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GOLABORAGAO POLITICA DO DESENVOLVIMENTO URBANO SENADOR CARVALHO PINTO Em pleno fastigio de nossa civilizagio urbana, onde as cidades se tornam pélos de irresistivel atracdo a promover sensiveis deslocamentos migratorios e se erigem em centros de comando politico, cultural e eco- némico da vida eomunitéria, o problema do crescimento urbano deve passar a primeiro plano das cogitagdes governamentais. (1) Nascidas sob a inspiracao de abrigo, protecdo e amparo a superiores necessidades espirituais e materiais do homem, o crescimento desorde- nado das cidades, fora de qualquer planejamento global, as converte em perigosos agentes de desumanizagiio das criaturas, de rebaixamento de suas condigées de vida, de desagregagio social, enfim, de paradoxal inversdo das condigdes que as legitimam. O fenémeno, que se torna ostensivo nos grandes centros e sobretudo nos paises subdesenvolvidos, tem merecido a melhor atengio dos socidlo- gos e urbanistas contemporaneos, dada a gravidade de suas varias conseqiiéncias, (1) “O Fenémeno Urbano” — Organizacao e Introdugio de Otavio Guilherme Velho, ed. 1967, pag. 31. V. “A Grande Crise”, Prof, Colin Buchanan, in “People and Cities” XX ~ Coventry 68, “Living in Cities”, pag. 32. V. L. J. Lebret in “Suicidfo ou Sobre- vivéneia do Ocidente?", 3% ed., 1964, pag, 361. V, “Social Sweden", pags. 346/47. YV. Gilberto Freire in “So Paulo e a Unidade Brasileira”, pégs. 6/7. V. “A Reforma ‘Tributéria do Municipio e 0§ Aspectos Financeiros”, Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto, ed. 1947, pég. 15. V. Nice Lecoq Milller in Enciclopédia Barsa, ed. 196%, ‘Vol. 9°, pag. 200. V. Gilberto Freire in “Obras Reunidas — Quase Politica”, 2 ed, 1966, pag. 217, V. J. F, de Camargo in “A Cidade e 0 Campo”, ed. 1968, pags. 73/74. V. “American City Government and Administration”, de Austin F. Macdonald, Ph D, 8rd. edition, 1941, pég. 3. 4 REVISTA DE iNFORMAGAO LEGISLATIVA De fato, h4 um mfnimo de condigées de vida urbana sem as quais metrépole chega a perder sua propria razéo de ser, quando, pela deficiéncia de meios, pela imprevidéncia administrativa, pela adversidade de condigdes ou por um gigantismo invencivel se tornem as cidades Impotentés para a manutengdo désses padrées minimos, o que a histéria nos revela € a implantacao inexordvel de um processo de deterioragio, cujos efeitos transcendem as suas lindes territoriais, e que, partindo do mal-estar e do inconformismo, podem chegar até ao perigoso est&gio das convulsdes — sempre com uma sintomatologia tragies e bastante conhecida: a subnutricéo, a mortalidade infantil, a mendicancia, a marginalizacao, a delingiiéncia comum e o apélo extremado as solugdes de desespéro. Isso, sem falar, ainda, nos graves efeitos econémicos que possam decorrer, quando se trate de Areas industriais responsévels por produgéo substancial, ou quando o acréscimo demografico se opere atra- vés de uma desequilibrada sangria a Areas rurais que sustentam o abas- tecimento das populagdes ou que contribuem para o suprimento de matéria-prima indispensdvel as industrias. Acresce ponderar que, nesses instantes de hipertrofia e de crise, quando escasseiam as minimas condicées de existéncia digna e humana, 0 sacrificio se faz mais cruelmente sentir sdbre os pequenos e humildes — aquéles que, pela desqualificagao > rofissional ou pela propria penuria, nfo alcancam condigées de maior defesa ou de competigéo com os que se encontram espiritual ou materialmente mais bem dotados. E no processo de marginalizacéo que entao se instala, as primeiras vitimas so geralmente os que, provindos do interior e desconhecendo a estrutura urbana, nem sequer encontram condigdes para melhor ut dos equipamentos sociais de assisténcia ou das exiguas disponibilidades de engajamento profissional. & o drama, ja h4 muito tempo focalizado pelo Padre Lebret, no Suicidio ou Sobrevivéncia do Ocidente, (7) com base em observacdes feitas em varios paises da Asia, da Africa e da América Latina. B o quadro, ainda, que com seu conhecido vigor de andlise o nosso notével Gilberto Freire (*) também ja ha anos constatava no Recife, e que, embora com tonalidades mais atenuadas, jé reflete também a situago das demais capitais do Nordeste, como se verifica no artigo de Lufs Prado, (‘) recentemente publicado no Correio da Manhd, a situagio ainda ha poucos dias focalizada com crueza pelo prefeito de Séo Paulo. % enfim uma situacio que, convertendo as megalopoles em verdadeiros monstros urbanos, nao pode ser aceita com impassibilidade ou confor- mismo, mas que esta a reclamar, ao contrério, da colaboragio dos técni- cos, dos administradores e dos politicos, medidas corajosas ¢ profundas, capazes de coibir a tempo uma deteriorac&o altamente lesiva ao bem- estar e ao progresso sadio das nossas populagées, tanto sob o aspecto material como espiritual. (2) V.L.S. Lebret i “Suicidio ou Sobrevivéncia do Ocidente?", 3° ed., 1064, pag. 361. (3) V. Gilberto Preire in “Obras Reunidas — Quase Politica", 2 ed, 1968, pag. 217. (4) in Correio da Monhé, ed. de 11-771. OUTUBRO A DEZEMBRO — 1971 5 PREOCUPACAO GENERALIZADA © problema est4 hoje merecendo atencdo universal. & sintomética a adverténcia ainda recentemente feita pela Igreja que pela primeira vez vem a piiblico a respeito da matéria, na Octogesima Adveniens (°) “Nesse crescimento desordenado, novos proletariados comecam @ aparece. Instalam-se no coragao das cidades que os ricos por vézes abandonam; ou entéo acampam nos arrabaldes, nédoas de miséria, que comecam a importunar, numa forma de pro- testo ainda silenciosa, 0 luxo demasiado gritante das cidades do consumo e do esbanjamento. Assim, em lugar de favorecer 0 encontro fraterno e a entreajuda, a cidade, pelo contrario, desenvolve as discriminac¢ées e também as indiferencas. Ela se presta para novas formas de exploracao e do dominio, em que uns especulam as necessidades dos outros, disso auferindo Iucros inadmiss{veis. Por detras das fachadas escondem-se muitas mi- sérias, ignoradas mesmo pelos vizinhos do pé da porta, outras estabelecem-se onde sobra a dignidade do homem: delinqiiéncia, criminalidade, droga, erotismo etc.” No Brasil, varias andlises do problema ja tém sido feitas, sendo de se ressaltar as constantes da mensagem do Instituto Brasileiro de Admi- nistracao Municipal ao Presidente da Reptiblica (*) as conclusdes do Se- mindrio de Desenvolvimento Urbano e Local realizado em Brasilia, em julho ultimo, por convocac3o do SERFHAU (°) e os proprios documentos Oficiais de planejamento, como 0 Plano Estratégico de Desenvolvimen- to (8) e as atuais metas e bases do Govérno, (°) todos éles acentuando a necessidade de descentralizagéo de uma réde urbana e de observancia de uma politica nacional de crescimento urbano ¢ local. & o amadurecimento natural de um pensamento que a realidade politica contemporanea nao pode ignorar. SOLUGAO INADIAVEL ‘A meu ver, tanto como a reforma agréria, a reforma urbana se torna imprescindfvel, dentro de uma mesma inspiraco de justica social, de seguranca e de desenvolvimento econémico. Uma reforma que rein tegre a cidade na sua precipua missdo de servir 4 criatura humana, atenta aos seus naturais anscios de bem-estar, de progresso, de compre~ ensao afetiva e de afirmacao espiritual. Uma reforma que, recondicio- nando as metrépoles, nao permita A cidade, nascida sob a inspiragao do espirito agregativo do homem, venha a conduzi-lo, paralclamente, como assinalou 0 Sumo Pontifice, a “uma nova forma de solidéo, nao j4 & (5) Octogesima Adveniens, Papa Paulo VI. (8) im Jornal do Brasil, ed. de 5-3-67, (1) Seminario de Desenvolvimento Urbano e Local, promovido pelo Servico Federal de Habitacdo e Urbanismo — SERFHAU, reunido em Brasilia, de 26 2 29 de julho de 1971, (8) “Plano Estratégico de Desenvolvimento”, Vol. If, Capitulo XIX. (9) ‘Metas © Bases para Agdo de Govérno”, ed. 1970, pag. 97. 6 REVISTA DE INFORMAGAO LEGISLATIVA frente uma natureza hostil que éle levou séculos a dominar, mas no meio da multidio anénima que o rodeia e onde éle se sente como um estranho”. (1) Acredito que diploma dessa natureza, para maior amplitude e sis- tematica de seus efeitos, melhor se comporia dentro da propria estrutura, constitucional, com adequada disciplina dos direitos individuais envolvi- dos, e deveria mesmo constituir ponto bésico em qualquer reviséio constitucional de maior profundidade. Entretanto, forcoso é convir que uma politica nacional de desenvolvimento urbano j4 poderia ser satisfa- toriamente definida, dentro dos préprios parémetros juridicos vigentes. Para tanto, a Constituigaio prevé, no artigo 164, a edigéo de leis comple- mentares, definindo as regides metropolitanas e regulamentando os interésses correlatos. EB o poder de policia do Estado, abrigando amplo instrumental juridico, facilitaria ainda a implementacéo de um plano global onde, através de incentivos e de pressdes fiscais, de estimulos financeiros e de operagées administrativas, se promovesse a descentrali- zagdo dos micleos urbanos, sua distribuicée em fungdo dos superiores interésses econémicos e sociais de varias regiées, seu dimensionamento ajustado as disponibilidades administrativas, a densidade demografica compativel com padrées minimos de existéncia digna, a correlaciio ade- quada entre areas de trabalho e 4reas residenciais, a reciproca colabo- ragao entre a cidade e o campo, enfim, o justo entrosamento entre todos os interésses sociais em jégo, no encalgo do desenvoivimento justo, pro- dutivo e harménico de tédas as parcelas populacionais da . Numa época de tio grandes progressos técnicos e t&o assinaladas conquistas no campo do planejamento, num instante em que, a despelto de graves falhas de execucéio, nenhum Govérno que se preze, nem mesmo na Orbita municipal, prescinde de um plano de ac&o para o cumprimento de seus deveres; num momento em que, com larga visdo, se lanca 0 Govérno do Presidente Médici em arrojadas iniciativas de integragdo social e de descentralizacio econémica, como o PIS, o Proterra, 0 Pro- rural e a Transamazénica; numa era, enfim, em que nfo se pode conce- ber qualquer crescimento desordenado e insubmisso aos superiores obje- tivos do Estado, nfo se pode mais admitir o desenvolvimento urbano desvinculado de um planejamento global e adstrito, apenas, a timidos e instdveis planos diretores internos, e nem sempre devidamente cum- pridos. Impée-se, a meu ver, um diploma alto, genérico, sistemAtico, atento s nossas peculiaridades regionais, e capaz de corporificar, com realismo e sentido democratico, um pensamento ja incorporado as conclusdes técnicas e aos propésitos oficiats. Como, pela sua natural extensiio, a iniciativa transcende a competéncia constitucional do Poder Legislativo, eaberia ao Poder Executivo promové-lo e foi nesse sentido o apélo que, da tribuna do Senado, dirigi ao Govérno da Republica, convencido de que, na fecunda obra renovadora que se desenvolve, nfio faltar um capitulo destinado a ésse setor vital do nosso desenvolvimento social e econdmico. (19) Octogesima Adveniens, Papa Paulo VI.

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