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Lares Negros, Olhares Brancos: Histérias da Familia Escrava no Século XIx* RESUMO Apés_um breve resumo da historiografia sobre a familia escrava no Brasil, este artigo faz uma andlise critica dos relatos de observadores brancos no século XIX que tocam nessa questo. Sdo esses relatos que criaram a imagem de devassidéo sexual ¢ instabilidade familiar que ainda caracteriza o escravo na maioria dos estudos histéricos. Argumenta-se aqui, no entanto, que © olhar branco dessa época néo é digno de fé; 0 racismo, os pre- conceitos culturais e a ideologia do trabalho do perlodo predispunham 0s viajantes estrangeiros ¢ bra- sileiros “homens de bem” a verem os escravos come desregrados. Robert W. Slenes Universidade Estadual de Campinas ABSTRACT After a brief summary of the historiography on the slave family in Brazil, this article undertakes @ critical examination of the narratives of white observors in the nineteenth century which touch on the question. These narratives created the image of Sexual promiscuity and family instability which still characterizes the slave in the majority of historical studies. It is argued here, however, that white perceptions from that period cannet be trusted; racism, cultural prejudices and the labor ideology of the time predisposed foreign travelers and wealthy Brazilians 10 see slaves as people entirely without norms. POLICARPO E AFRA: A EXCECAO?... Em 24 de agosto de 1899, Simio Alves compareceu na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceicao de Campinas para “abrir novo langamento do acto de casamento celebrado entre Policarpo Salvador e Afra”. As * Este ensaio € » primeira parte de um trabalho mais longo, com o mesmo titulo, que foi apresentado no Simpésio “Histérias de Liberdade: Cidadios e Escravos mo Mundo Moderno”, realizado na UNICAMP entre 23 de maio e 8 de janbo. Uma versio um tanto abreviada, © sem as notas de rodapé, foi publicada no Fothetim (Cademo da Fotha de Séo Paulo) em 13/05/1988. mar.88/ago.88 testemunhas deste novo registro — Egydio Franco e José Antonio Aranha — declararam que Policarpo e Afra *(...) eram marido © mulher — por ser {sic} casados — sendo 0 acto religioso realizado. na Matriz Velha desta Cidade no tempo em que os mesmos eram escravos do Sr. Thomaz Luiz Alvez Cruz — no anno mil oito centos cincoenta ¢ oito a cincoenta ¢ nove mais ou menos”, Egydio ¢ José Antonio “acrescentaram que foram companheiros de escravidao [de Policarpo e Afra] ¢ que a 30 ¢ 24 annos os conhecem sempre como casados”, Suas palavras so fidedignas. Embora nao seja possivel confirmar esta histéria com o assento original de casamento (os registros de matrimd- nio de escravos para a maior parte de 1858 e 1859 sumiram dos arquivos da Igreja em Campinas — 0 que talvez tenha sido 0 motivo para 0 “novo. Iangamento” de 1899), outro documento comprova sua veracidade. Em 19 de outubro de 1862, foi batizada no municfpio Benedicta, de treze dias de idade, “filha de Policarpo ¢ Afra, escravos de Thomas Luis Alvares [sic]”!. ‘Casamentos longos e est4veis, como o de Policarpo e Afra, teriam sido pouco comuns entre escravos, a julgar pela maioria dos estudos histéricos que tocam no assunto. De fato, para varios autores importantes, as condigdes do cativeiro (0 excesso de homens sobre mulheres, a separac3o de familias n0 tréfico interno de escravos, os caprichos ¢ violéncias dos senhores) teriam tornado as unides sexuais extremamente instiveis, a tal ponto que a vida sexual careceria de regras e a “familia” escrava teria sido praticamente ine- xistente. Por exemplo, Gilberto Freyre fala d' “essa animalidade dos negros (escravos), essa falta de freio aos insultos, essa desbragada prostituic¢ao dentro de casa”; Emflia Viotti da Costa aponta “a promiscuidade sexual em que viviam os escravos”, ¢ a “licenciosidade das senzalas”; Oracy Nogueira diz que o escravo, “dado o caréter ocasional ¢ promiscuo das relages sexuais, mal chegava a conhecer a propria mae ¢ os irmaos”; e Roger Bastide, argumentando que “a mesma mulher [escrava] dormia ao acaso de seus caprichos ora. com um macho, ora com outro”, caracteriza a vida sexual dos cativos como uma “espécie de vasta prostitui¢ao primitiva”?, lLiveos de registro da patéquia de N. S. da Conceigfo de Campinas, “Casamentos, Escrs 1841-1858", f. Lil (“Terma de Justificagio”, 24/8/1899), © “Batizar Escravos, 1861-1867", ambos no Arquive de Caria ‘Metropolitana de Campinas. * 2Freyre, Gilberto, Casa Grande ¢ Senzala, 20 ed., Rio de Janeiro, José Olympic, 1980, p. 319-320; Costa, Emflia Viowi da, Da Senrala a Colénia, Sio Paulo, Difusio Européia do Livro, 1966, p. 269-270; Nogueira, Oracy, Comunidade Familia: um Estudo Socioldgico de Itapetininga, Rio de Jancire, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, INEP, MEC, 1962, p, 262; Bastide, Roger, 190 Os quatro autores citados, como praticamente todos os estudiosos do assunto a partir da década de 1930, rejeitam enfaticamente explicagtes Tacistas para 0 comportamento sexual do escravo. Contudo, se eles tiram das costas do negro o fardo da raga, substituem-no por um fardo sociolégico também bastante pesado. A afirmagao de que os escravos viviam em geral na “Ticenciosidade”, na “promiscuidade” ou na “prostituigao” conduz facilmente. a0 argumento de que eles foram profundamente marcados por essa experiéncia. Primeiro, na sua cultura religiosa, Bastide, por exemplo, afirma que, dada a impossibilidade de manter a existéncia da familia — isto 6, da linhagem — no tempo, o “culto aos antepassados” dos escravos bantus estava fadado a desaparecer, ou a sobreviver apenas por “vias indiretas”. Segundo, nas suas normas sexuais ¢ familiares, Para Florestan Femandes, as condi¢6es da escravidao, sobretudo o empenho dos senhores em tolher “todas as formas de uniao ou de solidariedade dos escravos”, nfo apenas marcaram 0 comportamento sexual do cativo, mas também minaram suas normas de vida em familia; o resultado, segundo Fernandes, foi que o negro emergiu do cativeiro num estado de “anomia” ou de “patologia social”, sem os recursos Psicolégicos e os lagos de solidariedade entre parentes to necessdrios para enfrentar a concorréncia do imigrante e alcancar a mobilidade social. Terceiro, na sua psicologia mais profunda. Bastide aponta para “‘o fendmeno mais curioso da escravidao, a dualidade racial dos pais”, argumentando que se. “o filho do senhor tinha pai branco ¢ mae [ama de leite] negra”, “Por sew lado, 0 filho do escravo, se conhecia sua mic, néo sabia freqientemente quem era seu verdadeiro pai. Esse era, no fundo, mesmo se no 0 fosse biologicemente, © patriarca branco, 0 senhor de engenho”, Bastide encontra nesse fato a chave para explicar os “mecanismos psiquicos da aculturacao” do negro; “interiorizando” © pai branco, o negro teria interiorizado “sua cultura, sua concepgao do mundo e da vida, seus quadros de referéncia ¢ suas normas”.3 ...OU A REGRA? Ouvimos aqui a voz da autoridade; as opinides sao enfaticas, expressas com a seguranga de quem tem domfnio sobre a tcoria ¢ convivio intimo com As Reliides Afrisanas no Brasil, 2 Vols. Sio Paulo, PioneiraEDUSP, 1971, VOL. I, p. 89. 3Pemandes, Florestan, A Integragdo do Negro na Sociedade de Classes, \* ed., 2 Vols., Sao Paulo, Dominus/EDUSP, 1965, especialmente Vol, I, p. 34-38 © 110- 118; Bastide, As Religides, Vol. I, p. 104-105. 191 as fontes. E curioso, portanto, que pesquisas recentes sobre a familia escrava venham mostrando que 0 casamento de Policarpo ¢ Afra nao era exatamente atipico. Na verdade, as unides sexuais de “longa durag4o” — nao, evidentemente, as de 40 anos, que seriam relativamente raras em qualquer sociedade com altos indices de mortalidade, mas, digamos, as de 10 anos ou mais — eram bastante, comuns entre os escravos; como também eram comuns os casos de filhos que nado apenas conheciam o pai, mas que passavam os anos formativos na sua companhia. Em Campinas, por exemplo, segundo os manuscritos existentes da “matricula” (registro) de escravos de 1872-73, nos plantéis com dez ou mais cativos (contendo, talvez, quatro em cada cinco escravos no municfpio), 67% das mulheres acima de 15 anos eram casadas ou vitivas; 87% das maes (com criancas de menos de 15 anos presentes na mesma lista de matricula) cram casadas ou vitivas; e 82% dos filhos menores de 10 anos viviam junto com os dois pais, ou com mde ou pai vitivo. Pesquisas sobre outros municipios ¢ periodos, utilizando fontes demogréficas diferentes, mostram resultados compativeis ou semelhantes*, E verdade que a maioria dessas pesquisas focalizam localidades em So Paulo, onde os indices de casamento pela Igreja entre escravos eram bem mais altos que em outras provincias. Contado, hd informagSes que sugerem fortemente que os dados de Sao Paulo nio indicariam a existéncia de 4sSienes, Robert W., “Escravidio © Familia: Padrées de Casamento e Estabilidade Familiar numa Comuridade Escrava (Campinas, Século XIX)", Estudos Econémices, 17:2 (mai josto, 1987), 217-227; Slenes, Robert W., “The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888", Tese de Doutorado, Stanford University, 1976, cap. IX. Outros estudos sobre a familia esctava sao: Graham, Richard, “A Familia Escrava no Brasil Colonial”, In: Escravidéo, Reforma, ¢ Imperialismo, Sio Paulo, Pers a, 1979, p. 41-57; Costa, Iraci del Nero da, © Luna, Francisco Vidal, “Vila Rica; Nota sobre Casamentos de Escravos (1727-1826)", Africa (Centro de Estudos Africanos ds USP), N° 4 (1981), 105-109; Costa, Iraci del Nero da, © Gutiérrez, Hordcio, “Nota sobre Casamentos de Escravos em Sao Paulo ¢ no Parané, (1830)", Histéria: Quesides ¢ Debates, 5:9 (dez., 1984), 313-321; Schwantz, Swan B., Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society: Bahia, 1530-1835, Cambridge. Cambridge University Press, 1985, cap. XDI © XIV; Fragoso, Joao Luis R., e Florentino, Manolo G., “Marcelino, Filho de Inocéncia Crioula, Neto de Joana Cabinda: Um Estudo sobre Familias Escravas em Paraiba do Sul (1835- 1872)", Essudos Econdmicos, 17:2 (maio/agosto, 1987), 151-173; Metcalf, Alida, C., “Vida Familiar des Escravos em Sio Paulo no Século Dezoito: o Caso de Santana de Pamatba”, /bid,, 229-243, Costa, Iraci del Nero da, Slenes, Robert ‘W., ¢ Schwartz, Stuart B., “A Familia Escrava em Lorena (1801)", Ibid., 245-295, Os novos estudos apontam para conclusées semethantes ax de Gutman sobre a familia escrava nos B.U.A. (Gutman, Herbert G., The Black Family in Slavery and Freedom, 1750-1925, Nova Torque, Pantheon, 1976). 192 estruturas familiares radicalmente diferentes das que prevaleciam entre os cativos no resto do Brasil, mas simplesmente um maior grau de acesso ao casamento religioso. Enfim, em $40 Paulo as unides consensuais entre os escravos teriam sido sacramentadas pela Igreja, ¢ portanto documentadas, mais freqilentemente do que em outras provincias. Poderia-se objetar que os dados, sobretudo as informagées de tipo censit4rio como as da matricula, talvez tenham sido inventados pelos senhores para iludir as autoridades, ov para fingir uma preocupacdo com a “moralidade” de seus trabalhadores. No entanto, em Campinas a liga¢4o nominativa dos registros de casamento ¢ batismo de escravos com as listas de matricula — tal como essa que fizemos- acima entre 0 assento de batismo de Benedicta em 1862 ¢ a reafirmacaio do casamento de seus pais, Policarpo e Afra, em 1899 — confirma sem qualquer dtivida a autenticidade dos dados de 1872-73. E ao fazer isso, a liga¢fo de fontes também documenta a existéncia de um numero significativo de casamentos formados 10, 15 ou até mais de 20 anos antes da matricula ¢ ainda existentes no ano desse registro®. As novas pesquisas sobre a familia escrava ndo visam romantizar a vida no cativeiro. Os indices de casamento entre escravos, a proporg3o de maes casadas, e a percentagem dos filhos que viviam com os dois pais, eram bem mais baixos nos plantéis pequenos (com menos de 10 pessoas) — plantéis que, por seu tamanho e instabilidade, limitavam severamente as chances de 0 escravo encontrar um cOnjuge ou manter a famflia nuclear unida. E mesmo nos plantéis maiores nao h4 divida de que a separa¢fo de familias também acontecia, e existia sempre como ameaca. Os estudos recentes também nao. negam 0 impacto do grande desequilfbrio numérico entre homens e mulheres (decorrente do trafico africano € posteriormente, nas regides cafeeiras, do comércio interno de escravos) sobre as possibilidades dos cativos construi- ‘rem familias est4veis. Eles apenas mostram que eram os homens que sentiam esse impacto, no as mulheres; em Campinas em 1872-73, nos plantéis com 10 ou mais escravos, somente 30% da populacao masculina acima de 15 anos compunha-se de casados ou vitivos, cifra bem abaixo da Ppropor¢ao na populagao feminina®. Finalmente, as novas pesquisas. nao indicam que os escrayos internalizaram as normas sexuais ¢ familiares de seus senhores, ou que suas normas permitiam apenas o casamento monoga- mico. Os dados utilizados — que na maioria dos estudos claramente dizem respeito a casamentos pela Igreja — quase por defini¢4o excluem o registro de casos de poliginia (isto é, da unido de um homem com mais de uma mulher), pratica accita em muitas sociedades africanas. E mesmo que isto SStenes, Robert W., “The Demography”, e trabalho em andamento. 'Slenes, “Escravidio © Familia", 225. 193 no fosse o caso, uma alta freqiiéncia de casamentos monogamicos nao tefletiria necessariamente tudo que era permitido pelas normas dos escravos. E importante lembrar que na Africa a poliginia tende a ser sinal de uma relativa riqueza; em geral, apenas os homens que tém posses suficientes para sustentar uma economia doméstica maior casam-se com mais de uma mulher. Enfim, a pratica da poliginia s6 poderia ter sido pouco comum (independentemente das normas dos escravos) nas condigées do cativeiro no Brasil, onde os homens, além de enfrentar uma grande escassez de mulheres, tinham, quase todos, pouquissimos recursos, O que os estudos recentes sim indicam & que 0 peso da escravidao, 0 desequilibrio numérico entre: os sexos ¢ a possivel “sobrevivéncia” de nor- mas favoraveis a Poliginia, ndo destruiram a familia negra como instituigZo. Além disso, ¢ mais importante, esses estudos sugerem fortemente que a unido sexual est4vel constitufa a norma cultural no grupo cativo. Quando as condigdes de vida dos escravos permitiam a formaczio de relagSes sociais com uma certa continuidade no tempo (como era 0 caso nos plantéis com 10 ou mais cativos em lugares como Campinas), eles optavam por esse tipo de unio. Em suma, no que diz respeito a sexo ¢ familia, nfo h4 como caracte- tizar a pratica do escravo, e muito menos seu sistema de normas, co- mo “desregrados”. Portanto, as conclusSes de Bastide e Fernandes resumidas acima ~ a respeito do desaparecimento entre os escravos do culto (bantu) aos antepassados, a existéncia da “anomia” entre cativos ¢ negros livres, ¢ a influéncia do senhorf‘pai” branco na psicologia profunda do escravo — simplesmente no procedem. As diividas, no entanto, persistem. Como € possivel que pesquisadores do porte: daqueles que vimos citando possam ter chegado a conclus6es tio taxativas — ¢ 140 erradas? Serd que as fontes que eles utilizaram — os depoi- mentos de observadores brancos da época da escravido, sobretudo de viajan- tes estrangeiros — s4o mais fidedignas do que os dados demogréficos que formam a base principal dos estudos recentes? Ora, essas fontes certamente. so coerentes entre si. Elas coincidem no registro de um quadro patolégico entre os escravos, ¢ € compreensivel que sua “unanimidade” nesse sentido tenha seduzido muitos historiadores. No entanto, no restante deste ensaio quero mostrar que o “desvio” nao estava no lar negro, mas no olhar branco. LENITA E OS SEMOVENTES DEVASSOS Numa cena do romance A Carre, de Jilio Ribeiro, publicado em 1888 ¢ situado numa fazenda do oeste paulista ainda na época da escravidao, a Protagonista branca, Lenita, presencia a cépula de um touro e uma yaca. ‘Logo em seguida, ela assiste, sem ser percebida, ao encontro amoroso de um 194 jovem casal de escravos. Para Lenita, esse encontro “Era a reprodugdo do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais elevada; a cépula instintiva, brutal, feroz, instantinea dos ruminantes, seguia-se 0 coito humano meditado, lascivo, meigo, vagaroso”. A cena é um prentincio da sorte de Lenita. Mais tarde, ela se’ entrega como amante a Barbosa, jovem filho de fazendeiro. Lenita se interessara pela ciéncia, através da qual “quisera voar de surto, remontar-se as nuvens”; mas “a CARNE a prendera & terra, © ela tombara, sumetera-se; tombara como a negra bocal do capao, submetera- se como a vaca mansa da campina”?. Associar escravos e gado — n3o apenas como semoventes, categoria codificada em lei, mas como seres sexualmente desregrados — era comum na €poca. Outros autores, que n3o se diziam romancistas, expressaram-se da mesma mancira que Jiilio Ribeiro. Ao visitar a regio de Cantagalo na provincia do Rio de Janeiro no inicio da década de 1860, 0 viajante ¢ diplomata suigo J. J. Von Tschudi comentou “a leviandade e inconstincia do negro em tudo que se refere as relagdes sexuais”. Segundo Tschudi, “B muito raro haver entre os negros casamentos celebrados na igreja, mas o fazendeiro permite que os pares, que se uncm segundo oportunidade ou sorte, vivam justos, sendo que -0 pronunciamento do fazendeiro basta para que eles se considerem como esposo @ espora, numa unito que raras vezes hf de perdurar 4 vida inteira, As pretas pottuem, em geral, filhos de 2 ou 3 homens diferentes. Metmo esta formalidade [do] pronunciamento do [fazendeiro] nfo se observa no mais das vezes, ¢ of negros vivem em promiscuidade sexual, como 0 gado nos pampas”S, Poucos anos depois, o jurista (¢ senhor de escravos) Perdido Malheiro observou que “as escravas, em geral, viviam e vivem em concubinato, ou (0 que € pior) em devassid3o; 0 casamento n3o lhes garante senao por excego a propagac4o regular da prole”®. Em 1881, Louis Couty, um francés “que residiu varios anos no Brasil e escreveu largamente sobre o café ¢ a escravidao, afirmou (em L’‘Esclavage au Brésif) que muitos senhores, perante a dificuldade de impor uma ordem moral a seus cativos, decidiram no mais interferir na vida sexual destes. Como resultado, Tribeito, Idlio, A Carne, Rio de Janciro, Edigdes de Ouro, s/4, p, 101, 231. 8Tschudi, J. J. Von, Viagem ds Provincias do Rio de Janeiro e Séo Paulo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1980, p. 57-58. 9Malheiro, Agostinho Marques Perdigio, A Escraviddo no Brasil: Ensaio Histérico, Jurldico, Social, 2 Vols., Petrépolis, Editora Vozes, 1976, Vol. TI, p. 129. 195 “Nas aglomeragées [de escravos} nas fazendas, se permite que os is sexos sc misturem durante duas ou trés horas toda noite; ¢ mio se preocupa em exercer nenhuma vigilincia sobre os escravos isolados, nas dreas urbanar. Dessa mancira, a maioria dos filhos de escravos conhecem apenas um de seus pais, a mie, © esta freqiientemente ficaria constrangida se tivesse que preencher um registro. civil exato”. Além disso, segundo Couty, havia “muitas negras que ndo sabem o niimero de seus filhos”, como também as havia que “nunca se inquietaram para saber aonde {seus filhos} andam”, Por outro lado, quando os escravos uniam-se em matrim6nio, a explorag4o da mulher pelo homiem, que transformava a esposa em “sua servidora ¢ sua coisa”, levava esta geralmente a “devolver com usura a falta de afeto” ~ a tal ponto que os casos de morte de escravos, envenenados por suas mulheres, “chegaram a ser tio freqiientes que em quasc todas as fazendas foi necessdrio proibir as vitivas de se casarem de novo, ¢ de impedir que continuassem tendo relagdes sexuais”!0, Ha declaragées semelhantes para a primeira metade do século XIX. Johann Moritz Rugendas, viajante e artista bavaro, afirmou em 1835 que os senhores “facilitam os casamentos entre escravos”; mesmo assim “ocorre (...) que as relagdes entre escravos do sexo feminino e do sexo masculino tornam impossivel a severa observancia da moral ou a perseveranga consci- enciosa na fidelidade conjugal”!!, Na mesma década, Jean Baptiste Debret, artista ¢ observador francés de longa residéncia no Brasil, observou que, “Como um proprietério de escravos nko pode, sem ir de encontro & natureza, impedir aos megros de freqientarem as negras, tem-se por hébito, as grandes propriedades, reservar uma negra para cada quatro homens; cabe-Ihes arranjar-se para compartilharem tossegadamente 0 fruto dessa concessio, feitn tanto para evitar os pretextos de fuga como em vista de uma procriacio: destinada a equilibrar os efeitos. da mortalidade”!2, O depoimento de Debret € um tanto ambfguo — pode ser uma simples observagio demogrdfica ou uma sugestaio de promiscuidade — como também @ € outro trecho no livro desse viajante, onde a negra ¢ descrita como “extra- ordinariamente sensual, embora fiel ¢ casta no casamento”!3, Os demais au- 1Couty, Louis, L'Esclavage au Brésil, Paris, Libraire de Guillaumin et Cie., 1881, p. 74-75 (minha tradugio). IlRogendss, Joio Mauricio [Johann Moritz]. Viagem Pitoresca Atrevés do Brasil, # ed., Sio Paulo, Martins, 1949, p. 180, 12Debret, Jean Baptiste., Viagem Pitoresca e Historica ao Brasil, 3 Vols. em 2 Tomos, Belo Horizonte, Itatiaia, 1978, Tomo I, Vol. Il, p. 268. 136id., Tomo Il, Vel. HE, p. 202. 196 tores, no entanto, ndo deixam lugar para diividas. Junto com alguns outros observadores da época, criaram a imagem de devassido que ainda marca 0 comportamento sexual ¢ a vida familiar dos escravos na maioria dos livros de hist6ria. Imagem, no minimo, suspeita. Na verdade, os relatos que tratam da vida intima do escravo sdo escassos ¢ curtos; pior ainda, sofrem restrigdes que os tormam muito pouco confidveis. Os livros de viajantes, de onde vém quase todas as citagGes acima, so extremamente titeis quando descrevem aspectos da cultura material que sao facilmente visiveis e pouco ambiguos (por exemplo, a estrutura, disposig4o e divisdo interna das senzalas nas fazendas visitadas), S40 muito menos confidveis, no entanto, quando opinam sobre a vida intima de todo um grupo social, ainda mais de um grupo “exético” como os escravos. George Gardner, um inglés que viajou pelo interior do Brasil em 1836, no poupava criticas aos “(...) viajantes, en passant, que derivaram seus conhecimentos de outros, € nio da observacio pessoal. As historias mais ridiculas sto contadas pelos residentes europeus a estrangeiros recém- chegados, como bem posso atestar por experitncia propria”!4, Mesmo um viajante criterioso, como a maioria daqueles citados acima, dificilmente conseguiria livrar suas observagOes sobre a familia escrava da influéncia de idéias preconcebidas, suas préprias e as de seus informantes. Por outro lado, o autor brasileiro, de um modo geral, nio cstaria cm condigées muito melhores. Embora nao estivesse no Brasil en passant, e pudesse, portanto, reconhecer e descartar “as hist6rias mais ridiculas” sobre 0 pais, ainda assim era quase to distante dos escravos, em seu modo de ser ¢ de perceber, quanto 0 viajante. Quais seriam algumas das imagens prévias, estampadas na retina, que teriam atrapalhado a visio do observador estrangeiro ¢ do nacional, quando. confrontados com o escravo? Em primeiro lugar, haveria uma imagem deformada do pr6prio negro, produzida por um racismo extremado do qual seria raro, nessa época, o viajante europeu ou 9 brasileiro bem nascido que escapasse. Vejamos, por exemplo, 0 caso de Louis Couty, citado acima, que deixou o que € provavelmente o relato mais extenso que temos (menos de duas péginas) sobre a familia escrava. Na verdade, mesmo sem considerar seu ide4rio racial, j4 existem razSes para questionar a idoneidade deste autor como. observador. Um contemporaneo de Couty, o holandés C. F, Van Delden Laéne, cujo estudo da inddstria cafeeira no Brasil prima pela meticulosidade 14Gardner, George, Travels in the Interior of Brazil, (...) During the Years 1836- 1841, Boston, Milford House, 1973, p. 14 (minha tradugio). 197 de sua exposicao ¢ pelo cuidado com que foi pesquisado, queixou-se que “Me estenderia muito demais, se fosse refutar uma por uma as declaragdes nesse livro [Etude de Biologie Industrielle sur le Café, de Couty, de 1883], que me parecem incorretas, alids até falsas”!5_ Deixemos essa critica de lado, no entanto, j4 que haver4 quem leia nela a inveja de um pesquisador rival, ¢ centremos nossa atengo no trecho que Couty dedica a familia escrava. Se as mies desalmadas (“negras”, no “escravas”) € as esposas assassinas no texto citado acima j4 ndo deixaram o leitor um tanto desconfiado, recuemos algumas pdginas no relato de Couty para examinar seu ponto de partida: “Os cidadios livres da Africa nfo tém, como seus itmios cativos, um desgosto pelo trabalho manual? Eles cultivam as terres tio féncis que estio em sua posse? Nilo esif provado que, quando empregados como trabalhadores, eles forecem muito menos mio- de-obra do que os operérios brancos? Eles t@m idéias de liberdade individual, exses homens que acham natural serem espancados, serem vendidos, serem mortos de acordo com os caprichos de um chefe militar ou de um déspota? Eles tém idéia de familia ou de propriedade, esses infelizes que vendem suas criangas por algumas tirinhas de pano espalhafatoso, que matam os viajantes para espolif-los, que consideram 0 roubo como um modo de luta pela vide? E 0 estudo de suas sociedades embrionfrias, passageiras, mal aglutinadas, sem equipamentos © sem produgic, como o esmdo de seu cérebro ou de seu crineo, nao € suficiente para responder Agueles que fazem teorise socisis com palavras vagas ou com idéiax aprioristicas?”!6, Ora, 0 racismo explicito virulento deste echo torna o testemunho de Couty extremamente duvidoso, Isto ndo tem impedido, no entanto, que ele seja um dos autores mais citados sobre a questdo da familia escrava'”, Em segundo lugar, a visio dos observadores do século XIX provavel- mente sofria a interferéncia de preconceitos culturais. Com respeito aos viajantes, € importante lembrar que a grande maioria dos estrangeiros que escreveram sobre 0 Brasil, especialmente no século XIX, vinha nao da Espanha ou de Portugal, mas de outras nagdes, do norte e do oeste da Europa (principalmente da Franga, Suiga, paises germanicos ¢ Inglaterra). Ora, nessas nacdes a reprodugZo humana, do inicio do século XVI até meados do \Szaeme, C. F. Van Delden, Brazil and Java: Report on Coffee Culture in America, Asia and Africa, Londres e A Haia, W. H. Allen/M. Nijhoff, 1885, p. 253- 254 (minha traducio). Coury, L’Eselavage, p. 68 (minha tradugio). 17 Veja Stein, Sunley J., Vassouras: a Brazilian Coffee County, 1850-1900, 2* ed., Princeton, Princeton University Press, 1985, p. 155; Bastide, As Religides, Vol. I, p. 89; Femandes, A Integracdo do Negro, Vol. I, p. 36. 198 XVII, quase no acontecia fora de unides sexuais sacramentadas pela Igreja, e durante o século XIX a taxa de ilegitimidade nesses paises (nascimentos “ilegitimos”, ou seja, filhos havides por pais que n3o eram casados no Teligioso, como proporgao do total de nascimentos) geralmente n&o subia além de 10% — cifra essa muito abaixo do indice nos paises ibéricos ¢ na América Latina. Mesmo assim, 0 enorme aumento dessa taxa desde meados do século XVIII, especialmente nas cidades, causava espanto, e era comumente interpretado como indicio de um enfraquecimento dos padres de moralidade!8. Nao 6 de se surpreender, portanto, que o viajante europen do século XIX, frente aos baixos indices de casamento religioso e as altas taxas de ilegitimidade que prevaleciam entre os escravos brasileiros (fora de SA0 Paulo), tenha registrado uma impressio de patologia social. A lente distorsiva de sua cultura praticamente nao lhe permitia outra visto. Jd no caso dos observadores brasileiros, teria havido um preconceito cultural diferente, mas nfo menos importante. Sugestivo nesse sentido é “Lucinda — a Mucama”, um dos romances que integram As Vitimas-Algozes de Joaquim Manoel de Macedo, Publicado em 1869, 0 romance veicula a mesma imagem negativa da mulher cativa que encontramos em Couty, mas oferece uma explicag4o sociolégica, nao racial, de seu modo de ser. O livro é um tratado antiescravista, cujo tema € a influéncia maléfica da escravidao no seio da familia branca. Ao descrever como a moga, Candida (a pureza), é corrompida por sua mucama escrava, Lucinda (0 dem6nio), Macedo revela ‘sua visio da formagao moral da escrava, ¢ sua concepg4o de como uma menina honesta deve ser educada, A mulher cativa, “(..) abandonads aos desprezos da escravidio, crescendo no meio da pratita dos vicios mais escandalosos © repugnantes, desde a infancia, ‘desde 2 primeira infancia testemunhando torpezas de 18Veja, por exemplo: Shorter, Edward, “Sexual Change and Lllegitimacy: the European Experience”, in: Bezucha, Robert, coord., Modern European Social History, Lexington, Massachusetts, 1972, p. 231-269; Shorter, Edward, Knodel, John, e Van de Walle, Etienne, “The Decline of Non-Marital Fentiity in Europe, 1880-1940", Population Studies, 25:3 (nov., 1971), 375-393; © Laslett, Peter, “Introduction: the History of the Family”, in Laslett, coord., Household and Family in Past Time, Cambridge, Cambridge University Press, 1972, p. 16-17. Sobre a peninsula’ ibérica, veja: Candido, Aménio, “The Brazilian Family”, In: Smith, T. Lynn, ¢ Marchant, Alexander, coords., Brazil: Portrait of Half a Continent, Nova. lorgue, 1951, p. 300301; ¢ Willems, Emilio, Latin American Culture, An Anthropological Synthesis, Nova Torque, Harper and Row, 1975, p. 52-53. Segundo este ditimo (p. 53), em Portugal c na Espanha “a unio ere um padrio cultural com raizes profundas, nfo um desvio; transplantads para a América [Latina], onde encontrou um ambiente receptivo, especialmente entre o campesinato € os trabalhadores rurais” (minha tradugio). 199 luxuria, ¢ ouvindo a elogténcia lodesa da palavra sem freio, fica pervertida muito antes de ter consciencia de sua perversio (...)”. JA, ao contrario, ‘a donzella € flor que tem por matiz 0 recato e 0 pejo”. Nas boas familias, “(...) ha para as filhas certa especialidade de mies 6 religioso culto de amor que vela incess: sacerdotizas de Vesta que vigiario o fogo da pureza, e nos paces [é) uma fonte sublime de melindres ¢ de escrupulos, uma santa exageragio de estremecido zelo (...)". Como resultado de uma vigilancia desse tipo por parte de seus pais, “CAndida chegara aos onze annos de edade com a perfeita innocencia de sua primeira infancia”. Infelizmente, recebeu em seguida a Lucinda de presente, [foi] a escrava que a arrancou das risonhas ¢ serenas ignorancias da inno- cencia, ensinando-Ihe rudemente theorias sensuaes da missio da mulher”, Fica evidente, em tudo isto, que Macedo condena a formacao moral da escrava porque ele nao admite outro padriio normativo para a educagao de uma menina além daquele adotado pelos pais de Candida. Na valorizacao da “santa exageracao de estremecido zelo” destes, est4 a condenagao dos pais escravos ¢ de suas filhas. O leitor moderno poderd perguntar-se se € licito medir a moralidade dos cativos com esta mesma régua!?. Em terceiro lugar, haveria a influéncia de uma ideologia a respeito da escravido ¢ do trabalho livre que teria marcado a percepgiio da maioria dos observadores, europeus e brasileiros, sobretudo na segunda metade do século XIX. Vejamos o caso do viajante francés, Charles Ribeyrolles, que visitou as regides cafeciras do Rio de Janciro em 1858. Ribeyrolles enfatiza que “A fome nio penetra na senzala, ‘Nela nfo se morre de inani¢o como em White Chapel ou Westminsier. Mas nie existem familias hé ninhadas. Por que se entregaria o pai as santas alegrias do trabalho? Intereste nenhum o liga & terra, nem proveitos Ihe advem da colheita. Para cle, o labor representa. a fadiga ¢ o suor. E 2 escravidto. Por que se desvelaria a mie em manter limpos os filhos ¢ a morada? Os filhos Ihe podem ser arrebatados de uma hora pars outra, come pintos ou of cabritos da fazenda, © ela mesma nio passe de um simples objeto. Contudo, existem as vezes, nestes antros, distragdes © prazeres bestisis, cavsados pela embringuez, onde nunca se fala do passado, que € a dor, nem do futuro porque esté remoto. 19 Macedo, Joaquim Manoel de, As Vitimas-Algores. Quadros da Escravidéo, 2 Vols., Rio de Janeiro, Typographia Perseveranca, 1869, Vol. Il, p. 60, 91, 115, 21, 273. 200 (...) Nas senzalas dos negros, nunca avistei uma flor. Nao moram nela [sic] as esperangas € as recordagbes"20 Temos aqui um exemplo primoroso da construg3o de uma “realidade” tinica ¢ exclusivamente a partir de nogGes prévias: nogdes que tornam impensdvel qualquer pesquisa sobre as esperancas ¢ as recordagGes dos escravos por declaré-las, de antemAo, inexistentes. Os elementos reunidos no idedrio de Ribeyrolles ~ a fung4o “santa”, moralizadora do abalho livre que, no feliz encontro da necessidade com o interesse, torna poss{vel a formagao da “familia”, concebida como projeto de acumulagao — também encontram-se expressos, com certas modificagées ¢ acréscimos, em Theses sobre Colonizagdo do Brasil, um relatério apresen- tado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Puiblicas em 1875, por Joao Cardoso de Menezes e Souza. Ao discutir a possibilidade de aproveitar 0 trabalho do liberto na agricultura, Souza chama a atengdo para o exemplo de “uma coldnia de negros fundada {na Guiana Francesa]”, depois da emanci- pacdo dos escravos, onde tinha-se “demonstrado que a raga africana podia ser utilmente empregada no trabalho agricola, uma vez educada 4 sombra da religido ¢ constituida sobre a dupla base da familia e da propriedade”. Citando um autor franeés, um certo Duval, sobre essa experiéncia, Souza prossegue em sua andlise: “*(...) # familia, de que os escravos faziam pouco caso enquanto 0 casamento. nio Ihe: assegurava privilegios nem de esposo, nem de pai, constitui-se rapidameme na populagdo emancipada. Em seguida 6 familia vem a propriedade, 20 princ{pio muito diminuta, medida pelas necessidades ¢ pela ambigéo. O negro (...) trabalhark para augmentar sua cabana, onde & rei; scu campo, onde minguém The d& ordens. Sociedades de socorros mutuos, preludios das caixas econ6micas, vivamente reclamadas, virdo em auxilio deste movimento, revelando habitos de ordem e previdencia a ragas, que exam reputadas incapazes delles'"21., Neste trecho Duval/Souza acrescenta ao idedrio de Ribeyrolles a nogio de que a familia s6 constitui-se na sua plenitude quando s&o assegurados ao homem seus “privilégios” de csposo ¢ de pai — ou seja sua autoridade perante a mulher ¢ os filhos — 0 que (na suposig4o desses autores) nao acontece no 20Ribeyrolles, Charles, Brasil Pitoresco: Histéria-Descricées-Viagens - Colonizacéo-Instituicdes, 2 Vols., Séo Paulo, Manins, 1941, Vol. II, p. 33. 21 Souza, Joke Cardoso de Menezes ¢, Theses sobre Colonizacdo do Brasil (...) Relatorio Apresentado ao Ministerio da Agricultura, [Commércio] ¢ Obras Publicas em 1875, Rio de Janeiro, 1875, p. 166, 169-70. 201 regime escravista. O trecho também tenta definir com mais precisdo a inter- relacdo entre familia e propriedade, que é apenas sugerida por Ribeyrolles (e, aliés, por Couty, no pardgrafo em que esse autor nega ao africano qualquer “jdéia de familia ou de propriedade”). Para Duval/Souza, “em seguida & familia vem a propriedade”, j4 que a luta para assegurar o bem-estar da familia torna-se também uma luta para aumentar o patriménio; mas a partir desse momento inicial, a propriedade e a famflia marcham juntas, de maos dadas, uma reforcando a outra. O que temos aqui, ent4o é um enunciado claro da idéia de que havia uma relagio de apoio mituo entre “familia” (definida como “famflia monogamica ¢ patriarcal”) e propriedade particular. Este modelo de familia nao serd novidade para quem estuda o século XTX, a0 mesmo tempo patriarcal e burgués. Contudo, cabe salientar que quem pensava em seus termos — como provavelmente era 0 caso da maioria dos viajantes ¢ dos brasileiros “bem nascidos” no século XIX — teria tido uma enorme dificuldade em perceber, ¢ muito mais em interpretar, as estratégias ¢ Pprojetos de vida intima dos escravos, Além disso, a dificuldade teria aumentado com 0 tempo. Nos depoi- mentos de viajantes e brasileiros a respeito da familia escrava, prova- velmente existe a influéncia de um projeto disciplinar que associava cada vez. mais a estabilidade da familia nuclear e a sobriedade na vida sexual com a constAncia e 0 empenho no trabalho. Na Europa e nos Estados Unidos nesse periodo, os grupos dominantes e os intelectuais ¢ profissionais a eles ligados elaboraram estratégias para levar a “disciplina ao domicilio”, como parte de uma tentativa de criar novos valores entre as classes ares permitindo dessa forma um controle mais eficaz sobre seu tral ', Nessa tentativa, havia 0 reconhecimento tacito de que o “aburguesamento” do mado de ser do trabalhador livre no aconteceria por um processo natural, mas dependeria da “tutela” da propria burguesia e do Estado. No Brasil, o problema da transic¢ao do trabalho escravo ao trabalho livre, que levantava o espectro de uma mudanga profunda nas praticas disciplinares, provavelmente fez com que Parecesse especialmente necesséria a adogdo de tais estratégias de tutela?>, Certamente, no final do periodo escravista ¢ na década de 1890, a “vadiagem” do negro liberto tornou-se uma preocupac4o constante nos debates politicos nos jornais; e ¢ significativo que a suposta recusa desse personagem ao trabalho era comumente atribuida a sua degenerescéncia moral, revelada por 22 joseph, Isaac, Fritsch, Philippe, ¢ Battcgay, Alain, Disciplines a Domicile: VEdification de la Famille, Nimero Temftico de Recherches, N® 28 (nov., 1977). Donzelot, Jacques, A Policia das Familias, Rio de Janeiro, Graal, 1980. 23Veja o cstudo sugestivo de Costa, Jurandir Freire, Ordem Médica ¢ Norma Familiar, Rio de Jancim, Graal, 1979. 202 todo um complexo de caracteristicas negativas, entre elas a lubricidade ¢ a falta de instituigées familiares estiveis”*. Em resume, o racismo, os preconceitos culturais ¢ a ideologia do trabalho da época predispunham os viajantes europeus € os brasileiros “homens de bem” a verem os negros, que aparentemente n3o seguiam suas regras na vida intima, como desregrados. Na segunda metade do século, quando o “no seguir as regras” parecia ameagar cada vez mais a disciplina no trabalho, essa predisposiggo provavelmente tornou-se mais forte, Dentro desse contexto, as hist6rias que nos contam Ribeiro, Tschudi, Couty e os outros autores citados, tornam-se extremamente prec4rias como fontes, a nao. ser para retratar o pensamento das Lenitas da época. Para penetrar no mundo do escravo, outros tipos de informagao ¢ métodos de andlise so necessérios. Ou pelo menos outras leituras, Na verdade, os observadores da época da escravid’o ndo eram t0 cegos — nfo tinham um olhar to branco assim — quanto a andlise acima possa sugerir. Embora eles tenham representado a vida sexual ¢ familiar do escravo como patolégica, cles também registraram detalhes (en passant, e freqtientemente sem entender 0 sentido) que sio passiveis de uma interpretacao diferente, Em suma, é possfvel recuperar no olhar branco um lar negro que seja coerente com os novos dados demo- grdficos. Mas isso ¢ outra histéria, para ser contada em outra ocasifo... 24Chalhoub, Sidney, Trabalho, Lar « Botequim. O Cotidiano dos Trabathadores no Rio de Janeiro da “Belle Epoque”, Sto Paulo, Brasiliense, 1986, p. 39-40; ‘Azevedo, Célix Maria Marinho de, Onda Negra, Medo Branco. O Negro no Imagindrio das. Elites — Séewlo XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, especialmente capitulor II e IV; Schwarcz, Lilia Moritz, Retrato em Branco ¢ Negro. Jornais, Escravas e Cidaddos em Sdo Paulo no Final do Stculo XIX, Sto Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 163 em diante, especialmente p. 224-26 © (232-40. 203

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