas que resultam tanto €m sua produgdo permanente como na elaboracdo de al- ternativas aos seus termos. Mais que matéria-prima A atengao dada por historiadores a essa questo en- globa, freqiientemente, certa énfase nas diferencas entre mem@ria e historia. Pierre Nora, por exemplo, realgou o carter etnografi- ©0 ¢ totalizante da meméria, contrapondo-o a perspectiva subjetiva, via historiador, ¢ particularizante da historia. José Honério Rodrigues, menos sutilmente, atribniu & mem6ria os papéis de lembrar e comemorar, cabendo hist6ria as dimensdes de anilise ¢ critica, puro conheci: mento diferenciado de fungées ideolégica: Insistir sobre a distingda (ou, mesmo, oposigao) en- tre meméria e historia prejudica significativa potencia- lidade nesse debate: a dimensao de produgao, to paten- te na constituigao da memiria, que pode contribuir para a reflexdo sobre relagdes entre o conhecimento histérico etal vigs. No caso da mem@ria, sua face de elaboragao signifi- ca, também, uma exposi¢io de virtualidades em disputa, que constituem ou silenciam determinados temas com os quais 0 conhecimento histético se relaciona muito inti- mamente, E nessa interpretagio de interpretagdes realizada pela historia, como foi anteriormente definido, que se torna mais empobrecedor reduzir seus referentes a condigao de matéria-prima ou se limitar 2 situagio de repetir memé- rias “inauguradas” por diferentes “pais fundadores” de 70 MARCOS. DASILVA tradigdes dominantes ~ 1822, 1888, 1889, 1922, 1930, 1937, 1946, 1964 ou 1985, para evocar alguns dos mar- cos mais usuais da meméria politica brasileira, Ao mesmo tempo, é necessério levar em conta que a historia, como saber, no lida apenas com as memérias dos outros. Nesse sentido, s40 muito pertinentes as obser- vagGes de Nora sobre as relagdes que o campo de conhe- cimento hist6rico erudito estabelece com sua propria tra- dicdo, configurando uma espécie de meméria interna, marcada pela pretensao a continuidade e crescente com Pletude de sua producdo, que, as vezes, & designada como “saber acumulado”. Daf, ser muito dificil negar que 0 trabalho erudito do historiador, relacionando-se com outras memdrias, parti- cipe também do processo permanente de produzi-las, di Tetamente (instituiges cultas, como academias, socieda- des cientificas ¢ museus, revistas especializadas etc.) ou hilo (ensino bisico, publicagdes de divulgacdo, progra- mas de rédio e televisdo ¢ instdncias similares), Refletir sobre articulagdes entre meméria e hist6ria no significa reduzir os dois termos & condigao de sinéni- mos, Salienta, todavia, a dependéncia reciproca de ambas € sua densidade como pritica social. Ao contrério da oposicao feita por Nora entre meméria (espago do vivido € do absoluto) c histéria (lugar do reconstruido e do rela- tivo), € possivel enfatizar no reconstruido e relativo al- guns horizontes do vivido e certa pretensdo do absoluto, que passam pelas regras eruditas do fazer, com os meca- nismos de legitimacao institucional — diplomas, titulos, Publicagdes, prémios ~, ¢ tendem a apagar o lugar social da produgao, que autores como Jean Chesneaux e Michel de Certeau, em diferentes perspectivas, tanto salientaram, O universo do vivido e do absoluto, por sua vez, também MEMORIA OU EXPERIENCIAS DESARERES m obedece a dimensdes de esiruturago e transformagio que diminuem aquele confronto tao nitido entre espago do etnogrifico e campo do reconstruido, como se obser va em Lévi-Strauss. O propro mito da objetividade, ali- mentado por parcelas do conhecimento histérico erudito, reforga a meméria intemma dese campo de saber. Discutir memsria possitilita para os historiadores, Portanto, refletir permanentemente sobre a historicidade de sua prépria produgao, criticando 0 chao seguro e en ganoso de teorias que tém pretensdes de operar como ga- rantia de objetividade, quer como primeiro principio (ou seja, corpo de conceitos de que se parte ¢ ao qual se sub- mete uma suposta matéria-prima do saber), quer como fim tiltimo — vale dizer, corpo de conceitos que se atinge no final das operagdes de conhecimento, resultante de re- flex6es a que se aplicou aquele mesmo referencial em es- taco bruto. Essa critica aberta pelo didilogo entre histéria e me- io significa perda de cualquer teoria. Ela eviden- suficiéncia do tedrico como garantia preliminar — isto €, anterior a reflexdo sobre experigneias especificas — do pensamento, questo discutida por Edward Thomp- son no livro A miséria da teoria. Resulta dessa critica uma concepcao de conhecimento histérico que nao se contenta com hierarquizar teria e documentos, saber acumulado e possibilidades de pesquisa/ensino/aprendi- zagem, interpretagGes e experiéncias. A teoria como primeito principio ou fim iitimo, alias, pode ser encarada como pretensiio & meméria tinica do campo de saber. que quer submeter todo pensamento ao viés da inevitabilidade ou do puro objeto. Além de possibilitar uma relagdo com diferentes su- Portes das experiéncias sociaiis que nao os reduz a condi- n MARCOS DASILVA $40 de matérias-primas, uma vez que os encara no pro- cesso de definicées de identidades © produgdes de me- mérias, aquela articulago contribui para o debate sobre a propria nogdo de fonte hist6rica de forma ilimitada: ao pensar na constituicaio de lugares, simbolos e formas de meméria, o historiador/professor/aluno abandonars o ilu- sério conforto da documentagao escrita, muito mais res- {rita a0 Universo social dominante, c enfrentara uma infi- nidade de caminhos percorridos pelo social, dando conta da cultura material (Universo de artefatos — objetos utili- irios, instrumentos de trabalho, acessdrios de rituais, elementos decorativos etc. —, incluindo o ambiente e o corpo) e do conjunto de priticas englobadas pela rubrica “cotidiano” — atividades corriqueiras, repetitivas e previ- siveis, que também abrigam sentimentos como esperan- as, receios, 6dios e conformismo, Endossando a abertura documental que o apelo a cultura material representa, € necessitio ir além desse proprio conceito para se pensar na materialidade de toda cultura (textos, crengas, sentimentos, projetos), articu- lando-a com as praticas sociais que a tornam mais per- ceptivel —rituais, aprendizagem e difusdes, por exemplo: Nesse sentido, o préprio conhecimento histérico, em seus varios espagos de ensino/pesquisa, também se constitui em dimensao de cultura material Evidentemente, a memsria ainda abrange miltiplas Priticas voltadas para a preservagiio de parametros so- ciais dominantes, © que deixa patente sua organizagao como contraponto a diferentes projetos e potencialidades na vida social. Nesse sentido, a referéncia feita a marcos instauradores da meméria politica dominante no Brasil (Independencia, Aboligao, Reptiblica, Tenentes/PCB/ Modernismo, Revolugio de 1930, Estado Novo, Rede- MEMORIA OU EXPERIENCIAS DE SABERES 2 tizacdo, 1964, Nova Repiiblica) exemplifica a for- a de produgao de hegemonia politica daqueles pariime- tos, reforeados por boa parte da produgao emdita de co- nhecimento hist6rico. Eles nao abrigam, todavia, outras intimeras tentativas © experiéneias de diferentes grupos humanos ao longo de sua vigéneia como meméria e historia, Pensar numa his- t6ria que nao se reduza a tedizer tais marcos passa pela admissdo de memérias organizadas a partir de ontros cri- \Grios ¢ referenciais ¢, também, pelas atividades da pes- quisa hist6rica visando entrar em contato com elas. Ooral eo audiovisuai Embora a memoria se manifeste através de diferentes suportes e seja discutida por historiadores brasileiros, desde os anos 70, com base em documentagdo escrita — caso do artigo “A revolugdo do vencedor”, de Carlos A. Vesentini e Edgar De Decca —,0 apelo aos registros orais (audiocassete) e audiovisuais (videocassete) tem marc: do mais recentemente significativa parcela da discussio historiogrsifica entre nés sobre a questao. Muitos profissionais da drea utilizam gravador © mera como recursos para coletar narrativas de agentes sociais sobre suas experiéncias em diferentes universos— movimentos sociais, bairro ¢ localidade, préticas profis- Sionais, trajet6rias de migragao etc. A publicaciio de textos Por autores brasileiros, em variadas perspectivas, como Historia oral ~ a experiencia do CPDOC, de Verena Al. berti. “Documentos orais e visuais: organizagao e usos co- letivos", de Yara Aun Khoury, e Canto de morte kaio- wd, de José Carlos Sebe Bom Meihy, além da tradugaio de 74 MARCOS A. DASILVA ‘Historia local e hist6ria oral”, de Raphael Samuel (inclui- do no n? 19 da Revista brasileira de historia), A voz do passado, de Paul Thompson, c a sintese “A historia oral”, de Gwin Prins, dentre outros materiais, contribui para a expansdo e 0 aprofundamento daquele interesse pelo re~ gistro de narrativas, jd assumido pelo ensino bisico. Trata-se de caminho frutifero tanto ao garantir a ex- pressio de vozes de agentes sociais menos presentes noutros documentos (textos, acervos de museus, patri- ménio edificado etc.) quanto ao evidenciar uma presen- ¢a direta do pesquisador no ato de produzir a narrativa, com suas perguntas ¢ intervencdes participando da fala registrada. E claro que 0 trabalho com 0 oral eo audiovisual nao se restringe ao ato de gravar. Os autores indicados. entre outros, assumem cuidados que ceream tanto aquele mo- mento como etapas seguintes de transcrigiio e textua- lizagao das narrativas, preservagao dos materiais, devolu- do aos narradores e divulgagao para outros puiblicos. As iniciativas nesse campo jd assumidas pelo ensino de Ie 2° graus podem ser exemplificadas pelos esforcos desenvolvidos na Secretaria Municipal de Educagao de Sao Paulo entre 1989 ¢ 1992, quando se realizaram, em parcela da rede escolar, trabalhos de reflexdo sobre temas geradores a partir dos quais elaboram-se projetos temé- ticos para as varias disciplinas de cada unidade escolar. Isto significou discutir mem6rias da propria escola e do bairro onde se localiza, incluindo os trajetos de vida de seus moradores, coletados em entrevistas feitas por professores € alunos. A equipe de historia (professores da rede e assessores de universidades) propos que esses materiais fossem pre- servados e tomados acessiveis a outras escolas e demais MEMORIA OU EXPERIENCIAS DESABERES 8 interessados através da criagdo de um banco de dados informatizado, com terminais ras diferentes unidades da- quela rede de ensino ¢ também permitindo consultas a catilogos e outros referenciais de bibliotecas e demais entidades de pesquisa. Tal proposta nao foi implantada, mas se mantém como indicagao para a integragao daque- les recursos de trabalho no ensino basico de diferentes disciplinas Certamente, 0 apelo ao oral e audiovisual deve ser conduzido com 0 rigor e o cuidado que todo estudo his- t6rico requer, buscando, inclusive, a preciso maxima ao organizar informagoes. Articular as narrativas coletadas com outros materiais disponiveis sobre as experiéncias que abordam ndo corresponde a “corrigir” o que um narrador falou sobre suas experiéncias nem a transformar seu pensamento em mera fonte “complementar”. Este procedimento visa compreender aquelas falas no contex- to de sua produgao social, que no se reduz & narragio isolada. A procura de preciso e crganizagio, por sua vez, nao se confunde com o culto a quantificacao ¢ a estatisti- ca como “fins” ou “revelagdes do real”: ela contribui para avaliar especificidades e originalidades de temas ¢ opinies identificados, sua configuragio coletiva e nuan- ces particulares que recebe na pritica social. Importa, também, evitar a produgao de um mito tec- nicista sobre esses recursos como os tinicos dignos de confianga e atengo. Garantindo 0 apoio aos mesmo: nio é possivel negligenciar o apelo a bibliografia e outras fontes dispontveis sobre as experiéncias sociais aborda- das nas narragées que se regis:ram, em dudio ou video- cassete, sob pena de perder © processo social que possi- bilitou as proprias narrativas %6 MARCOS. DASILVA A produgao conjunta das narragdes por pesquisado- res ¢ diferentes individuos ou grupos que eles contatam contribui para se entender o trabalho da meméria como importante referencial da reflexao histérica, num proces- so de esclarecimento reciproco que nao se beneficiaré pelo reforgo a novas hierarquias ¢ preconceitos entre as partes nele envolvida Identidades simultaneas ‘Se a memGria desempenha importantes papéis na de- finigdo de identidades sociais, é preciso ainda pensar so- bre diferentes faces das tiltimas. Muitos movimentos ou grupos sociais organizados tém feito essa articulagao visando aos seus projetos espe- cificos. E 0 caso de feministas ¢ negros, que contribui- ram significativamente para a transformagio do conheci- mento hist6rico sobre seus respectivos grupos e muitos outros aspectos das experiéncias sociais, além de miilti- plos outros exemplos de etnias, minorias, profissionais e demais coletividades, A riqueza dessas experiéncias convida os interessa- dos pelo prazer da histéria a pensar sobre possibilidades de ampliar aquelas transformagies. Se os debates de con- tracultura e outros movimentos de massa dos anos 60 70 do século XX tanto significaram para a reconsi- deragio de historicidades a luz de trajetos ¢ projetos es- pecificos, que se expressaram como orgulhos negro, fe- minino e gay, entre outros, cabe pensar sobre o carter infinito dessas identidades insatisfeitas com a histéria comumente trabalhada mesmo por eruditos especialistas ¢ a simultaneidade de identidades que marca as ex- periéncias historicas. MEMORIA OU EXPERIERCIAS DESABERES 7 Com efeito, ninguém é somente negro ou mulher ou nortista ou liberal ou gay ou czt6lico, digamos. Seres hu- manos abrigam essas ¢ intimeras outras identidades em suas existéncias, que, além disso, sofrem transformagoes através de suas trajetdrias, Ligar meméria a identidades, portanto, engloba tam- bém dar conta dessa multiplicidade, que quase nunca harménica, antes expe tensdes e disputas, as quais nem precisa se dar entre seres diferentes, porque uma mes- ma pessoa as suporta. Tal multiplicidade desfaz par- cialmente as vontades totalitérias, que Orwell tao bem apresentou, impedindo que a memoria seja reduzida unidimensionalidade de um poder com lugar fixo. Conclusdo — O direito a hist6ria “E na tv se voeé vir um deputado em panico tnal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, ‘qualquer qualquer Plano de Educagao que parega facil (Que parega file rapido E vi represertar uma ameaga de democra- tizagao Do ensino de primeiro grau ww Pense nto Haiti reze pelo Haiti © Haiti € aqui, o Haiti nao 6 aqui.” (Gibeo Gite Catan Wenn Ha) Este livro, falando sobre o prazer da historia em pes- quisa e ensino, ao redor do imediato, patriménio e me- méria, procurou evidenciar que esses és itens nao existem isoladamente, que eles se remetem reciproca- ‘mente todo 0 tempo e nao podem pretender monopoli- zar o debate sobre historicidades. Apelar para tais campos permite refletir sobre conhe- cimentos histéricos como fazeres sempre em elaboragao, que nao decorrem espontaneamente quer dos processos 80 MARCOS A. DASILNA, histéricos vividos no presente e no passado, quer de es quemas te6ricos independentes das experiéncias soc nem sio objeto de pensamento possivel apenas para pouquissimos profissionais. Assim, pesquisa/ensino em historia permite refletir sobre os trajetos de temas, objetos, personagens ou datas sendo investidos socialmente como imediato, patrimd- nio e memGria: certos objetos saem de seus usos habi- tuais (méveis, armas, instrumentos de trabalho, roupa veiculos etc.) © passam a condigao de itens museo- logics; determinados edificios mudam de fungao (re- sidéncias, fortalezas ou presidios transformados em mercados de arte, museus ou “casas de cultura”, por exemplo) ou a tém reforcada (teatros, igrejas e sedes de governo, entre outros) porque encarados como patrimé- nio; palavras, gestos e expressdes faciais sao registrados em video, audiocassete ou fotografia, preservados di vulgados junto a outros piiblicos; pessoas merecem real- ce como porta-memérias. Articular imediato, patrimOnio © memoria também significa trazer para o interior das problemiticas de co- nhecimento hist6rico diferentes seres sociais que com elas se relacionam, entendendo que tais pessoas sdo faces daqueles itens e merecedoras tanto de atengao analitic: quanto de respeito enquanto analistas da historia, Noutras palavras, se € facil avaliar que o imediato re- fere-se a historicidades experimentadas por alunos, pro- fessores ¢ historiadores, faz-se igualmente necessario es- tar atento a essas mesmas personagens como dimensdes de patrimOnio a serem preservadas socialmente para que expressem do maximo suas potencialidades e, mais que “lugares” (conforme a expresso de Nora), sejam agentes de memGria. ais, CONCLUSAO- 0 DIREITO AMISTORIA a1 Um desdobramento daquela compreensao dos seres sociais no scio de problematicas de conhecimento histé: rico, como intérpretes do que sao e fazem, é entender professores e alunos de histéria, em diferentes. graus, como historiadores. Tal entendimento pode soar pretensioso ¢ descabido para alguns. Afinal de contas, como equiparar a transbor- dante erudigdo dos grandes historiadores as primeiras tentativas de alunos ou aos esforgos e sacrificios de pro- fessores dlo ensino hasico? Os debates de arte-educadores oferecem pistas funda- mentais para se responder a esse tipo de indagagI0, como se observa na Visio de drea —educagéo artistica, da Se- cretaria Municipal de Educagio de Sao Paulo, elaborada por uma equipe de professores no periodo 1989/1992. Nao se trata de exigir de alunos e professores resultados semelhantes aos alcangados por Velasquez, Mozart ou Shakespeare, para citar campos de linguagem por eles tra- balhados naquela disciplina — plastica, misica ¢ teatro. Importa que, em contato com a hist6ria dessas lingua- gens, professores e alunos desenvolvam suas potencia- lidades de entenderem a produzao artistica nelas existente © produzirem autonomamente através de seus recursos. Nesses termos, professores ¢ alunos nio somente apren- dem a compreender as artes, mas também se transformam, emartistas. Esse novo apelo a exemplo artistico pode suscitar, mais uma vez, a questo aponada na introdugao deste li vro: 0 conhecimento hist6rico deve ser arte para suscitar prazer em professores ¢ alunos? Emboraa resposta nio seja obrigatoriamente afirmati- va ela pode, legitimamente, dizer sim a tal identificagio sob o signo da multidisciplinaridade. Tal argumento, entre 2 MARCOSA, DASILVA, profissionais de historia, é mais habitualmente entendido de forma monocérdica, como associagiio mecanica A geo- grafia (podendo reconduzir aos malfadados estudos so- Cialis...) Ou pretensio imperialista do tipo “tudo € histéria’” Certamente, didlogos multidisciplinares muito ricos po- dem ser estabelecidos entre historia, gcografia e outros campos de saber. Igualmente, a partir de angulos diferen- tes © descartadas certas ingenuidades, “tudo € histéria”, bem como “tudo € fisica”, “do linguagem” etc. A mul- tidisciplinaridade pode constituir caminho frutifero desde que se configure num fim em si mesmo e faga parte de problemiticas de conhecimento hist6rico e educagao, Ao mesmo tempo, falar em multidisciplinaridade exi- ge que as disciplinas envolvidas no processo apresentem problematicas umas para as outras ¢ as respondam con- juntamente, evitando-se certo parasitismo que pode con- duzir 4 mera transferéncia ou assimilagaio de solugdes. A partir dessas articulagdes, desdobradas agora na identificagdo de professores e alunos de histéria como historiadores e na multidisciplinaridade como pratica criativa para varios campos de conhecimento, que ens har para garantir © prazer da historia? Trata-se de problema cuja resposta sempre dependera de projetos especificos, ancorados em concepgdes de his- \6ria ¢ educagao. Algumas indicagdes genéricas, todaviz podem ser esbogadas. E muito importante que a valorizagao de historiado- tes, professores ¢ alunos de hist6ria como faces da hist6- ria aprendida e ensinada nao se confunda com um exerct- cio confessional autocentrado, no qual se perca de vista as multiplas possibilidades sociais existentes em cada momento, ao longo de milénios e em diferentes espacos. Oestudo de temas ditos “clissicos” CONCLUSAU~O DIREITOA HISTORIA 3 jamais poderd ser negligenciado, Cabe, certamente, sub- meté-Io a lentes criticas, que desmontem suas dimensoes cristalizadas, para que se entenda como esses assuintos foram tomados classicos a pertir de sua institucionali- zacio por diferentes agentes sociais— inclusive os profis- sionais de historia, Junto com isso, a énfase dos estudos histéricos em grandes transformagées (revolugdes, inovagées, momen- tos de mudanga) nao deve eclipsar a necessidade de ex- plicar a complexidade de periodos e processos aparente- mente marcados pela pura permanéncia, entendendo como, ao invés de simples “estitica social”, tais expe- rigncias significam também presenga de alternativas e lu- tas, cujo desfecho momentiineo é aquela aparente imobi- lidade. Daf a importincia de se discutirem experiéncias cotidianas como universo do homem comum, do coleti- Vo, das tradigdes que também incluem lutas € desafios, das alternativas ao existente sendo sufocadas ou desabro- chando sutilmente. Enguanto graduados em bist6ria t¢m dificuldades para se assumirem como historiadores, muitos historia- dores que lecionam em universidades niio se vem como professores. Reforcam o descompromisso do ensino su- perior com o prazer da hist6ria para todos, deixando de assumir responsabilidades na preparagio de seus pr6- Prios alunos para ensino e pesquisa, cesqualificando-os por ndo saberem linguas estrangeiras nem técnicas de pesquisa c estudo (em lugar de -econhecerem o aprendi- zado dessas ¢ outras habilidades como tarefas da univer- sidade). Contribuem, assim, para a reprodugao ampliada daquela desqualificagao. Na medida em que a escola nao € encarada como patrim@nio hist6rico, legitima-se mais a degradacio do ensino, com prédios ¢ equipamentos a4 MARCOSA.DASILNA, destruidos ou escondidos por outdoors, professores pes- simamente remunerados, obrigados a fazer sofridas gre- ves, alunos sem aprender e “altos estudos” apropriados por minorias muito (o)culta: O direito a hist6ria, aqui reivindicado para todos, sig- nifica que o prazer desse campo de conhecimento pode vir ase generalizar. A alegria que muitos sentem diante dessa ampliagio do ptiblico apreciador de histéria pode ter por contrapartida o receio de outros tantos: que fazer quando o prazer da hist6ria estiver ao aleance de todos? Quem pretende monopolizar os significados da his- t6ria, seus fins, comegos e caminbos, ficard sempre pre- Soa esse medo ou nem sequer admitira pensar naquela possibilidade. 86 uma relagao de liberdade com a historia, aberta a seus desafios, riscos ¢ indeterminagées, possibilita parti- cipar da festa pelo acesso de todos ao seu prazer. Vocabulario critico Crise do marxismo: com adiluigio do bloco soviéti- co (fins dos anos 80), esse tema cresceu na imprensa, na politica ¢ nas ciéneias humanas, tratado num sentido ter- inal. Desde Marx (1818/1883), todavia, tal crise fora aberta, de seus conflitos com socialistas libertérios na Primeira Internacional & sua conclusdo em correspondén- cia: “Tudo o que sei é que eu ndo sou um marxista”. Ela se expandiu com a supremaci de um viés economicista na Segunda Internacional e a consolidagao de “ortodo- xias” (nogio teol6gica) partidérias ¢ tedricas em nome do marxismo. Uma vantagem dessa crise € questionar a per- da de historicidade do marxismo. Escola dos annales: designa historiadores ¢ obras li- gados a revista erudita francesa Annales, fundada em 1929 por Lucien Febvre e Mace Bloch, que reuniu pes- quisadores dotados de identidades te6ricas préprias. Seu carter geral se refere & politica de pesquisa ¢ interesses difusos: critica da hist6ria posit:vista, defesa de pesquisas coletivas (até em escala internacional), atengao para pro- blemas do presente, busca de interdisciplinaridade, exi- géncia de problematizagdes pelo historiador, énfase em temas de economia, cultura e demografia. Seu crescente prestigio mundial também rep-esentou nova integragio 86 MARCOSA, DASILVA da hist6ria a universos de planejamento, instituigdes de pesquisa e mercadorias cultas, Estudos sociais: & a pseudodisciplina escolar que a ditadura militar (1964/1984) consolidou no Brasil a par- tir da Lei n’ 5.692/71. Em nome de suposta interdis- ciplinaridade ¢ usando jargio subpiagetiano, diluiu, em pequena carga horéria, elementos de hist6ria, geografia, organizacao social e politica do Brasil e educagdo moral © civica. Associou-se, de forma mais ou menos nuan- cada, ao clima ufanista e repressivo do “milagre brasilei- 10" (inicio dos anos 70) e foi combatida por historiado- res © ge6grafos criticos. Sobrevive, maldisfargada, no ensino de histéria que se reduz a chavGes psicope- dagégicos. Livro didético: material preparado especialmente para o ensino, associado a séries e programas fixos. Ten- de & uniformizagio de temas e explicagdes, justificada em nome de critérios psicopedagégicos, inovando topi- camente, em especial, no campo grafico — quadrinhos, fotografias, diferentes tipos e cores. Durante muito tem- po, foi culpabilizado pelos problemas gerais do ensino de st6ria, atitude que negligenciava outras responsabilida- des — muitos de seus autores so docentes universitaérios altamente graduados, por exemplo. Atualmente, critica- lo exige levar em conta os quadros gerais da produgio de imento hist6rico, entendendo, ainda, que qualquer conh livro, desde que adequado a puiblicos e objetivos especi ficos de aprendizagem, pode ser considerado didatico. Livro paradiddtico: ocupa grande espago no ensino de hist6ria brasileiro desde tins dos anos 70. Caracteriza- se por pequena quantidade de paginas e pretenso de atin- gi vasto pblico, sem tracos académicos explicitos (dai a auséncia ou limitagaio numérica de notas de rodapé), mas VOCABULARIOCRITICO 87 preservando certo padrito qualitativo —atualizacao, ori nlidade — em linguagem acessivel. Tematicamente, di vulgou contetidos inéditos ou raros no mercado editorial do pais. Em alguns casos, apresenta atividades orientadas. Tende a ocupar, em diferentes graus, o papel dos livros di- dticos subdivididos em muitos volumes. Marxismo: comegou a se definir como tradigio polit ca e tedrica em meados do século XIX, participando de Iutas sociais contra o capitalismo. Realga a dimensio co- letiva da historia e 0 peso central nela ocupado por pro- dugao material c luta de classes, englobando propriedade e relagdes com a natureza via técnica. Quando reduzido a ortodoxia tedrico-partidéria, resultou em interpretagdes da histéria como seqtiéncia linear de modos de produgao (escravista, feudal, capitalista e socialista), equivalente & sucesso de “Idades” (Antiga, Média, Moderna e Con- tempordnea), omitindo capacidades de ago de grupos sociais. Transformou-se em referencia classica para dife- rentes tradig6es historiograficas — inclusive ndo-marxis- tas =, em especial através de debates sobre a materiali- dade da vida social. Nova Histéria: a expressao se refere a historiadores de uma geragio mais recente da “Escola dos Annales”, dos anos 70 em diante, diferenciados teoricamente e com algumas problemdticas de conhecimento em comum — Tejeigdo de sinteses filos6ficas, politicas ou religiosas, én- fase na multiplicidade dos niveis de historicidade, aten- ao para cotidiano, mentalidades, imagindrio e materiali- dades, preocupagio com « escrita da histéria © sua insergao em diferentes mercados culturais, Reitera algu- mas tradigGes classicas (Herédoto, Voltaire, Michelet etc.), rediscutindo certas quest6es da historia positivista — fato, documento e outras. 88 MARCOS A. DASILA, Pesquisador: define-se pela busca de novas explica- ¢0es para diferentes fenémenos, estabelecendo-as a partir de critérios interpretativos e demonstrativos, visando a afirmagao da autonomia intelectual que supere o falso conforto da submissao (cf. “Resposta & questo: que € es- clarecimento?”, de Kant). No campo da hist6ria, reflete simultancamente sobre indicios de priticas humanas pré- prias as épocas estudadas (documentos) e problemas te- ricos (conceitos, tradigdes historiognificas), elaborando probleméticas de conhecimento e procurando responder aclas de forma rigorosa. Todo ensino de historia que visa a independéncia cultural de professores e alunos transfor- ma-os em pesquisadores. Positivismo: essa tradigao filos6fica, iniciada na pri- meira metade do século XIX, destaca a ciéncia como ideal de conhecimento, superior a outras modalidades de cultura (artes, filosofia), e a suposta garantia de objeti dade derivada de seus procedimentos — observacio, ex- Perimentagao ¢ generalizacao. No ambito da hist6ria, ele Prioriza um trabalho com documentos e estabelecimento de fatos, rejeitando dimensdes literarias ¢ politicas em sua produgao. Professor: ensina diferentes aspectos de um campo de conhecimento. Como este ultimo € universo em mu- danga (novos saberes so elaborados a cada momento), 0 professor aprende junto com os alunos, exceto quando a formagio reprodutivista e suas condigées de trabalho (baixos saldrios, cargas hordrias estafantes, auséncia de materiais bibliograficos e outros) o impedem, o que é re- gra no Brasil, contribuindo para um ensino burocritico, Tepetitivo e dependente em relaco a diferentes instancias — treinamentos, recursos técnicos preparados por outrem etc. Defender que a pesquisa faca parte do cotidiano e VocaBuLanocrinico 89 colar é dimensio da luta pelo dircito ao prazer da his- toria. Revistas especialigadas: editam resultados de pesqui- sas recentes, além de comentarem eventos ¢ langamentos de livros na area e apresentarem balangos bibliogrificos sobre temas e autores de peso. Caracterizam-se pela pe- riodicidade regular, que garante a autores ¢ leitores conta Tem com seus materiais em prazo previsivel. Preservam estilos de referenciagao e extensio préprios a escrita eru- dita, permitindo a circulagao de materiais entre institui- Ges diferenciadas — universidades, museus, arquivos, bi- bliotecas, escolas de 1° e 2° graus etc. ~e participando da informagao atualizada necessiria a pesquisa ao ensino. Sugestées de leitura 1) Problemas gerais do ensino de historia Cabrini, Conccigio et alii. O ensino de historia: revisdo urgente. Sao Paulo: Brasiliense, 1986. Assume a articulagdio entre universidade ¢ escolas de 1: ¢ 2° graus no ensino de historia, Relata projeto desenvolvido inicialmente na PUC/SP e depois aplicado em escola publica. Defende a possibilidade de se produzir conhecimento hist6rico em I e 2° graus, sublinhando seu cardter limitado e simplificado. Apresenta a andlise final, por docentes universitérics, da experiéncia realizada. Fenelon, Déa Ribeiro. A formagio profissional de historia e a realidade do ensino. Projeto histéria. Sao Paulo, PUC, 2: 7-19, ago. de 1982. ‘Trata-se de artigo clssico sobre 0 conhecimento hist6rico em 3°, 2" € 1° graus. Dificuldades nas relagdes com pesquisa ¢ teoria so articuladas a determinadas posturas metodolégicas e institucionais (reprodutivismo, falta de critica, isolamento em relagio a0 social). Rejeita oposicgdes ou hicrarquias entre pesquisa ¢ ensino, de- fendendo a dignidade dessas tarefas como dimensdes de formacao e atuagao do profissional de historia, 2 MARCOS A.DA SILVA, Ferro, Mare. A manipulagdo da historia no ensino e nos meios de comunicacdo. Traducao de Wladimir Araiijo. Sao Paulo: Ibrasa, 1983. infeliz titulo brasileiro, que ndo corresponde a0 original (Como se narra a histéria as criangas no mun- do todo), dificulta a compreensaio de seu contetido. Anal comparativamente temas hist6ricos em materiais didati- cos de diferentes paises € grupos, casos de apartheid na Africa do Sul/Africa negra, nazismo e franquismo/so- cialismo soviético/nacionalismo arménio, WASPs/chi- canos e aborigines australianos, etc. Rejeita a historia universal © defende 0 experimentalismo no conheci- mento hist6rico, identificando-o a tradi¢zio dos Annales. Fonseca, Selva Guimaries. Caminhos da historia ensinada. Campinas: Papyrus, 1994, Caracteriza o estado do ensino de histéria sob a di dura militar, salientando a coeréncia entre guias curri lares ¢ a legislagao educacional do regime (Lei n° 5.692). Estuda horizontes de mudangas nas propostas eurriculares que foram elaboradas na segunda metade dos anos 1980, como parte da crise da ditadura, e as barreiras que enfren- taram (especialmente em Sao Paulo). Discute aspectos da producao historiografiea académica ¢ da industria cultural ~ livros paradidaticos ¢ materiais similares. Leite, Miriam Moreira. O ensino de histéria no primdrio eno gindsio. Sao Paulo: Cultrix, 1969. Mesclando preocupagoes pedugégicas ¢ historiogri- ficas, identifica dimensies sociais da educagio e do ensino de histéria no Brasil. Comenta contetidos de livros didaticos, apontando caracteristicas eurocéntricas me SUGESTOES DE LEITURA 3 © nacionalistas, comparando exemplos de Brasil, EUA e antiga URSS. Sugere ati histérias de vida dos alunos ¢ da classe, rentes documentos € recursos complementares — romance hist6rico, quadrinhos, televisio, cinema e historia da arte. RICCI, Claudia Sappag. Da intencdo ao gesto — quem € quem no ensino de historia em Sao Paulo. Sao Paulo: Annablume, 1999. Reflete sobre a Proposta Curricular paulista para histéria, de 1986, abordando a desvalorizacaio social do professor, entao vigente, e a mobilizagio social desse profissional naquela década, que o documento valorizava. Pesquisa relatos sobre os debates que professores da rede pablica fizeram a respeito daquela proposta, indicando reccios, esperangas, limites e outras atitudes manifestadas Realea 0 viés critico da proposta como ameaga para privilégios e conformismo de setores do conhecimento histérico, inclusive na universidade. Silva, Marcos. Contra o horror pedag6gico. Historia & perspectivas. Uberlindia: Edufu, 23: 85/98, jul /dez. de 2000. Caracteriza 0 ensino de histria no mundo neoliberal/ conservador brasileiro de fins do século XX (era dos Fernandos). Comenta os Parametros Curriculares Nacio- nais/Historia, que internalizaram 0 debate sobre tal campo de conhecimento no mundo dos grandes histori dores e das politicas oficiais de ensino, reduzindo os primeiros a algumas férmulas esvaziadas de agao humana — duragdes longa, média ou curta (élibi Braudel) e tempo da natureza versus tempo do relégio ow MARCOS.A. DA SILVA ou da fabrica (Alibi Thompson). Aponta 0 uso dessa politica para ocultar a multiplicidade de interpretag da histéria que circulam socialmente, o que desqualifica 0s professores e equipara aqueles historiadores a ideolo- gia mais rasteira, (org.). Repensando a historia, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984. Agrupa discuss6es teGricas e politicas em diferentes linhas, sobre relatos de experiéncias no cotidiano escolar € projetos no ensino de hist6ria. Aborda, dentre outros temas, a escola € a hist6ria ensinada como espagos de disputa te6rica e politica, os livros didaticos enquanto parte da produgao geral de saber hist6rico e alternativas as priticas dominantes em seu ensino nos diversos graus. Realca a importincia do efetivo didlogo entre historia vivida e historia ensinada. Historia em quadro-negro. Sao Paulo: CNPg/Anpuh/Marco Zero, 1990 (n° 19 da Revista brasileira de historia). Dé continuidade a iniciativa editorial do volume anterior, ampliando-a, Retine textos que representam diferentes linhas de leitura das experiéncias no ensino de histéria. Apresenta reflexdes sobre politicas educa- cionais alternativas na pratica auténoma de professores © alunos nesse campo especifico, e faces da pesquisa histérica sobre educagao, Enfatiza a importincia da reflexio original por professores ¢ alunos como base do ensino de histéria, debatendo aspectos de hist6ria local c oral, e de tradigoes historiogrticas cl SUGESTOUS DE LEFTURA 95 2) Temas de teoria e filosofia da historia Chesneaux, Jean. Devemos fazer tdbua-rasa do pas- sado? Tradugao de Marcos A. da Silva. Sao Paulo: Atica, 1995. Debate critérios tedricos, técnicos ¢ institucionais da produgiio de saber histérico na Franga © em outros paises (EUA, ex-URSS, etc.) denunciando seus com- promissos profundos com a dominagao social. Defende um conhecimento hist6rico marcado por relagao ativa com 0 passado, associando-o aos grupos sociais domi- nados, seus Movimentos e novos horizontes interpreta- tivos das experiéncias sociais. Combate a pretensdo a uma “historia universal”, inclusive quando esta se apéia em “modos de produgao”. Prefere que se dé maior atengao a realidades regionais, grupos reivindicat6rios (mulheres, etnias, etc.) e massas dominadas. Le Goff, Jacques et alii. Meméria/Histéria. Traducio de Bernardo Leitdo et alii. Porto: Imprensa Nacional/Casa_ da Moeda, 1984 (Enciclopédia Einaudi, 1), Sintetiza debates da “nova histéria” francesa sobre diferentes temas e problemas te6ricos (meméria, docu mento/monumento e outros), que remetem para questoes como patriménio, multidisciplinaridade e varias tempo- ralidades — passado/presente, antigo/moderno, ete. Organizado na forma de verbetes, inclui indicagdes bi- bliogrdficas sobre cada assunio e se articula com outros temas no conjunto da Eneiclopédia Einaudi, Le Goff, Jacques (dir.). A historia nova. Tradugao de % MARCOSA.DA SILVA Eduardo Brandao. Sao Paulo: Martins Fontes, 1990. Aborda diversificadas faces dessa tradi entre as quais longa duragio, antropologia hist material ¢ hist6ria imediata. Evidencia dimensdes técnicas ¢ de cardter multidisciplinar préprias tal perspectiva historiogréfica. A edieao brasileira no englobou verbetes menores sobre historiadores ¢ outros temas, inclusive ensino de hist6ria, presentes na primeira edigiio francesa. Marx, Karl & Engels, Friedrich. Histéria. Organizado por Florestan Fernandes. Tradugdo de Florestan Fernandes et alii. Sao Paulo: Atica, 1983 (Grandes Cientistas Sociais, 36). Agrupa techos de importantes obras (A ideologia alema, Contribuigao a critica da economia politica, O 18 brumario de Luis Bonaparte, O capital, Correspon- déncia e outras), em boas tradugdes, permitindo um primeiro contato com seus temas, a ser complementado pela leitura de textos integrais. A introdugao, de Florestan Fernandes, aponta questies gerais nos debates desses autores sobre historia e situa os textos escolhidos em suas trajet6rias politicas e te6ricas. Nietzsche, Friedrich. Obras incompletas. Selecio de Gérard Lebrun, Tradugiio de Rubens Rodrigues ‘Torres Filho. So Paulo: Abril, 1974 (Colegio Os Pensadores. n° XXXID. Retine fragmentos bem-escolhidos (Consideragdes extempordneas; Humano, demasiado humano: A gaia ciéncia; Para a genealogia da moral; etc.) ¢ inicia, no Brasil, uma série de traduges cultas de Nietzsche, & altura dos escritos originais. Opde-se a abordagens teleo- SUGESTOES EF LEITURA 7 logicas e racionalizadoras da hist6ria. Articula poderes a paixdes e forgas, em historicidades sem moral nem sen- lido intrinsecos. Seu antiigualitarismo deriva de visto radicalmente materializada das relagdes de poder. Samuel, Raphael (ed.). Historia popular y teoria socialista. Tradugdo para o espanhol de Jordi Beltran. Barcelona: Critica, 1984. Apresenta textos de autores ligados ao periédico History Workshop Journal, representativo de tradigdes heterodoxas de esquerda, ainda pouco divulgado no Brasil, mas influ- enle em niicleos de pesquisa histérica no pais. Debate popular e sua cultura, alternativas na coleta e difusdo de depoimentos de trabalhadores e aspectos do feminismo, en- tre outras questOes. Contém discussiio com E. P. Thompson sobre seu livro A miséria da teoria e outros temas. ‘Thompson, E. PA miséria da teoria, Tradugio de Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Zahar, 1981. Polemiza especialmente com Louis Althusser (autor, entre outras obras, de A favor de Marx), realgando con- seqiiéncias imobilistas de uma teoria que menospreza cultura e experiéncias. Defende a necessidade do empi- rico (diferenciado do empirismo) no campo do conheci- mento hist6rico, reafirmando a densidade tedrica do marxismo, mas apontando a necessidade de no se pre- tender reduzi-lo a panacéia universal. Em oposiga0 a0 cientificismo, assume dimensdes politicas ¢ sociais do debate teérico. Veyne, Paul. Como se excreve a histéria. Tradugao de Antonio José S. Moreira. Lisboa: Edigdes 70, 98 MARCOS A. DASILVA, 1987 (Lugar da Historia, n° 20), Escrito em provocativo estilo aforistico, que eviden- cia influéncias de Nietzsche e Foucault, o livro rejeita pretensécs a uma histéria totalizante (“Tudo ¢ histérico, logo a historia nao existe”) e defende a exploracdo de miiltiplas historias, que configuram tramas nos sentidos de narracio ¢, como metifora, fios cruzados a formar tecidos. Nao considera a historia uma ci belece relagées entre ela e praticas cientificas, como as da sociologia. Outros textos citados: Adorno, Theodor W. Educacio apés Auschwitz. ‘Traducdo de Aldo Oresti. In: Cohn, Gabriel (org.). Sociologia. Sao Paulo: Atica, 1986, p. 33-45 (Grandes Cientistas Sociais, n’ 54), Alberti, Verena. Histéria oral ~ A experiéncia do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 1990. Althusser, Louis. A favor de Marx. Tradugio de Dirceu Lindoso. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Beard, Charles A. That Noble Dream. The American Historical Review. The American Historical Association, New York, XLI (1): 74-87, out. 1935. Benjamin, Walter. Sobre 0 conceito de histéria. In: Magia ¢ técnica, arte e politica. Tradugao de Sérgio P. Rouanet. Sao Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222-32, - Paris, capital do século XIX. In: So- SUGESTOFS DE LETTURA 9 ciologia. Traducao de Flavio R. Kothe. Sao Paulo: At- ca, 1985, p. 30-43 (Grandes Cientistas Sociais, n° 50). Bloch, Mare. Introducao @historia, Tradugao de Maria M. Miguel e Rui Gracio. Lisboa: Europa-América, 1965. Braudel, Fernand. Hist6ria e Cigncias Sociais. Alonga duragdo, Revista de histéria, Traduco de Ana Maria A. Camargo. XVI (62): 261-94, abr/jun. de 1965. Certeau, Michel de. A escrita da hist6ria. Traducao de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1982. Chesneaux, Jean, A reanimagio do passado tradi- cional nas jovens nagdes da Africa e da Asia. ‘Tradugao de Antonio M. Guimaraes. In: Santiago, Theo (org.). Descolonizagdo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 75-83. Cortazar, Julio. Valise de cronépio. Tradugao de Davi Arrigucci Jr. € Jozo Alexandre Barbosa. Sao Paulo: Perspectiva, 1993 (Debates, n* 104). Duby, Georges. O prazer do historiador. In: Agulhon, Maurice et alii. Ensaios de ego-historia. Tradugao de Ana Cristina Cunha, Lisboa: Edigdes 70, 1989, p. 109-37 (Lugar da Hist6ria, n° 38), Eliade, Mircea. O mito do eterno retorno. Tradugio de Manuela Torres. Lisboa: Edigdes 70, 1981 (Perspectivas do Homem, n* 5). Engels, Friedrich. A siuacdo da classe rabathadora na Inglaterra. Tradugio de Andlia C. Torres. Porto: Afrontamento, 1975. MARCOS. DASILVA Gay, Peter. O estilo da histéria. Tradugao de Denise Bottman. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1990, Gramsci, Antonio. Concepgao dialética da historia. ‘Tradugao de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1978. Hegel, Georg W. Lecciones sobre la filosofia de la historia. Tradugio para 0 espanhol de José Gaos. Madri: Alianza, 1985. Hobsbawm, Eric. A histéria ¢ as satinicas fabricas escuras. In: Oy trabathadores. Tradugao de Marina L. T. V. Medeiros. Rio de Janeiro: Paz © Terra, 1981, p.113-27. Hobsbawm, Eric et alii. A invengdo das tradigdes. ‘Tradugio de Celina C. Cavalcanti. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Kant, Immanuel. Resposta a questo: que € esclare- cimento? Tradugdo de Floriano S. Fernandes. In: Textos seletos. PetrSpolis: Vozes, 1974, p.100-17. Khoury. 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Cola- bora em periédicos especializados, revistas culturais e jomais. Traduziu, do original francés, 0 livro Devemos fazer tébua-rasa do passado?, de Jean Chesneaux. Apresentou conferéncias, palestras, mesas-redondas e comunicagées em Avila (Espanha), Cambridge (Gra- Bretanha), New Orleans (Estados Unidos), Paris (Franga), Quito (Equador), Tel-Aviv (Israel) e instituigdes de 21 estados brasileiros. Este livio opta por lutar pela Identificagdo entre pesquisa e ensino de historia, em nome do prazer que esse campo de ‘conhecimento produz para os especialistas de instituigoes ‘avangadas — universidades, museus, arquivos etc. =e come diteito potencial de todos. Procurando contribuit para a expansdo desse direito, Hist6ria- O prazer em ‘ensino @ pesquisa discute campos atuais de Teflexdo nessa Grea de conhecimento, contra a Pesquisa ensimesmada eo ensino esvaziado de contetidos e a favor da historia como um saber que pode interessar a todos, Este livio discute 0 ato de ensinar historia como dimensdo do prazer de conhecl- mento nesse campo de saber que se ob- serva em pesauisas do mais alto nivel. Nes- sa perspectiva, a escola surge como ins- tituigdo do- » tada de cig- nidade in- telectual, a ser garantl- = da através de recursos g tecnicos (instala- des, equi- pamentos) @ humanos (pessoal Pt docente e administra- 68. tivo) ade- quados e @ respeitados via, respec- & tivamente. manutengSo permanente scros dignos. Problematticas gerais do conhecimento his- t6rico contempordneo — patriménio histéri- co, histéria imediata e meméria - sao deba- tidas nessa recuperagao do prazer da his- tOria por aqueles que, como profissionais da Grea e cidadaos, entram em contato com sua produgdo através de escolas, museus, bibliotecas, arquivos, produgao artstica ete. AREAS DE INTERESSE: HISTORIA E EDUCAGAO 5-11-13115.9 i

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