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Epancels DULLIEN, FRAN 58!9-- ve 5pi0 NAO TEM IDEIA- ym sasid MS Sho pavid: MARTINS Fontes, £000 Nao tem nada a avancar 1. Um sibio, estabeleceremos de saida, nao tem idéia, “Nao ter iia” significa que ele evita por uma idéia a frente das outras em detrimento das outras; nao ha idéia que ele ponha em primeiro lugar, posta em principio, ser- vindo de fundamento ou simplesmente de ini do qual seu pensamento poderia se deduzit ou, pelo iiie- nos, se desenvolver. Principio, arché ao mesmo tempo 6 qué Gomera € © que comanda, aquilo por que 0 pensa- mento pode comecar, Uma vez ele colocado, 0 resto se- gue. Mas, justamente, ai estd a cilada, o sabio teme essa di 0, jest recdo imediatamente tomada ¢ a hegemonia que ela ins- ‘aura, Porque a ideia assim que é proposta faz as outras re- Auitem, nem que para vir depois a associé-las a si, ou antes, ela j@ as jugulou por baixo do pano. O sabio teme esse’ po der ordenador do. primeiroy’ Assim, essas “idéias’, ele trata- ra de manté-las no mesmo plano ~ e esté nisso suia sabedoe las igualmente possiveis, igualmente acessiveis, sem @llé nenhuma, pasando a frente, venha a ocultar a outta, lance Sombra sobre a outa, em suma, senr que ne- abiima seja privilegiada “Nao ter idéia” significa que 0 sdbio nao esté de posse 4 de nenhuma, nao é prisioneiro de nenhuma. Sejamos mais a paris PRANGOIS JUELIEN rigorosos, lterais:ele no, avanca nenhuma, Mas Vel evitar isso? Como poderiamos pensar sem nada propor No entanto, assim que comecamos a avancar wind iGéia, Gucnos a sibedorii, € todo 0 teal Cou fodo 0 pensive) que, de repente, recua; ou antes, elo perdido atris sera necessatio tanto esforco € mediacao, dai em diante, para se aproximar dele, Essa primeira idéia proposta rompet..o Syfundo de evidéncia que nos rodeava; apontando de um Tado, este em vez daquele, ela nos fez. pender panto arbi- £ trano, nds fomos para este lado € 0 outro fica perdido, @ queda é irremedidvel: ainda que depois reconstruamos 10° Gas as cadeias de razdes possiveis, nunca escaparemos ~ aprofundaremos sempre mais, enterraremos sempre mais, seimpre presos nas anfractuosidades ¢ nas entranhas do pensamento, sem nunca mais voltar 2 superficie, plana, a a evidéncia, Por isso, se voce desejar que o mundo conte fue a se oferecer 4 voce, diz-nos a sabedoria, © que, Part danio, ele possa permanecer indcfinidamente igual, absol- tameate extacionirio; voce tern de renunciar 3 arbitrariedade de uma primeira idéia (de uma idéia posta em primeiros in- elusive aquecla pela qual acabo de comegan). Porque toda pri- vaeita idéia ja € sectéria: ela comecou a monopolizar vi isso, a deixar de lado. Jé 0 sabio ndo deixa nada de lado, nao deixa nada de mao. Ora, ele sabe que, a0 se Pro por uma idéia, jf se toma, nem que temporariamente, O80 partido em felaglo A realidade: quem se poe 4 puNat uM fio da meada-das éoeréncias, este em vez daquele, comes 1 pregueat (pier) 0 pensamento, em, certo seotido. Pos isso. propor imma idéia seria perder de. sada o.que.vock queria comecar a esclareces, por mais prudente & metodi- cimnente que o faga: voc’ fica condenado a-um angulo de mais que se esforce depois para recon- ‘visio particular, por UM SABIO NAO TEM IDEIA quistar a totalidade; e, dai em diante, nao parara de depen- der dessa prega (pli), a prega formada pela primeira idéia vroposta, de passar por ela; nfo parardi mais, tampouco, de voltar a ela, querendo suprimi-la, ¢ por isso de amarro- tar de outro modo o, campo do. pensavel ~ mas perde para ‘empre 0 sem pregas do pensamento. Ora, avangar uma idéia, € por ai que comeca — € que nao cessa ~ a historia da filosofia: dessa idéia que se avan- 1, faz-se um principio e o resto segue - 0 pensamento se organiza em sistema; dessa idéia avancada faz-se 0 ponto saliente do pensamento que um defende, e © outro tem 1m “gancho” para refutd-lo, A partir desse parti pris pro- posto, uma doutrina pode se constituir, uma escola se for mar, um debate ~ que nao terd mais fir ~ € iniciado. 2, Foi nesse sentido que um pensador chinés do sécu- Por isso, para tergiversar-com a dificuldade, a daCfasu- ra da sabedoria (oposta a0 relevo da filosofia), assim como de sua imemediével banalidade (Condenando toda afirma- Gao sobre ela a sogobrar na insignificancia), optei por evo- car a sabedoria Ievando-a desde o inicio 2 seu limite: ilu- minando-a assim com uma luz paradoxal e atingindo-a em seu ponto radical - 0 do sent idéia, Mas, com isso, obsteui ‘© caminho, e mal comecei n4o posso ir em frente: 0 pen- samento da sabedoria se acha condenado a nao sair do li gat, De fato, a0 contrario da filosofia, que pode ser expos: ta metodicamente, a subedoria dé lugar, ndo a progressio, mas A uariacde. Por conseguinte, nio cessaremos de voltar fazéndo coincidir 05 encaminhamentos: para realizar a evidéncia (a.da imanéncia), ndo poderei mais que repisar, driblando 0 tédio do leitor. Os chineses tém outro dizer: a sabedoria no. se explica-Cela-ndo.da-a.entender).— ela & para se meditar ou, melhor ainda, dando todo tempo neces: sirio a esse desenrolar, como se fosse 0 cle uma impregna- ‘ca0;"para-se “saborear z Tl Nao tem idéia privilegiada, nao tem eu particular 1, Para entabular essas variagdes sobre a sabedoria, partrei daquele que, na China, melhor a teria enc: nado, onfiicio, Esta curta afirmacio das Conversagées esclarece, numa luz mais pessoal por que o sabio "nao tem idéi As quatro coisas de que 0 Mestre estavi iserito: ele néo tinba idéia (privilegiada), néo tinba necessidade (predetermbna* ia), nao tinba posigao (formada ¢ nao tinha ew (particular) ax, 9) 7 ‘ A formula deve ser tomada ao pé da letra’: o Mestre ao estava isento de idéias feitas, ou de idéias no ar, ou de ‘Gigs sem fandamento, como se costuma traduzit — para ndo € preciso ser Confiicio -, mas de idéias proprias, pura e simplesmente. No sentido em que Se diz que cada ual “tem suas idéias” ou, inversamente, que isso ndo casa om “minhas idéias", ou ainda que é preciso julgar, agir, ie acordo com suas idéias": 0 sibio nao tem idéia porque » privilegia nenhuma (nem, com isso, exclui nenhuma) ‘borda 9 mundo sem projetar nele nenhuma visio pre- oncebida; ele ndo estreita nada, por conseguinte, com a nusao de um ponto de vista pessoal, mas mantém sem- ; FRANGOIS JULIEN pre abértas todas 4s possibilidades. Por isso, como ele nada presume, no ha “€ necessério? que se imponha a cle ¢ que predetermine sua conduta; nenhumia “necessidade” a codifica de antemao, seja ela da orem das maximas que nos impomos, seja das regras impostas pela moral. Vemos isso, notadamente, por contraste com certo discipulo seu que, este sim, tem principios ¢ cuja intransigéncia Confi- cio nao compartilha (Zilu, cf. XVI, 5 ¢ 7): mantendo uma relagao com 0 mundo totalmente aberta, ele € capaz de esposar toda diferenga deste ¢ se adaptar sem entraves a cada caso. Mas além disso € necessirio que, ndo se imobilizando em nenhum ponto de vista particular, se possa evoluir de acordo com 0 curso das coisas; € € por isso que se diz, em seguida, que 0 sébio nao tem “posico” formada, Estando ‘real em transformacdo continua, sua conduta também est €, como ele, nao se “estabelece”. Do mesmo modo que se preserva de projetar de antemdo uma necessidade qu: quer, cle toma o cuidado de ndo se apegat a postertort a posicao adotada ~ a nao se fixar nela, a nao se atolar nela Quando Confiicio declara em outro passo “detestar a tei- imosia’” (XIV, 34), erraria quem visse nisso um simples trago de carater - no ha por que moralizar ou psicologizar (com © que essas Conversagdes da categoria mais geral para dizer sua recusa a deixar o jui- 20 , por conseguinte, a conduita se esclerosar. Considers nto sofreramn) =, pois se tra do tigorosamente as coisas (isto &, sem acréscimo metalisi- co}, néo haveria outra origem para o mal humiano (como: S€Sabe, o pensamento chines € livre de todo € qualquer diabolismo): 0 negativo, prende-se essencialmente-ao-fato de-nos travarmos numa disposigdo particular sem mais po- der evoluir; ou, mais precisamente, no plano das idéias, a0) UM SABIO NAO TEM IDEIA, lato de nos deixarmos encerrar em certa visdo das coisas em mais conseguir sair dela @ modifica-la O fiégativo 6 a bystrugde (do curso ~ 0 de todo real) @'o mal, a TRACT. Porque 0 que éfa adequado num caso nao € tials noutro, «a logica do real (pata que Séja “Teal") é estar em’ proces- © mal, 0 er70, decorrem dessa congelucao que, trans- iormando nossa apreensio em trilha a sempre seguir, vos impedindo de nos renova, Hos desvia des Exigencia Enfim, Confiicio, falando propriamente, “nao tem ev’, undo apenas nao tem “egocentrismo” ou “Eu”, como se waduziu Cambém aqui, convém evitar interpretagdes morais ou psicolégicas que arranham a radicalidade da 40 € estreitarn-na). O sibio efetivamente nao jem eu, dado que, como nao presume nada a titila de) dit proposia (1), ném projeta nada a titulo de imperative 1 « respeitar (2), nem se imobiliza tampouco em nenhuma sicao dada (3), nao ha nada por conseguinte que possa particulartzar sua personalidade (4). Nao ha mais eu = porque Sé tomou demasiado estreito -, visto que nossa “ perspectiva permanece completamente aberta'€ toincide ‘om a tolalidade do processo (que eld € tao “ampla” quan- {© © Géu; cf, VII, 19). Por isso, do sibio ndo se acha nada 1 dizer (VU, 18), nada a elogiar (IX, 2), ele nao tem carater nem qualidade. Eu avisei sobre esse efeito de arredondamento, para nao dizer de vertigem, tipico da consideragao da sabedoria © de sua estratégia da variagao. J4 se pode verifica-lo aqui, rOpria_possibilidade.de uma verdade..Nao que deveria- 37 FRANCOIS JULLIEN mos duvidar desta, nem que devéssemos relativi2a-la, mas simplesmente porque “colar” assim numa posi¢do determi. fada “sem mais saber evoluir”, nos diz o comentador (Zhu Xi, seria perder a capacidade de extrema vatiagdo que faz a amplitude do real, reduzida assim, essa capacidade, Sob uma norma comum e enrijecida por esta, Resumindo um debate entre escolas, Méncio diz: hi, de um lado, 05 que preconizam o “tudo para mim” (Yang Zhu): “mesmo se, a custa de um s6 de seus cabelos, eles pus dlessem fazer 0 bem ao mundo, nio fariam”; do outro, os que preconizam “o amor igual a todos os homens” (Moz), “nem que fossem laminados da cabeca aos pés, para fazer © bem ao mundo, eles fariam”... Um terceiro, Zimo, “fixa- se no meio” entre essas posi¢bes adversas; assim, “fixanco-se no meio”, ele fica “mais préximo”, Mas “fixarse a esse meio” “sem avaliar a variedade dos casos” € como “fixar-se numa 80 possibilidade”. E Méncio conclu: “6 que rejeito no faio de fixar-se numa s6 possibilidade @ que isso espolia o camino (6 140}; promove-se uma possibilidade, mas per- denise mit” (VIL, A, 26). Aqui também, o meio que seria justo no pode ser “ini ©o, ndo esti a meio caminho das posigées adversas (aqui, eqitdistante da generosidade € do egoismo), tampouco consiste em concilié-los: por exemplo, sugere um comen tador, em buscar 0 bem do mundo sem correr nenhum ris- Co. Porque, se as posicdes adversas do altruisino e do indi- vidualismo sao igualmenté abusivas, na medida em que sio sistematicas (oa medida emi que se constitucm o), pode tambéni acontecer que convenha sacrificar-se inteira- mente, como quer o extremo do altruismo (assim € quan- do Yu, 0 grande, remediando 6 dildvio, fica anos sem vol- ‘ar para casa); também como abstrair-se de toda preocupa do com © mundo, como prega o extremo do individualis- UN SABIO NAO TEM IDEA (@ © caso de Yan Hui, solitirio € sereno em seu heco) ‘ que se valoriza o vazio do espirito”, dirdo os tavisantes (of, Han Feizi, XX, “Jie Lao"), € que, nele, nossa intenciona- Iihide permanece livre ¢ indeterminaday ora, a partir do mo- vento em que nos fixamos a esse vazio do espirito, preser- aumos sua intencionalidade presa 2 ele, ¢ esta se acha ento ceterminada por ele; por conseguinte, nao € mais o vazio > espirito, este € reocupado ~ o “vazio” & perdido. © meio, 0 vazio: fixar-se no meio nao € fixar-se a0 meio, SE.nd Vazio nao €-fixar-s€ a0 Vazio. Porque quem se 40 meio é imobilizado por ele € perde@ amplitude do justo meio; €, dO mesmo modo, quem se fixa a0 vazio. é bnubilado por efé e perde a liberdade de espirito deseja- Mas entio como “se fixar” e o que “se fixa"? Desapare. a “tese" — ihésis. E, sob esse retraimento, comegaria a «parecer 0 que, dessa consideragao da sabedoria que sem- re variaria e dirla sem nunca se apegar, constituiria a pro- hundidade da sua rasura: ao mesmo tempo que se dispe: 1 = que “sedespende” —; esté sempre recuiada,

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