Você está na página 1de 110
Dororny DALTon . A tinica coisa que eu admiro nas mulheres é que elas nao cos- pem na rua. Diazo DA FonsEcA E, agora, seu Dorothy Dalton: olha pra 1a. MapaMe Cri-crt Eu vou chegando. Vou ver meus meninas, (sai). Dororay DaLton (vai ler um “gibi”) — Minha vinganga é que ela vai-te trair, direitinho. Drazo pA FoNsEcA Nao faz mal. Bobo é aquéle que ama sem esparadrapo. (beijo final) FIM DO TERCEIRO E ULTIMO ATO 98 OS 7 GATINHOS DIVINA COMSDIA EM TRES ATOS E QUATRO QUADROS (1958) “OS 7 GATINHOS” Pauto Menpes CAMPOS iudo é a meu ver, . Acho “Os 7 Gatinhos” (nesta pdgina nado estou a ditar normas) a melhor pega de Nélson Rodrigues mais fortes e mais impressio- e um dos trabalhos mais belos, nantes do teatro mundial contemporéneo. Por isso mesmo, @ pega _vale antes de tudo como extraordinéria construgao dra- mética de um poema, Seu autor é aquéle poeta de uma qua- lidade particular que tem 0 dom ou a técnica de exprimir-se através de vérias vozes. Uma voz é um personagem. Como, no entanto, a palavra personagem é dessas que deflagram equi- diremos melhor que uma voz vocos nos comentarios de teatro, Na poesia nGo-dramdtica, os cantos é um dos cantos do poema. ‘se ordenam em seqiéncias: 0 primeiro canto (do descaminho na Divina Comédia) transmite o seu conteddo ¢ a sua forma; pavorosa no poema de vem a seguir o segundo (a viagem Dante), 0 terceiro (0 vestibulo dos cobardes), e@ assim por diante. Na poesia dramética, todavia, as VO. longo do conflito que @ define. A poesia dramética é exata- mente isso, um conflito de vozes. Assim, o conceito usual do personagem é mesquinho & atrapalha pela raiz a compre- ensdo do poema encenado. Verdadeiramente, wma pega no contém vozes, e estas podem ser mais nume- tem personagens, rosas que os primeiros. Se a poesia lirica é emogao relembrada em tranqiiilidade lade para todos os tipos de criagao lirica), (0 que nao é verd 10 es se dispersam a0 @ poesia dramdtica é essencialmente a emocao' colhida em estado nascente, em estado de conflito. A velha idéia de que no teatro destelhamos wma casa para ver o que se passa lé dentro é que é de uma mediocridade alvar. Se o teatro fosse tal bisbilhotice, nunca um homem sério teria se ocupado déle. No teatro que se prea, pelo contrdrio, ndo somos uns indis- cretos, e nem mesmo espectadores, mas partictpantes (uma voz a mais dentre as outras vozes conflituosas). Nao apenas por isso, mas também por isso, Nélson Ro- drigues revela a sua grandeza poética no palco: éle conseguiu eliminar o espectador, e déste fazer uma voz, por sinal que nem sempre muda na poltrona, mas muitas vézes uma voz veemente e~protestante. E como se o indiscreto fésse olhar a casa destelhada e se visse lé dentro, nfo necessériamente na figura de um personagem, mas envolvido pelas vozes que vao despindo o convencionalismo cauteloso com que cobrimus as vergonhas da prépria existéncia. Rodando ainda em térno dessa idéia béba da casa destelhada, podemos ainda dizer gue 0 teatro é verdadeiro quando estamos Id dentro e despidos; e€ é falso quando. lé estamos: vestidos. A hipocrisia foi sempre ae ae het a ae uunuga do teatro e @ grande chance nde avers eine to ranaoem, B48 0 iio vende 8 virtude ” A averia.conflito, Entusiasta da vocagéo de Nélson Rodrigues sempre fui: nesse pre- do teatro Passou a funcionar se deu um exemplo, fecun- @ possuir de fato nossos, parecer, a cada um de nds, menos bem sucedidas artistica- mente; a outra se refere ds obras que julgarmos de plena rea~ tizagao artistica. - Entre estas iiltimas esté “Os 7 Gatinhos”. Por habituado que estivesse aos assuntos, 4 construgao e a linguagem de Nélson Rodrigues, espantou-me, quando li “Os 7 Gatinhos”, a extraordindria fluéncia (poemética) das falas, espantou-me a medulagéo das vozes; a dissondncia e o concérto dramdtico dos conflitos; a pungéncia de seu quadro; @ observagio genial e compadecida da humanidade, transposta esta para térmos exatos no tempo (a nossa época) e no espaco (o Rio de Janeiro); espantou-me ainda a sua linguagem; o uso adequado da giria como recurso poético/dramdtico; es- pantou-me o seu terrivel moralismo, um moralismo em estado Lruto. NGo tenho pensamentos sdbre a vida nem de leve parecidos com os de Nélson Rodrigues. Nossas vozes sio diversas, para nao dizer conflituosas. Seguramente, esta pega tem para min um. significado diferente ao que éle quis dar. Isso nada prova a favor das idéias déle, nem a favor das minhas. Mas pode insinuar a validade artistica de sua criagdo. Com o risco de desfazer as nuances entre as nossas divergéncias, a tornd-las um pouco simplérias, poderia dizer que o autor de “Os 7 Ga- finhos” pensa em térmos de natureza humana, quando cu fenso em térmos de sociedade humana. Néo estou em causa, mas essas discriminagdes eram aqui inevitéveis. O impor- tante, para o ponto de vista artistico e também para vocé e para mim, & que a pintura de Nélson Rodrigues esteja ceria, podticamente certa (o quanto mais poético, mais verdadeiro — de Novalis), a fim de fornecer a vocé e a mim estimulos ou provocagées mentais que nos livrem do convencionalismo da mentira, Encontro em “Os 7 Gatinhos” um vasto ca- pinzal onde pastar a minha fome da verdade humana, de certa verdade humana que me circunda, perturba e confrange: caio de quatro e pasto. A comida pode nao ser saborosa mas é necessdria e me alimenta, O que nGo quero é morrer de inani- ¢Go por simples respeito humono, por amor aa convenciona- hismo, 108 Para Nélson Rodrigues, creio, o centro de’ gravidade de sua.obra, esté na. figura da virgem, mito que expande uma luz difusa na escuridéo da alma, ponto de partida de todos os pecados, e ponto de retérno da nostalgia de pureza que, mais do que o pecado, devora as suas criaturas. Esta contradicgao é o Gmago de todos os seus personagens e é o que thes dé, antes de tudo, por mais frivolos ou banais, um incurdvel travo dra- mético, mais irremedidvel na terra do que a angistia da pré- pria morte. Em “Os 7 Gatinhos’, ésse conflito tormentoso entre a virgindade ¢ G... prostituigéo (néo hd verdadeira- mente outra saida para o autor) tém forga e economia dra- méticas bem mais realizadas do que nas suas pecas anteriores. A discordancia fundamental se aclara, pois aqui a prostituigaéo é exercida para que seja preservada a virgindade, como se o autor quisesse dizer-nos que neste mundo corrompido pela hipocrisia esté-se realizando o incrivel e inelutével milagre: @ puta transformada em vestal da virgindade. Em outras pala- cao pune ¢ quer esquecer a férca que o compele @ purezaz dois p Bs ard od hee esta palavra necessiriomente nestes PS ° , como um sinénimo de prostituta) Sado conscientes do valor da virgindade. Néo se trata eviden- ig de a el si « am mer de wna viade soe Sn as de, Deus: Nélson Rodrigues dé dramdticn ¢ poeticamente & virgindade um bdic gi valor que transcende os cédigos trdgica quando um preconceito é destruido. Se admitirmos, por hipdtese, wm mundo mentalmente assético, varrido de todos os preconceitos, estejamos certos de que o drama ea tragédic desaparecerao dos palcos, Voz entre as vozes que falam em “Os 7 Gatinhos’, tenho também o meu direito de escolher o que julgo o centro de gravidade. da pega. Entre as muiltiplas dimensées desta, vou encontrar na dimensio realista — a pobreza que estiola ¢ prostitui familias das classes inferiores — a que me atrai mais me interessa. Nesse particular, a obra-prima de Nélson Rodrigues nos lembra o grande Sean O’Casey. O desenho é perfeito, pungente, desvendando-nos a visio de outro pecado original, o pecado original do nosso tipo de civilizagéo: a sociedade dividida em castas. Nessa ordem de idéias, o fulcro da pega pode ser 0 momento em que uma das filhas do velho Noronha atira-lhe ao rosto @ insulto ignominioso: Continuo! Dentro do contexto, essa simples palavra resume téda a dt- mensio social de “Os 7 Gatinhos’. Um continuo que nao quer ser continuo e cujas filhas se prostituem. Uma sociedade sem seguranca material ou mental, corrotda pelo dinheiro e pela fricgéo com que as idéias e semi-idéias se transmitem entre pessoas desprovidas de dinheiro. Uma sociedade injusta e imbecilizada: na rua, em casa, no colégio, no trabalho. Uma sociedade que sofre de vermes como Silene. Uma familia que apodrece dentro da ordem capitalista. 105 PERSONAGENS: BIBELOT AURORA GorDA DEBORA NORONHA ARLETE HILDA SILENE SAUL DR. PORTELA DR. BorDALO PRIMEIRO ATO PRIMEIRO QUADRO (Aurora conhecera Bibelot na véspera. Ele estava de branco e, _ diga-se de passagem, foi 0 terno engomado, fresquinho da tin- turaria, que primeiro a impressionou. Era um rapas taludo, de 25 a 30 anos, largo de costas, wm bigodinho aparado e cinico, uns lébios bem desenhados para o beijo e os olhos de um azul inesperado e violento. Usava a camisa fina, transparente, en- treaberta na altura do primeiro botio, vendo-se a medalhinha de um santo qualquer. Durante a agdo, Bibelot beija, constan- temente, a medalhinha. Aurora e o rapaz conversaram,' em cima do meio-fio enquanto nao vinha a condugio. Moravam ambos no Grajat e esta coincidéncia foi uma facilidade a mais. E quando veio o énibus, apinhado, viajaram em pé, cada quai pendurado na sua argola. Depois, ao despedirem-se, ficou mar- cado um névo encontro para o dia seguinte. Agora viam-se pela segunda vez. Aurora saira da autarquia, onde trabalhava, as cinco em ponto. Encontrou-o na esquina combinada e, novamente, de branco, Bibelot inclina-se.) BrBELoT {baixo e caricioso) — Linda! Aurora Acha? , BrseLor Vocé fica um estouro de azul! 109 AURORA (numa alegre mesura) — Merci! BrzELoT ual € o programa! 2 a AURORA Fila de énibus! BrsELoT Queres um palpite? AvRORA ual ? 2 BrBevor E o seguinte: em vez de énibus ou lotagio, podia-se ir de bonde. AURORA (tentada) — De bonde? Brseror Assim a gente ia sentada, batia-se um papinho e outros bichost Aurora (com frémito delicioso) — Topo! BrBevor (alegre) — Ent&o, vamos embora! Aurora Antes que eu me esquega, uma coisa guntar, desde ont que eu estou para te per- em: porque € que Bibelot? © pessoal te chama de Brsevor ‘(achando graga) — Bem € porque... Avrora (sem saber explicar) — Acho um apelido tio na i (Bibelot vacita, Pigarreia, Ri.) ne Sei como! 110 BriBELoT , Me chamam de Bibelot pelo seguinte; tem uns caras que acham que eu dou sorte com mulher. AURORA (deleitada) — Gosto do teu cinismo! (Os dois andam alguns passos. Bibelot estaca.) BIBELOT Espera! AURORA Que é? BrBELoT Bolei outra idéia! AURORA Olha a hora! BIBELOT -, 1 # cedo. AURORA Diz. BrBELor ' Primeiro responde: vocé é corajosa? AURORA Que espécie de coragem? Broeor ‘ ( tirando um pigarro) — Coragem para ir a um lugar, assim, asSIM ... AvRORA (répida) — Tira a mao! . BrseLor Vai? AURORA Onde? 1k BrBELoT A Digests: _ AURORA wit BrBELOT Ta ser bacana! : AURORA ‘Onde é? BIBELOT ‘Copacabana. BrBELoT (com o panico da disténcia) — Longe! BIBELOT De taxi, € um pulo, E olha: tem vitrola, ponho uns discos e ouve-se miisica. AvRORA (com doce ironia) — S6? BrseLor (um pouca incerto) — Te dou uns beijinhos e pronto. AURORA ‘S6 beijinhos e nada mais? Brsevor ‘Légico! . AURORA (suspirando) — Vocés homens! Brsevor | (séfrego) — Te juro! O apartamento nfo é meu, é de um ami- gO, que esta fora, Ble me deu a chave e, além da chave, tem ferrélho, a gente fecha por dentro, nao ‘hd’o menor Perigo, sua bodbal E o edificio & residencial, discretissimo! AURORA (doce e triste) — Que idéia vocé faz de mim? (Bibelot atrapalha-se.) BrBELoT ‘Tdéia como? (incisive) A melhor possivel, ora! ‘d12 AURORA {incisiva também) — Mentira! Vocé me viu ontem, pela pri- eira vez, numa fila de énibus. Eu nem te conhego. Te co- nhego? Fala! BrBELOT Nao me conheces, Aurora? AURORA ‘Nem sei onde vocé trabalha! BIBELOT N&o seja por isso. Te conto, j4, a minha vida todinha. Olha: trabalhei na P. E. e me puseram de 14 pra fora. AURORA Por qué? BrBeLoT Dei uns tiros num cara. Folgou comigo e ja sabe. AURORA {com certo deslumbramento) — Morreu? BrseLor ‘O cara? (faz um gesto como se lavasse as m&os). — Nao sei, nao quero saber e tenho raiva de quem sabe. AvuRORA E agora? BrsELoT Estou parado, até ver que bicho da. : AURORA . (rapide, & queima-roupa) — Vocé é casado? Brseror (com breve hesitacgéo) — Sou. 11s AURORA Logo vi! BrseLoT Por que? AURORA Quando gosto de um cara é casado! BIBELoT Bem, mas a minha patroa féz uma eperacio, tirou utero, ova- tios e... AURORA Nao sente mais prazer? BrBELot B, deixou de ser mulher. Chato pra burro! (muda de tom} Como é? Vamos? Avrora (ergue 0 rosto duro) — Eu, nao! Absolutamente! BrBELoT (séfrego) — Passamos 14 meia hora no maximo! AuRoRA (ressentida) — Vocé entrou de sola, meu filho! BrsELor (aténito) — Eu? AURORA Ja quer me empurrar pra um apartamento! Sem um roman- cezinho | . : co 7 - Brsevor . a Aurora, escuta! ° AURORA (veemente) — Se, por acaso, eu fosse a ésse apartamento con- tigo. Vamos imaginar. E meu pai? 114 BrBELoT (atarontado) — Vocé me interpretou mal! Nao me compreendeu! AURORA Compreendi, sim. Mas responde: e meu pai? BrseLoT Que é que tem teu pai? Avrora (enfética) — Meu pai mudou muito. Antigamente, nao ligava. Mas agora descobriu uma tal religiao Teofilista. Acho que é: Teofilista. Da cada bronca, menino! E virou vidente! BrBELOT Ué, vidente? AURORA (com certa vaidade) — Vidente, sim, senhor! Ouve vozes, en- xerga vultos no corredor. De amargar! Olha: vocé quer saber quem é meu pai? Vou-te contar uma que vais cair pra tras, duro! Depois que ficou religioso (com maior énfase), nao admite papel higiénico em casa, acha’ papel higiénico um luxo, uma heresia, sei la! . Bineror Quer dizer, um casca de ferida! AURORA Meu pai? Brsetor Estou bésta! AuRORA (completando a frase anterior) — Como meu pai nunca vil E, la na Camara, nfo faz graca pra ninguém! Brsetor Que Camara? | AURORA Dos deputados. : Hs DIBELOT (com névo interésse) — Ble é 0 qué 1a? AURORA (com breve vacilagéo) — Funcionario. BrBELor i (animado) — Vem cA: se teu pai trabalha na Camara, talvez tenha influéncia... Quem sabe se teu pai nao podia arranjar uma marréta pra eu voltar 4.P. E.? La éle é funciondrio importante ? AURORA (desconcertada) — Bem... Brsetor 1 BR AURORA (em brasas) — Continuo. Brsevor (amarelo) — Sei... (muda de tom) Quer dizer que ao apar- tamento vocé nfo vai? AuRORA Nao BIBELor Paciéncia. ‘ (Bibelot faz wm aceno com os dedos e afasta-se alguns passos. ). AURORA (ajlita) — Aonde & que vocé vai? : Brzevor 1 Até logo, AURORA Vem ca. 7 BrBeLor Minha filha, eu nao forco.a natureza de ninguém, Ni Lin ) eur em é feitio. Quer, muito bem. Nao quer, tanto fan. Bye, bye. men 116 (Bibelot quer afastar-se, novamente, Aurora, ‘sdfrega, agarra-lhe 0 brago.) AURORA Escuta: e se eu disser que mudei de opiniao? BrsELoT Batata? AURORA (no seu brusco desejo) — E se eu disser que gostei de ti? BrseLor Duvido. AURORA (transfigurada) — Sabe que vocé fica muito bem de terno bran- co? Ontem, eu te vi de branco e hoje também. E o mesmo terno? BIBELor (na sua vaidade) — Outro! Sé uso branco! Tenho dez ternos como ésse em casa. Ponho um por dia, chova ou faga sol! J Aurora (fascinada) — Que bom! BrsEor (mais taxative) — Vamos ao que interessa! Vocé vai ou nfo vai? AURORA Presta atengio: eu me Jembrei que, hoje, ha sessio noturna na Camara e papai chega tarde. Disponho de mais tempo. Breztor Até que enfim, puxa! AURORA Mas calma! (muda de tom) Vocé tem dinheiro? Brsevor Como dinheiro? f my AURORA Tem? ; BrBELoT (incerto) — Algum. eer AURORA Quanto, mais ou menos? . BrBELOT : (sem entender) — Mas finalmente qual é o drama? AURORA (feliz) — Nao ha drama. Eu sou assim, de veneta, percebeu? Quando cismo com um camarada, j4. sabe: topo qualquer pa- rada. E tarei, nfo sei se por vocé, se pelo terno branco, ‘sei la. Resolvi ir ao apartamento contigo, pronto! BIBELOT © diabo & encontrar um tdxi a essa hora! AURORA : Mas uns quinhentos cruzeiros vocé tem, ndo tem? (Bibelot estaca. Vira-se para a pequena, Esté na maior con- fusio.) BrBELoT Quinhentos cruzeiros? AURORA Meu filho, eu costumo cobrar mil e quinhentos, dois mil ¢ até trés. mil cruzeiros. Pago sé pelo quarto quinhentos, mas como voce arranja o apartamento, (pausa) da s6 quinhentos, estd bem? : : BriBetor ‘Vem ca: olha pra mim. ‘AURORA Pronto. BrsELor Diz: vocé quer tomar dinheiro de mim? AURORA (sofrega) — Quinhentos e pode chamar o taxi! 118 BrBELor (estrebucha) — Esta de porre? AURORA (desesperada de desejo) — Menos nio. posso! BIBELOT Nem um tostao! AURORA (quase chorando) — Escuta: gostei de ti e te digo mais: um ter- no branco, fresquinho da tinturaria, me pde maluca, doida! Mas _ eu ‘preciso dos quinhentos cruzeiros. Preciso, ouviu? (supli- cante) Tenho despesas fixas e prometi 4 mamae. Palavra de honra: o dinheiro nao é pra mim! Brsevor Minha filha, nunca dei um vintém a mulher nenhuma! Nem dou! (Aurora, que estava agarrada a éle, desprende-se, no seu des- peito de fémea.) AURORA <, Ja sei: elas € que te dao! BrseLor ‘ (brutal) — Ou isso! AURORA Vocé tem téda a pinta de cafetéo! BrsELoT E dai? (Aurora tem uma pane de vontade. Agarra-se a Bibelot, novamente.) AURORA O diabo é que eu gosto de ti assim mesmo! BrBeLor 1 Ent&o, ver. (Bibelot puxa a pequena.) 119 BIBELOT : isi nel Olha um taxi livre. Vamos apanhar aque! : . (Os dois correm, Aurora vai puxada. Duas cadeiras de frente para a platéia representam o taxi.) AURORA (sentando-se) — Mas de graca, nao, meu filho ! ne (Bibelot estica as pernas, euforico. De vez em quando, os dot procuram sugerir 0 movimento do automével: carregam as ca- deiras como se o téxi dobrasse esquinas, tirasse finos ou corresse em ziguezague.) BrBeLoT (para o chauffeur invisivel). — Barata Ribeiro, nossa amizade. (para Aurora, feliz) Ah, eu preciso ter sempre uma mulher na zona! AURORA (insultada) — Mas eu nao sou da zona, 0 que é que ha? BrseLor (na euforia do téxi) — Azar o teu! AuRORA: Nao sei por qué? BrsELor (feliz) — Porque gostar mesmo eu s6 gosto de mulher bem culachada! Queres ver um exemplo? Arranjei um bréto es- petacular. Tem um cor, tacula Po € que corpo! E uns 17 anos, no maximo, AvRoRA Virgem? : ‘BrzeLor Era. Mas j& sabe: 3 artamento, comegamos na- quele negécio e fiz o servigo completo, Mas é eal Purazinha que eu fico pensando: no sei, me chateia! foi comigo no ap: 120 AURORA Jura que nao gosta désse bréto? Jura! BrBELor (caindo por cima de Aurora, como se o automével tivesse feito uma cruva fechada) — Curva gostosa... (muda de tom) Se eu gosto? Sei 14! Mas o bréto me adora, me pode nas nuvens! AURORA (mordida de citimes) — Jura por Deus que no gosta do bréto! Olha: por Deus! BIsELor (trocista) — Jurar por Deus ?... Eu nio acredito em nada, quer dizer... (apanha o santinho do pescogo) S6 acredito- nesse aqui... (Bibelot beija o-santinho do pescogo.) AURORA Ent3o jura pelo santinho do pescogo! BIBELoT Jurar, n@o juro, nao senhora! Mas dou a minha palavra: eu prefiro assim como vocé que tem um qué de mulher da zona. AURORA Mulher da zona, virgula! E que mania! Eu faco a vida, mas. nao é com qualquer um. Sé com conhecidos ou ent&o, com pes- soas apresentadas. Moro com meus pais e tenho que dar satis- fagdes 4 minha familia. Tenho emprégo no Instituto e minha mie sabe dos meus arranjos, mas meu pai nem desconfia. BrsELoT G ‘puxando-a) — & chato ser gostosa! AURORA ralhando) — Fica quieto! (muda de tom) E olha: tenho que tudo muito escondido, numa moita danada. Nao € todo 1et ‘ i ‘inco € dia, ndo, Duas ou trés vézes por semana. Assim ee c a ito da noite, Mas 0 que vocé nao sabe, nem imagina, € po? -€ que eu dou meus pulinhos. BrBELOT Chega pra ca! = Be (Bibelot atira-the bruscamente um beijo no pescogo. eletriliza-se de volipia.) AURORA i, 4 fico olha sé... (no seu frenesi) — No pescoco, nao, que eu Estou gelada... (raha, baizo) Aqui, nao! Olha 0 chauf- feur!... (muda de tom) Deixa eu te contar: a minha vida d& um romance! Vai escutando. La em casa nds somos cinco mulheres. Da pentltima para a cagula, houve um espaco de 10 anos. As quatro mais velhas no se casaram. Sobrou Maninha, que esté agora com 16 anos, no melhor colégio daqui. E essa nds queremos, fazemos questo, que se case direitinho, na igreja, de véu, grinalda e tudo o mais. Nés juntamos cada tos- tao para o enxoval... : BrsELor (num meio riso sérdido) — Hoje, ninguém da bola pra vir- ‘gindade! AURORA Nio da vocé, mas nés damos, ora que teoria! (muda de tom) “Também uma coisa eu te digo: o casamento de Maninha vai ser um estouro, Nem filha de Mattarazzo, compreendeu? Posso vender meu corpo, tal € coisa, mas o dinheirinho vai direto para ‘0 enxoval... Eu fico s6 com o ordenado 0 €1 do emprégo... » .(Bibelot apruma-se no téxi tmaginério.) pee BrseLor Estamos chegando ! . Aurora (sdfrega, segurando-o pelo bra, — Na i mhentos.cruzeiros: & para o a ea im os qui- enxoval de Maninha! 122 BIBELOT (sem ouvi-la, apontando) — Aquéle edificio. Ali, logo no se- gundo andar ! AURORA Todo o dia eu preciso levar para casa uma certa quantia! BIBELOT (para o chauffeur) — Pode encostar a direito. (para Aurora, brutalmente) Paga o taxi! AURORA (aténita) — Eu? BIseLor Estou duro! (Bibelot salta do carro.) AURORA ‘Vem ca! (Estupefacta, Aurora abre a bélsa. Balbucia a pergunta.) AURORA ‘Quanto? Noventa e trés? (Entrega cédulas amarrotadas ao invisivel chauffeur. Desespe- rada, sai do carro. Bibelot espera-a, na porta do edificio.) AURORA Bonito papel! BrsELor ‘Nao tenho niquel! AURORA (na sua indignagéio) — Ora veja! (Bibelot puxa Aurora pelo braco.) Brsetor ‘Vamos entrar! AURORA mio! (Entram e param numa suposta escada.) (no seu despeito) — Aposto que o bréto vocé trata na palma da 123 BIBELOT . (séfrego) — Da um beijo! (Aurora, assustada, olha para os lados.) AURORA Aqui? BrBELOT Nao tem ninguém! AURORA (jd em abandono) — Entao, rapido! (Beijam-se, ali mesmo, com desesperado amor. A pequena tem um solugo, no seu deslumbramento de fémea.) i AURORA ‘io! BrseLor (na impaciéncia do desejo) — Vamos pela escada. Si0 sé dois andares. (Bibeiot puxa-a pela mao. Aurora ainda resiste.) AURORA (num apélo) — Os quinhentos cruzeiros sio para o enxovalt BrgeLor (brutal) — Nao chateia! AURORA (desesperada) — Pelo menos, o dinheiro do taxi, noventa e trés cruzeiros! Brsecor Nao quero conversa! vamos embora! (Aurora deixa-se intimidar por uma vontade mais forte. Acom- panha Bibelot. Caminham circularmente pelo palco, como se es- tivessem escalando os dois andares. Entram no apartamento.) AURORA (em volipla) — O-bréto também veio aqui? 124 BrBeEtor © (euférico e brutal) — Naquela cama! (Comega o breve e@ desesperador ballet do ato amoroso. Sim- bélicamente, os dois estdo-se despindo. Arrancam de si roupas imagindrias. Bibelot que, teoricamente, tirara o paleté e a camisa, apanha o revolver de verdade e, ofegando, esvazia de balas o tasmbor.) AURORA (desabotoando o soutien) — Que é isso? BrBELOT (arquejando e rindo) — Ja disseram que uma mulher da zona ja-me dar um tiro. (feros ¢ triunfante) E se vocé me matar, atira, anda, atira com um revolver sem balas! (Bibelot ri bestialmente. Joga fora o revdlver e poe as balas em cima de qualquer mével. Para todos os efeitos, arrancarant tédas as roupas. Devem estar nus.) AURORA (numa exibicéo do proprio nu) — Que tal a classe? Sou pareo pra teu proto? (numa alucinagGo, trincando os dentes de vo- lipia) Vem! Vem, seu cio! (Bibelot beija o santinho do pescogo. Entao, 4 distancia, sem se tocarem, vivem o barbaro desejo. Sibito, Aurora comeca a rir, numa medonha histeria. Esganica, estilhaga o riso.) AURORA (em delirio) — Me xinga! Me da na cara! FIM DO PRIMEIRO -QUADRO 125 PRIMEIRO ATO SEGUNDO QUADRO (Casa do “seu? Noronha, pai de Aurora, numa rua que faz esquina com 0 Boulevard 28 de Setembro. Débora, filha do “sew? Noronha e de D. Aracy, vem entrando. D. Aracy enxuga um prato, na porta da cozinha.) DEBORA (olhando em térno) — Papai ja chegou? D. Aracy Tem sesso noturna! D£BORA Ah, é mesmo! Hoje tem... (muda de tom) Mamie, a mamae! Estou com a minha cara no chio! » vem ca, . D. Aracy Fala, criatura! Dézora Ih deixa eu me sentar. ‘Senta-se. Tira os sapatos. ee (Sen sapatos. Geme. Acaricia os pés.) DEBORA (suspirando) — Preciso ir ao pedic: gina a senhora: sabe de onde eu vim? (sem transigéo) Ima- 127 D. Aracy . . “Da” onde? alae Dé50RA Da loja do “seu” Saul! Parei 14 para dar um ee Es- tava falando no telefone, de costas. De repente, vem al igo Ep por tras, e poe na minha mao um canudinho de palha. ae aquéle susto e me viro. A principio pensei, nem sei 0 que pt sei, Era o “seu” Saul! D. Aracy “Seu” Saul tem a mania de fazer gracinhas! Dézora Mas deixa eu continuar: éle viu que tinha me assustado € sabe o que éle me disse? Disse 14 na lingua déle: “Meu filha, nao precisa se assustar. Velho nao ter sexo!” D. Aracy (incisiva) — Os velhos tém vicios! Diora (piscando 0 élho) — Deixa éle! (muda de tom) EntSo, ou... (Entra “seu” Noronha, cheje da familia com seu uniforme de continuo da Camara dos Deputados.) D. Aracy Ué, teu pai! Dézora (virendo-se) — A déngdo, papai! “Szu” Noronwa (abreviando a resposta) — Te abengoe! D. Aracy Nao teve sessio noturna? “Srv” Noronna (tirando 0 palets) — Morreu um deput: ado, lado para outro)’ Gorda, arranja um Somal (ONES de: 128 D. Aracy (para a filha) — Apanha um jornal. . “Seu” Noronga (angustiado) — Nao sei que foi que eu comi... (Débora traz o jornal, que o pat apanha, “Seu” Noronha vai para o interior da casa.) D. Aracy {para Débora) — Conta o resto. Dézora {acariciando um dos pés) — Estou com um vasto calo! (muda de tom) Pois é. Ent&o, fui olhar o papel e fiquei bésta: era um cheque, mamfe, um cheque! D. Aracy Pra ti? Diora Pra mim! D. Aracy. De quanto? : . D£zora Da um palpite! D. Aracy Assim nio sei. Dé£zora (triunfante) — Dez mil cruzeiros, mamie, de mao beijada! D. Aracy Isso € 0 que eu nao entendo. O que'é que éle anda querendo? Sim, ha de querer alguma coisa, mas o qué? Dézora é . . . 4 .a i: O que éle quer, nfo sei! Ainda me repetiu na saida: “Amizade valer mais que sexo!” 129 D. Aracy, . (recebendo o cheque e lendo) — Ao portador, étimo! Dez mu cruzeiros! Amanha, ja vou botar na caixa, na conta do Caan (E, stbito, “seu Noronha irrompe, na sala, aos berros. Tem um suspensério caido, que éle, na sua firia, trata de repor.) “Seu” Noronga D. Aracy “Srv” Noronza Ent&o, que negécio é ésse? D. Aracy (sem entender a violéncia) — Mas criatura! “Srv” Noronua ‘ Vai 14 no banheiro! Anda, vai! & o cimulo! D. Aracy ‘ Esta. entupido, outra vez? “Seu” Noronwa Entupido o qué! (muda de tom e, furioso, anda de wm lado para outro) Eu chego em casa, com a minha boa célica, vou ao banheiro e, 14, encontro ‘a parede téda rabiscada de nomes feios desenhos obscenos! ” Dz. Onde? Anacy : “Seu” Noronza (num berro) — No banheiro! (arquejando) Isso na minha casa! D. Aracy (desconcertada) — Eu you 1a! “Seu” Noronza : Fiquel Nao isa ir 14, na : é ee ea Precisa ir 14, nao, senhora! O que eu quero saber 180 D. Aracy Eu é que sei? “Sreu” NoronHa (ameagador) — Ah, no sabe? : D. Aracy (também violenta) — Vocé com os seus coices! (“Sew” Noronha estaca diante da mulher. Encosta-lhe a mao no rosto.) D. Aracy Coice é mao na cara! DEBORA Papai, o senhor esti-se excedendo! D. Aracy (recuando) — Nem meu pai me bateu! “Sru” NoronHA (abrindo os bragos para as nuvens) —- Isso é lar? D. Aracy Apanhar de marido por qué? “Seu” Noronwa (para @ mulher) — Cala a béca, Gorda! Désora (conciliatéria) — Papai fazendo um bicho de sete cabegas! “Sru” NoronHA Cadé as meninas? DiBorA Eu estou aqui, papai. “Srv” NoronHa As outras! Quero as outras! Tédas! 131 D. Aracy (para Débora) — Chama tuas irmis! (falendo sdzinha) ‘Nunca apanhei! . Désoza . (esganigando a voz) — Arlete! Hilda! “Sru” Noronua (para si mesmo) — & o fim! E a Gorda ainda me diz que nao tem nada com o peixe! (Arlete surge, Esté de soutien e andgua. Por trés de Arlete apa- rece Hilda, Com a axila ensaboada, Hilda raspa com a gilete debaixo do brago. “Sew” Noronha, de costas, nao vé as duas filhas.) ARLETE Que é? D£z0RA Papai esté chamando! ARLETE Chamou, papai? (“Seu” Noronha vira-se e dé com a filha em trajes intimos, ) “Seu” Noronza (com odiento sarcasmo) — Minha filha € aquilo! ARLETE (entre dentes) — Ja comegou, papai? , ; . “Seu” Noronwa ; Que trajes sio esses? ARLETE, (insolente) — Estou na minha casa! “Srv” Noronwa (num crescendo) Te: . ™m coragem de fal: ¢ 8 ‘ar com o seu pai, nua? * Agu Eu nfo estou nual ao 182 “Srv” Noronwa Esté nua, sim, senhora! Va-se vestir, ja disse! 2 ARLETE Ora, na praia eu uso bikini! Hiwpa Nao provoca papai!: ARLETE (num mux6x0) — Olha a’ puxa-saco! | (Aproxima-se Hilda, Arlete apanha uma blusa e vem vestindo a blusa.) “Seu” NoroNwA Esti faltando Aurora! D. Aracy Ainda nao chegou. “Seu” NoroNHA Otimo, nao chegou! Chega 4 hora que quer, nao da bola, nao da pelota! ARLETE De mais a mais, Aurora é de maior idade e... O que é que ha papai, porque eu vou ao cinema e esté em cima da hora! “Seu” Noronwa (muda de tom) — Bem. Antes de comegar, eu quero explicar uma coisa. & o seguinte: ainda agora, eu ameacei, fisicamente, sua mie, Débora viu. Ora, eu nao tenho o direito de ameagar, fisicamente, ninguém. Acho que quem da na cara de alguém ofende a Deus. Portanto, eu, na presenga de tédas vocés, eu peco desculpas 4 Gorda. (vira-se para a mulher) Gorda, vocé me desculpe! D. Aracy (veemente) — Vocé.ofende, e, depois, pede desculpas?! “Seu” Noronwa (triunfante) — Vocés est&o vendo? Nao se pode tratar bem uma mulher. (para D, Aracy) A Gorda no aceita minhas des- 183 culpas! Lavo as minhas mios! (muda de tom) Mas vamos dis que interessa, Aconteceu, nesta casa uma ‘coisa que nao podia ‘ acontecer. Débora sabe o que é Vocés duas, ainda nao, mas vo saber, ja, ja. Vou interrogar uma por uma’ Quero a ve dade e a culpada vai confessar tudinho! (para Arlente) Pri- meiro, vocé! ARLETE (com ar de troga) — Perfeitamente. “Seu” NoroNHA {mudando de tom, baixo, quase doce) — Quero saber, e vocé vai dizer, quem é que anda escrevendo palavrées 14 no banheiro! ARLETE Sei la! “Seu” Noronwa (& queima-roupa) — Ou foi vocé! 7 ARLETR Ora, papai! “Seu” Noronwa (num berro) — Responda. direito! ARLETE (olhando para o teto) — Ja respondi! “Seu” Noronwa (feroz) — A inocente! (muda de tom, olha em térno) Entio, quem foi? ARLETE Ninguém! “Seu” Noronwa (histdricamente) — Foi uma de vocés! Uma (encarando, siibitamente, com a mulher) Ou D. Aracy de minhas filhas! » entéo a Gorda! Dé-se ao respeito! 184 “Seu” Noronpa (quase suplicante, para Débora) — Foi vocé? Dézora Papai, me tira disso! “Seu” NoroNHA (para Hilda) — Vocé ha de ser outra inocente... Hitpa Nao tenho nada com isso. “Seu” Noronua {mais exasperado) — Quero saber quem estéve por ultimo no banheiro! (para a mulher) Quem? D. Aracy Vocé. “Srv” Noronwa Est4 maluca? D. Aracy Criatura, vocé nao saiu de 14 agora mesmo, nao veio de 14? “Seu” Noronwa Nao se faga de engracada! Pergunto quem estéve 14 antes de mim! ARLETE Eu. (“Sew’ Noronha estaca diante de Arlete.) “Seu” Noronwa (iluminado) — Vocé! (lento) Sim, vocé, aqui, é a que tem ‘béca mais suja; e a Gnica que nao topa a minha autoridade... (crispando a mao no seu brago) O que é que vocé foi fazer 14 no banheiro? ARLETE «rdpida e triunfante) — Xixi! 185 “Seu” NoxoNzA Cachorra! ; ‘5 (“Seu” Noronha ergue @ mao, a mao fica porada no ar. asbofeted-la. Mas como se fosse ARLETE (em desafio) — Bate! “Srv” NoroNnHA (ofegante) — ...Mas eu nao devo bater... Nao tenho ésse direito... Preciso me controlar... oe (E, subito, deflagra-se 0 impulso. Esbofeteia violentamente a filhe. Arlete cambaleia.) Hipa (num apélo histérico) — Papai! (Jé Arlete ergue o rosto duro.) ARLETE (como se’ cuspisse) — Continuo! . “Su” Noronwa (aténito) — Repetel! ARLETE _Gremente) — Continuo! (“Seu Noronha dé-lhe nova bofetada.) ARLETE (estragathando, as letras) — Continuo, sim, continuo! Eu disse continuo! . (Sew? Noronha ergue a mao para a nova bofetada, E, nova- mente, a mio fica ‘no ar. Hilda corre, atraca-se, solugando, com o pai.) y : Ly Hiya, Papai, eu tenho muita pena do senhor, 6 papai! (desprende-se de “seu” Noronha; vir i 5 aa 8s continue 3 vira-se para Arlete, grita) Nao chame mew 186 “Seu” Noronwa (para si mesmo) — Continuo... (arquejante). & claro que ninguém vai confessar nada... Dépora Papai, o senhor esta nervoso! (“Seu” Noronha comega a exaltar-se novamente. ) “Srv” Noronna Nervoso, eu? Logo eu? (num berro triunfal) Pelo contrario: apatico! ando apatico! Se eu-andasse nervoso, ja tinha virado a casa de pernas pré ar, ja tinha pésto fogo nisso tudo! Hitpa (fala baixo) — Fala baixo, papai! “Seu” NoronHA (sem ouvi-la) — Nervoso, os colarinhos! ‘Minhas filhas saem - do banheiro enroladas na toalha! Mudam de roupa com a porta aberta! Vejo, aqui, a trés, por dois, minhas filhas nuas. Minto? ARLETE (vingeda) — Ja chamei meu pai de continuo e vou ao cinema. (Arlete faz uma mesura alegre.) ARLETE Com licenga. “Szu” Noronna (feroz) -- Nao! (apélo) Vem cé Arlete! ARLETE (estacando) — Papai, depois que Maninha se casar, eu tenho mas boas para Ihe dizer! Umas verdades|! “Sev” NoronzaA (trémulo) — Escuta, Arlete: eu fiz mal, mas é que... De fato, eu ando meio esgotado, nervoso, e, as vézes, engracado, nao 187 senta um pouco. Senta, me controlo... Mas Arlete,-eu te pego: filhas — e a Gorda — inha filha, Preciso que tédas as minhas Sea z : eons O que a tenho a dizer prende-se 4 familia (ma: i inco. filhas. Acom- calmo e sofrido comega a falar) Eu tive Ga e panhem meu raciocinio: quatro nao s¢ ARLETE Grande novidade! “Seu” NoroNHA (sem ouvi-la) — Qualquer vagabunda se casa. A filha do To- lentino, aqui do lado. N&o se casou? Andava-se esfregando em todo o mundo e nio se casou? Entrou na igreja, de véu € gri- nalda, que sé vendo, Hoje, tem amantes, o diabo! fi triunfante) Mas é casada ai é que esté! Casadissima! E minhas filhas, nao! (furioso) Por qué? Dézora Eu sou muito fatalista, papai! i : Hinpa Nio‘'temos “sorte! : ae “Seu” Noronwa Nao é sorte! Sorte, coisa nenhuma! (com voz estrangulada e¢ lento):-Tem alguém entre nés! Alguém que perde as minhas filhas ! oe D. Aracy Quem? “Seu” Noronsa (exasperado) — Alguém que no deixa minhas filhas se casarem ! : D. Aracy Diz o nome! cals : : “Seu” Noronna (furioso, ) — Nao interessa das :filhas e da mulher; em,;nomes, nao. acredit Esse alguém pod ; nome! nem cara! (correndo as caras “fechando os punhos) Eu nio acredito ‘oO em caras! (com sibita inspiragéo) © ser até (répido @ triunfante) o “seu” Saul! 138 DEzoRA Porque logo “seu” Saul? D. Aracy Até é camarada! “Srv” NoroNwA (num clamor) — O nome que se usa na terra, 2 cara que se usa na terra, nao valem nada! ARLETE Eu acabo perdendo a porcaria désse cinema! “Seu” Noronwa (sem ouvi-la) — Agora vem o importante. Eu sempre senti que as meninas, aqui, eram marcadas e, ontem, eu finalmente soube por que vocés sio umas perdidas! Isto é, soube de fonte Jimpa, batata! Quem me explicou tudinho (enfético) nao mente! D. Aracy E quem é de? “Srv” Noronaa (triunfante) — O Dr. Barbosa Coutinho! (toma respiragao) O Dr. Barbosa Coutinho, que morreu em 1872, é um espirito de luz! Foi médico de D. Pedro II e 0 melhor vocés nao sabem: os versos de D. Pedro II nio sao de D. Pedro II. Quem es- creveu a maioria foi o Dr. Barbosa Coutinho. D. Pedro II apenas assinava. (triunfante) Perceberam? (Arlete faz um gesto a significar que o pai esté maluco.) “Seu” NoronHa ‘Vio ouvindo! (muda de tom) Eu sempre senti que havia al- guém atras de minha familia, dia e noite. Alguém perdendo as nossas virgens! E como eu ia dizendo, ontem, o Dr. Barbosa Coutinho me confirmou que existe, sim, ésse alguém, Alguém que muda de cara e de nome. Pode ser um rapaz onite, ou entao, um velho como o “seu” Saul. a ARLETE . Ora, papai, o senhor acredita nesses trocos! 189 “Seu” NoroNHA : i ‘ isa, Arlete: vocé é assim malcriada a arg pon ter Eorive é um médium, que ainda nao se paewenen (taxativo) Vocé se desenvolva, Arlete, oa seu fim sera triste... E chega, ouviu? Chega! (névo tom) E, ento, o Dr. Barbosa Coutinho mandou que eu olhasse no espelho antigo. (arquejante) Pois bem: olhei no grande, espelho e vi dois olhos, vejam bem: dois olhos um que pisca normalmente & outro maior e parado. (com sibita violéncia) O pior é que sé o élho maior chora e 0 outro, nao. ARLETE Isola! D. Aracy E como € o nome? “Seu” Noronwa (furioso) — Gorda, vocé nao entende isso, Gorda! Nés usa- mos na terra um nome que nao é 0 nosso, no é 0 verdadeiro, um nome falso! (com esgar de chéro) Bsse alguém, que chora Por um 6lho sé, sabe que ainda temos uma virgem! . Dézora Maninha... “ARLETE Bate na madeira! “Seu” Noronna (quase chorando) — Silene, tao menina e tio virgem! (muda de tom) Mas eu juro! Nao hei de morrer sem levar Silene, de brago, até o altar, com véu, grinalda, tudo! D. Aracy Se Deus quiser! “Seu” Noronga (estendendo as duas maos crispadas para as filhas) — & pre- ciso salvar a minha. virgenzinha, que nem seios tem! ARLETE (furiosa) — Nao di Péso, papai! 140 “Seu” NoroNBA de trazer para c4, i _ océs tratem de atrair, : Dien aie a ome n&o interessa. © homem que chora por um élho 8d. O nome nao file se trai por uma l4grima, O que jnteressa é a lagrima. ARLETE Até eu estou arrepiada! “Sgu” NoroNga Eu avisei a vocés e vocés avisem a Aurora. Eu vi, no espelho antigo, vi, eu juro! E o Dr. Barbosa Coutinho nic mente! (“Seu Noronha arranca um pequeno punhal de prata. Ergue 0 punhal, numa cruel alegria.) “Srv” Noronwa 7 “Meu punhal de prata! (Crave-o numa mesa, ao lado. Vira-se, para as filhas.) “Sgu” Noronwa (desesperado) — Mas é preciso apunhalar o olhar que chora, olhar da lagrima! (Entra “seu” Saul. Gringo vermelho ¢ sardento, com escassos cabelos louros. Sotaque acentuado.) “Seu” Sau Com licenga. D. Aracy Ah, entre “seu” Saul! “Srv” Noronua Pode entrar. (com ironia sensivel) O senhor néo morte tao cedo, “Sev” SAUL Boa noite. “Seu” NoroNwA (sarcdstico) — Acabei de falar no senhor! D. Aracy (para Hilda) — Apanha -uma cadeira para “seu” Saul. 141 “Seu” Noronwa Mas sente-se, “seu” Saul. “Seu” Saut Hilda) Obrigada. (para “seu” Oh nao poder demorar. (para Aoroeistaatsen filha. Noronha) Vim sé trazer recado “Sev” Noronza De Silene? “Seu” SauL Mandaram avisar que seu filha vem hoje pra casa. “Sgu” Noronwa Minha filha? .Mas' hoje como? Est4 doente? “Seu” SauL S6 disseram nfo se assustar que o énibus do colégio vem trazer seu filha. “Seu” Noronaa Mas eu nfo entendo! ARLETE (bara as outras) — Que tera havido? D. Aracy Isso assim t&o de repente! “Seu” Saut ‘Oh com licenga! Vou chegando. “Szu” Noronaa Gorda, acompanha, “seu” Saul. “Seu” Noronga (apertando a cabeca entre as ‘muos) — Estranho isso! D. Aracy (para “sew” Saul) — Obrigada e apareca. 142 “SEU” Saunt (pora todos) — Boa noite, “Srv” Noronga andondo de wm lado para owtro) — Nio esti me cheirando bem! (Entra Aurora. Arlete corre a0 seu encontro) ARLETE Maninha vem! Avrora Mentira! Dézora Vem, sim! AURORA Quando? ARLETE Agora! AURORA Mas que maravilha! (Stibito, “sew” Noronha corre para a mulher. Berra.) “Szu” Noronwa Ta-me esquecendo, Gorda! Chipa! Chispa, vai no banheiro apa- gar Os nomes feios, os palavrées, despressa, Gorda! FIM DO PRIMEIRO ATO 14s SEGUNDO ATO PRIMEIRO QUADRO Mesmo ambiente: casa do “seu” Noronha D£Bora (correndo) — Chegou! D. Aracy Th! “Seu” NoroNHA (Hé correrias, atropelos. Tédas se arremessam para a porta. S60 “seu” Noronha fica, por um momento, no meio da sala, de olhos fechados, a mao espalmada no peito.) “Seu” Noronwa (numa espécie de prece, baixo) — Oh Silene! (Stbito, em meio ao alarido da mie e das irmis, entra Silene, de roldéo, com as outras. E uma menina bonitinha, mas um tanto enjoativa, que aparenta seus 15 ow 16 anos. Veste uniforme de colégio. De wma fragilidade de convalescente, fala com a afetagéo da pequena muito mimada. Airés, de bengala e cha- péu, um senhor calvo, grave, solene. D. Aracy acompanha-o). SILENE Papai! . 145 “Sev” NoroNHA - - Meu amorzinho! (Abrago de pase filha... Aracy vem guiando 0 visitante) D. Aracy Tenha a bondade, Dr. Portela! Dr. PorTELA (pigarreando) — Com licenga. D. Aracy ‘( ‘para Arlete) — Uma cadeira para o Dr. Portela. Dr. PorTELA Ah, nfo precisa se incomodar ! (Arlete.traz a cadeira, Dr. Portela sentando-se.) Dr. Porrera Obrigado.. : Hirpa (séfrega) — Mas que foi isso? AvuRORA Tao de repente! D. Aracy (para o Dr. Portela) — Ui omentinh: , (Vem: para o grupo das filles) mentinho, Dr. Portela! “Srv” Noronwa (séfrego) — Como vai o apetite? SILENE “(na sua languidez) — Mesma coisa. “Seu” Noronwa (baizo) — Melhorou dos vermes? 146 SILENE (com wm esgar de repugdncia) —- Nao gosto de tomar injegio! ARLETE (docemente repreensiva) — Vocé é teimosa, Maninha! ‘ “Seu” Noronwa (para os lados) — Deixa a menina! Nao aborrece a menina! D. Aracy (baixo, para o marido) — Olha o Dr. Portela! (“Sew” Noronha atira-se para o ilustre visitante.) : e . “Szu” Noronna Desculpe, Dr. Portela! Dr. Portera (erguendo-se) — Absolutamente! “Seu” Noronna O senhor vai bem? Mas sente-se! Dr. Porteca Vou indo, com muito calor! E o senhor? “Srv” Noronaa (num suspiro feliz) — Nem sei para onde me viro, Foi uma surprésa tio... (olha para o grupo das filhas) E, além disso, Silene tem uma satide muito delicada, esta com ésse negécio de vermes, imagine o senhor, e que nao come, belisca... D. Aracy Aceita um cafézinho, Dr. Portela? : Dr. PorTeLa (com satisfagéo) — Um cafézinho, aceito. 147 D. Aracy Prefere forte? . Dr. PorTELA Forte." . : D. Aracy Otimo! Vou buscar! . (Sai D. Aracy, As irmis. estéo as gargalhadas, com excecao de Silene, que parece disiraida e triste.) . ARLETE Sabe quem arranjou namorado? Hipa Imagina! " SILENE Quem? _ ARLETE A Celeste! SILENE Aquela magricela? ARLETE E parecido com o Vitor Mature! (“Seu” Noronha, olha, ora para o Dr. Portela, ora ‘para as filhas) Dr. Portera Bem, “seu” Noronha. Podemos conversar? * “Seo” Noronna Mas claro! Estou as suas ordens! (E, stibito, vem o grito de, Silene.) ° SILENE Nao acredite, papai! (Aponta para o Dr, Portela.) AURORA (em panico) — Que é isso, Maninha? “148 Hitpa Nio fala assim! Dr. PorTEa Deixe. Nao se aborreca. Eu compreendo! “Srv” Noronna “Minha filha, modos, minha filha! (para o Dr. Portela) Ela nunca féz isso, Dr. Portela! Dr. PorteLa (superior) — Est& nervosa, é natural! SILENE Eu nao fiz nada, papai! “Seu” Noronna Silene! Minha filha, vocé vai pedir desculpas ao Dr. Portela! Dr. Porteta (generoso) — Mas nfo precisa! Para qué? “Srv” Noronwa (para a filha) — Estou triste com vocé, Silene, muito triste! (para o Dr. Portela) Eu & que Ihe peco desculpas! Dr. Porrera Oh nao tem importancia! “Seu” Noronna (pora as fithas) — Leva Silene... (para Silene) Depois con- verso contigo, minha filha... (para o Dr. Portela) Caso sério! Mas o senhor ia dizendo e fomos interrompidos... Dr. PorteLa “Seu” Noronha, o senhor ha de estar espantado, Claro! filha chega de repente, no meio da semana e.. rol Sua 149 “Seu” NoronwA a “Confesso que estou, sim, um pouco espantado, naturalmente... Dr. PorTELA a “Seu” NoronHa Um momento! (novamente assustado) Mas ela nao esté doente? esta? ~ Dr. PorTELA (vacilante) — Bem... “Seu” NoroNHA Esta doente? Dr. PorTELA (mais incisivo) — Fisicamente, nao. “Seu” Noronwa Nao entendo. Dr. PorTELA E o seguinte: estou aqui, porque, na minha qualidade de asses- sor da direcao do colégio e como sou muito benquisto 14 e tém muita confianga em mim... De forma que vim. Mas pode crer que é um dever muito desagradavel. “Seu” Noronwa O senhor estd-me assustando! Dr. PortELa Vem ‘sua senhora. (Entra D. Aracy com uma bandeja e duas pequenas xicaras de café. Oferece, primeiro, a visita.) D. Aracy Tenha a bondade, y Dr. Portera - Muito obrigado, D. Aracy Nao sel se esta bom de agiicar, (“Sex” Noronha apanhou @ xicara e despeja café no pires.) 150 “Szu” NoxoNHA Agora sai um momento. Dr. PortELA Est4-bom de agticar, sim. D. Aracy Ent&o, com licenga. (“Sew Noronha bebe o café pelo pires.) “Seu” NoronnaA Continuando, Dr. Portela... Dr. PorTELa (mais taxativo e pedante) — “Seu” Noronha eu trouxe sua filha pelo seguinte: aconteceu, ontem, no colégio, um fato la- mentavel, realmente desprimoroso, “seu” Noronha. “Seu” NoronHA Mas... com minha filha? (Dr. Portela ergue-se e fice andando de wm lado para outro, enquanto fala, De vez em quando, exalta-se). Dr. PorTELa (com énfase, pedante) — Um fato, “seu” Noronha, que reper- cutiu muito mal. Houve meninas, até, que cairam com ataque. O pai de uma delas’ foi hoje 14 e disse que retirava a filha. (muda de tom, pigarreia) Mas veja o senhor: havia, no colégio, uma gata. Alids, nao era nossa, era do vizinho. (com certo calor) Uma gata bonita, muito bonita. “Sev” NoronHA (impaciente) — Sei, sei! Dr. PortTELa (com certa voluptuosidade) — Um pélo macio, sedoso, que parecia angord e digo mais: talvez fossé angora. Ou por outra: angor4, nao, porque, ao que eu sei, angora tem, no maximo, 151 ta pulava do vizinho. € muito mae Fe ‘0 nosso terreno. (baixo, para “sew NO. i gostava mals do io de oitocentas alunas, s wae © uma crueldade triunfante) Sua filha. dois filhos. E a ga! mansa — vinha par ronha) E quem, no animal? (com satisfa “Spy” NoroNHA Silene? . ; Dr. PoRTELA (satisfeito) — Perfeitamente. Silene punha a gata no colo, dava- a trés vézes, uma coisa que Ihe leite no pires e féz, por duas ot u ta! De manha, era um re- nio é permitido: dormiu’ com a gal , buligo no dormitério, quando as cutras alunas percebiam. Re- levamos, porque, afinal, era uma transgressao leve. E, um dia, notou-se que a gata-ia ter nené. O senhor estd prestando aten- go, “seu” Noronha? “Srv” Noronwa Continue. . Dr. PorTeLa (num crescendo) — Até que, ontem, no recreio e na presenga de tédas as alunas'—- mataram a gata, a pauladas! “Srv” NoronuA (tomando wm susto) — E quem? Quem matou? Dr. PorTELA A’ paulada, “‘seu” Noronha! A i 7 ‘ ! Aos olhos de meni de anos! (num desafio)’E o que é que o senhor me diz? 7% 89 “Spy” EU” Noronua Mas quem matou? : Dr. Porteta (mudand. toon gata an tom) — “Seu” Noronha, o senhor ja viu' uma “Szu" Noronwa ‘ : (desconcertado) — Nunca. 152 Dr. PorTeLa Alias, a pergunta nao € bem essa. O senhor j4 viu uma morta dar a luz? : “Sev” Noronna Também nao. Dr. PorTELa (exultante) — Pois eu vi, eu! E foi o que aconteceu com a gata. Sim, senhor! Estava morta e preste atengo: os gatinhos, amontoados no ventre materno, iam nascendo, diante das me- ninas e das professéras. Quis-se tirar de perto as menorzinhas, mas foi impossivel, Eram tantas! Imagine: a mae j4 morta € aquela golfada de vida! Sete gatinhos, ao todo. “Seu” Noronga Vivos? Dr. PorTELA Todos vivos! “Seu” Noronna Mas, afinal, quem matou? Dr. PortELa (baixo e incisive) — Sua filha?! “Seu” NoronHa (baixo também e aténito) — Repita! Dr. PortELa Sua filha Silene! “Srv” NoronwA (rouco de desespéro) — Minha filha? O senhor quer dizer que minha filha... Dr. Porteta (peremptérvo e cruel) — Exatamente! Tem modos, sentimen- tos, idéias de menina e matou! Aquela infantilidade téda é€ uma aparéncia, “seu” Noronha, é uma aparéncia! 153 Seu” Noxon O senhor sabe © que esta dizendo? Dr. PoRTELA Eu entendo um pouco de psicologia ! (fora de si} (com pouco caso & troga) — “Seu” NoronwA O senhor nao conhece minha filha! O senhor se ee nha filha, como eu conhego — porque ew conhego min ih ilha, Dr. Portela, eu-leio na alma de minha filha... O senhor se conhecesse Silene, nunca diria uma coisa dessas € duvido! Dr. PortELA Sua filha deve fazer um tratamento sério! “Seu”. NoronwA (aturdido) — Que tratamento? Mas assim vai perder as aulas! (muda de tom) E se nao foi minha filha? Dr. Porteta Ha testemunhas, “seu” Noronha, inclusive eu! Fui eu que a Segurel, eu que a puxei de 14, quando ela ia matar os gatinhos, também! Leve sua filha ao psiquiatra ! “Seu” Noronwa (assombrado) — Psiquiatra? Dr. Portsra (cam satisfagio) — O quanto antes! “Srv” Noronwa ei maae @ cabega entre as maos) — Levar Silene a um mé- ‘ Cline ees? mas nés temos um médico aqui no bairro, que »,™mas bom, étim é parto de graca' 0, o Dr. Bordalo!... Faz até p: : Dr. Portera Psiaui. ce)” siquiatra, “sey Noronha! 154 “Seu” Noronsa E.as aulas? Nao pode perder as aulas! Dr. PoRTELA © (com uma comiseragdo muito superficial) — “Seu” Noronha, acho que o senhor ainda nao entendeu o problema... “Seu” NoronwA Como assim? Dr. PorTELA (inapelével) — Sua filha nao voltara! ' “Sru” Noronwa {repetindo, aténito) — Nao voltara... (lento) O senhor quer dizer que o colégio expulsa minha filha? Dr. PORTELA Interprete como quiser. “Seu” NoronHa (desesperado) — E por causa de uma gata prenha? (furioso) Responda, Dr. Portela! Por causa de uma gata prenha? Dr. PorTELA O senhor esté errado, “seu” Noronha! “Sev” Noronua Vou aos jornais! Fago um escindalo! Dr. PortEra Discordo de si, totalmente! O senhor diz “gata prenha”, muito bem. E dai? (endrgicamente) Escute aqui, “seu” Noronha: imaginemos uma mulher. Ora, eu compreendo 0 abérto com- preendo o direito e, até, o dever do abérto, na mulher, ‘Admi- to. que a mie solteira se desfaga do filho. Hi uma exi éncia moral para que ela va ao médico e pergunte: “Como ra tor?” E cruel, concordo, (exalta-se cada vez mais) Mas sel 155 7 ao : . ta) Porém. da: hd conveniéncias, escruptlos, _pudores i VF a :) m bicho, um ser que € instinto, so Te mie aes e do mal, uma gata nfo deve ser assassinada! sabe do 7 i * monstruoso. Desculpe, € abjecto ! “Seu” NoronHA (implorando) — Mas ha solugéo para tudo! Dr. PorTELA Leve-a a0 psiquiatra! Nao vamos perder tempo. Leve-a ao psiquiatra ! “Seu” NoronHa (com humildade) — E, depois, o colégio aceitaria minha filha, de yolta? Dr. PorTera Entenda, “seu” Noronha: um educanddrio tem’ responsabilidades concretas. E que diriam os outros pais? A agressividade de sua filha é uma doenga. Nao pode conviver com as outras. Sinto, mas sua filha nao pode voltar. “Su” Noronwa (na sua célera contida).— % sua tltima palavra? Dr. Portera Sim, Houve uma Teunigo 14 e a decisio foi unanime. De for- ma que ja vou, “sey” Noronha. “Seu” Noronwa (na sua célera) — Um momento! v fa ; : Dr. Portera fa ando 0 relégio) — Tenho hora marcada. i , tan i. “Seu” Noronza . a1 . ar ne te — Ah, 0 Senhor vai esperar! Minha filha chegou q chamando O's : : H enhor de menti: fis rante) Temos que ‘apurar isso direitinko , = cami (ohegante) 156 Dr. P O senhor duvida? me Sonne “Seu” Noronsa (cae se minha filha confessar... (grite) ca 7 D. Aracy Me: chamou? © “Sev” Noronaa Traz Silene e as outras. Todo o mundo, traz todo o mundo! (para o Dr. Portela, ao mesmo tempo que a mulher desaparece) ‘Vamos ver quem é 0 mentiroso! (para as filhas que aparecem) Venham ouvir o que o Dr. Portela est dizendo! DA Que foi? = “Seu” NoronHA (para as fithas maiores) — Fechem as portas! tédas as portas! Dr. PortELa (olhando em térno assustado) — Mas que é isso? AURORA Papai, calma, papai! “Srv” NoronHA Fecha tudo! Dr. PortELa Mas isso é uma agressao! “Seu” Noronna (gritando) — La no colégio mataram uma gata prenha e acusam Silene! . Dr. PorTera Sao so fatos! Séo os fatos! “Sev” Noronwa Ainda por cim:, expulsaram Silene! 157 D. Aracy Bsse cachorro! . Dr. PorTELA i i uu vi, Oitocentas criangas (fora de si) — Mas minha senhora, ¢ fi iram! vt “Szu” NoroNRA Sim, todo mundo viu, mas acontece que nds, aqui, 386 ie tamos em Silene. (para a mulher e as filhas) Nao 6, Gorda? D. Aracy Evidente! “Seu” NoronHa, (para Silene) — Chega, aqui, minha filha, Olha bem para ésse cara, Diz pra éle, diz: foi vocé? SILENE (selvagem) — Mentira! Dr. Porrera Ha testemunhas! Hé testemunhas! (para Silene) Silene, nao foi vocé, Silene? Vocé jura que no foi vocé? SILENE (feroz) — Juro! ARLETE Que cretino! “Seu” Noronwa (triunfante) — Basta, minha filha! (pera o Dr. Portela, cara com cara e fazendo o outro recuar) O senhor mentiu, Dr. Por- tela... O senho é um mentiroso... Dr. Porrera Eu nao menti, “juro! . ARLETE ‘Vamos cobrir éle! (O Dr. Portela vé fechar-se o ctrculo das fithas... Arlete apanha uma estatueta.) "158 “Seu” Noronna (para as filhas) — Ninguém se meta! (puxa um tra ao visitante) Esté vendo isso aqui? Esse ac ae para Se disser mais alguma coisa, eu lhe furo a barriga, canalha! (“Seu” Noronha encosta a ponta do punhal na barrige do Dr. Portela.) , Dr. Portera (quase sem voz) — Pelo amor de Deus! “Seu” Noronwa - Se vocé falasse de outra filha, qualquer outra; eu nao diria * nada... Agora mesmo, se o senhor, ou vocé, xingar, chamar de vagabunda uma dessas (aponta as mais velhas) ou a Gorda, eu lavo minhas mfos.. Mas vocé insultou quem nao podia in- sultar... O senhor nao pode entender a pureza de minha filha, Ou pensa talvez que minha filha é como sua mulher? (trincando os dentes) Nao se mexa porque eu Ihe enfio ésse tro- go! (muda de tom) Sua mulher usa vestido colante. Vé-se 0 desenho da calca no vestido de sua mulher. (exultante, mos- trando Silene) Minha filha, nao, Quase nfo tem quadris, nem seios: 0 seio sé agora esta nascendo, sé agora! Silene € pura por ‘nds ou vocé nao percebe que ela € pura por nés? (mum berro) Fala! Dr. PorTELA (com voz estrangulada) — Perdio! ARLETE & um covarde! “Srv” Noronwa Ou vocé humilhou minha filha, porque descobriu que eu sou continuo? (com um riso solugante) Quando eu matriculei Si- lene, me apresentei como funciondrio da Camara, mas sou con- tinuo! (baixo, cara a cara) Agora me chama de continuo, anda, me chama de continuo! Dr. PortTeLa Por qué? : 159 “Spy” NoroNHA Ew ; quero! Dr. PorTELA ‘Cantina. “SEU” Noro Ha Continuo... Agora chora! Dr. PorTELa yr qué? : Masiror “Spu” NoroNHA (num berro) — Chora! ; , : “Dr. Porreca (ian solugo imenso) — Nao posso! (Mas chora: As ldgrimas' caem-the, de quatro em quatro). “Seu” Noxon (frustrado) — Nao choraste a lagrima que eu procuro... (muda de tom, para Silene) Vem ca, minha ‘filha} : : SILENE (num lamento) — Estou tio cansada! “Seu” Noronna (no seu édio) — Dé-lhe na cara! SILENE (recuando, espantada) — Por qué, papai? “Seu” Noronna , te humilhou! Mete-Ihe a. mao! (para Esta, bésta te insultou, ortela) Vai apanhar caladinho ou ja sabe! Dr. Oi a ini tg | AURORA - (bora Silene, abrindo @ mio) — Bate assim, de mao aberta! ( : SILENE “seHande, apavorada) — No posso. ‘160 “Srv” Noronwa Minha filha, sou que que estou mandando, minha filha! (Stibito, Silene estaca, Olha para as irmas e os pais, Tem uma exploséo.) SILENE (feroz) — Vocés querem saber da verdade? (trincando os den- tes, numa alucinagao) Pois fui eu, pronto! “Spu” Noronita (no seu espanto e na sua dor) — Vocé, minha filha? SILENE (no gesto de quem empunha um pau ¢ vai bater) — Matei assim! Dr. PortELA (para todos) — Eu vi: esmigalhou a cabesa da gata! (“Seu’ Noronha deixa cair o punhal... Cambaleante, apro- wima-se da filha). “Seu” Noronna Por qué, minha filha, por qué? SILENE (fechando os olhos, de mios wnidas, na altura do peito, como’ se recasse) — Nao sei. (“Sew” Noronha agarra a filha pelos dois brogos. Chora. ) “Seu” NoroNHA Fala. Por qué? SILENE Nojo! “Seu” Noronna Por qué nojo? SILENE (com o ricto maligno) — Odio! AURORA (aténita) — Maninha, Sdio de um bicho que nao te faria mal? Um bicho, Maninha? 161 SILENE (numa explosio) — Gata nojenta! — (Passa a mao na béca, num esgar de nojo.) Dr. PorTELA (jé recuperado, ¢ satisfeito) — Estao vendo? (triunfante). E um processo mental, clarissimo ! (Dr. Portela apanha o chapéu e a bengala.) Dr. PorTELa (superior) — E outra coisa, “seu” Noronha. De fato, o senhor tinha-me dito, quando matriculou sua filha, que era funciondrio da CAmara, se nio me engano da Secretaria, Mas na semana passada estive la e qual nao foi a minha surprésa ao vé-lo, no seu. uniforme proprio, servindo cafézinho aos deputados! O se- nhor nfo me viu e eu achei muita graca, até. Afinal continuo, hem, meu caro Noronha? E creio que, agora, vai-me pedir desculpas ... 7 ARLETE (interferindo) — Desculpa coisa nenhuma! (viril, para o Dr. Portela) Escuta, aqui: continuo é sua mie, percebeu? (espeta- the o dedo no peito. O Dr. Portela recua) E; sua mulher? que sO ‘pde vestido justo para mostrar aquéle rabo? Patife! . Dr. PorTea N&o quis ofender! (gago) E boa noite, com licenca. (Sai o Dr. Portela, “Seu” Noronha aperia Silene de encontro ao peito.) “Seu” Noronwa (beijando-a na testa) — Nenhum colégio é digno de ti! E todo mundo inveja tua pureza! Humanidade cachorra! As meninas nao séo meninas, sio femeazinhas. S6 vocé & menina, sé ‘vocé! (soluga) uo FIM DO PRIMEIRO QUADRO 162 i ; ne ein at aN BEE Nn MN . sms ser tt EE HORI SEGUNDO ATO SEGUDO QUADRO (Quarto de Silene. A menina, que estava deitade na cama, levanta-se. O Dr. Bordalo, clinico da familia, que acaba de examinar a garéta, acha graca, porque a menina chora.) Dr. Borpato (com alegre ternura) — Chorando por qué? SILENE (fungando) — Vergonha. Dr. BorpAto (com alegre escéndalo) — De mim? Vergonha de mim, veja s6! Meu coracio, te vi nascer, fiz todos os partos de tua mie, todos, € vocé pra mim é como se fésse um bebézinho. SILENE Eu sei, doutor, mas... : Dr. BorDALo Olha pra mim! (Segura o queizxo da menina.): Dr. BorDALo Ja passou a vergonha? i 168 SILENE (no seu enleio) — Ja Dr. BorDALO iu? vi SILENE Finalmente, 0 que é que eu tenho, doutor? Dr. BorDALo pai aqui. Vocé? Coisa 4 toa. Agora vai € manda teu : 7 médico detém-na.) (Silene encaminha-se para a porta, mas 0 - _. Dr. Borparo (divertido) — Minha filha, poe a calca! SILENE (estaca} — Que cabega a minha! (Ards do médico, Silene faz como se estivesse vestindo imagi- néria peca intima.) ; SILENE Pronto, doutor! Dr. Borpato Agora, vai. (Sai Silene ¢, em seguida, entram “sew? Noronha e.D. Aracy.) / “Seu” Noronwa (séfrego) — Entio, doutor? : : Dr. BorpaLo Gj para D. Aracy) — A senhora, ainda nfo. Quero dar uma pa- lavrinha com seu marido. Depois, eu chamo a senhora. . “Srv” Noronwa Sai, Gorda, (Sai, D. Aracy.) . : “Srv” Noronwa (séfrego) — Tudo O.K., doutor? “164 | | | | Dr. Borpato Fecha a porta, (“Sew” Noronha obedece... O médico, em pé, indica @ cama.) Dr. Borpao Senta. “Seu” Noronwa (trémulo) — Nao é leucemia? Dr. BorpaLo (surpréso e divertido) — Por qué leucemia? “Seu” Noronna ; Palpite meu, doutor, um sonho que eu tive! Dr. BorpaLo. Bate na madeira, Por ésse lado, sem novidade. “Seu” Nozonwa (euférico) (esfregando as maos) — Oh gragas! Doutor, estou com a alma nova! (muda de tom) Mas essa questao dos ver- mes também’ me preocupa muito... Dr. BorpaLo (sem ouvi-lo) — Noronha, sei que vocé gosta muito de Silene. “Seu” Noronza Silene é tudo para mim! Dr. Borpato E, naturalmente, vocé é um pai compreensivo! , “Szu” Noronna (na sua ternura trémula) — Silene faz de mim gato e sapato! (Resoluto, Dr. Bordalo senta-se na cama, ao lado de “seu” Noronha.) : 165 Dr. BorDALO 0 ! versar, nds dois, de homem para homem! Noronha, vamos com “Seu” NoronwA isa? mas o senhor esta escondendo alguma coisa! Doutor, Dr. BorDALoO o seguinte: apertei sua filha, mas ela nega. “Srv” NoroNHA Nega 0 qué? ‘Dr. BorpALo Nega e eu‘compreendo. & normal que a mulher come negando. Mas, finalmente, Silene tem ou nao tem namorado? . “Sev” Noronwa Claro que nao! Dr. Borpato Wem teve? “Seu” Noronwa Nunca! Posso-lhe afirmar, com téda seguranga ! Dr. -Borpato Mas Silene tem namorado, sim, senhor, 14 isso é que tem! “Seu” Noronwa (no seu espanto) — Namorado? . Dr. Borpato Tem, sim, tem! “Seu” NoroNHA Absolutamente! Nem pode ter, doutor. Uma menina que vive 198.. colégio interno, nfo sai! Ou por outra: saiu uma vez por ‘mes,’ Passa um dia em casa e volta no.dia seguinte. Vai ¢ vem acompanhada. Nessas condig6es, pode ter namorado? “166 | ; i 4 Dr. Borparo (erguendo-se e pondo a mao no ombro de “seu” Noronha) — Entio quem é 0 pai? “Seu” Noronwa (numa incompreensio dolorosa) — Que pai? Dr. Borpato Com licenga, | Noronha. Vamos esclarecer isso, direitinho. Quando examinei Silene, pensei que vocé me tivesse chamado porque, afinal... Mas nao sabe, nem desconfia de nada? : “Sgu” Noronaa (aténito) — Continue. Dr. BorpaLo (jé apiedado e lento) — Sua filha ja vai para o terceiro més. (Pausa aténita.) “Seu” NoroNHa © senhor quer dizer que Silene... Dr. Borpato (lento) — Esta gravida. (“Seu” Noronha crispa a mao no brago do médico, num de- sesperado apélo.) “Seu” Noronwa Mentira! (arqueje) Nao tem nem quadris, a bacia é estreita! Diga, doutor, que é mentira! Dr. BorpALo Em primeiro lugar, vocés véem Silene com os olhos da ado- ragéo. Ela tem medidas normais. Quanto. 4 gravidez, nao ha divida, & certo, Eu a examinei, £ certo. Trate de descobrir o responsavel e providenciar o casamento. ” 167 “Sgu” NoroNwA ; virgem? Deixou de ser 1c diz que Silene nao € mais O senho: virgem? Dr. BorpALo 4 tuoso, - cé esti exagerando. — (afe 00, : Noronha nao eae ee eeindade ea ten maisi esea! int rsuasivo) Hoje em dia, eortancia. E, afinal de con esté numa pelicula. A virginda: + “Seu” Noronwa tas, a honra de uma mulher nao s . . de é uma peliculazinha. altadissimo) — O senhor tem uma filha. Da idade da mi- a Solteira, i quero saber se a virgindade de sua filha tam- bém é uma pelicula? Dr. Borpato Sejamos praticos. Descuba o homem. “Seu” Noronga (com a voz estrangulada) — O senhor nao entende nada de pureza, de inocéncia... O senhor ja viu, na igreja, uma vir- gem de vitral? Escute: de tarde, o sol bate na igreja... Ea luz atravessa a virgem... (aponta para o alto como se mos- trasse um invisivel sol) Assim & Silene — uma virgem atra- vessada de luz... (com um esgar de chéro) E de tanto adorar minha filha, eu descobri que, entre tédas as meninas da terra, 86 ela é virgem e sé ela é menina... Mas se estd gravida... : Dr. Borpato Infelizmente. i “Seu” Noronwa (num solugo) — A sem-vergonha | (“Seu” Noronha vai, cambaleante, em direcéo da porta, Dr. Bordalo segura-o pelo brago, “Seu” Noronha volta-se, aturdido.) : Dr. Borpato (coni energia) — Venha ca! 168 “Seu” Noronna (rouco) — Que é? Dr, Borpato ' (sempre enérgico)’ — Vocé nfo vai fazer violéncia nenhuma. Lembre-se que o dever do pai é proteger ¢ perdoar. “Su” NoronHA (com wm humor hediondo) — Obrigado pelo sermio. Dr. Borpato i Nio & sermio. # preciso descobrir o pai. Arranque um nome. Inclusive, eu, falo com o rapaz. Quer que eu chame Silene aqui? Nao acha melhor conversarmos aqui? Eu acho, quer? “Seu” Noronwa : Chama, Ou por outra: aqui no, Na sala, tem que ser na frente de téda a familia. (cambaleante) Venha, doutor, Vamos. (Dr. Bordalo acomponha 0 poi desvoirado, Estéo diante da fomitia,) “Seu” Noronna (ao lado do médico) — Gorda, chega aqui! Dr. Borpao : Calma, nfo se exalte! 4 D, Aracy ' ‘ Nao é nada de grave? t | “Seu” Noronwa 1 4 (para os mais vethas) — Vocés também... (desfigurado pelo édio, apontando para Silene, que esté a pouco passos e que sa abraga com Aurora) Sabem porque ela matou a gata prenha? Querem saber? Dr. BorpaLo (baizo e repreensivo) — Nao humilhe! “Seu” Noronza (alto e comum riso solugante) — Porque esta gravida também! Aga N EEE I 169 0 AURORA (agarrando-0 pelos dois bragos) Maninha! ARLETE (para Silene) = Quem foi? HiLpa 5 ram Maninha! . (num solugo) —- Desgracaram : (Desespéro, Loucura. Dir-se-ia que alguém acaba de morrer, Silene recua, com as duas maos no ventre, num pavor agressiwo.) ee SILENE & tudo mentira! : : Dr. BorpAto {para uma e outra) — Calma! calma! Vamos usar a cabeca! Aqui o Noronha vai conversar com Silene e Silene vai dizer quem foi, quem nao foi, Até j4 me ofereci para falar com o Tapaz, Eu falo com o rapaz pronto! “Seu” Noronwa (num berro) — Cala a béca todo mundo! (baixo e ofegante para Silene) Chega aqui. Diz — quem é teu namorado? SILENE (contida) — Nao tenho namorado, “Seu” Noronwa Nem amante? oe : . SILENE "(ofegante) — Nao. ~“Sgu” Noronna (na sua célera contida) — Quem € 0 pai do teu filho? : . SILENE Ninguém, . “Sev” Noronwa com um ligubre' humor) — Ainda és virgem? \170 SILENE (solugando) — Sou pagai! “Seu” NoronHa (para 0 médico) — Viu, doutor, o cinismo? (feroz, para a fi- lha, com humor hediondo) Mas se nao estas gravida posso-te “dar um pontapé na barriga! SILENE Ninguém toca no meu filho! “Sru” Noronwa (com um riso sérdido) — Tens, ent&o, um filho... (furioso) Mas onde arranjaste ésse filho? no colégio? Fala! na aula? no énibus do colégio? {Dr. Bordalo empurra “seu” Noronha e agarra Silene pelos dois bragos.) Dr. Borpato Fala comiga, Silene! Nés queremos.saber quem é, porque se jala com o rapaz e éle casa contigo! SILENE % casado! (feroz) Casado, vive com a mulher, gosta da mulher (num solugo) e me deixem em paz, 6 meu Deus! D. Aracy (solugando) — Ninguém presta! Ninguém vale nada! .: : 3 : Dézora (na ‘sua célera e por entre légrimas) (para Silene) — Fica sabendo: por tua causa, eu vivia arranjando mulher para uns velhos e dava todo o dinheiro 4 mame pra teu enxoval! “ARLETE Chega de conversa! (para D. Aracy) Mamie, a senhora vai devolver 0 dinheiro do emxoval e vamos rachar isso, cada um fica com’ a sua parte! . 171 HILDA rte e you-me embora da “Sgu” NoxoNHA gui! “Quero a minha pai Para onde? Erp Para Santos! “Spy” NoroNwA Por qué Santos? Hrpa Nao te mete nisso, papai! (muda de tom) Ah, quer saber, pois nao! Vou para Santos porque uma colega minha féz, em San- tos, num més, sé num més, 170 contos. Agora que eu sei. que Maninha é igual a nés, ou pior... “Szu” NoronHa (gritando) — Pior! ARLETE -Pois é. E eu nfo fico mais aqui! no quero mais ficar! “Seu” Noronwa (num outro berro) — Espera! Tenho outra idéia! Ninguém Precisa sair daqui! Venha o senhor também, Dr. Bordalo! Dr. Borpato Mas nio ha motivo! Nao hi motivo ! “Seu” Noronna irordiea) — Ougam a idéia (baixando @ voz, caricioso, ignd- y ) i n40 vou voltar mais para a Camara, nfo senhor, e por Dr. Borparo xe para todos) — Bste homem est4 louco! “Srv” Noronwa (mun desafio feroz) — Por qué louco? Vamos, explique! ‘172 Fe tne Mahe teeatceespais Dr. BorpaLo O senhor esta propondo um bordel de filhas! (“Seu” Noronha, fora de si, agarra o médico pelo brago, com desesperada energia.) “Seu” Noronwa Por que no? Olha: eu nfo vou mais servir cafézinho, nem agua gelada, a deputado nenhum! (para as filhas) Vocés também podem largar o emprégo! (para o médico, num riso sdrdido) O emprégo das minhas filhas ¢ uma méscara! (corta o, riso) Tive outra idéia (cara a cara com o médico): o senhor quer comegar? Quer ser o primeiro? Dr. BorpaLo {recuando) — O que é que o senhor quer insinuar? “Sev” Noronwa Eu sei que o senhor é metido a santo: faz de graga parto de . negra, nao cobra consulta, mas insisto (aponta para as filhas) escolha: qualquer uma, escolha! (agarra a filha @ menor) AURORA (gritando) — Nao, papai! (“Sew” Noronha atira Silene no chao, aos pés do médico.) SILENE (num apélo, com as duas maos em cima do ventre) — Nao quero! Dr. Borpato fajudando-a) — Levante-se! “Srv” Noronwa (possesso para com éle) — Ou tu vais com éle ou acabo com a tua gravidez a pontapés! (para os outros) Se foi de um, pode ser de todos! f oe Aurora (histéricamente) — Eu vou no lugar de Maninha! 173 “Sev” NoronHA Quero Silene! De. BosDALo «> diz > na tras) — E vyocés? nao dizem nada? nao oe i ea que é mie? (! gritonde) Porque pio P abandone a! ontando “sew = j esta casa! (apont fogem? Fujam! abandonem tere as mais ne a) Es re é ! ronha) Bste homem € um louco! aia Hed cebo vocés na minha casa! Ficam /a, “Szu” NoroNHA Aurora) S6 esta bestalhona A porta esta (fora de si, P reagem? Nem (triunfante) — Viu? (apontando quis protestar. As outras esplam ¢ calam... aberta e ficam! Dr. BorDALo (furioso) — Vocés tém uma alma e...! (estaca, aténito) Ou n&o tém alma?... (como se pensasse em voz alta) Mas se nao fogem é porque s4o escravas uns dos outros... “Sru” Noronua (exultante) — Nem elas se livram de mim, nem eu me livro delas! (para Silene) Vocé vai ou nao vai aqui com o doutor? AURORA (solugando) — Maninha, no, papai! SILENE ara A; _ i (rare urora) — Obrigada, Aurora... (transida para o pai) “ ” Srv” Noronna (para Silene) — Vai na frente e espera no quarto! (Silene otha’ par iG : mente, para a espantadas. Caminha, lenta- : “Srv” Noronza (com um riso escravos: tu de negiondo) (para a mulher) Gorda, nés somos mudando de tom) “Mi eu de ti, nfio é doutor? (para o médico, inha filha o espera, doutor: la! 1% Dr. Borpato (quase chorando).— Nao sei porque nao lhe dou um tiro, seu canalha! “Seu” Noronza (num falso ¢ divertido espanto) — Canalha, eu? (incisive) Eu s6, nfo! Todos nés somos canalhas! (rindo, pesadamente) Tam- “bém o senhor, também o senhor! (novamente sério ¢ violento) Sabe porque esta familia ainda nio apodreceu no meio da rua? (tum solugo) Porque havia uma virgem por nds! O senhor nao entende, ninguém entende. Mas, Silene era virgem por nés, anjo por nds, menina por nds! (feroz) Mas, agora que Silene esta no quarto — esperando o senhor! (riso com desespéro) nés podemos finalmente cheirar mal e apodrecer... Quer ver uma coisa? Eu lhe mostro (para as mulheres) Quem foi que escreveu nomes feios no banheiro? (triunfante) Podem confes- sar, porque ja comecamos a apodrecer. (para o médico) Preste atengio, doutor! (para as mulheres) Quem foi? D. Aracy Eu. “Seu” Noronwa (radiante) — A Gorda! D. Aracy (quase chorando) — Eu! “Seu” Noronwa (euférico, para o médico) — Tem varizes e um suor azédo! (para a mulher) Mas, explica, oh Gorda: por qué tu fazes de- senhos obscenos no banheiro? D. Aracy (confusa ¢ chorando) — Nao sei... Talvez porque: eu quase nio you a um cinema, a um teatro, vivo tio sé! E também porque (mais agressiva) eu nao tenho marido! (para “seu” Noronha) Ha quanto tempo vocé nfo me procura como mu- Ther? (para o médico) Até ja perdi a conta! (com certa digni- dade) Ent&o, eu ia para 0 banheiro, rabiscava e, depois, apa- gava, Ontem, & que eu me esqueci de apagar e... 175 “Su” NoroNHA i . Os “ ! (pore as filhas) — E vocés? Falem; (para Hilda) Vocé Hwa 7 ; Boal (exaltada) — Eu vi Arlete beijando uma mulher’ na Dbéca! 7 ARLETE (violenta) Foi, sim! : Hrpa Cinica ! ARLETE" (numa firia sibita) — Tenho nojo de homem! A coisa que eu acho’ mais asquerosa. é cueca usada! “Seu” Noronwa (para Aurora) —- Vocé nao diz nada? AURORA Hei de ficar ao lado de Maninha, até morrer. “Seu” Noronwa (agarrando-se ao médico) — Viu, doutor? Aqui o senhor nao Precisa_ ter vergonha, absolutamente! Vergonha por qué, pra qué e de quem? Dr. Borpato (entre dentes) — Aonde.me meti! : “Seu” Noronwa‘ Ofereco-lhe uma menina que € quase uma virgem e o senhor recusa? Ora! : Dr. -Borpato (virando-se ‘na diregéo do sti i : re quarto “e numa angiistia mortal, imei delirante) — Silene, eu tentio uma filha de sua idade. ° sa baie em vocé (faz no ar uma caricia), eu nao pode- Sit Jar minha filha; nunca mais... Vocé & tao linda (grita) ilene! Silene! Teu nome é uma dailia! | *' (“Sew” Saul acaba de aparecer na porta, Estaca, em siléncio.) Mn carpets “Seu” Noronwa . (furioso) — Vocé quer ou nao quer? Dr. Borpato (com outro berro) — Nao quero! “Seu” Saut (entrando) — Eu quero! “Seu” NoroNHA Entre, “seu” Saul, vamos entrar! Entio, o senhor quer? “Seu” SAUL Eu escutei tudo pela porta aberta... Sei tudinho... Eu querer... “Seu” NoroNwa (arquejante) — © quarto é aquéle, “seu” Saul! Aquéle! “Seu” Saut Com licenga! (“ Sew? Saul caminha na diregio do quarto. Todos 0 acompa- nam com o olhar. Ble entra e fecha a porta.) SILENE (em panico) — Nao é 0 senhor! £ 0 médico! “Sev” Saut Oh nfo ficar assustada... Eu nao abusar de vocé... Ca- ladinha... : SILENE (chorando) — S6 the peso para nao machucar meu filho! 7 “Srv” Savi Eu tive ferimento de guerra, do Primeira Guerra... 177 SILENE — © senhor? eget? Saath | i tinho, no guerra do Kaiser, e um Uma granada explodiu pertin! ieee ge peace an i tou meu desejo.-+ he d age Oh sé quero segurar seu maozinha, assim. iga Hes SILENE Eu agradego ao senhor... “Seu” SAuL Depois nés saimos e tapiamos seu papai. Oh ninguém sabe ° ferimento de guerra, felizmente! . (Do lado de fora, 0 médico, que anda de um lado para outro, como possesso estaca.) Dr. Borpato (enfurecido) — Depois sou eu! : “Seu” Noronwa Mudou de opiniao! Dr. Borpato : ee Até loguinho, Seu” Saut Dr. Borpato Agora so; uu eu woos, = (¢scothon ae Mas antes: eu quero que um de ‘Ancora eee ‘urora) Vocé, Aurora, pelo amor de Deus, ie para Aurora as duas mos crispadas) Eu aes ve vocé, Aurora, me cuspa na cara! pee ‘aS outras irmas, Aproxima-se, lentamente, Saul esté parado também. Aurora cospe 178 Dr. Borpato Gracas, oh gragas! (¢ dé um grito pavoroso) Silene! Silene! (Vai cambaleando, para o quarto.) “Srv” NoronnA Vai canalha! (mudando de tom, puxando o punhad) Bste pu- thal ainda sonha com uma légrima! FIM DO SEGUNDO ATO 179 TERCEIRO ATO (Comeca o terceiro ato com uma sessio em casa do “seu” Noronha, Presentes: o velho, D. Aracy, as filhas, menos Silene que estdé encerrada em seu quarto, Hilda é o médium. Acaba de receber o primo Alipio, falecido recentemente. Hilda anda pelo palco em-largas e viris passadas; arqueja e funga; dé gritos medonhos; voz masculina.) D. Aracy Pergunta se o homem vem aqui e quando? “Seu” NoroNHa (baixo, para a mulher) — O diabo & que foi receber logo o primo Alipio, que nao se dava comigo... (névo tom, humilde) Irmao, éle vem aqui? (Hilda dé pulos tremendos.) Hivpa Velho safado! Vocé quer matar um homem! ARLETE O primo nao quer nada com a gente! “Seu” Noronna (para Arlete) — Néo se meta! (De vez em quando, nos seus arrancos de espirito ainda ndo evoluido, Hilda tem de ser subjugada.) _ 181 D. Aracy .oof (a wim arranco maior) — Segura! Segura! (Hilda, dominada, esperneia em vio.) Hitpa \ (com voz masculina e ofegante) — Velho assassino! “Srv” Noronwa (na sua humildade) — Irmo, ésse homem ofendeu minha mo- ral! Desgragou minhas filhas! Hipa Tuas filhas séo umas sem vergonhas! Vivem pegando homiem! “Szu” Noronwa (séfrego) — Mas 0 homem chora por um dlho sé! Hitpa : Vocé esta marcado! “Sru” Noronwa O homem tem uma lagrima sé? Hirpa Ola que vocé pode morrer! “Seu” Noronwa E como eu vou conhecer ésse homem? saber quem é éle? ju- deu? como é éle? Hivpa © homem goza chorando, chora morrendo! “Sev” Noronwa (repetindo com angtistia) — Goza chorando, chora morrendo... (num apélo) Mas le vem aqui e quando? Hitpa O homem vestido de virgem! 182 . “Seu” Noronna Vestido de virgem! Hipa Vocé enterra no quintal, o homem e a lagrima! Vocés ajudem a carregar o corpo... (para “seu” Noronha) E vocé enterra a faca no coragio! “Seu” Noronwa Mas eu queria apunhalar o olhar da ldgrima! Hitpa Deixa o homem dormir e enterra a faca no coracio! (“Seu” Noronha esté tirando lentamente o punhal de prata. Hilda sacode-se, despertando, em espasmos tremendos, do seu estado meditimico.) AvRORA Ja acabou? “Seu” NoxonHa Eu nao disse? Batata! AURORA Ha certas coisas com que eu naéo me conformo! “Seu” Noronwa Vocé ainda duvida? AURORA Papai, 0 primo Alipio é um espirito que, outro dia, pregou aquela mentira! “Seu” Noronwa Como se pode ser to burra! (para as outras, para todos) Vocés viram! (agarra a mulher) Vocé & testemunha, Gorda! D. Aracy Eu no entendi direito! “Seu” Noronwa (sacudindo-a) — Escuta: o Dr. Batista Coutinho ja tinha me avisado e vem o primo Alipio e confirma — o homem que 188 chora por um élho sé :liquidou minha famallie| E agora, qual “a divida? AURORA Papai, o senhor nem sabe o que eu vou dizer! * D. Aracy -Deixa Aurora falar! AURORA (num muxéx0) — Engragado! ARLETE Fala, Aurora! .. AvRORA (veemente) — Papai, o senhor deixa eu dar uma opiniao? um palpite? “Seu” Noronga A eterna mania! AURORA Gozado! Aqui se fala de todo 0° mundo, menos dum! » “Seu” Noronga (com sarcasmo) — Quem? AURORA : Ora! a “Seu” Noronna Desembucha! AURORA (incisiwa e violenta) —.O filho de uma grandississima que féz o que féz com Maninha... \ “Seu” Noronga E dai? ee : : AURORA Dai & que ésse é 0 pior cachorro! (para as outras) Eu sei, per- feitamente, que’aconteceu a mesma coisa com a gente, Mas é que nés somos galinhas, sempre fomos galinhas, esta no sangue. i 184 Eu me lembro que eu, por exemplo eu — com 8 anos, mas chega... Com Maninha é que isso nao podia acontecer, ounent (cobre 0 rosto com wma das méos e soluga) Pois bem: ¢ quan- do acaba, a gente esta esquecendo de odiar um chachorro que eu, que sou mulher, ah se eu pegasse! (para o pai, violenta) © senhor esta errado, papai! “Sru” Noronna Vocé quer-me ensinar a mim? AURORA (para as outras) — Vocés nao concordam comigo? ARLETE Depende. AURORA (violenta) — Ou nao? Dézora Eu concordo. “Seu” Noronwa (meio confuso) — Mas continua. AURORA fisse sujeito merece um tiro na béca! “Seu” Noronwa (com um riso solugante) — Por qué tiro? (cortando o riso) Tiro, nao, sua cretina! (mostra-Ihe o punhal) Isso aqui é mui- to melhor: no faz barulho, entra macio, macio, quase nao ddi.. AURORA Portanto, se o senhor nfo quer, ou tem médo, eu acabo com ésse sujeito! “Seu” Noronna (com sarcasmo) — Procuro uma lagrima, o que me interessa € uma lagrima... Mas vocé 0 que faria? Diz? 185 AURORA : - Matar, apenas! Matar! “Sru” NoroNHA (com achincalhe) — Vocé? AURORA Ou alguém por mim. “Srv” NoronHA (jé alarmado) — Quem? : AUuRORA (hesitante e lenta) — Um rapaz que eu conheci. “Seu” Noronwa (j6 alarmado) — Vem ca: de confianga? AURORA Mas légico! & meu namorado. Ja matou um e se eu pedir, é s6 eu pedir, tenho a certeza, ou quase a certeza que... ARLETE Queres um conselho? AURORA Diz. ARLETE No pée gente de fora. D. Aracy Também ‘acho. . AURORA (taxativa) —-Mamie, por ésse eu ponho a minha mZo no fogo! “Srv” Noronwa Como é o nome déle? AURORA O nome? Bibelot. : : . 186 . D. Aracy Por qué Bibelot? AURORA Apelido. (“Seu” Noronha anda de um lado para outro.) “Seu” Noronwa (para si mesmo) — Bibelot... Eu iame esquecendo de odiar ‘co homem que desgragou Silene. .. (agarra o brago de Aurora) Posso ver ésse Bibelot? AURORA Vem aqui. “Szu” Noronsa Quando? AURORA Ficou de passat, hoje, por aqui. Vem-me apanhar pré cinema. D. Aracy E se éle for préso e disser que fomos nos? AURORA Gosta de mim, mamae! “Seu” NoronHA (para a mulher) — Nao te mete Gorda! Mania de se meter! (para Aurora) Quero ver, quero olhar o cara e depende da minha intuigdo! Dézora Olha quem esta ai! (“Sex” Soul acaba de aparecer, arquejante, passondo o Lenco to suor da testa.) “Seu” Sau, Ja saber de noticia? “Seu” Noronwa Que noticia? “Sev” Noronna Oh nfo saber quem se enforcou no’ fio do ferro elétrica? 187 DéporA coat Fala, creatura! ‘ . Seu”. SAUL (enchendo o palco com a sua vos) — O Dr. Bordalo! ARLETE Matou-se? + “Seu” Saunt (com a voz grave, cheia, profética) — O Dr. Bordalo estd pen- durado no alto da porta, o lingua preta, as bochechas assim, de mascara de carnaval! (Aurora atira-se, possessa, contra “sew?” Saul.) AURORA (rouca de édio) — Mentira! “Seu” Saunt (grandiloqiiente ainda) — Jura! AURORA (rebentando em solugos) — Seu mentiroso! D. Aracy (chorando) — Matou-se sem motivo! “Seu” Saut (na sua énfase) — Dr. Bordalo ter motivo! Grande motivot . “Seu” Noronwa : (ameagador) — Ent&o vocé vai dizer que motivo! “Srv” Saut Eu sei, vocés saber 0 motivo! : “Srv” Noronwa Quer-me desacatar, gringo? 188 “Sev” SAUL (abrindo os bragos) — O Dr. Bordalo deixou um bilhete, um bilhetinho, dizendo assim: “Nao quero que meu filha me beije no caixao!” 5 “Seu” Noronua (no seu desespéro contido) — Nao quer o beijo da filha e bei- jou a minha, o cinico! . Hitpa (aos solugos) — Nao fala assim, papai! “Seu” Noronua (para “sew” Saul) — E vocé, gringo, por qué nao se mata também? “Seu” Saut (batendo, em triunfo, no peito) — Eu ser ferido do guerra, do guerra do Kaiser, do Primeiro Grande Guerra! “Sru” Noronua Retire-se! “Seu” Saun (recuando, de frente para todos) — Teus filhas vao-te destruir! “Sgu” Noronwa (aos berros) — Eu estou na minha terra e jA néo sou mais continuo! Rua! Eu ndo sou mais continuo! (“Sew” Saul estaca na porta.) “Srv” Saut Teus filhas vao-te destruir! “Seu” Noronza (para as filhas que choram) — Choram por quem e por qué? Hitpa (chorando) — Era um santo! 189 ’ “Seu” NoroNHA . argalhada arog) — Aquilo santo! (baixo e triunfante, Gone cae com dia Santo porque fazia de graca parto de negra! (agarra Hilda, com uma certeza fandtica) O parto gra- tuito era um disfarce! (para tédas) Santo e possuiu minha filha, quase na minha frente... Hitpa Foi o senhor que mandou! “Seu” NoroNHa (arquejante e falando aos arrancos) — Eu mandei e éle a pos- suiu. E a chamou de dalia. E ela nem gritou, se ao menos gritasse, e nao gritou! Agora o miserdvel recusa o beijo da filha! (“Seu’ Noronha anda trépego e circularmente.) “Sru” Noronwa O gringo entra aqui e diz que minhas filhas vao-me destruir! (para tédas) Mas, eu, quando morrer, quero o beijo de cada filha e (num riso solucante) até o teu beijo, Gorda! D. Aracy (chorando) — Amém! “Seu” Noronwa (cortante) — Chama ésse Bibelot! , . AURORA Primeiro, a Maninha tem que dizer quem foi, E ainda nfo disse! “Seu” Noronwa Dou-lhe um bofetfio e ela confessa imediatamente! AURORA Calma, papai, calma! E vamos fazer 0 seguinte, presta atengao: eu converso com, Maninha e, com jeito, ela vai ccaheee quem foi, quem nao foi, e pronto! Nao é melhor assim 190 Wena eens F “Seu” -Noronza Vai la arrancar ésse nome! o AuRORA (jd afastando-se) — E quando acabar eu chamo, _ (Aurora encaminha-se para o quarto de Silene.) “Szu” Noronsa (para as outras) — Ninguém me tira da idéia que “seu” Saul € 0 que chora por um élho sé! (Quarto de Silene, Aurora senta-se, na cama, ao lado da irma.) AURORA Olha pra mim. SILENE (jé acwada) — Estou olhando. AURORA Quem € 0 cara? SILENE Que cara? AURORA O tal! SILENE (com uma dissimulagdo muito evidente) — Ble nao esta no Rio! AURORA Est4 onde? Sune Viajou. (Aurora toma, entre as suas, as méos de Silene.) AURORA Escuta: vocé confia em mim? Sinz (sempre crispads) — Por qué? 191 AURORA oe (mais incisiva) — Confia ou niio confia? SILENE (a médo) — Contio. | . AURORA Entfo quero saber tudinho! SILENE Depende. AURORA (com exasperagéo) — Depende, nao, senhora! Por qué depende? Vocé vai contar tudo, fago questo! E se vocé comegar a me “esconder os trocos, eu largo vocé de mao e olha: depois do que houve, quem é aqui tua amiga no duro e te defende? sou eu, no sou? As outras esto por aqui com vocé é, se vocé duvidar, papai te dd uma surra de correia! SILENE (comegando a chorar) — Eu sei que vocé gosta de mim, eu sei, nunca neguei! AURORA Diz: e'vocé responde, direitinho, a tudo que eu perguntar? SILENE Respondo. AURORA O nome déle. SILENE (novamente de pé atrés) — O nome? “(Silene levanta-se ¢ recua.) SILENE Mas 0 nome por qué? AURORA Légicol! 192 SILENE (torcendo e destorcendo as mos) — Se éle é casado e nao pode ~ casar outra vez? Que interessa 0 nome? (parece raciocinar em voz alta) Eu digo 0 nome, sou menor, vocés vio 4 policia e ha © escandalo! Avrora (quase perdendo a paciéncia) — Tenho vontade de te dar um . tapa! SILENE (também agressiva) — Por qué é que vocés querem saber 0 nome? AURORA Sua burra, vé se entende: vocé é menor e éle tem responsabi- lidade, pronto! SILENE (lenta, imaginando mil coisas) — Faz de conta que eu digo 0 nome e vocés fariam o qué? AURORA (mais animada) — # o seguinte: eu tenho um cacho. SILENE (sem entender) — O que é cacho? AURORA Vocé é errada! (noutro tom) Quer dizer, um namorado, Tenho um namorado que no custa pra dar uma surra ou, até, liqui- dar um gajo. Isso pra éle é pinto! Siuenz (numa gradual assimilacio da ameaga)'— Vocés entio man- dariam dar uma surra no meu... AURORA (violenta) — Surra, uma conyersa! Um’ tiro! uma bala! 198 SILENE (no set assombro) — Matar? ° AURORA O cara leva um tiro sem saber como € fica por isso mesmo! SILENE (num desespéro feroz) — Bile nao tem culpa! A culpada sou eu! AURORA Abusou de vocé, uma menina, uma crianga! é um canalha! SILENE (solugando) — Nao! nao! (Fora de si, Silene agarra-se a Aurora e escorrega ao longo do seu corpo. Fica de joelhos, abracada ds pernas da irmé.) AURORA (aténita e com uma pena intolerével) — Mas que é isso? Ma- ninha, levanta! (Silene ergue-se. Com stibita energia agarra a irma.) SILENE Aurora, quem te fala nfo é mais aquela menina. Deixei de ser menina, sou mulher igual a vocés e até mais, porque estou gra- vida, gracas a Deus! (muda de tom) Quero saber de ti o se- guinte: vocé tem ésse namorado. Gosta déle? AURORA Por qué? \ SILENE Gosta? AURORA Gosto. SILENE E-amor? 2 AURORA (sofrida) — De mais, 194 SILENE (violenta) — Pois se, vocé ama, eu também amo! file nig é canalha, nao! Ble nfo queria, porque eu sou menor e fui any te insisti e quis ter o filho! que AURORA Mas te desgragou! SILENE Pelo contrario! Eu nao sou desgracada! Vocé é desgracada? AURORA (aténita) — Eu? SILENE Tao bom gostar de alguém! AURORA (explodindo em solucos) — Eu sou feliz! Ah, sou! Muito! SILENE (na sua euforia) — E eu também! Vocé nao pode ficar contra mim! (muda de tom) Mas deixa eu contar: éle é tao diferente dos outros! E tio bom que, imagina... (segura a mao da irma) A mulher déle estd doente e éle, vé sd: é éle que dd banho nela, todos os dias, com uma paciéncia! Imagina que a mulher esté pesando 32 quilos. Quer. dizer, sd osso e pele! (Batem do lado de fora.) ARLETE Vocés ‘abrem ou nao abrem? AURORA (entre dentes) — Que chateacao! (para Arlete, elevando a voz) Esta no fim! D. Aracy Acabem: com isso! AURORA Quando acabar, eu chamo! (para Silene) Mas escuta — 0 que eu nao entende, e ninguém aqui entende, € como vocé, interna, 195 SILENE st sem sair, e foi acontecer isso! Vocé conheceu o Tapaz onde? “ou ja conhecia? SILENE Nao conhecia, AURORA B do colégio? SILENE Vocé nao conta pra ninguém? AvRORA Juro! SILENE Mora perto. . AURORA Continua. SILENE Papai nao pode saber e Deus me livre! (muda de tom) Vizi- nho do colégio. O colégio da fundos para a casa déle. Ble pas- sava sempré pela calcada e, uma vez, me olhou. Também olhei e espia sé: um olhar, sabe? que me arrepiava! E uma béca que da vontade de beijar! AURORA Bonito? SILENE Lindo! Parecido, sabe com quem? Aquéle, como é mesmo o nome? Aquéle! Qual? - AURORA . SILENE Estou com uma meméria! O gangster de Lana Turner? 0 que a filha de Lana Turner matou! Stampanato, néo: Strompana- to! Apareceu 14 uma revista e eu vi o retrato. Parecidissimo, 86 vocé vendo! AURORA E vocés.se encontravam onde? 196 SILENE O colégio 14 é uma bagunca. A gente conversava no muro, que € meio baixo, O melhor vocé nao sabe: éle era o dono da tal gata. : AURORA : Que gata? SILENE Que eu matei! E, um dia, eu pulei o muro e... AURORA Mas que perigo! SILENE Fomos para o quarto da empregada, que estava de foiga. A mulher nao sai da cama; fica em cima, com uma tia surda. Agora vou-te contar uma coisa, que vocé nao vai acreditar f AURORA Conta tudo! SILENE (triunfante) — Eu pedi um filho a éle, eu! Ble nao queria, disse “nao vale a pena”, mas eu sou teimosa e, finalmente...A eulpada sou eu! (grave e adulta) E nao me arrependo! AvRroRA Que falta de juizo! SILENE Eu disse que éle € diferente dos outros, porque tem a ld- grima mais bonita, mais linda, que eu ja vil! AURORA (espantada) — Ja chorou na tua frente? SILENE (na sua felicidade irresponsdvel de menina) — Chorou, & ma- neira de dizer. Nao chorou, propriamente, # que, 14 no quar- to, éle estava-me beijando, me beijando e, de repente, come- gou a solugar, depois foi parando e virou para o lado... E, \ : Lar entio, eu quis espiar o seu olhar e vi uma. lagrima’ aqui, no cilio... a : : AURORA (aténita) — Uma ldgrima? SILENE (de névo feliz e irresponsével) — Uma lagrima sd, parada, no . cilio... AURORA > . (veemente) — Bile é tudo pra ti? @ SILENE ” (violenta) — Tudo! ° AURORA Ent&o, eu vou salvar ésse rapaz, tenho que salvar (agarra a. irm@) E chora por um élho sé? SILENE (de névo, deliciada) — E vocé sabe que quando éle passa, na calgada do colégio, as meninas dizem: “La vem o homem “ves- tido de virgem” ! Responde, que é importante: por qué “vestido de virgem”? AURORA (estupefacta) — Repete! SILENE Vestido de virgem. AURORA j I : SILENE Porque sé anda de branco, sé usa terno branco! AURORA : (no seu espanto e na’ sua dor) — Anda de branco, so de branco © chora por um Glho sé! i " SILENE | (com ‘stbita tristeza) — E s6 uma coisa me deixa meio assim: € Ge casado e, naturalmente, nao pode passar uma noite co- 198 migo, dormir uma noite comigo. Seria legal! (com angistia) Mas vocé é mais feliz porque... Naturalmente, o teu namo- rado é solteiro, vai casar contigo, claro! AURORA (taciturna) — Quem sabe? ” SILENE (ainda mais sofrida) — E passara as noites a teu lado, que étimo! (muda de tom) E, na ultima vez, fomos a um aparta- mento em Copacabana ¢... file tem um santinho de pescogo “que... a AURORA (numa explosio) — Chega. SWENE . (aténita) — Por qué? AURORA (na sua célera contida) — Ja sei de tudo! nao preciso saber mais nada! SILENE Mas eu nao te disse 0 nome déle. Vem ca! AURORA Nao interessa o nome! (Aurora encaminha-se para @ porta.) SILENE (sem entender) — Tem um apelido gozado! AURORA ‘Nao quero saber, nem de nome, nem de apelido! SILENE (aténita) — Mas eu confio em til 199 AURORA - Deixa pra 14! Escuta: yocé nao me sai do quarto, nao fala, Débora) Manda entrar! =, (antes de sair). — Um estouro! nao diz nada, Resolvo tudo, Vou 14, invento um trogo, digo que_ o homem viajou... SILENE (humilde e stplice) — Aurora, vocé € um anjo! E olha: vocé vai ser madrinha do meu filho, que eu faco questio! (Aurora sai do quarto, Passa para o sala.) “Sru” Noronwa Como é? AURORA Ja sei de tudo. : “Seu” Noronwa E quem é? AURORA Papai, quem vai tratar désse caso sou eu. Ninguém se mete e, na ocasido, eu digo, pode deixar. (Entra Débora.) Dizora (animada) — Ih Aurora! Tem um camarada te procurando! AURORA Velho ou mogo? ARLETE De branco! AURORA Bibelot! (para “seu” Noronha) Papai, e vai depender da minha conversa com o Bibelot! Tenho cada uma pra te contar! (para ARLETE (Sai Débora.) 3 AURORA Eu apresento e ja sabe: vocés caem fora, ouviu, papai? (Entra Bibelot.) nt 200 ARLETE Por aqui. BrsExor, Boas! “Seu” Nogonwa (efusivo) — Tenha a bondade, distinto! Pode entrar! AURORA (para Bibelot) — Tudo bem? BrBeLot Tudo azul! AvRORA : (apresentando) — Papai, aqui um amiguinho. . “Srv” Noronwa Olha ‘uma cadeira pra o distinto! BrsELor (para Hilda, que traz a cadeira) — Obrigado. AvRoRA (numa apresentagao geral) — Minhas irmas. (lembra-se de D. Aracy) Conhece minha mie? (Bibelot, que jé estava sentado, levanta-se e vem cumprimentar a dona da casa.) - Brsetor Minha senhora, satisfacio! D. Aracy Mas sente-se! “Seu” Noronsa Até que eu estava contando, quando o distinto chegou, uma passagem que se deu comigo, muito interessante, Hoje, foi hoje. Sou funcionaério da Camara hi 25 anos, E hoje me queimei. Me queimei e fui la, apresentar minha demisséo. E disse ao vice-presidente: “Quem tem filhas bonitas nao precisa ser con- 201 enfiaya-lhe a’ mao na 4 io, eu E ‘ . a um Pio igo 0 buraco é mais coo al 4 tinuo!” Ah, se éle me des! Porque comi; cara, com tédas as imunida embaixo! D. Aracy rea font © senhor acha que foi negécio? com 25 anos de servigo? BIBELOT ea “Seu” NoroNHA Gorda, nao da palpite! (para Bibelot) Bem, distinto, a casa é sua. Esteja 4 vontade'e... Vou ali... Com licenga. Brsevor Muito prazer. (Saem todos.) Brsevor Gorou nosso cinema! 7 AURORA Que bom! Brseror Por qué? AURORA Prefiro ficar contigo, aqui, nds dois, sozinhos, . Brsevor Nio posso. AURORA (no seu dengue de fémea) — Nem eu te pedindo? Brseror ( com sombria tristeza) — Est morrendo Quem? : ‘mona (Bibelor levanta-se, De costas para ela, num tom neutro, ape- fas: informativo, conta.) 202 BrseLor Ontem, comegou a passar mal e chamei a Assisténcia. No Pron- to Socorro, foi operada... AURORA (séfrega) Tua mulher? BrseLot (sem ouvi-la) — Operada de tilcera. (com um cigarro entre os dedos) O médico abriu a barriga e fechou no mesmo. instante. AURORA Por qué? BrBeLoT (quase com dogura) — Tudo podre por dentro. AURORA E nao operou? Brsevot Nao era tlcera. AURORA Era o qué? Brsevot Cancer. Onde esta o cinzeiro? AURORA Aqui. (Bibelot pée, 14, 0 cigarro. Senta-se) BrBeLoT (numa célera sem violéncia) — Bebia copirihos de leite. (muda de tom) Esses médicos séo umas béstas! Tratavam o cancer a leite e papinha! AURORA (numa felicidade que the custa dissimular) — Esta tio mal assim? Breevor Desenganada. : 203 AURORA a “(transfigurada de esperanga) — Quer dizer que... BrBELOT Talvez nao passe desta noite (com uma. ternura mais pi O rosto é uma caveirinha e... Vive de morfina... Tem uma ada nddega, de tanta injegdo... : (herd seatase a a pés. Repousa a cabega nos seus joelhos.) AURORA (numa alegria contida) — Vais ficar solteiro. BIBeELoT Vitivo. AurRoRA Ou vittvo. BIBELoT E nao por muito tempo. AURORA (lenta e maravilhada) — Como? Brsevor Ge bocejando) — Nao te disse que eu precisava ter sempre uma mulher em casa e outra na zona? . AUvRORA Disse! BrgELor Mais dia, menos dia, vou ter que me casar outra vez, claro! (Aurora agarra-se a éle.) i : AURORA (com apaixonada humildade) — Diz que me amal i BrseLor (divertido) — Que piada é essa? 204 AURORA (suplicante) — Te custa dizer que me amas? BrseLoT (do fundo do sew cansago) — Hoje, nao! Aurora (incisiva) — Hoje, sim! (com um principio de desespéro) Tu me amas? BrseLor (levantando-se) — Tenho que ir. AURORA (muda a violéncia em humildade) — Ainda nao! BrseLor Estou com sono, néo durmo ha duas noites e chega! AURORA (suplicante) — Senta um momento, um instantinho sd. (Bibelot senta-se. Até ao fim da cena bocejard muito.) AvRORA Meu amor, escuta: eu tenho um motivo e olha: um motivo muito sério pra te perguntar isso... Te peco téo pouco, é uma palavra, uma palavrinha e nfo custa... Diz que me ama € pronto,.é o suficiente... (baixo ¢ angustiada) Talvez certas coisas deixem de acontecer ... (mais sofrida) Até hoje, nenhum homem chegou junto de mim e disse “te amo”! Brsevor Estou com um bruto sono! AURORA (levontando-se) (na sua célera contida) — Quer dizer que vocé nao diz? . 205 BrBELOT rora, nao aporrinha ! (explodindo) — Avr ge curora se funde em sofrida humil- (E, novamente, a co dade.) AURORA Esta bem. Ent&o, vou-te fazer outra pergunta. (acariciando-o no rosto e nos cabelos) Esta responde? responde? BrBELOT Que pergunta? AURORA (tentando seduzi-lo) — Da tua opinido: vocé acha que eu da- ria, enfim que eu seria uma boa espésa, talvez? Brse.or (no seu espanto) — Espésa? . AURORA (trémula, sem saber o que dizer) — Sim, uma mulher do lar? Brsevor (com alegre ferocidade) — Eu te quero na zona! AURORA (recuarido ¢ num sépro de voz) — Cala a béca! Nao diz mais nada! (cara a care com o ser amado) Se hd um momento em que vocé n&o pode me ofender, é éste, éste agora! BrseLor Mas Aurora: olha a tua pinta! Chega, ali, no espelho! Faz favor! . AURORA (na sua firia) — Voce continua-me humilhando!? 206 Brsetor B a verdade! (dé-the uma palmada estalada) Isso aqui ainda vai-me dar muito dinheiro! (Fora de si, Aurora agarra-o pela gola do paleté.) AURORA Escuta aqui, seu cafetio! (Bibelot empurra-a, violentamente.. ) BIBELOT Fala, mas nao me encosta a mio! Te dou, ja, um bofetdo que te quebro todos os dentes! Aurora (contida e ofegante) — Mais uma pergunta, sé. Ja que eu nao sirvo pra tua espésa... Brsevor (num espanto imenso e jocundo) — Mas o qué? Vocé queria ser minha espésa? (numa exploséo) Espera 14! Brincadeira tem hora! Aurora (histdricamente) — Para de me ofender! Brsevor Esté bem. Faz a pergunta. Avrora (ainda chorando) — Bem. & o seguinte: n Be J4 que eu nio sirvo, claro, pra espésa, vocé ja escolheu a outra? Brsetor. (com certo asco) — A caveirinha ainda n&o morreu! Esta na cama! AvRoRA (com autoridade) — Responde! 207 BrBELoT : _ “+ Pois ja escolhi, pronto! AURORA Quem ¢? BrBELoT E te interessa? Kean Usgico! BrBeLoT (batendo outro cigarro) — Poe o cinzeiro aqui. -(Aurora coloca o cinzeiro a sew lado.) BrBELoT (cinico) — O que é mesmo que vocé perguntou? AURORA Debochado! (furiosa) Perguntei quem vai ser a tua nova espdsa! BrBeLorT O brotinho, o tal bréto! an AuRORA ~ (fora de si) — Porque é que com tanta mulher, tanta menina € vocé vai escolher, meu Deus! (névo tom) Eu desconfiava! Tinha certeza! BrBEvor O interessante é que quando o médico me falou “cdncer” pen- sei no bréto! AURORA Muito bem, étimo! Ela em casa e eu na zona! (com violéncia) E tu nao tens médo que meu amor se transforme em édio? (Bibelot ergue-se.) Brsevor Vou indo, que estou vesgo de sono. AURORA (mudando instanténeamente e jé envolvente) — Tira um co- chilo aqui! 208 Aeio Brsetor . qui? Avrora {siplice) — No meu quarto. BrBeLor E teu pai? AURORA * O negécio aqui mudou outra vez. Papai nao liga mais pra coisa nenhuma. Depois te explico. Vem! BrBELor (estacando e com certa dor) — Mas a caveirinha estd morrendo! Avrora Deita meia-hora, quarenta minutos. BrseLor Mas nao deixa de me‘chamar! (Caminham para o quarto, Bibelot puxa o revélver. Tira as balas.) AURORA Com médo? BrpeLotT Teu amor virou ddio, vocé pode-me fazer uma falseta... (passa-lhe @ arma, depois de embolsar as balas) Queres-me matar? mata! (Aurora apanha o revélver.) BrBELoT (num riso forgado) — Atira, anda, aqui! no corago! (Abre a camisa, na altura do peito. Aurora puxa o gatilho vd rias vézes. Bibelot arranca a camisa, Antes de se deitar beija o santinho.) BrseLoT Daqui a uma hora me chama. E me beija. 209 (Aurora beija-o. Olha a fisionomia do amante. E, entdo, sem rumor, abandona o quarto. Vat encontrar-se, na sala, com 9 p resto da familia.) AURORA — Vocé quer o homem que desgracou Maninha? o (ofegante) um élho sé! quer? homem que chora por “Seu” Noronna Quero! wo. (“Seu” Noronha arranca o punhal, no instinto da vinganca,) AURORA Est& no meu quarto! : “Seu” Noronna Mas quem é? AURORA Bibelot. Dorme na minha.cama. Vai. (“Seu” Noronha avanga.) AuRORA (para as outras) — Vamos. D. Aracy (para uma delas) — Nao faz barulho. (Tédas seguem o chefe da familia, 'Entram no quarto. Por um momento, “seu” Noronha olha o rapaz adormecido. Ergue o punhal eo crava, até 0 cabo, no coragéo do Bibelot. Este “dé um arranco, um uivo estrangulado. Depois, tomba. Arqueja na ‘sua dgonia, Aurora cai de joelhos. ) AURORA (num fundo-gemido) — Mew amor, perdoa meu ddio! (Arlete adianta-se) ARLETE (sofrega) — Quero ver a lagrima da morte! 210 Dézora Morreu! (Arlete segura o rosto do rapaz.) ARLETE (no seu assombro) — Mas esta chorando pelos dois olhos! (na sua histeria) Sao duas lagrimas! Hiipa (histérica também) — Papai! Nao é o homem que chora por um dlho sé! ARLETE (crescendo para o pat) — Assassino! (As filhas avangam para o pai, que recua.) “Seu” Noronwa (j&é apertado pelo médo) — Mas éle merecia morrer, porque prostituiu Silene! ARLETE (histérica) — Mentira! Quem prostituiu Silene foi vocé! ‘ “Seu” Noronaa Juro! ARLETE (agarrando-o) — Mandou o gringo'e, depois, o médico! (para as owtras) Vocés! ougam o que eu nunca disse, o que eu escon- dia para mim mesma. (violenta para o pai) Velho! Vocé man- dou um deputado me procurar! . “Srv” Noronna (desesperado) — Nao acreditem! ARLETE O deputado me disse: “foi seu pai”... 21k “Seu” NoroONHA ' da, minhas filhas querem-me a ‘p, Aracy) — Gorda, (nun apélo para destruir! D Agacy (fora de si) — Nao me chame de Gorda! Nao quero que me da! chamem de Gorda Auer (berrando) — Responde: eras tu que mandava os velhos para tras? as outra: Dépora # verdade, papai? ARLETE Confessa, velho! — “Seu” Noronwa (apavorado) — Eu explico! : ARLETE (cega de édio) — Fala! “Seu” Noronua (ofegante) — Eu fiz’ isso porque... E vocés se prostituiam para dar a Silene um casamento de anjo... (num repente feroz) E, além disso, vocé (olha para Arlete e, depois, para as outras) ela beija mulher na béca! . : ARLETE Beijo mulher ‘na béca para me sentir menos prostituta! oe “Spu" Noronwa (novamento acobardado) — Perdao! : ARLETE (violenta) — Velho! Prostituiste tuas filhas e nao choras? nao chora por nés e por ti? Chora, velho! “Srv” Noronga Estou chorando! 212 ARLETE (apertando o rosto do pai entre as maos) — Deixa eu ver tua lagrima... (lenta ¢@ morovilhada) Uma lagrima, uma inica lagrima.., (num berro triunfante) Velho! Vocé é 0 deménio que chora por um dlho s6! Da o punhal, velho! ésse punhal! da! (Arlete toma-lhe o punhal. As outras.agarram o velho.) ARLETE (feroz, erguendo o punhal) — O punhal no olhar da lagrima! Hitpa (berrando) — Larguem o meu pai! Assassinas! (E, siibito, Hilda cai em transe meditinico. Recebe o primo Alipio.) HItpa (com voz de homem) — Mata, sim, mata velho safado! Mata ¢ enterra o velho e a légrima no quintal! Velho safado! FIM DO TERCEIRO.E ULTIMO ATO

Você também pode gostar