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ESTADOS UNIDOS E AMERICA LATINA AS RELAGGES POLITICAS NO SECULO Xx XERIFES E COWBOYS UM POVO ELEITO E 0 CONTINENTE SELVAGEM GERSON UR Como Copyright © 4990 Gerson Moura Projeto Grético e de Capa: Syivio de Ulhoa Cintra Filho Mlustracéo de Capa: Pintura haitiana Reviséo: Maria Aparecida Monteiro Bessana e Luiz Roberto Malta i" Composiedo: Veredas Editorial z Impressao: EDITORA PARMA LTDA. Dados de Catalogagéio na Publicagao (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Moura, Gerson, Estados Unidos e América Latina/Gerson Moura, 2#ed. — Sao Paulo: Contexto, 1991, ~ (Repensando a historia) Bibliogratia, 4, América Latina ~ Reiagdes exteriores ~ Estados Unidos 2, Estados Unidos ~ Relag6es exteriores—América Latina 3, Imporialismo 1. Titulo. Il. Série. ISBN 85-85134-79-8 c0p-327.7808 ~325,320973 90-1086 -327.8073 fndicex para catélogo sistemético: 1. América Latina: Relag6es pollticas: Estados Unidos 327.6073 2. América Latina-Estados Unidos: Relages pollticas 327.8073 cia pollica $25,320973 poltticn 325.920973 5. Estados Unidos: Relacdes pollticas: América Latina 327.7308 8. Estados Unidos-América Lalina: Relagdes politicas 227.7308 1? edigaio: agosto de 1990 2? ediggo: novembro de 1991 1991 Proibida a reproducao total ou parcial. Todos os direitos reservados & EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky Ltda.) Rua Acopiara, 199 05083 - S, Paulo — SP — Fone (011) 832-5838 Yn O Autor no Contexto Era uma vez 1. Um povo eleito e o continente selvagem ........2.+.000- 2. Bons vizinhos na paz ena guerra . 3. De costas parao sul .. 4. Da salvacdo a punicéo 5. Xerifes e cow-boys: final feliz? Sugestées de Leitura O Leitor no Contexto 79 SL O AUTORNOCONTEXTO 5 . Gerson Moura nasceu em Itajuba, Minas Gerais e graduou-se em histéria na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, UFRJ, em 1966. Fez 0 mestrado em ciéncia politica no IUPERJ (Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de Janeiro) em 1979 e o doutorado em hist no University College London em 1983. Sua experiéncia no magistério superior iniciou-se em 1970 na PUC/RJ na qualidade de professor do Departamento de Histéria e, posteriormente, do Instituto de Relagdes Internacionais. Entre 83 e 86 foi professor concursado da Universidade Federal Fluminense e em 1989/90 professor-visitante da Universidade de Sao Paulo. Dessa experiéncia docente nasceram A Formagao do Mundo Contemporaneo, escrito em co-autoria com Francisco J. C, Fal- cén (Campus, Rio, 1981) e o presente livro. Como pesquisador do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentagao de Histéria Contempo- ranea do Brasil), Fundagdo Get Vargas, dedicou-se ao estudo da politica externa brasileira nos anos 30, 40 e 50, assim como a temas igados a historiografia. Dessa experiéncia de pesquisa, nasceram Au- tonomia na Dependéncia (Nova Fronteira, Rio, 1980), Tio Sam Chega ao Brasil (Brasiliense, S. Paulo, 1984) e A Campanha do Peirdleo (Brasiliense, S. Paulo, 1986). A seguir, Gerson Moura responde a trés perguntas: we 1, Por que este livro focaliza relagées politicas e ndo se detém nas relagdes econémicas, que parecem ser 0 aspecio mais saliente da rela¢ao EUA-América Latina? R. Por duas razées. Uma de ordem pratica que tem a ver com a literatura j& existente em portugués, tanto a de feig&o jornalfstica quanto a mais definida- mente académica. Em quase toda essa produgao intelectual, o que sobressai sao us relagdes econdmicas que diferenciaram as duas partes do continente e as ligaram complementar e assimetricamente no curso dos séculos XIX e XX. Muito j& se escreveu e debateu, teorica e empiricamente, sobre as dimensdes econémicas da relagdo EUA-América Latina; e daf, a necessidade de centrar este texto nas relagées politicas. A segunda razao, de ordem metodolégica, diz respeito & importancia de se res- gatar 0 politico como 0 espago no qual se concentram as tensdes e contradi- ¢des da sociedade, inclusive das relages entre Estados nacionais; nesse sen- tido, 0 polftico 6 um espaco privilegiado para a andlise da natureza e dos modos de dominac&o que se estabelecem entre as partes de uma sociedade nacional ou entre os Estados nacionais. 2, Haveria alguma vantagem nessa abordagem quando se trata da relacao en- tre Estados, no caso, entre EUA de um lado e América Latina, de outro? R. Certamente. Para um Estado como o norte-americano, cujo raio de agao cresceu ininterruptamente e que, a partir da guerra de secessao (1861-65) con- centrou meios de acdo muito vastos, as definig6es de politica exterior iam muito além da idéia de assegurar mercados e, eventualmente, fontes de matérias-pri- mas. lam na direcao de assegurar uma posic4o estratégica dominante nos ma- res adjacentes (virada do século XIX para o XX) e algumas décadas mais tarde no conjunto do continente. Desse ponto de vista, os objetivos macropoliticos freqtientemente subjugaram objetivos econdmicos parciais ou privados, embora pudessem coincidir com eles. 3. Dadas as disparidades entre EUA e América Latina, em termos de cresci- mento econémico e recursos pollticos em escala internacional, poder-se-ia es- perar uma modificagao nas relagdes entre as duas partes do continente? FR. Vivemos hoje um momento de eriortnes transformagdes na ordem interna- cional, com um reordenamento cujo desenho. final ninguém pode prever. Apa- rentemente caminhamos para a constituigao de megablocos desenvolvidos, em torno dos quais gravitarao sistemas periféricos pouco ou mal articulados, Des- se ponto de vista, 0 futuro nao é muito risonho para a América Latina, embora se deva distinguir também no seu interior disparidades consideraveis e portanto capacidades diferenciadas de atuacdo neste novo ordenamento mundial. No plano politico, a América Latina tem desenvolvido e pode continuar a desen- volver atitudes e polfticas relativamente independentes e buscar formas de inte- gragéo e cooperag4o interlatino-americanas que contrabalancem de alguma maneira o peso da presenga norte-americana. As diferengas e competi¢ao entre os megablocos podem criar algumas oportu- nidades de atuac&o para a América Latina ou para os seus paises mais desen- volvidos, mas n&o ser4o oportunidades muito significativas. Mas existe um pro- blema preliminar: a natureza assimétrica e desigual das relagdes sociais e poll- ticas no interior de cada pals latino-americano. Os problemas internacionais da América Latina nao podem ser responsabilizados sozinhos pelas dificuldades e softimentos das populagées dessa parte da América. 8 Be EEE ERA UMA VEZ... Haveria muitas maneiras de contar a histéria das relacdes entre Estados Unidos e América Latina. Poderiamos chamar a atenc&o para as questées econémicas ou para as relagdes politicas, ou ainda para as culturais, militares etc. Este livro trata basicamente de relagées poli- ticas, se bem que as dimensées econdmicas, culturais e militares des- sas relagdes néo se acham totalmente ausentes, visto que a politica se expressa também nessas dimensGes. A abordagem politica poe 6n- fase nas relagdes de poder que, no decorrer dos tltimos noventa anos, se estabeleceram e se consolidaram (depois, se questionaram) entre a maior poténcia do planeta de um lado e duas dezenas de paises com pequena capacidade de deciséo no plano internacional, de outro. Na constelagao dos Estados arnericanos, claramente configurada num centro hegeménico e uma periferia subordinada, tanto nos interessa a relag&o do centro com o conjunto da periferia, isto 6, as relagdes inte- ramericanas, quanto as relacdes do centro de cada parte, isto é, dos EUA com os paises individualmente tomados. Este livro apresenta uma outra caracteristica: ele da maior aten- Go as iniciativas que partem dos EUA. Nao ignora as iniciativas nas- cidas da América Latina, especialmente nos anos mais recentes, mas procura elucidar em maior minticia as motivagdes e agdes do governo norte-americano, por serem as que maior impacto produzem no con- junto do continente, Visto que uma boa parte dos especialistas insiste em dizer que os EUA tiveram politicas cambiantes para a América La- 9 tina e, em certos momentos, até mesmo nao-politicas, este livro procu- ra. também verificar a possivel existéncia de uma linha consistente de atuacao norte-americana no continente, por tras de mudangas even- tuais. As limitagdes de espago certamente prejudicam um deseriho mais completo das relagdes de um século entre EUA e América Lati- na. Esperamos, pelo menos, ter levantado quest6es que meregam es- tudos mais aprofundados em outra oportunidade. Vargas discursa na sesso inaugural da conterénoia de chanceleres americanos, no Filo em 1942, que recomendou 0 rompimento de relagBes di com os paises do Eixo, (Fonte: FGV/CPDOC/Arquivo Getétlo Vargas.) -e comerciais: 2 le “Qs Estados Unidos sdo praticamente soberanos neste continen- te e sua ordem é lei para os stiditos nas 4reas em que intervém,/ Esta frase, die por um lio funn ee Seal durante uma dispu- ta sobre a Venezuela em 1896, sintetiza uma polftica para a América. Latina, que iria vigorar pelo século XX afora. O que 0 governo ameri- “eano proclamara como intencao em 1823 com a Doutrina de Monroe virou realidade no final do século XIX, inicio do século XX. Para entender essa “vocagao para o expansionismo” vamos via- jar um pouco pelo tempo. Desde a fundagdo das treze colénias na cos- ta leste da América do Norte no século XVIL, a ocupagado de espagos constitui um trago marcante da presenga lo-saxé na América, E bem verdade que outros co ores, t Ocupando espagos, mas impressiona vélocidade, assim como a variedade dA vidades econémicas. Im| divino & onan 10 de-yima na América, Essa cfenca_na-sua propria excepcdnalidade resultava de ‘uma tradigao religiosa (puritana) que realcaya a realizagao da virtude individual, assim como de uma tradi¢éo-fepublicana que fundava as instituigdes politicas na agao e na vontade enérgica de homens livres. No momento mesmo em que se tornaram independentes da Inglaterra, » 0s dirigentes americanos afirmavam a singularidade absoluta de seu pais No sistema internacional-das nagdes. Para Hamilton, um dos Pais Fun- * dadores, parecia ser amissao dos americanos demonstrar ao mundo que ea possivel aos homens controlar racionalmente sua vida em comum. 1 A velocidade na octipaca a. ees fessio- png lsd pia arSpole na guerra da independéncia (1776-1781), os colonos americanos asseguraram-se as terras além- Apalaches e legislaram sobre sua ocupacao para si e seus descenden- tes. Em 1803, numa iniciativa ousada, compraram a Luisiana a0 go- vero francés. Em 1819, numa expedigao de conquista, arrebataram a Florida aos espanhdis. A presenga maciga de colonos americanos.no Texas (até entéo sob dominio formal do México), levou & proclamacao da_independéncia da regiao em 1836;-a-decisao texana de incorporar-" se aos EUA dez anos mais tarde produziu a a entre México e EUA (1846-1848), ao fim da qual se imps a0 governo mexicano a en- trega de uma extensa faixa de territorio, que inclufa os atuais estados do Arizona, Novo México e Califémia — equivalente ao territério somado da Franga e da(s) (duas) Alemanha(s) — em troca de 1 5 milhdes de déla- res. Os expansionistas mais exaltados queriam o México inteiro! O avanco sobre as “terras livres” do meio-oeste — na verdade, povoadas por dezenas e dezenas de sociedades indigenas — terminou com a ocupagao do Oregon, numa conjugagéo de esforgos missiondrios e comerciais, regulando-se a fronteira ao norte com os ingleses em 1846 e fazendo do Oregon um estado da Unido em 1848. Em 1867, os EVA compraram 0 Alasca ao governo imperial russo. “A enorme. variedade dos modos de apropriagao e de exploragéo. dos recursos ais C oquziram tanto eS- ges fot spores, . mo Guerra” iais ocorridas durante a as. OS esfor 16 pro- 40 protecionista, redes mas de organizacdo econémica a liberagao de quatro milhdes de escravos, produziram mudancas iais extremamente rdpidas ndo apenas no N urbai fo.como no Oeste, agratios. O\padr4o-dé industrializago,é urbaniza- Isiorado por uma economia cartelizada iria jogar os EUA em poyco mais de trés décadas a frente daquilo que hoje chamamos de mundo desenvolvido. A expanséo dos negédcios nao tinha porque res- peitar as fronteiras nacionais, ainda mais que a prépria politica exterior do governo americano ao final do século XIX era a de estender sua in- fluéncia politico-militar em mais de uma diregao. ENQUANTO ISSO, NA AMERICA LATINA Nessa diversidade complexa chamada América Latina — consti- tuida por duas dezenas de Estados separados por diferentes cuilturas, 12 $ ajustaram Sua éstrutura produtiva na diregao dos paises industriais mais avancados, tomando-se em geral fornecedores de bens primérios (agricolas ou minerais) e comprando deles bens de consumo indus= = triais. A este “novo pacto colonial” somou-se, ao final do século, um permanente fluxo de capitais que chegavam sob a formade empréstimos ou investimentos diretos. Foram tipicas dessa época aconstrugao de fer- fovias, a instalacdo de servigos ptblicos (gs, telefone, luz, agua potdvel, transportes urbanos) e a modernizagao da produgao de exportacao. Uma certa industrializagao havida inal do século XIX na Amé-_ a mpulso i ci dos Unidos, Franca e Alemanha (nessa ordem, os maiores exportado- res de capital para 0 nosso continente). Note-se também a forte in- fluéncia européia ocidental em varios planos da vida latino-americana, tais como a organizagao militar, o pensamento filoséfico e as manifes- tagées culturais e artisticas em geral. ; No plano da organizagao_ politica interna, eram notorias a cronica_ instabilidade politica, a debilidade dos esforgos democraticos e a recor- réncia de governos autoritarios (caudilhos) — fenémenos que se assen- tavam em relag6es sociais marcadas pela patronagem (relagéo de fa- vor/divida) tipicas da sociedade agraria das haciendas e latifundios. No plano da relag6 dos paises latino-americanos entre si, 6 de se notar a mesma auséncia de regras consensuais. Os esforgos de_articulagéo. politica entre eles foram sempre débgis e parciais, a comegar pela cé- lebre Conferéncia do Panamd, convocada por Simén Bolivar em 1826, & qual se seguiram as conferéncias de Lima (1847/48), Santiago do Chile (1856) e Lima (1864/65). Cada um desses encontros se deu por reagao a algum tipo de ameaga externa, européia ou norte-americana, sobre 0 continente. Mas a fraca representatividade e a falta de unidade de propésitos, somadas a auséncia de qualquer mecanismo que regu- lasse as diferengas ou rivalidades dentro do continente, acabariam por impedir uma articulagdo latino-americana eficaz. Essa articulagao seria afinal realizada pelos EUA como instrumento de sua politica exterior, a partir de 1890, por meio do movimento pan-americano. Hs _— A POLITICA EXTERIOR AMERICANA As grandes definig6es-da_politica exterior americana no_século XIX s@o bem conhecidas. Em 1823,.um discurso do presidente Monroe fixou duas diretrizes, conhecidas daf por diante como Doutrina de Mon- ‘Toe, Pronunciada no contexto da restauracéo monérquica na Europa e ‘das tentativas espanholas de recuperar 0 poder que perdia em suas col6nias americanas, a Doutrina continha duas afirmagdes fundamen- tais: 12) os EUA nao permitiriam a recolonizacéo da América pelas po- téncias européias; 2°) os EUA defenderiam o direito dos povos ameri- anos @ autodeterminagao nacional. A-possibilidade de defender-de_fa- to esses dois pontos era minima naquele momento, mas Washington confiava no poder naval britanico, qué sé antepunha entre as metré- poles ipéricas © suas colénias americanas, naturalmente em fungao fos interesses brifanicos (comerciais, especialmente). Nesse momen- to, portanto, a Doutrina de Monroe traduzia mais uma intengao do que uma realidade, mas j4 apontava para um papel internacional que os EUA se reservavam. Ao_mesmo_ tempo,.tendo_« de fazer essa de- -claragao. de intengdes em conjunto_com-a que para 0§ américanos'a fronteira/nao era uma linha dianté da qual se devia patar,/mas uma area que [convidava a entrar. Antes mesmo que se iniciasse a expansao\nos ocdanos, j4 comegavam a se formar 0 clima de opinio-publica e as. justi icativas religiosas, culturais, pollti- cas e econémicas da nova-expansap. No final do século, os animadores do expansionismo além-mar ja elaboravam suas estratégias e justificagdes. A montagem de um poder naval, ardorosamente defendida pelo Capitéo Alfred Mahan como fun- damento do poder nacional, acelerou-se nas ultimas décadas do sé- culo e possibilitou a guerra contra a Espanha em 1898. Para os expan- sionistas, 0 movimento de conquistas era natural, como nas palavras de Cabot Lodge em 1895: 14 As grandes nagées do mundo estao devorando rapidamente todos os lu- gares desocupados da Terra, com vistas & sua futura expans&o e a sua defesa atual; como uma das grandes nagdes do mundo, os Estados Uni- dos nao devem ficar atrés. Embora viesse a exercer um dominio direto em certos territdrios, Washington revelou-se mais interessado em estabelecer esferas de in- fluéncia econémica, assim como bases estratégicas, que Ihe dessem liberdade de atuag&o no Caribe, América Central e numa vasta faixa maritima do Pacifico. Um dos elementos fundamentais dessa estraté- gia seria a construgéo de um canal que unisse o Atlantico ao Pacifico, na América Central. O controle desse canal facilitaria a ligacao entre os litorais leste e oeste dos EUA, com evidentes ganhos comerciais e ampliagéo das vantagens estratégicas - em suma, um acréscimo do poder do Estado. Nao faltou, na ocasiao, quem comparasse, como o Senador Morgan, a construgao do canal a uma missao providencial do povo americano, semelhante @ “fundag&o do reino do Messias pelos descendentes de Abraao”. AS RACIONALIZACOES T&o impressionante quanto a extensdo e rapidez da expansdo norte-americana foi o rol de racionalizagdes que se criou para explicar e justificar a expansao, boa parte deias fundadas em motivos de or- dem moral. Como j4 notou um autor, o problema aqui consistia em enquadrar o imperialismo recém-nascido na tradigéo democratica e igualitaria que constituia 0 cerne do discurso politico. A expansao de- vetia adequar-se de alguma maneira aos pressupostos éticos e politi- cog da Republica. Antes mesmo de langar-se 4 aventura imperialista, quando a expanséo territorial se limitava as terras “desabitadas” do O@Ste, nogdes mais ou menos elaboradas do direito & expansdo iam sendo elaboradas. A nogao de “civilizagao” foi particularmente importante nessa constueao De_modo-geral. identificada aos valores do cristianismo protest: a economia a capitalista, ao conhecimento técnico-cientifico a8 -& estabilidade politica, a a civilizacao norte-americana cedo se erigiu ndelo e pardémetro para o conjunto do conti Desse mado, constituia um dever moral da América protestante civilizar os povos atrasados (= espalhar © cristianismo), livrando-os da “barbarie” catdli- ca. O mesmo carater “civilizado” da sociedade colonial Ihe assegurava um saber superior na utilizagdo do solo e dos recursos naturais, o que 15 justificava 0 processo de expropriagao que ocorreu especialmente nos territ6rios indigenas. Difundida pelo conjunto da sociedade americana, a nogao de civilizag&o superior tornou-se também um argumento para politicas estatais de cunho intervencionista e expansionista, E 0 caso do famoso Corolario de Roosevelt 4 Doutrina de Monroe, elaborado em 1904 na presidéncia de Theodore Roosevelt. Nele, os EUA apare- cem como depositarios dos interesses coletivos (internacionais) e re- presentantes do mundo civilizado: Incidentes crénicos, a incapacidade (de certos governos)... podem, na América, como em outros lugares, requerer a intervengao de uma nagao civilizada e, no hemisfério ocidental, a adeséo dos Estados Unidos 4 Doutrina de Monroe podem forga-los, mesmo contra sua vontade, a exer- .cer poderes de policia internacional em casos claros de incidentes ou in- capacidades. Nesta definigéo de politica exterior, a Doutrina de Monroe — su- postamente defensora da nao-intervengaéo estrangeira na América La- tina — constituiu-se um pilar do direito de intervengéo americana no continenie. Também vers6es vulgares ou eruditas do evolucionismo cientifico desempenharam um papel importante na autojustificagéo da expan- so. Popularmente, apelava-se para a nogéo da expansao como uma “Iei da natureza”: quem ndo se expande, morre. Numa linha semelhan- te, versdes eruditas foram elaboradas, intencionalmente ou nao, por volta do final do século XIX. A famosa tese do historiador Frederick J. Turner, de que a democracia e o carater norte-americanos foram pro- duto da fronteira em expansdo continua, teve como uma de suas con- seqiiéncias a ilacdo de que a energia americana exigia continuamente novas e mais amplas dreas de atuagao para se exercer. O presidente Wilson, que também era historiador e cientista politico, aceitava as no- 6es de Turner e interpretava a expans&o americana no final do século XIX como uma necessidade e uma oportunidade que se apresentou ao avango da civilizagdo americana. Brooks Adams foi outro autor muito influente sobre politicos eminentes. Suas idéias se fundamentavam na nocgao de que os centros civilizados seguiam as fronteiras da riqueza e que, nesse sentido, a civilizagdo americana s6 poderia ser preservada (evitar a crise) por meio de uma politica expansionista. A receita de Adams era simples: usar 0 poder econédmico e militar para expandir a fronteira oeste americana até o interior da China! Mas a racionalizagaéo mais notave! da expanséo — com vida ex- tremamente longa — ficou por conta da auto-imagem norte-americana 16 como modelo de democracia. Outros povos seriam igualmente civiliza- dos e présperos se adotassem 0 modelo democratico norte-americano. (Ha oito anos, o historiador G. Quester argumentou num de seus livros que os recantos distantes do mundo tornar-se-iam felizes se fossem governados do mesmo modo basicamente republicano, como Minneso- tal). Para os defensores dessa formulagao, a democracia n@o era ape- nas um sistema de governo, mas uma condigéo moral; dai, que a im- plantag&o da democracia a americana no continente, mais que uma necessidade, seria um dever dos estadistas de Washington. A célebre frase do presidente Wilson, “Eu me proponho a ensinar as Repdblicas da América do Sul a elegerem homens bons” nao implicava apenas a convicgdo de que os EUA possulam um padrao de “bondade” politica, Mas significava também a disposic¢éo de intervir nos paises latino- americanos para assegurar uma identidade politica aceitével a seus olhos. oO A CORRIDA IMPERIALISTA As relacées politicas entre EUA e América Latina podem ser vis- tas na virada do século XIX para o século XX em duas linhas comple- mentares, de certo modo contraditdrias. De um lado, havia a tentativa de articular diplomaticamente as nagGes do continente por meio de reuniées coletivas (as conferéncias pan-americanas), que, do lado de Washington, significavam um exercicio de lideranga regional, mas nas quais, mal ou bem, alguns paises latino-americanos visiumbraram a possibilidade de uma agéo comum face ao poderoso vizinho do Norte. De outro lado, as relagdes bilaterais dos EUA com seus vizinhos se- guiam a légica do interesse exclusivo, nao sendo rara a utilizagao de métodos de coagao politica e de uso da forga. A iniciativa de_reunir_os paises do continente levou a realizagao da Primeira Conferéncia Internacional dos Estados Americanos, em Washington (1889/90). Os resultados do encontro foram considerados decepcionantes, tanto os projetos de uma “uniéo aduaneira” coro o projeto de arbitragem de disputas entre os Estados do continente. A Gonferéncia marcou certas diferengas de posi¢éo entre EUA, de um lado, e boa parte dos latinos de outra. Estes, j4 percebendo os novos ventos que sopravam do Norte para o Sul, fizeram aprovar alguns prin- clpios de direito internacional sobre o tratamnento a ser dispensado a estrangeiros, que ficaram conhecidos como “Doutrina Calvo": por ela, dever-se-ia assegurar aos estrangeiros um tratarnerito igual aos nacio- nais, negando-Ihes porém privilégios especiais. A “Doutrina Calvo” 17 constitufa uma negagao do direito de extraterritorialidade que as po- téncias imperialistas praticavam especialmente no Oriente. A iniciativa latino-americana traduzia o receio da intervencao e do direito presumi- do dos EUA 4 intervengao. Enquanto a delegagao americana sublinha- va 0 caréter puramente americano da Conferéncia (“A América para os americanos!”), o chefe da delegag&o argentina, Saenz Pena proclama- va, por contraste “A América para a Humanidadel”, Que “a América para os americanos” constituia uma articulagao destinada a assegurar a hegemonia politica dos EUA no continente ja ficaria claro na década de 1890. Em 1895, Washington impés sua arbi- tragem numa disputa entre a Venezuela e a Gra-Bretanha e em 1898 iniciou sua expans4o além-mar, a partir de uma guerra contra a Espa- nha. No primeiro caso, 0 governo americano viu numa disputa de limi- tes entre Venezuela e Guiana Inglesa a oportunidade de impor-se a uma poténcia européia sob a alegagao (real ou ficticia) de que essa poténcia estava intervindo no continente e poderia transformar uma nagao americana em colénia, Foi no contexto dessa imposigao, que 0 Secretério de Estado Olney disse a famosa frase “Hoje em dia, os EUA sdo praticamente soberanos nesse continente...”. O MARCO INICIAL DA CORRIDA £m 1898, os EUA ingressaram na corrida imperialista, a partir da guerra contra a Espanha, numa ampla faixa maritima, cujo ponto focal era a ilha de Cuba, Esta fora considerada, no decorrer do século XIX, uma extensao da Fldérida e, em mais de um momento, imaginou-se a possibilidade de anexé-la. A dificuldade 6bvia de que Cuba ainda era uma colénia da Espanha comegou a ser removida a partir de 1895, quando explodiu uma nova revolta cubana pela independéncia politica. Os expansionistas do Partido Republicano, como Theodore Roosevelt e Cabot Lodge, viam nessa circunstancia a oportunidade de ouro de iniciar novas conquistas e inclufram no programa do partido para as eleiges presidenciais de 1896 a promessa de tornar Cuba um pais in- dependente da Espanha. No caso, ajuntava-se a fome a vontade de comer, visto que os préprios revoluciondrios cubanos procuravam ga- nhar urn apoio ativo dos EUA para sua causa. O Congresso americano teconheceu como legitima a beligerancia cubana e o govemo republi- cano de McKinley enviou para Havana o navio de guerra Maine para proteger a vida e a propriedade de norte-americanos na ilha; em 15 de fevereiro de 1898 uma explosdo afundou o Maine, morrendo 250 pes- soas. Um més depois uma comissdo de inquérito responsabilizou a 18 Espanha pelo afundamento. Um ultimato enviado ao governo espanhol iniciou a guerra. Mesmo sem o incidente do Maine, o conflito estava poste. O jor- nalismo sensacionalista (cadeias Hearst e Pulitzer) inflamava a opiniéo ptiblica com relatos das atrocidades espanholas erm Cuba; os adeptos da expans&o produziam continuamente as justificativas politicas e hu- manitarias para intervir e libertar a iiha; homens de negdcio viam na aventura © inicio da abertura dos mercados orientais a indtstria ameri- cana; e os estrategistas j4 visualizavam os novos contornos da defesa nacional dos EUA. A-guerra foi um episédio relativamente simples para a moderna forga naval americana. . Vencida a Espanha, os EUA se apoderaram de Cuba-com-a-promessa 1 de liberté-la. Aproveitando o impulso, tomaram também Porto Rico, Guam e Filipinas e anexaram o Havai. No ano seguinte, ocuparam outras posigées (a ilha de Wake para facilitar a li- gacéo_com Guam e Tutuila nas Samoas). No Ultimo ano do século, o Secretério de Estado, John Hay, émitiu a famosa nota da Porta Aberta (Open Door), dirigida as chancelarias dos pafses-que iniciavam-a -par- tilha da China, reivindicando o principio da igualdade de comércio para todos os estrangeiros no Celeste Império. Quanto a Cuba, sua inde- pendéncia ficou severamente limitada pela famosa “Emenda Platt”, aprovada pelo Congresso americano, pela qual se estabeleceriam ba- ses navais em Cuba, limitar-se-ia a capacidade cubana de subscrever tratados ou conitrair dividas e se daria aos EUA 0 direito de intervir na ilha para assegurar a independéncia do pais e manter a lei e a ordem. Por seus resultados, a guerra hispano-americana de 1898 nao foi um mero incidente isolado. Ela estendeu a uma ampla faixa maritima do Pacifico a presenga militar, politica e econémica americana, lan- gando os EUA diretamente na politica do Extremo Oriente! A presenga militar em Cuba praticamente fazia do Caribe-um “lago americano”. No limiar do século XX, os EUA tinham entrado-com 0 pé direito na corri- da imperialista. A presenga e a intervengao dos EUA na América Lati- na iriam aumentar nas duas décadas que se seguiram. A IMPORTANCIA DO CANAL A guerra de 1898 tinha sublinhado a importancia de um canal que ligasse o Atlantico ao Pacifico e a urgéncia de resolver de vez es- sa questo, que se arrastava por décadas. Amarrado a um tratado de 1850, assinado com a Inglaterra e que previa um canal neutro e nao- militarizado, © governo americano foi aos poucos removendo obstacu- los e preparando o caminho para a sua construcao. 19 Em 1879, 0 construtor do canal de Suez, Ferdinand de Lesseps, propés-se a construir um canal no Panama com recursos privados, dentro do espfrito do tratado de 1850, mas 0 governo americano reagiu desfavoravelmente. O Secretario de Estado Blaine tratou de afirmar solenemente em 1881 que os EUA nao consentiriam “em perpetuar nenhum tratado que estorve nossa pretensao justa, ha muito tempo anunciada, de prioridade sobre o continente americano”. Na década de 1890, a empresa de Lesseps fracassara no esforco de construir o ca- nal. Em 1901, Washington conseguiu demover o governo britanico de sua posigao e convenceu-o a aceitar a exclusividade americana na construgéo do canal, assim como a sua militarizagdo. Abria-se 0 cami- nho para o pleno dominio do Caribe. Havia duas possibilidades para a construgao do canal: através da Nicaragua ou airavés do istmo do Panama (regido pertencente & Co- lémbia). Os politicos americanos optaram primeiramente pela Nicara- gua, mas um /obby poderoso ligado 4 New Panama Canal Company (empresa organizada em 1894 para gerir a massa falida da companhia de Lesseps) conseguiu, em 1902, apoio suficiente para mudar o rumo do processo e estabelecer negociagdes entre EUA, Colémbia e a em- presa. A recusa do Senado colombiano em 1903 em aceitar os termos em que a transacg&o foi posta desencadeou a reagao final de Washing- ton. Para o Secretério de Estado, John Hay, “nao creio que se deva permitir as lebres de Bogota que continuem atrapalhando permanen- temente a construgdo de um dos futuros caminhos da civilizagéo”. O presidente Theodore Roosevelt concordou em intervir na Colombia em apoio a uma “revolugao” pela independéncia da regiao. O navio de guerra Nashville foi mandado para o istmo e desem- barcou seus fuzileiros no dia 2 de novembro.de 1903; no dia seguinte irrompeu a revolta pela independéncia, ficando as forgas militares co- lombianas bloqueadas pelas-tropas americanas em Coldn. Trés dias apés, Washington reconheceu a independéncia do Panama e seu novo governo e nas semanas seguintes negociou um tratado para a cons- trugdo do canal. No dia 18 assinou com um ministro do Panama (por . coincidéncia um agente da New Panama Canal Co.) um tratado pelo qual os EUA recebiam uma faixa de 16 km de largura através do ist- mo, que passaria a constituir a zona do canal e no qual os EVA teriam direitos soberanos, Em troca, o Panama receberia dez milhdes de dé-- lares em dinheiro e um pagamento anual de US$ 250.000. Depois de obras de saneamento basico, o canal foi construfdo entre 1907-1914. Os métodos utilizados por Roosevelt no episédio do canal consagra- tam a expressdo politica do big stick (porrete grande) que iria caracte- rizar sua politica para a América Latina. 20 er ESE AS CONTINUAS INTERVENGOES. Nos vinte anos que se seguiram ao episddio do canal, a interven- g&o norte-americana em paises do Caribe e América Central e o cres- cimento de sua presenga econémica no restante do continente consti- tuiram a regra basica das relagées EUA-América Latina. Uma grande variedade de situag6es definia a natureza e duragao da interveng&o: presenga de tropas para defender a propriedade e os bens de norte-americanos; “protetorado” financeiro com ocupagao das alfandegas; apoio ou repulsa explicitos a politicos para favorecer inte- resses econémicos ou estratégicos americanos; e ocupagdo direta e administragao de paises “instaveis”. Em 1902, impossibilitado de pagar seus credores, o governo da Venezuela n&o reconheceu suas dividas. Imediatamente, a Gra-Breta- nha e a Alemanha (e depois a Italia) enviaram uma forga naval para bloquear o pais. Tendo aceito em principio o bloqueio, 0 governo ame- ricano mudou de orientagéo quando comegou a suspeitar que os ale- maes planejavam ocupar territérios venezuelanos ou antilhanos. A dis- posigaéo de Caracas de submeter a questao das dividas ao Tribunal de Haia praticamente resolveu o problema, retirando-se a forga naval eu- ropéia do continente. Mas para 0 governo americano, ficou a ligéo de que a intervenc&o européia na América ainda era uma possibilidade e os EUA deveriam fazer alguma coisa para evité-la. © incidente produziu duas reagdes di um lado, @ governo americano procurou elaborar_principios e adotar pol ficas_que impedissem nova intervengdo européia na América. Sur- giram daf: 1) o Corolario Roosevelt & Doutrina de Monroe que, como vimos, admitia a possibilidade de interveng¢ao na América Latina, mas vedava a sua execu¢ao a poténcias européias, reservando-a para Wa- shington; 2) uma politica de prevengao ativa, como fez o governo Roo- sevelt em 1904 ao intervir na Reptiblica Dominicana, controlando a ar- recadagéo da alfandega e negociando com os credores do pais uma redugdo dos juros e do montante da divida. De outro lado, a reac&o latino-americana mais significativa veio da Argentina, cujo chanceler, Luis Drago, propds aos EUA 0 principio de que “a divida plblica ndo pode ser causa de interveng&o armada e, menos ainda; de ocupagao material do solo-de-nagdes-americanas por uma poténcia européia”. Conhecido como “Doutiina Drago”, 0 principio nao foi.consid pelo govemo Roosevelt. Este.nao somente aceita- vao prificipi intervengao, como.o reservava, _no-caso-do_continente, 21 americano, para seu uso exclusivo, Outros paises, como o Brasil, acei- taram a nova disposig&o norte-americana. Desejoso de contrabalangar a influéncia britanica, o chanceler brasileiro Baréo do Rio Branco pro- moveu, nesse comeco do século XX, uma “alianga nao-escrita” com os EUA e tendeu de um modo geral a apoiar sua politica internacional. Theodore Roosevelt deixou o governo em 1909, mas a interven- Ao continuou na década seguinte. Com o presidente Taft, ela se es- cudava na diplomacia do délar, com o presidente Wilson ela fazia parte de uma politica preventiva. A primeira, grosseiramente pragmatica, e a segunda, pretensamente ética, faziam da superioridade (material ou moral) americana o eixo fundamental das relacdes com o restante do continente. O governo Taft achava perfeitamente legitimo que o poder do Es- tado fosse empregado para proteger, estimular, defender os capitais e as propriedades americanas no exterior. De outro lado, o uso de recur- sos econdmicos financeiros privados dos EUA serviria para fortalecer a influéncia americana, especialmente no Caribe e América Central. Es- sa associagdo de interesses levou & intervengéo na Nicarégua em 4909, onde os funcionarios de uma companhia de mineragao america- na, a US Nicaragua Concession, ajudaram a promover uma revolta contra o presidente Zelaya. Com ajuda dos fuzileiros americanos, pu- seram no poder um ex-secretario da tal companhia de mineragao, o sr. Adolfo Diaz. Em 1912, Taft mandou novamente os fuzileiros 4 Nicara- gua para impedir que o sr. Diaz fosse derrubado por uma revolta po- pular. A circunstancia ajudou a estabelecer uma base militar america- na no pais e obter o arrendamento de duas ilhas nicaraglienses por 99 anos. O governo Wilson prometia uma nova politica — liberal, idealista, antiimperialista — e 0 abandono do uso da forga. Entretanto, foi 0 go- verno que mais intervengdes promoveu na década de 1910. Isso decor- reu néo apenas da heranga de situagGes consolidadas que ele nao po- deria reverter, mas também de suas convicgGes arraigadas de que se- ria possivel estabelecer democracia e liberdade (“eleger homens bons”) entre os vizinhos menos afortunados. Houve uma série de ini- ciativas bem intencionadas no plano do arbitramento de diferencas, re- conhecimento de eros passados etc., mas a interven¢do continuou a ser um instrumento de politica. Ele interveio na Nicaragua para susten- tar 0 governo Diaz e em 1916 assinou um tratado pelo qual a Nicaré- gua receberia 3 milhdes de ddlares e faria aos EUA a opcao da rota nicaragUense para um novo canal interoceanico; além disso, os EUA se asseguravam o direito de intervir para preservar a ordem, proteger e manter a independéncia do pais. 22 Também para impedir a anarquia e o caos econdmico, 0 govemo Wilson interveio no Haiti e Reptiblica Dominicana. No Haiti, os fuzilei- tos desembarcaram em 1916 e obrigaram a Assembléia Nacional a eleger um presidente pré-americanos, 0 qual assinou um tratado que dava a Washington a supervisao das finangas haitianas e criava uma guarda_ nacional sob controle americano. Por via das diividas, os fuzi- eiros ficaram no pais até 1934 para assegurar a ordem, Na Reptiblica Dominicana, os fuzileiros desembarcaram em 1916 para restaurar a ordem e colocar na presidéncia um homem bom. Este, porém, recusou-se a assinar um acordo que colocaria sob total controle americano as alfandegas dominicanas, assim como sua politica finan- ceirae a defesa nacional. A resposta de Washington foi instituir uma administragao militar norte-americana para governar o pais, que durou até 1922. A parte os costumeiros aspectos humanitarios de valor real (programas sanitdrios, de educacao etc.), a mais importante realizagao da ocupagao militar foi a criagéo de uma guarda nacional que tornasse desnecesséarias futuras intervengdes. Com base nessa fora policial de elite, estabeleceu-se em 1930 0 periodo ditatorial do conhecido Rafael Leonidas Trujillo. No caso da revolugdéo mexicana, embora apoiasse ativamente 08s politicos e programas liberais do México contra as ten- déncias ditatoriais representadas pelo general Huerta, o governo Wil- son fez duas intervengdes desastradas no pais, numa delas quase pro- vocando uma guerra generalizada contra o governo constitucionalista de Carranza. Ca A NOVIDADE DOS ANOS VINTE ____ Nos anos vinte, 0 controle politico e econémico do Caribe e-Amé- rica Central criou uma certa tranqiiilidade nas relagées interamerica- nas, abalada somente por uma revolugdo popular na Nicaragua — na qual se tornou célebre o comandante guerrilheiro Sandino — 0 que de- terminou uma nova interveng&o militar americana, que durou de 1926 a 1932. Além de restaurar a ordem e instituir um presidente aceitavel as forcas de ocupacao também criararn uma guarda nacional, que constituiria a base de poder do seu comandante, o futuro presidente Anastacio Somoza, cuja dinastia iria dominar o pais até os anos seten- ta, Em telagéo a maior parte dos paises do “lago americano” a inter- ven¢ao direta nao tinha desaparecido, mas se tornara desnecessdria nos anos 20, gragas &s guardas pretorianas estabelecidas por Washington, | A novidade da presenga americana nos anos 20 foi o extraordina- rio crescimento de sua influéncia econémica, Para o conjunto da Amé- rica Latina, pode-se dizer marco inicial desse crescimento foi o perfodo entre a Primeira Guerra Mundial-e-a crise de-1929, Nesse pe- 23 riodo de “boom” econémico puxado pela vertigem da industria auto- mobilistica, os EUA iniciararn o deslocamento da hegemonia econémi- ca britanica. O capital americano ampliou enormemente sua influéncia no cone sul do continente, colocou inteiramente em sua érbita os pai- ses do Pacifico e se tornou praticamente o dono das atividades produ- tivas e comerciais do Caribe e América Central. Neste tiltimo caso, 0 controle das alfandegas e a responsabilidade pelas dividas externas daqueles pequenos paises promoveu a mais completa abertura de suas economias aos negécios americanos, fosse mineracao, servigos ptiblicos, produgao fruticola, eletricidade, ferrovias, marinha mercante ou exploragao de madeiras. A outra novidade 6 que, ao lado da crescente presenga econdmi- ca e do intervencionismo remanescente nas Antilhas, surgiram linhas ‘de resisténcia latino-americana @ hegemonia norte-americana, tanto a nivel” politico como a nivel cultural. No plano politico, contrastando com a politicaamericana de ndo-adesdo a Liga das NagGes, os paises lati- no-americanos participaram, emum momento ou outro, desse organismo intemacional. Essa participag¢do tem sido interpretada como um protes- to do continente a nogao de exclusividade americana, embutida na Doutrina de Monroe. A Liga das NagGes constituiria, desse ponto de vista, uma espécie de contrapeso as relagGes interamericanas, fer reamente controladas por Washington. Também aumentaram significa- tivamente nas proprias Conferéncias Panamericanas dos anos 20 os protestos contra a politica de intervengéo. Um exemplo significativo foi a 6? Conferéncia, realizada em 1928 em Havana, na qual os delega- dos norte-americanos receberam instrugées para se aterem a temas gerais ndo controvertidos (isto 6, evitarem as discussées das relagdes politicas no continente). Apesar dos cuidados prévios, o tema do inter- vencionisrno foi asperamente debatido, tendo o representante ameri- cano justificado a politica de seu pafs como o de uma “interposicao de carter tempordrio” para proteger vidas americanas. Apesar disso, tre- ze paises latino-americanos apoiaram um mogao de proibigdo da inter- veng&o sob qualquer pretexto. No plano cultural, especialmente na América Hispanica, os auto- res notam um retomo-nas primeiras décadas do século XX as ralzes ibéricas da cultura, por oposigao aos avangos da cultura anglo-saxa (ou mesmo européia, em geral). Esta oposigao, que tinha frequentemente tons conservadores e néo necessariamente antiimperialistas, obstacu- lizava também a penetrago norte-americana no continente. Talvez a Unica excegao significativa tenha sido a entrada e a difuso dos filmes de Hollywood ao sul do continente. A ampliagao da influéncia ameri- cana iria sofrer, no final dos anos 20, um sério baque promovido pela crise econémica. 24 en earl epoca UM onl CGR fini , 0 desafio das poténcias do-Eixo=dapao,jtéliaeAlemanha O cataclisma representado pela crise de 1929 atingiu em cheio o continente americano, ainda mais que o seu centro irradiador foi exa- tamente a economia americana. A América Latina participou da con- vulsdo geral e redefiniu em alguns niveis a sua dependéncia face as poténcias industriais, tomando-se, ao final do processo, mais atada ainda a drbita politica e econédmica dos EUA. Essa redefinig&o constituiu um capftulo complexo, feito de altos e baixos, desequilfbrios e reequill- brios, tudo em meio amais devastadora guerra de que se tem noticia. Durante a depresséo econémica dos anos 30, os. SO- cai asturirar ROporebes caTEBVfoss- 2.2 ocanizagco politica dos “paises liberat-democratas foi abalada no: is-alicerces. Os governos estabelecidos pareciam impotentes -para~solucionar Os problemas do dia; movimentos radicais de varios matizes clamavam por mudangas drsticas e por todo lado emergiam regimes ditatoriais de cunho ultra- nacionalista, que anunciavam o fim das liberdades democraticas e o estabelecimento de uma “nova ordem”, No plano das relages interna: cionais, 0 mesmo cenario: desorganiza @ diminuigao do _comércio intemacionat, com teftexos imediatos sobre as economias industriais‘e~ ndorindustriais; adocdo ‘de-rigidas-medidas-protecionistas @ reforco de Jages-imperiats por parte de-poténei jas; fracasso-na-tentativa 2 as posigdes hegeménicas que Gra-Bretanha e Franca ainda defen- me diam dentro e fora da Europa e que os EUA detinham no continente americano e no Pacifico. 25 Na América Latina, como vimos, o periodo de 1919-1929 foi ca- racterizado pela diminuigao da influéncia britanica e o aumento da in- fluéncia norte-americana. Nos anos 30, a Alemanha voltou a se proje- tar no plano internacional, ampliando sua presenga na América Latina. Do ponto de vista ideoldgico, trés correntes principais — liberalismo, fascismo e socialismo — lutavam para conquistar os coragées e men- tes dos povos latino-americanos, mas do ponto de vista da influéncia politica e econémica, a Gra-Bretanha defendia suas posigdes, enquan- to os EUA e a Alemanha constitufam poléncias emergentes, cujo cres- cimento as colocava em posigées antagénicas, no que se refere a América Latina. Os alemaes davam énfase ao autoritarismo antiparla- mentar, protecionismo econémico e nacionalismo militar, enquanto os americanos sublinhavam a democracia liberal e 0 livre-comércio no plano internacional. A América Latina era nao apenas o palco de guerra ial, mas.também-de disputas politicas @-ideolégicas, | numa yoca em que formas de governd rid € economias nacionalis- tinente, Embora 0 nacionalismo paises latino-americanos nado deva ser confundido com uma ade- s&o ao fascismo ou ao nacional-socialismo, seus adversarios tentaram fazer essa identificagéo. Em outras palavras, numa época de polariza- gao radical, afinidades ideolégicas ou politicas econédmicas semelhan- tes tendiam a ser vistas como aliangas politicas no plano internacional. A PRESENCA ALEMA Embora a politica externa da Alemanha mostrasse uma marcante orientagaéo européia, seus planos incluiam, por raz6es diversas, outras tegides do planeta. Os planos alemdes para a América Latina eram de natureza principalmente comercial. A Alemanha desejava garantir no- vos clientes para melhorar sua situagéo econémica interna. Suas im- portagdes eram basicamente alimentos e matérias-primas industriais, enquanto suas exportagdes eram, na maior parte, constituidas de pro- dutos acabados. Contudo, nao possuia divisas suficientes para operar no mercado internacional em termos de livre-comércio. A partir do “Novo Plano” ou (“Plano Schacht”) de 1934, 0 governo alem&o adotou_ uma série de medidas protecionistas, como a criagéo de uma moeda especial, a pratica do dumping e acordos bilaterais de compensagao (a troca de mercadorias mediante quotas estipuladas). O protecionismo econémico alemao nao era uma regra dogmatica, mas uma solugao di- tada pelas circunstancias; no entanto, ajustou-se muito bem as formu- _lag6es nacionalistas do nacional-socialismo. ‘Wes para um crescente comércio exterior, rustarienta o setor de suas economia’ ise e depressao dos anos 30. E verda- é que os acordos de compensagao oferecidos pela Alemanha nao ge- ravam divisas e estimulavam’ uma nova dependéncia: quanto mais produtos fossem vendidos & Alemanha, tanto mais o parceiro era obri- gado a comprar dela. Por outro lado, esse sistema trazia algumas van- tagens visto que estes paises ndo possufam divisas suficientes para financiar a vista a& 7 085, rPiCes Hi Tacs neriaitcs Calcd de livre-comércio. Pelo_comércio te dos excedentes podia ser vendida e certos produtos obtidos em troca. Por i880, 0 Co- mércio alemio com a América Latina tendeu ao crescimento nos anos do a partir da guerra (1939). Uma outra dimensa0 da presenga alema era sua tentativa de exercer influéncia politica e ideolégica na América Latina. Isto ocorria através dos canais diplomaticos e econdémicos, oficiais ou informais — embaixadas, consulados, escolas, empresas comerciais, alta finanga, transportes aéreos, servigos de informag&o e propaganda — que cria- ram uma rede de interesses e um clima de boa vontade em relagao & causa alema. Ao mesmo tempo, 0 partido nazista agia de forma para- lela e direta, SATE Somme erp besscn ce origemnicllUesconceod a alegné em vats pafses do-continente. Inausive no BrastT ‘ambém a influéncia exercida pelos militares alemaes sobre os latino-americanos nao deve ser subestimada. Ela se fez sentir desde o inicio do século como resultado da presenca de missdes militares para treinamento de exércitos latino-americanos, assim como a atividade mais pragmatica de venda de armamentos nos anos 30, baseada em acordos de compensacdo. No caso brasileiro, era notéria a admiragéo de nossa lideranga militar pela eficiéncia da maquina de guerra alema. A POLITICA AMERICANA publica em , oS EVA anunci ui /S tempo e uma nova po- -Mtiea-para-a América Latina

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