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Histéria da Literatura Cearense (Comentérios ao Livro de DOLOR BARREIRA) ‘POMPEU P. S. BRASIL Em cumprimento do trabalho que lhe foi confiado, na fei- tura da Histéria do Cearé, publicou Dolor Barreira 0 tomo 1.° da Histéria da Literatura Cearense. Tencionava 36 fazer-he comentarios quando estivesse con- cluida, mas preferi antecipar-me, afim de permitir ao autor aproveitar algumas de minhas sugest6es, caso o queira. O livro em aprego, incontestavelmente, merece ser lido. D. Barreira, com a meticulosidade e a competéncia de le- gitimo historiador, despendeu o ingente esférgo, nao s6 de re- buscar e compulsar todas as fontes capazes de informagéo, mas também de ler e examinar pessoalmente tudo quanto os lite- ratos cearenses teem produzido, desde os primérdios até a actua- lidade, e presenteou-nos desde j& com a terga parte, aproxima- damente, do fruto de suas pesquisas. Além disso, ésse trabalho recomenda-se-nos como um pro- duto literario. Seu estilo, sem arteficios preciosos e supérfluos, infeliz- mente ainda‘ muito do gésto de varios escritores, possui todos os predicados convenientes 4 histéria. E’ uma exposigio clara, flu- ente e agradavel, mesmo quando trata de factos visivelmente secunddrios. : Tais virtudes, alias, nio foram surpresa para mim, pois ja as conhecia de seus outros escritos. Mas, a histéria da literatura, embora restrita a da regiéo dum pais, implicando sempre critica, em vez de ser apenas REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 181 cronologia, é cometimento muito complexo. Fica sujeito a sem nimero de divergéncias, apesar de nem todas justas. Proponho-me aqui, de certo ponto de vista, fazer ligeiras consideragées sébre alguns assuntos do livro. A primeira aptiddo para poder-se organizar uma histéria da literatura, alids como qualquer outra, é saber distinguir seus factos de outros, sobretudo des afins. Reconhecendo essa necessidade, D. Barreira, num de seus primeiros capitulos, transcreve diversas definigées de literatura, analisa-as e, ao fim, da preferéncia a que Ihe parece mais acci- tavel. Em vez de extrair uma generalizagio dos préprios factos ‘ou de invocar os juizos dos grandes estetas, isto 6, os realmente originais, limita-se aos dos pensadores luso-brasileiros. Esses so simplesmente dialéticos e mesmo alguns incon- gtuentes. Seus defeitos preponderam claramente sdbre as van- tagens. Nido me darei ao trabalho de criticd-Ios directa ou indi- rectamente. A definigdo de literatura, como qualquer outra, néo é um conceito arbitrario, Deve seguir as prescrigdes da légica. Definir é dar os caracteres comuns ¢ exclusivos duma es- pécie, afora os do género préximo. Corresponde, pois, a uma imagem geral. Quais sGo essas propriedades em literatura ? Em meu trabalho — Arte ¢ Expresso, publicado na re- vista —- Estética, sustentei que arte 6 tam sémente a expres- sdo. E em outro escrito meu, Arte e Estética, inserto na Revista do Instituto do Cearé, vol. de 1947, reduzi-a mais ainda & mera aplicagio da expressio. Em resumo, af digo que arte nio é raciocinio, quer dedu- tivo, quer indutivo, nem mesmo imagem, porque, numa de suas classes, alids no pequenas, designada —— natureza morta —- em pintura e eseultura, que se extende & literatura, o seu conteiido se torna tim vulgar e simples, contendo tam poucos elementos, que passa quasi despercebido, ndo transpondo a margem da consciéncia. Também, esclareco que nao constitui criag3o da expressio, porque, em seus melhores espécimes, isto é, nas suas obras pri- mas, nao se encontram geralmente manifestagées disso. Hajam 182 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA vista os grandes poetas e prosadores, quer antigos, quer mo- dernos. Alguns deles, realmente, inventaram algo em expressio, mas tam pouco, que nunca Ihes aumentou a celebridade. E’ quasi dispensavel prové-lo. Os iniciadores de literatura, como Homero, Plauto, Dante, Rabelais, Shakspeare, Lutero, ctc., cingiram-se a recolher a lin- guagem popular e a tornd-la menos irregular. "Mallarmé apenas sistematizou a simbolizagio. Marinetti sémente propés o emprégo exclusivo de certas classes de palavras e de certas figuras, mas jd conhecidas de per si. ‘A métrica hodierna 6, sem duvida, a simplificagSo méxima do verso, verdadeiro produto de involugio, ou homogenizagéo. A poesia primitiva devia ter sido quasi assim. Os hinos de He- siodo ainda sio muito livres. Os gregos e latinos nunca usaram rima. . A expresso em geral originou-se da sociedade. As linguas foram feitas pelos povos e as técnicas das demais artes, pelos grupos maiores e andénimos dos seus cultivadores. Quem inyentou os metros, scissuras, estribilho, etc? Conhe- cem-se apenas, embora sem muita seguranga, os iniciadores de alguns recursos métricos (dodecassilabo, metro birbaro, poe- meto em prosa, etc.) Esses criadores, alias, foram todos poetas medfocres. Enquanto que as obras de arte derivam sempre de indi- viduos ou pequenos grupos. A arte nada mais é do que a aplicagdo da expressao. Fsse conceito, em estética, apesar de tam simples, cons- truiu-se mui lentamente no decorrer de séculos, em resultado das sucessivas contribuigéus de alguns pensadores. Pode-se dizer teve cinco fases: arte — como criagio — a imitagdo (Aristételes) ; algo como a linguagem (Vico) ; a imagem expressa (Schleiermacher); algo entre a criagéo e a aplicagio da expressfio (Croce) ; a aplicagdo da expressio. Esse filésofo italiano adota na mor parte de sua estética ‘9 juizo de arte — criacao da expressao — ; sémente no capitulo sobre a evolugao da arte sugere que seja exclusivamente — apli- cago daquela —, sem, entretanto, dizé-lo explicitamente. Tanto REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 183 que ali identifica a estética A Linguistica geral e dé o histérico todo dessa. A literatura, portanto, consiste na aplicagdo da expressiq. Arte — como contemplagao — é a percepgdo da obra de arte associada & sua imagem origindria. Eis a verdade em estética. Desde que a reconheci, nio mais vacilei em sacrificar-lhe a hipétese anterior que concebera (arte, indugio implicita), sua perfeita antipoda (As Bases Sci- emificas da Estética, Arte e Historia, Arte e Conhecimento, Ensaio de Critica Scientifica de Arte). * OK Ok Em outro capitulo de sua Histéria, referente 4 compreensio dos autores, D. Barreira previne que se nao ocupara nem dos eseritores que passaram a mor parte de sua vida fora do Estado e nada publicaram sébre 0 mesmo, nem de seus scientistas. Lastimo sinceramente essa dupla omissio, por injustificavel. Com efeito. Mesmo considerando a arte uma associagdo mais ou menos complexa de imagens, nao poderia limité-la & reprodugio do meio fisico. Ela tende até a despresar isso, visando algo mais transcen- dente. A imitagéo do exterior ja foi feita quasi até a saciedade. N&o oferece mais dificuldade. O que se busca actualmente é revelar 0 nosso interior. Mesmo mais do que o psiquico comum. A arte encaminha-se decididamente para o subjectivo, que deriva sobretudo da afectividade. Ora, ésse elemento do espirito, o mais profundo do mesmo, é eminentemente hereditario, 0 que melhor liga o homem aos seus ascendentes. Quando o escritor descreve os sentimentos dos personagens fieticios, que sio na muioria os dele, em qualquer lugar que os disponha, reflecte a alma de seus pais e, indirectamente, 0 ha- bitat désses, isto é, sua patria. Igualmente, se a arte & a expresso, devem-se incluir numa histéria literéria os scientistas, encarados, nao em suas ideas mas em sua linguagem. Demais, féra incoeréncia tratar af dos criticos e silenciar sébre os outros intelectuais, 184 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Espero que o conspicuo historiador, ponderando novamente sobre isso, elimine as duas falhas. Poderia fazé-lo, ao menos, na segunda parte de sua obra. A respeito da etiologia literéria do Cearé, D. Barreira apenas deu um capitulo, Fez hem em ser sébrio nisso. Até ha pouco, entre nds, todo historiador de literatura jul- gava-se com a obrigacdo indeclindvel de comegar seu trabalho com longuissimos capitulos sébre a terra e a gente do pats, afora 0 sébre o meio especial, apesar de nada acrescer explici- tamente quanto 4 influéncia désses factores na génese de nossas letras. D. Barreira eximiu-se inteligentemente dessa ingenuidade. Algum tempo apés de publicadas as ligdes de Taine, Hen- nequin chamava a atengéo dos estetas para o facto de que sobre- tudo os dous primeiros meios néo comunicam uniformidade as literaturas. A etiologia dum fenémeno é a parte mais dificil de seu conhecimento. Apesar da nogéo de causa haver sido perquirida desde a antiguidade, s6 hé meio século teve sua definigio definitiva, gracas a E. Mach. O grande matemético filésofo austriaco, baseando-se nas conquistas da fisica, estabeleceu-o: causa é a variavel duma fungio. A primeira vista, estranha-se que uma idea quantitativa su- bstitua outra fundamentalmente qualitativa. Entretanto, desde que nos lembramos que conhecer é nu- merar, pois todo fenémeno se pode reduzir essencialmente a mo- yimento, isto 6, a um de seus elementos bdsicos, amplitude ou frequéneia, ou ‘a ambos, conseguimos compreendé-la. Com eleito. Essa definigéo pode-se aplicar desde a légica (relagdes em si) e matematica (espago — tempo e quantidade) até a sociologia (grupos de séres vivos). FE tam fecunda que, provavelmente, sugeriu aos logicistas he REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 185 © hodiemos a esperanga de prescindir-se da indugio em sciéncias nao matemiticas (1). Sendo arte a aplicagdo da expressiio, como essa é produto da colectividade, deve aquela também sé-lo. Ambas resultam da necessidade de comunicagdo entre os homens. Mas, qual a condigéo ou as condigées que determinam essa necessidade ? Nio é facil descobri-las. Os recursos econémicos, uma das causas mais importantes em sociologia, devem ser uma delas. Bem o reconheceu Dolor Barreira. Incontestavelmente, ela age ai directa e indirectamente. Daquele modo parece intervir mais eficazmente em artes plastieas e mesmo em miisica do que em literatura. Nessa, sua influéncia afigura-se-me sobretudo indirecta, pela instrugdo, ou cultura. Desejo que D. Barreira publique logo o resto de sua His- téria, certo de que nao serd inferior ao tomo primeire. Para a sua claboragao ird encontrar muitos subsidios, alids como jd os teve para a da parte impressa no Diciondrio Bio-bi- bliogrifico Cearense, do Bardo de Studart. Parece-me até que foi um tanto injusto para com o grande historiador de nossa terra, nfo lhe reconhecendo todo o seu mérito. (1) A ésse respeito, admira-se a intuigio prodigiosa de Pitagoras (s. VI a C.) sébre a natureza da matéria, criande uma religiao sobretudo quantitativa: tudo é ntimero. Esse filésofo grego foi um dos que mais concorreram para a construgio: abstracta da geometria, apenas concreta entre os egipcios. Enuncigy o teorema do quadrado da hipotenusa do triangulo rectangulo, base da trigonometria, parte elementar do calculo integral, porém muito importante (fungdes circulares). Certo nao podia éle entao ter ideas claras e distintas em metafisica. Para o conseguir, necessitimos criar, afora as sciéncias fisicas, a socio- logia, e fazé-las progredir até o século actual (religiao, sciéncia primitiva e moral; Deus personificagio da moral). 186 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA A obra mencionada désse, em trés grossos volumes, equi- vale a uma boa exposigdo da literatura cearense (2). No tomo terceiro de sua Histéria, conforme o plano apre- sentado na introdugiio, vai D. Barreira, afora a bio-bibliografia dos literatos cearenses, estabelecer o valor dos mesmos, por uma critica pessoal, porém firmada também em todos os documentos compulsados. Simultaneamente ou posteriormente, por conseguinte, nos dard o quadro geral da evolugao dessa literatura. Eis a parte mais dificil de sua empresa. Para obter um resultado exacto af, deve, como todo 0 cri- tico, essencialmente, aplicar nogées precisas de estética, e, acces- soriamente: por em jégo ampla cultura geral, utilizar a expe- riéncia adquirida tanto em obra de arte como nas de critica que haja feito, e ndo ser muito afectivo. A meu ver, cumpre considerar arte, exclusivamente, a apli- cagSo da expressdo, em consequéncia do que explanei atras. Necessita verificar em cada obra, primeiro, o grau de pre- ciséo da expressao, depois, o de complexidade. Se ela reproduz preponderantemente estados mentais, sera tanto mais perfeita quanto melhor corresponder A realidade res- pectiva, sobretudo nos tragos essenciais. Para isso convém prefe- rentemente o estilo dito realista, sendo-Ihe excessivo o natu- ralista, Se trata da afectividade, deve encerrar de intelectual apenas © que baste ao seu suporte. Aqui se recomenda o estilo simbo- lista primitivo, empregado por Mallarmé, Todas as suas vari- antes, criadas mais por exibicionismo do que por conveniéncia (2) Por suas multiplas e criteriosas pesquisas sdbre a histéria do Estado, merece o B. de Studart, de seus conterraneos, sem favor, grande gratidio. Devia o Instituto do Ceara, na qualidade de grémio intelectual mais antigo e idéneo dos existentes no Estado, propor 4 Municipalidade e ao Povo erguerem monumentos aos expoentes de sua mentalidade, sendo in- dividuais, ao menos sob a forma de grupos: légico-matematicos e enge- nheiros, fisico-quimicos e gedgrafos, bidlogos e médicos, historiadores, socidlogos e jurisconsultos, artistas, filésofos. No s6 guerreiros e esta- distas fazem jus a essa homienagem. A ésses, alias, faltam os referentes aos colonisadores, aos republicanos de 17 ¢ 24, e aos libertadores da escravatura. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 187 estética, séo-lhe inferiores. Muito imgénuas, sendo ineptas, as contemporaneas mensagens poéticas. Quanto & complexidade da impressdo, sabemos que a psi- quica & menos faci] de reflectir do que a fisica, a subjectiva do que a objectiva. O grau de exactiddo e o de heterogeneidade sio os elemen- tos fundamentais que nos indicam a evolugéo da arte. O belo, entretanto, nao esté em relagdo necesséria com a ver- naculidade. Nem sempre o mais correcto gramaticalmente constitui o mais artistico, Deve-se ser razodvelmente tolerante nisso, Para apreciar bem a imagem, impde-se-nos cultura. Sem conhecimentos de psicologia ¢ de sociologia como julgar os fac- tos respectivos ? Tem nao pequena importancia para o critico a pratica da arte. Certas particularidades dessa se nfio aprendem nem em compéndios de estética nem com a simples contemplagio da- quelas obras. Para consegui-lo, torna-se indispensavel construir por si mesmo a arte. O exercicio disso incute-nos varios désses conhecimentos, como, por exemplo, o de qualquer artista, salyo se abaixo de me- diocre, pode levar suas obras a grande methoramento, quasi a perfeicao, submetendo-as a sucessivas corregées, relativamente faceis. JA Hordcio e Boilean o haviam assinalado. Tais defeitos € aprimoramentos, para julgar do talento de seus autores, pois, teem menos alcance do que vulgarmente lhes atribuem (3). Também influi muito sébre o critico a reiteragio de seus ensaios. (3) Obtive isso directamente com a prdtica da arte. Publiquei em 1928 um livro de versos (Poesias) e em seguida nunca deixei de fazé-las, embora espacadamente. Pensei até em dar-Ihes uma edigio completa ¢ definitiva, havendo corrigido todas as composigdes que me pareciam de- feituosas. Mas desisti, tanto por achar. que nao havia realizado o meu ideal estético, como em virtude dum juizo pouco optimista sobre arte, ‘Tambem, pelos mesmos motivos, desisti de publicar um livro de contos. Desde que me persuadi que a arte é apenas a aplicagio da expressiio, afigurou-se-me que tende 4 decadéncia, porque ja conquistou a perfeigio, tornando-se quasi exclusivamente heddénica. Os espiritos mais ltcidos da actualidade estéo dando preferéncia, claramente, 4 sciéncia. -188 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Alguns pontos de vista ai, quasi imprevisiveis, sé se podem atingir apés uma série longa de esforgos. Ha razées até, em nossos julgamentos, como que imponderaveis, inefaveis (4). A quem quer que exerga a critica cumpre raciocinar com precisio, afim de que nao deturpe o silogismo legitimo, tornan- do-o falso ou mesmo sofistico. A dedugéo afectiva é, como o esclareceu Ribot, aquela em que se inclui subrepticiamente na premissa menor o grande termo, de modo a reencontrd-Jo fatalmente na conclusio. A mor parte das qualidades indispensdveis ao bom critico, possuinas J. Barreira. E as demais poderd adquiri-las facil- mente, se quizer. Conto, pois, que o resto de sua obra corresponda 4 minha expectativa. Estimaria até que a extendesse a um quarto volume, reser- vado a uma selecta dos escritores cearenses, com transcrigdes ge- nerosas ¢ variadas, contendo mesmo seus retratos. Dessa maneira permitiria ao leitor inteligente ¢ culto, cé- modamente, apreciar por si cada um déstes artistas ¢ a evolugio dessa literatura, concordando ou discordando do erudito histo- riador. (4) Consegui isso, tambem, sé com a pritica da critica, Fiz anos atras, pela imprensa, longa critica a um livro de contos, publicado por um de nossos escritores. Mais tarde a reeditei sob a forma de livro (O Cea- rense ¢ a Literatura Regional, 1925). Mereceu um artigo, em jornal ves- pertino, de Francisco $. Bueno, professor de filologia da Universidade de §. Paulo. Apesar disso, se fosse refazé-la agora, havia de modificd-la profundamente. Nao mantenho mais as mesmas ideas nem sébre arte nem sdbre critica.

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