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Pe f * Se H478e Helman, Cecil G, Cultura, sade e doenga / Cecil G. Helman ; tradugio Ane Rose Bolner. - 5. ed. — Porto Alegre : Artmed, 2009, 432 p. ; 28 cm. ISBN 978-85-363-1795.3, 1, Medicina — Antropologia. 1. Titulo, cou 611/618:572 Catalogacio na publicaclo: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 N. maioria das sociedades, as pessoas que sofrem de desconforto fisico ou emocional tém diversas for- mas de ajudar a si mesmas ou de procurar ajuda de utras pessoas. Elas podem, por exemplo, decidir descancar ou tomar um remédio caseiro, pedir con. selhos a um amigo, parente ou vizinho, consultar um Paroco local, curandeiro ou “pessoa sabia’, ou con- sultar um médico, desde que haja algum disponivel. Blas podem seguir todas essas etapas ou talvez so- mente uma ou duas delas, podendo segui-las em qual- quer ordem. Quanto maior e mais complexa a socie- dade em que a pessoa vive, mais dessas opg6es tera. éuticas provavelmente estardo disponiveis, desde ue o individuo possa pagar por elas. Assim, as soci dades urbanizadas modernas, ocidentais ou nfo, sio mais propensas a exibir pluralismo nos cuidados de satide. Dentro dessas sociedades, hé muitas pessoas ou individuos oferecendo ao paciente seu proprio modo particular de explicar, diagnosticar e tratar a ma satide. Embora essas formas terapéuticas coexis- tam, elas freqiientemente baseiam-se em premissas bastante diferentes e podem mesmo originar-se de culturas diferentes, como a medicina ocidental na China ou a acupuntura chinesa no mundo ocidental moderno. Para a pessoa doente, porém, a origem des- Ses tratamentos é menos importante do que sua ef cia no alivio do sofrimento. Sone PLURALISMO NOS CUIDADOS DE SAUDE: ASPECTOS SOCIAIS E CULTURAIS Os antropélogos tém destacado que o sistema de ‘cuidados de satide de qualquer sociedade no pode ser estudado isoladamente dos outros aspectos dessa socie- dade, em especial sua organizacao social, religiosa, po- litica e econdmica. Ele esté entrelacado nelas e bascia- se nas mesmas presungGes, valores e visio de mundo, Landy! observa que um sistema de cuidados de satide Cuidado e cura: os setores OSE CET ee TT tem dois aspectos inter-relacionados: um aspecto cul tural, que inclui certos conceitos bésicos, teorias, priti- as normativas ¢ modos compantlhados de percepeao, © um aspecto social, incluindo sua organizacao em cer. tos papéis especificados (como paciente e médico) e regras que regem os relacionamentos entre esses pa- péis em situagées especiais (como em hospitais ou con. sultérios médicos). Na maioria das sociedades, uma forma de cuidados de satide, como a medicina cientif- ca no Ocidente, é elevada acima das outras formas, 0s seus aspectos culturais e sociais so mantidos por lei, Além disso, nesse sistema oficial de cuidados de satide, que inclui as profissdes de medicina e de enfer. ‘magem, geralmente hd sistemas alternativos menores como homeopatia, herbalismo e cura espiritual em mui tos paises ocidentais, que podem ser chamados de ssubculeuras de euidados de satide. Cada uma tem seu proprio modo de explicar e tratar a mé satide, ¢ os agentes de cura em cada grupo sio organizados em associagGes profissionais, com regras de admissio, cd dligos de conduta e modos de se relacionar com o$ pa. lentes. As subculturas de cuidados de satide podem ser nativas da sociedade ou podem ser importadas de outros locais; em muitos casos, os imigrantes que che. gam a uma sociedade com freqiiéncia trazem seus agen- {es de cura populares tradicionais junto com eles para lidar com sua mé satide de uma forma culturalmente familiar. No Reino Unido, exemplos desses agentes de cura slo os hakims muculmanos ou vaids hindus, algu mas vezes consultados pelos imigrantes do subconti- nente indiano. Ao examinar o pluralismo dos cuidados de satide, onde quer que ocorra, é importante exami- nar 08 aspectos cultural e social dos tipos de cuidados de satide disponiveis para o paciente individual, Neste capitulo, os sistemas pluralistas de cuida. dos de satide das sociedades industrializadas com. plexas so examinados a fim de ilustrar: 1. a variedade de opgées terapéuticas disponiveis nessas sociedades; Cecil G. Helman 2. como e por que escolhas so feitas entre as varias opcées. © pluralismo dos cuidados de satide no Reino Unido também é discutido, bem como suas implica- ‘goes para a oferta de assisténcia A satide. OS TRES SETORES DOS CUIDADOS DE SAUDE Kleinman? sugeriu que, a0 examinar qualquer sociedade complexa, pode-se identificar trés setores sobrepostos e interconectados de cuidados de satid ‘osetor informal, o setor popular (folk) e 0 setor profis- sional. Cada setor tem seus préptios modos de expli- ‘ar e tratar a md satide, definir quem é a pessoa que cura e quem é 0 paciente e especificar como o agente de cura e 0 paciente devem interagir em seu encon: tro terapéutico. 0 setor informal Este € o dominio leigo, nao-profissional, nio- cespecialista da sociedade, em que a mé satide é reco- nhecida pela primeira vez ¢ definida e no qual as ati- vidades de cuidados de satide so iniciadas. Ele in- clui todas as opcbes terapéuticas que as pessoas usam, sem qualquer pagamento € sem consultas a curan- deiros ou médicos. Entre essas opcdes, esto: + autotratamento ou automedicacao; + conselhos ou tratamento dados por parentes, ami- ‘805, vizinhos ou colegas de trabalho; + atividades de cura e cuidado miituo em uma igre- Ja, culto ou grupo de auto-ajuda; * ‘consulta com outra pessoa leiga que possui expe- rigncia especifica com um distirbio em particular ‘ou com o tratamento de um estado fisico. esse setor, a principal arena dos cuidados de satide é a familia; 6 aqui que muitos dos casos de ma satide si reconhecidos e entao tratados. Ele & o lo- cal real dos cuidados primérios de satide em qual- quer sociedade. Na familia, como Chrisman’ salien- ta, 0s principais provedores de cuidados de satide sio as mulheres, geralmente as maes ou avés, que diag- nosticam as doencas mais comuns e as tratam com os materiais dispontveis. Estima-se que cerca de 70 a ‘90% dos cuidados de satide ocorrem nesse setor, tan- to em sociedades ocidentais quanto ndo-ocidentais.* Na maioria das sociedades, as mulheres sao as guardidis de uma ampla variedade de remédios tradi- ionais e formas de tratar a mé satide, passadas atra- vés de muitas geragées, de mée para filha. Na Ama- z6nia brasileira, por exemplo, somente as mulheres detém o conhecimento especializado de todas as plan- tas e ervas locais e saber como usé-las para tratar suas familias e a si mesmas.* ‘As pessoas que adoecem tipicamente seguem uma “hierarquia de recursos”, variando da autome- dicagio A consulta com outras pessoas. O autotrata- mento baseia-se em crencas leigas sobre estrutura e fungio do corpo e origem e natureza da mA satide. Ele inclui uma variedade de substancias como remé- dios comerciais, remédios populares tradicionais ou “conselhos de comadre”, bem como alteragdes na ali- mentacéo ou no comportamento. O alimento pode set usado como uma forma de medicamento (ver Capitulo 3) nas doencas populares: por exemplo, em casos de “sangue grosso” no sul dos Estados Unidos, onde certos alimentos sdo usados para reduzir 0 vo- lume excessivo de sangue, que supostamente causa- tia a condigio, ou em partes da América Latina e da Asia, onde certos alimentos séo usados para contra- balancar as doencas “quentes” ou “frias” e para res- taurar 0 equilfbrio corporal. Tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos as vitaminas autoprescri- tas so comumente usadas para restaurar a satide quando a pessoa se “sente para baixo”. As alteragées no comportamento que acompanham as diferentes formas de mé satide podem variar de rezas especiais, Tituais, confissao, jejum, uso de talismas e amuletos, até 0 repouso em uma cama quente para uma gripe ou um resfriado, setor informal geralmente inclui um conjunto de crencas sobte a manutenctio da satide. Estas costu- ‘mam ser uma série de orientagSes, especificas para cada grupo cultural, sobre 0 comportamento “corre- to” para evitar a md satide em si mesmo e nos outros. Elas incluem crengas sobre 0 modo saudavel de co- mer, beber, dormir, vestr-se, trabalhar, rezar e sobre a forma geral de conduzir a propria vida. Elas também ineluem crengas sobre o funcionamento “saudavel” do corpo: com que freqiiéncia se deve defecar, por exem- plo, ¢ em que hordrio.¢ Em algumas sociedades, a sat de também é mantida pelo uso de talismas, amuletos e medalhas religiosas para afastar o azar, inclusive doengas inesperadas, e para atrair sorte e satide. ‘Amaioria dos cuidados de satide nesse setor ocor- re entte pessoas jéligadas umas as outras por lagos de parentesco, amizade ou vizinhanga, ou por serem ‘membros de organizacées profissionais ou religiosas. Isso significa que tanto o paciente como o agente de cura compartilham presungées semelhantes sobre sati- de e doenca e que incompreensdes entre os dois sé0 comparativamente raras.’ O setor é constituido por uma série de relacionamentos de cura informais e gra- tuitos, de duragdo varidvel, que ocorrem dentro da rede social do préprio paciente, particularmente a familia. Nesses encontros terapéuticos néo hé regras fixas re- ¢gendo o comportamento ou a situagio; posteriormente, 6s papéis podem ser invertidos, com o paciente de hoje tomando-se a pessoa que cura amanha. Ha certos in- dividuos, porém, que tendem a agir como fonte de aconselhamento em satide mais freatientemente do ue outros. Entre eles esto: 1. Aqueles com longa experiéncia em um tipo de doenga ou de tratamento. 2, Aqueles com longa experiéncia em certos eventos de vida (como as mulheres que criaram ou ama- ‘mentaram diversas criancas). 3. As pessoas que exercem profissdes paramédicas (como enfermeiros, farmacuticos, fisioterapeu- tas ou recepcionistas de consultérios médicos) que so consultadas informalmente sobre problemas de satide. 4. Os cénjuges de médicos, que compartilham parte de sua experiéncia, quando néo o prdprio treina- mento. 5. Os individuos que exercem profissdes como cabe- leireiros, vendedores ow mesmo funcionérios de bancos, que interagem freqiientemente com o pii- blico e algumas vezes agem como confessores lei- 0s ou psicoterapeutas. 6. Os organizadores de grupos de auto-ajuda. 7. 5 membros ou oficiantes de certas seitas de cura ou de igrejas. ‘Todas essas pessoas podem ser consideradas por seus amigos ou familiares como fontes de aconselha- ‘mento e assisténcia em relagdo aos assuntos de sati- de. Suas credenciais séo principalmente sua prépria experiéncia, muito mais do que sua educacéo, seu status social ou seus poderes ocultos especiais. Uma ‘mulher que passou por diversas gestacdes, por exem- plo, pode dar conselhos informais a uma jovem ges- tante, relatando que sintomas esperar e como lidar com eles. Da mesma forma, uma pessoa que possui longa experiéncia com determinado remédio pode “emptesté-lo” a um amigo com sintomas parecidos. As experiéncias de mé satide dos individuos al- ‘gums vezes so compartilhadas dentro de um grupo de auto-ajuda, que pode agir como um repositério do ‘conhecimento sobre um problema ou experiéncia par- ticular, a ser usado para o beneficio tanto de outros membros quanto para 0 restante da sociedade. Os grupos de auto-ajuda podem trazer muitos outros be- neficios para os membros, como compartilhar conse- Ihos sobre estilo de vida ou estratégias de manejo, ou funcionar como um reftigio para individuos isola- dos, especialmente aqueles que sofrem de condigées estigmatizantes como obesidade ou alcoolismo. Em Cultura, saide e doenga paises industrializados, os grupos de auto-ajuda vam tornando-se uma parte cada vez mais importante do setor informal. Suas raizes situam-se originalmente nos Estados Unidos, com a fundago dos Alcoslicos ‘Anénimos (AA) em 1936.’ Atualmente, hé cerca de 500.000 grupos de auto-ajuda nos Estados Unidos, e cerca de 18% da populacio norte-americana ja parti- cipou de um deles.’ Na Alemanha, entre 2 e 8% da populacio pertencem a um grupo de auto-ajuda, en- quanto na Escandindvia este mimero é menor, entre 0,2 e 0,7%.7 Um dos maiores e mais antigos grupos internacionais de auto-ajuda é 0 AA, que possui mais de 100.000 grupos em 150 pafses e mais de 2 mi- Ihdes de membros.* As experiéncias de mé satide e softimento tam- bém podem ser compartilhadas dentro de seitas de cura, igrejas ou outro grupo religioso. Por exemplo, McGuire® descreveu alguns dos grupos de cura hoje encontrados na classe média suburbana dos Estados Unidos. Estes incluem movimentos como Christian Science, Unity School of Christianity, varios outros ‘grupos cristos (como os catélicos carismaticos € os protestantes pentecostais), grupos do tipo Human Potential (como Cientologia, EST, Progoff Process e Cornucopia), meditacdo oriental e grupos de ioga (que baseiam-se no budismo zen ou tibetano, no jai- nismo ou no hinduismo) e os muitos tipos de igrejas espiritualistas e “circulos de cura", que praticam a cura oculta ou espiritual para seus membros. Muitos deles baseiam-se no movimento “New Age”, que en- fatiza 0 desenvolvimento pessoal, 0 autocuidado e uma abordagem holistica aos cuidados de saiide, abrangendo mente, corpo e alma. Além disso, em so- ciedades ndo-ocidentais, os grupos de auto-ajuda freqiientemente tém uma base religiosa. Os cultos de “possessio espiritual”, por exemplo, so comuns em partes da Africa, sobretudo entre mulheres. Nessas seitas, as mulheres que foram “possuidas” e que adoe- ceram por causa de um espirito em particular formam © que Turner" chama de “comunidade de sofrimen- +0”, cujos membros diagnosticam e tratam ritualmente utras pessoas no resto da sociedade que sofrem de ppossessio pelo mesmo espirito maligno. Lewis"? ve alguns desses cultos de possessao espiritual, como a seita bori dos Hausa, no norte da Nigéria, essencial- mente como movimentos de protesto das mulheres contra suas desvantagens sociais. A ligacdo a seita traz prestigio, poder de cura e atencio especial por parte dos homens, que as enchem de presentes para apaziguar os espiritos responsaveis pela possessiio. ‘Todos os aspectos do setor informal (e também dos outros dois setores) podem, algumas vezes, ter efeitos negativos sobre a satide mental e fisica das pessoas. A familia, por exemplo, pode facilitar ou impedir os cuidados de satide. Em Taiwan, de acordo cae Cecil G. Helman com Kleinman," a reagéo normal da familia a um membro doente é tentar conté-lo, assim como sua doenga ¢ os problemas sociais que ela gera dentro do circulo familiar, em vez de compartilhé-la com alguém extemo ao grupo, como um médico, Em geral, as pessoas doentes movem-se livre- mente entre 0 setor informal e 0s outros dois setores, muitas vezes usando todos os trés de uma vez, sobre- tudo quando o tratamento em um setor falha em ali- vviar 0 desconforto fisico ou emocional. 0 setor popular ( folk) Neste setor, que é particularmente grande em sociedades ndo-industrializadas, certos individuos es- Pecializam-se em formas de cura que séo sagradas ou seculares, ott uma mistura das duas, Esses curan- deiros nao pertencem ao sistema médico oficial e ocu- pam uma posicéo intermediéria entre os setores in- formal e profissional. Existe uma ampla variagio nos tipos de curandeiro popular em qualquer sociedade, de especialistas puramente seculares e técnicos, como quiropraticos, parteiras, pessoas que extraem dentes, ou herbalistas, até aqueles que realizam curas espiti- tuais, clarividentes e xamas. Os curandeitos popula- res compéem um grupo heterogéneo, com muita va- riagéo individual em termos de estilo e aspecto, mas algumas vezes estéo organizados em associagdes com regras de entrada, eédigos de conduta e troca de in- formacées. Amaioria das comunidades inclui uma mistura de curandeiros populares sagrados e seculares. Por exemplo, em seu estudo no final da década de 1970 sobre curandeiros afro-americanos nas periferias de baixa renda nos Estados Unidos, Snow" descreveu ‘“‘médicos de ervas”, “médicos de raiz”, espiritualista, -magos, houngans ou mambos de vodu, sacerdotes de cura e curandeitos pela f&, profetas da vizinhanca, “avozinhas” e vendedores de ervas mégicas, raizes e medicamentos comerciais (Figura 4.1). Os curande- r0s espirituais, que operam fora dos templos, das igre- Jas ou das “lojas de velas”, so particularmente co- uns e lidam com doencas supostamente causadas por feitigaria ou punigéo divina. A maioria das doen- as seculares sio tratadas com automedicapio. ov pelas “avés" ou médicos herbalistas da vizinhanga. ‘Na prética, porém, hd alguma sobreposigo entre suas abordagens e técnicas. Em outra comunidade, os Zulus da Africa do Sul, também hé uma sobreposicao entre os curandeiros sagrados e seculares. Enquanto a adivinhacdo sagrada é realizada pelas mulheres isangomas, 0 tratamento com remédios herbais afti- anos ¢ feito pelos homens inyangas; ambos, porém, coletam informagées sobre a origem social da vit ma, bem como detalhes sobre sua doenca, antes de: fazer um diagnéstico."> Um exemplo de um curandeiro puramente se- cular é 0 saki, ou trabalhador da satide, como descri- to pelos Underwood's em Raymah, Reptiblica Arabe do lémen. Esses curandeiros surgiram no Iémen nos: lltimos anos, e sua prética consiste prineipalmente em aplicar injegdes de varias drogas ocidentais. Eles possuem pouco treinamento (em geral, um contato breve com um profissional de satide; em um caso, um més de trabalho como faxineiro de um hospital) e habilidade diagnéstica limitada. O mesmo pode ser dito de suas habilidades de aconselhamento ou psi coldgicas. Para os habitantes de Raymah, porém, 0 sahi pratica 0 que é considerado a quintesséncia da ‘medicina ocidental: “o tratamento da doenca por in- Jecées". A popularidade crescente das injegdes foi descrita em muitos paises do Terceiro Mundo,"™"* assim como a proliferacao de injecionistas nio-trei- nados (também conhecidos como médicos de inje- io, homens da agulha ou shot givers) como 0 sahi. Figura 4.2 Una lojavendondo mut, ou remécios aficanos trdicio nals, e medicamentos folciércos, em Joanesburge, Attica do Sul Outros exemplos dessa tendéncia foram descritos por Kimani,!? no Quénia. L4, os “médicos do mato” ad- ministram remédios e injegdes, e os “meninos-mé: cos das ruas e paradas de énibus” repassam cépsulas de antibidticos adquiridas no mercado negro. ‘A maioria dos curandeiros populares compar- titha os valores culturais bésicos e a viséo de mun- do das comunidades em que vivem, inclusive as erengas sobre origem, significado e tratamento da ma satide, Em sociedades nas quais a mé satide € outras formas de infortiinio sao atribufdas as cau sas sociais (feitigaria ou “mau-olhado”) ou sobre- naturais (deuses, espiritos, fantasmas ancestrais ou destino), os curandeiros sagrados sao particular- mente comuns. Sua abordagem em geral €holistica, lidando com todas os aspectos da vida do paciente, inclusive os relacionamentos com outras pessoas, com o ambiente natural e com forgas sobrenatu- rais, bem como com quaisquer sintomas fisicos ou emocionais. Em muitas sociedades nao-ocidentais, todos esses aspectos da vida sao parte da definicao de satide, que € vista como um equilibrio entre as pessoas e seu ambiente social, natural e sobrenatu- ral. Um distirbio de qualquer um desses aspectos (como um comportamento imoral, conflitos famili ares ou falha em observar as praticas religiosas) pode resultar em sintomas fisicos ou sofrimento emocional e exige os servigos de um curandeiro sagrado. Os curandeiros desse tipo, quando confron- tados com a mé satide, freqiientemente perguntam sobre o comportamento do paciente antes da doen- ae sobre quaisquer conflitos com outras pessoas. Em uma sociedade de pequena escala, o curandei- ro também pode ter conhecimento em primeira mao das dificuldades de uma familia por meio de fofo- cas locais, 0 que pode ser ttil para 0 diagnéstico. Além de colher informagSes sobre a histéria recen- te do paciente e sua origem social, o curandeiro pode empregar um ritual de adivinhagGo. Esse ritu- al tem muitas formas em todo o mundo, incluin- do 0 uso de cartas, ossos, palha, conchas, gravetos, pedras especiais e folhas de cha, cujo arranjo é cui- dadosamente examinado pelo curandeiro para evi- déncias de qualquer padrdo subjacente. Também hd exames das entranhas ou do figado de certos ani- mais ou aves, interpretagio de sonhos ou visdes, ou consulta direta com espiritos, ou seres sobrenatu- rais mediante transe. Em cada caso, a adivinhagéo visa revelar a causa sobrenatural da doenga (como feiticaria ou retribuicéo divina) pelo uso de técni- cas sobrenaturais. A isangoma zulu, por exemplo, é consultada pelos parentes de uma pessoa doente, que fica em casa. Ela faz 0 diagnéstico entrando em transe e se comunicando com os espiritos, que Ihe revelam a causa e o tratamento da doenca.!> Gultura, sade e doenga Oxama Outra forma de adivinho é 0 xamé, encontrado em diferentes formas em muitas culturas. O xamé é um curandeiro que faz a mediagio entre 0s mundos mate- rial e espiritual. Lewis" define-o como “uma pessoa de qualquer sexo que dominou os espiritos e pode intro- duzi-los & vontade em seu préprio corpo”; a adivinha- «Go ocorre em uma sesso, na qual o curandeiro incor- ppora os espiritos e, por meio deles, diagnostica a doen- ‘ga prescreve o tratamento. Como o xama “dominou” esses espiritos que penetraram nele, ele pode ento usd- Jos para ajudar a diagnosticar pessoas possufdas por eles, ‘ou por espititos malevolentes parecidos. Em alguns ca- 0s, 0 Xam somente entra em transe com o auilio de rogas alucindgenas poderosas (ver Capitulo 8). Esta € outras formas de adivinhacio algumas vezes ocorrem na presenea de familiares, amigos e outros contatos so- ciais do paciente. Nesta situagio ptiblica, o adivinho visa trazer 8 tona os contflitos dentro de uma comunidade ~ que podem ter levado a feitigaria ou bruncaria entre as pessoas —e tenta resolvé-los de um modo ritual. Os cu- randeiros sagrados também fornecem explicagéese tra- tamentos para sentimentos subjetivos de culpa, vergo- nha ou raiva, prescrevendo, por exemplo, tezas, peni- téncias ou a resolugio de problemas interpessoais. Eles também podem prescrever tratamentos fisicos ou re- ‘médios simultaneamente. ‘A adivinhacéo em transe é comum em socieda- des nao-industrializadas, mas esté tornando-se cada vez mais comum no Ocidente entre os médiuns, cla- rividentes, “canalizadores”, “neoxamas” e membros de certas igrejas carisméticas de cura. Mesmo nas re- sides menos desenvolvidas, os curandeiros xaménicos que praticam a adivinhacao em transe e a cura sio cada vez mais encontrados em areas urbanas e ru- rais, como descrito no estudo de caso da Sibéria, > Estudo de caso: cee ee mec ae emer de, na Repiblica Buryat eT en ae tere ee ey ee eee eee ere See ry ce eee oes ee an Cel G. Helman eed Seer iat ee ear a eee eet es one ate teats Seer es ee ere rean ere Seen See ee ears oer eure eee Prcuiry ee eat ea een aceon pear pore ees ss quase rest? aren os as esto ajudan: \daptar & sua relidade ur ae error ee os xamas eee ernie menos paroquial ¢ mais ecléctica de “divin Con eee eS ae eaten Vantagens e desvantagens da cura popular (folk) Para aqueles que a utilizam, a cura popular ofe- rece diversas vantagens em relacio & medicina cien- tifica moderna. Uma delas é o freqiiente envolvimento da familia no diagnéstico e no tratamento. Por exem- plo, como Martin’? destacou, para os indios norte- americanos, tanto o paciente quanto sua familia tém a responsabilidade de patticipar dos rituais de cura da doenga dele. O foco da atencao nao é somente 0 paciente (como na medicina ocidental), mas também a reacao da familia e dos outros & doenca. O curan- deiro em si geralmente é circundado por auxiliares, que tomam parte na ceriménia, dao explicacées ao aciente e sua familia e respondem perguntas. De uma perspectiva moderna, este tipo de curandeiro nativo norte-americano com auxiliares, junto com a familia do paciente, fornece uma equipe efetiva de cuidados primérios de satide, especialmente ao lidar com problemas psicossociais. Fabrega e Silver exa- minaram as vantagens, para o paciente, de outro tipo de curandeiro popular, 0 hill de Zinacantan, México, em comparago com os médicos ocidentais. Em par- ticular, existe uma visio de mundo compartilhada, intimidade, calor humano, informalidade e uso da linguagem do dia-a-dia nas consultas, e a familia e outros membros da comunidade so envolvidos no tratamento. Além disso, o hilo! é uma figura crucial na comunidade; acredita-se que ele age em beneficio do paciente e da comunidade, bem como dos deuses. Ele pode influenciar a sociedade em um nivel maior, particularmente os relacionamentos sociais do pa ciente, podendo influenciar o seu comportamento fu- turo, destacando a influéncia das agdes passadas so- bre a sua doenca atual. Finalmente, sua cura ocorre em um ambiente familiar, como o lar ou um santué- io religioso. Uma vez que os curandeiros populares como o lol, articulam e reforgam os valores cultu- rais das comunidades onde vivem, eles tém vanta- _gens sobre os médicos ocidentais, que esto freqiien- temente separados de seus pacientes por classe so- cial, posigéo econdmica, género, educagio espe- cializada e, algumas vezes, bagagem cultural. Em par- ticular, esses curandeitos so mais capazes de definir € tratar a perturbagdo - isto é, as dimens6es sociais, psicoldgicas, morais e espirituais associadas com a ma satide, assim como com outras formas de inforti- nio (ver Capitulo 5). Ao contrério do mundo ociden- tal, onde diferentes tipos de infortiinio so maneja- dos por diferentes tipos de agentes de cura ~ 08 pro- blemas fisicos por médicos, os problemas psicolégi- cos por psiquiatras ou terapeutas, os problemas so- ciais por assistentes sociais e os problemas espirituais por ministros religiosos ~ este tipo de agente de cura aborda todas essas dimensées simultaneamente. E ‘ais, eles muitas vezes as retinem em uma tinica ex- plicacdo causal. Eles também fornecem formas cul- turalmente familiares de explicar a causa e o momen- to de ocorréncia do infortinio e sua relagdo com 0 mundo social e sobrenatural Em diversos pafses hoje em dia, esses curan. deiros populares sto muitas vezes usados paralela- ‘mente ao tratamento médico, mesmo quando os dois baseiam-se em premissas muito diferentes. No Mé- xico, por exemplo, Finkler’® descreveu as diferen- ‘cas € semelhancas entre os médicos e os curandei- ros espirituais (que curam com o auxilio de espiti- tos que os possuem). A autora mostra que as pes- soas usam os dois sistemas, porém com fins diferen- tes. Como em muitas outras culturas, os médicos tendem a dizer a seus pacientes o que aconteceu, enquanto os curandeiros dizem a eles por que acon- teceu.. Os curandeiros explicam a ma satide em ter- ‘mos culturais mais amplos, mais familiares, envol- vendo os aspectos sociais, psicolégicos ¢ espirituais da vida de seus pacientes, enquanto os médicos se concentram principalmente nas doencas fisicas e em seus patégenos ou comportamentos causais. Isso ocorre apesar do fato de os médicos gastarem duas vezes mais tempo (cerca de 20 minutos) nas pri- meiras consultas em comparagao com os curandei- ros. Porém, hé algumas semelhancas entre as duas abordagens. Ambas possuem uma visio dualista do paciente, os médicos usando uma abordagem de mente € corpo € 0s curandeios, de espirito e corpo. ‘Ambos tentam “olhar” para dentro do corpo do pa- ciente, de modo a diagnosticar a mé satide, os mé- dicos com ajuda da tecnologia e os curandeiros por meio de espiritos que os possuem e auxiliam. Seus cenarios terapéuticos, porém, sao muito diferentes. A cura do Espiritualismo ocorre em um templo, na presenca da familia e de outros membros da comu- nidade, enquanto as interagdes médico-paciente ocorrem no isolamento estéril de um pequeno cub/- culo, ocasionalmente na presenca de estranhos como enfermeiros ou estudantes de medicina. Finkler tam- ém nota que, a0 contrério dos médicos, os curan- deiros espirituais raramente dao a seus pacientes um diagnéstico especifico; em vez disso, fornecem uma tranqiiilizagdo de que os espiritos sabem tudo sobre sua aflicdo. Para muitos pacientes, essa explicagao satisfatéria pois, em algum nivel, ela atende suas préprias expectativas e experiéncia emocional sub- jetiva de mé satide. Enquanto os médicos tendem a colocar a mé satide do paciente em uma moldura temporal limitada e localizé-la em uma determina- da parte do corpo, os espiritos oniscientes que auxi- liam o curandeiro “transcendem o tempo e 0 espa- 0, do mesmo modo que a doenca do paciente trans- cende as dimensées temporal e espacial”. ‘Assim como outras formas de cuidados de sai- de, a medicina popular tem suas desvantagens e seus riscos. Por exemplo, os curandeiros populares podem ignorar, fazer um diagnéstico errado ou tratar mal os sinais de uma doenca fisica grave ou de um distirbio ‘mental, como confundir psicose, epilepsia ou tumor cerebral com uma “possessao espiritual”. Eles podem usar formas de tratamento como exorcismos, concoc- bes herbais fortes, dietas especiais ou formas extre- mas de reza ou jejum que podem causar lesio ou psicolégicaa seus clientes. Alguns podem usar agu- Ihas ow instrumentos ndo-esterilizados em circunci- bes, escarificagées rituais, acupuntura ou outros tra tamentos, levando & disseminacio de infecgdes com virus da imunodeficiéncia humana (HIV) ou da he- patite B. Tanto a circuncisdio masculina quanto a fe- minina, realizadas por praticantes populares, algu- mas vezes podem levar a uma grande hemorragia, Cultura, sade e doenga especialmente naqueles com tendéncia a sangramen- to, bem como a infecgées locais ou até septicemia. ‘Algumas parteiras tradicionais podem usar instrumen- tos ndo-esterilizados nos partos ou aconselhar as mes a descartar seu colostro ou colocar pedacos de excrementos no coto umbilical do bebé apés 0 nasci- mento — levando ao tétano neonatal (ver Capitulo 6). Alguns curandeiros populares também podem usar acredulidade e a vulnerabilidade de seus clientes para exploré-los financeira, emocional ou mesmo sexual- ‘mente. Todos esses exemplos significam que os cu- randeiros populares devem ser vistos de modo realis- ta, sem romantizé-los exageradamente. Para as pes- soas que 0s consultam, eles com certeza possuem uitas vantagens em comparacao com os médicos, ‘mas também podem ter desvantagens e riscos. TreInamento dos curandeiros populares Em geral, os curandeiros populares possuem pouco treinamento formal em relacdo as faculdades de medicina ocidentais. As habilidades geralmente séio adquiridas pelo aprendizado com um curandeiro mais velho, pela experiéncia com certas técnicas ou condigSes, ou pela possessfio de um poder de cura inato ou adquirido. As pessoas podem tornar-se cu- randeiros populares de diversos modos: 1, Heranga — ter nascido em uma “familia de curan- deiros”, algumas vezes de muitas geracées. 2, Posicio dentro da familia, como o “sétimo filho de um sétimo filho” na Irlanda. 3. Sinais e pressdgios no nascimento, como uma mar- ca de nascenga ou “chorar no titero” ou ter nasci- do com a membrana amnidtica envolvendo o ros- to (0 “caul” na Escécia). 4, Revelagio — a descoberta de que alguém “tem 0 dom”, que pode ocorrer como uma experiéncia emocional intensa durante uma doenga, um so- nho ou um transe, Em casos extremos, como Lewis" destaca, a vocacio pode ser anunciada por “um estado inicialmente descontrolado de posses- séo: uma experiéncia traumética associada a um comportamento de éxtase ou de histeria”. 5. Aprendizado com outro curandeiro — um padréo comum em todas as partes do mundo, embora 0 rocesso possa durar muitos anos. 6. Aquisicio de uma habilidade especifica sem auxt- lio de outros, como o sahi do Iémen, 05 médicos do mato (bush doctors) quenianos e outros tipos de injecionistas. Os aspirantes a curandeiros po- pulares modernos podem hoje adquitir seus co- nhecimentos de cura em livros, cursos por corres- pondéncia ou mesmo internet. Cecil, Helman Na pratica, essas formas de cura popular ten- dem a se sobrepor; por exemplo, alguém nascido em uma “familia de curandeiros” e com certos sinais e pressigios a0 nascimento ainda pode precisar refi- nar sew “dom” por meio de um longo aprendizado com um curandeiro mais velho, Em alguns casos, os curandeiros também podem ser qualificados como enfermeiros ou outros profissionais de satide. Um estudo” estimou, por exemplo, que na Africa do Sul 4quase 1% dos enfermeiros afticanos também traba- Tha em meio turno como curandeiro tradicional. Embora a maioria dos curandeiros populares tra- balhe individualmente, existem redes informais ou as- sociagées de curandeiros, que propiciam a troca de ‘técnicas e informacées e a monitoragao do comporta- mento de cada individuo. Uma dessas redes entre os adivinhos zulus ou isangomas é descrita por Ngubane.!5 Eles se retinem regularmente para compartilhar idéi- as, experiéncias e técnicas; cada adivinho tem a opor- tunidade de encontrar ex-alunos, professores ¢ apren- dizes entre os adivinhos da vizinhanga, bem como en- ‘tre aqueles que atuam em locais mais distantes. Est- ma-se que, em um periodo de trés a cinco anos, um adivinho pode fazer contato com mais de 400 colegas, adivinhos em todo o sul da Africa (embora, recente- mente, como mencionado adiante, eles tenham come- ado a formar suas préprias organizacées profissio- ais, estando sujeitos a movimentos do governo para licenciéclos e regulamenté-los). Em outras situagées, ‘como os bairros negros de baixa renda nos Estados Unidos, diversos curandeiros podem ser ministros de uma igreja espiritualista, que também atua como uma associacio de curandeitos. Nos cfrculos de cura su- burbanos descritos por MeGuire,? quase todos os par- ticipantes tém a chance de ser curandeiros e pacientes ‘em varias ocasi6es; assim, esses grupos sobrepéem 0 limite entre a cura popular e informal e fornecem um meio para a troca de informagies e experiéncias entre uum grupo de curandeiros. Porém, apesar de suas muitas vantagens, € im- portante nao ter uma visto romantica demais sobre os curandeitos populares em geral. Como todos os ou- tos prestadores de cuidados de satide, inclusive mé- dicos e enfermeiros, existem aqueles que sao incom- petentes, ignorantes, arrogantes ou gananciosos, ou que possuem uma visio muito reducionista da ma sat de e de como ela deve ser tratada. E mais, nem todos 8 curandeiros populares provém da comunidade em que trabalham nem todos esto familiarizados com seu funcionamento social interno. Algumas das técnicas {que eles usam também podem ser muito perigosas para seus pacientes. O uso de agulhas ndo-esterilizadas pe- los injecionistas, por exemplo, pode levar a abscessos ccutaneos graves, bem como & disseminacéo da hepati- te B ou da sindrome da imunodeficiéncia adquirida (AIDS). Alguns de seus remédios a base de ervas fo- ram relatados como causadores de doencas graves ou ‘mesmo morte.” Assim, é importante considerar os cu- randeiros populares de modo equilibrado e evitar tan- toa idealizagio quanto a critica excessiva, Porum lado, deve-se evitar 0 que Lucas e Barrett? denominam vi- io arcédica — ver esses curandeitos e as comunidades onde atuam como de alguma forma “naturais” holisticos, vivendo em harmonia pacifica com a natu- reza e uns com 0s outros. Todavia, por outro lado, ‘consideré-los “bérbaros” — vé-los e a suas comunida- des como de algum modo primitivos, degenerados, in- competentes e subdesenvolvidos — também & impreci- so. Na maioria dos casos de cura popular, a verdade situa-se em algum ponto entre 0s dois extremos. “Profissionalizagéo” dos curandelros populares A relagio entre 0s setores popular e profissional geralmente tem sido marcada por sentimentos miitu- 0s de desconfianca e suspeita. A maioria dos médicos tende a ver, nos curandeiros populares, trapaceiros, charlataes, feiticeiros ou farsantes, que representam uum perigo para a satide dos seus pacientes. Cada vez mais (e muitas vezes com reluténcia), porém, as autoridades médicas tém reconhecido que, apesar de seus problemas inerentes, os curandeiros populares possuem algumas vantagens Sbvias para 0 paciente e sua familia, sobretudo ao lidar com pro- bblemas psicolégicos. Em muitos paises em desenvol- vimento, os curandeiros populares tradicionais esto sendo incorporados marginalmente ao sistema mé- dico — algumas vezes contra sua vontade. A iniciativa nesse sentido geralmente parte da Organizacéio Mun- dial de Satide (OMS) ou de governos nacionais, ou algumas vezes dos prprios curandeiros. Em 1978, a OMS emitiu sua famosa declaracdo de Alma-Ata de “Satide para todos no ano 2000”, Sua principal pro- posta era a proviséo mundial de cuidados primérios abrangentes de satide, que forneceriam servicos pre- ventivos, curativos e de reabilitacdo a um custo razo- vel.” Porém, com recursos financeiros escassos, po- pulagGes crescentes e recursos médicos limitados, a tarefa era quase impossvel e recentemente tornou- se ainda mais dificil em fungao de novas doencas como a AIDS. Um resultado disso foi um olhar novo para a ‘medicina tradicional, redefinindo-a como um aliado potencial do sistema médico, e nfo como um inimi- go. Em 1978, a OMS recomendou que a medicina tradicional fosse promovida, desenvolvida e integra- da sempre que possivel com a medicina cientifica moderna,2° mas destacou a necessidade de assegu- rar respeito, reconhecimento e colaboracio entre os Praticantes dos varios sistemas envolvidos. Os recur- sos humanos que a OMS esperava recrutar incluiam herbalistas, praticantes de medicina aiurvédica, und- ni ou ioga, curandeiros tradicionais chineses como os acupunturistas e varios outros. Atencéo especial foi dedicada A selegao e ao treinamento das parteiras tradicionais,*©*2 que jé fazem o parto de cerca de dois tercos dos bebés no mundo (ver Capitulo 6). Last destaca que agora, como resultado dessas duas declaracbes, “a profissionalizagéo potencial dos, praticantes tradicionais firmou-se na pauta de ages”. © autor observa que houve um crescimento répido no niimero de organizagées de praticantes, especialmen- te na Africa. Algumas organizacées (como os isan- _gomas zulus) operam principalmente como redes in- formais, enquanto outras atuam como grupos de pres- sto ou igrejas, ou cultos que oferecem cura. Jé diver- sas organizacées, como a Zimbabwe National Tradicio- nal Healers’ Association, foram reconhecidas pelo go- ‘verno como corporagées profissionais propriamente tas, com poderes exclusivos para educar, avaliar, licen- ciar e disciplinar seus membros. Na Africa do Sul, a lei governamental Tradicional Health Practitioners Bll de 2004 criou um Conselho para supervisionar o licen- ciamento e a regulamentagio dos cerca de 200.000 curandeiros tradicionais afticanos no pals ~ que so consultados por cerca de 70% da populacéo - com o objetivo de assegurar “a eficécia, a seguranca ea quali- dade dos servicos tradicionais de cuidados de satide"™* Para muitos curandeiros populares, 0 processo de formar uma “profissdo” (ver adiante) freqiiente- ‘mente também tem sido uma resposta & competigo desigual do sistema médico. Ao criar uma associagéo profissional, eles esperam obter avangos em seus in- teresses e nos de seus clientes, melhorar os padres, elevar seu prestigio, ganhar poder e apoio oficial ¢ definir uma drea de cuidados de satide que somente eles podem fornecer. “Todavia, isso freqiientemente é problemético. Por um lado, ha evidéneias de que, em muitos paises em desenvolvimento, o niimero real de curandeiros tradi- cionais esta declinando, em parte devido & educacao, ‘A urbanizagio e a ruptura das comunidades. Além dis- so, como Last selienta, os curandeiros tradicionais, (em especial do tipo sagrado) sdo um grupo demasia- do disperso e seu conhecimento e prética esto muito enraizados nos contextos locais para serem padroni- zados efetivamente. Eles também tém nogées espect- ficas de legitimidade, que derivam prineipalmente das tradiqées de sua comunidade e seu préprio carisma, ¢ no de alguma burocracia governamental distante. Para muitos de seus clientes, “alegalidade de uma prd- tica é menos importante do que o padre moral do praticante ou sua confiabilidade”, ‘Até certo ponto, essa profissionalizacéo dos cu- randeiros tradicionais 6 paralela a um processo seme~ Cultura, sade e doenea Ihante que esté ocorrendo entre os curandeiros alter- nativos e complementares nas sociedades ocidentais, (ver adiante). No leste da Europa, desde o século XVII, (0s feldshers russos também percorreram um longo ca- minho, de curandeiros populares locais (freqtie- ntemente ex-médicos do exército) para seu status mais recente como auriliares de médicos que muitas vezes trabalham no cuidado primério ou em obstetricia, so- bretudo em éreas rurais.° Em contraste, seus equiva- lentes em outros paises do leste europeu, como os ‘gruliks da Polénia, em grande parte desapareceram.> Velimirovie® vé a iniciativa da OMS quanto & medicina tradicional como bem-intencionada porém mal-orientada. Ele argumenta que sua integracéo no setor formal (profissional) dos cuidados de satide des- de 1978 “nao contribuiu virtualmente em nada para resolver os monumentais problemas de satide do mundo em desenvolvimento” ou para atingir a meta de “Satide para todos até 0 ano 2000”, Isso se deve ‘em parte ao fato de, na proposta da OMS, a definigio de medicina tradicional nunca ter sido clara ou con- sistente. Nem sua presungao acritica da eficécia da ‘medicina tradicional foi justficada, pois ignorou suas muitas falhas e problemas, como sua incapacidade de curar malaria, célera, febre amarela e outras doen- gas. Em muitos casos, os pontos de vista dos curan- deiros tradicionais acerca da doenca e seus tratamen- tos eram tdo prejudiciais para a satide que eles pro- prios eram parte do problema. E mais, em muitos paises em desenvolvimento, a medicina tradicional “freqiientemente ndo é tao benquista entre as pesso- as quanto os planejadores de satide acreditam”. Com a possibilidade de escolha, muitas pessoas preferem consultar médicos de estilo ocidental, ¢ nao os cu- randeiros tradicionais ou trabalhadores de satide nao teinados da comunidade ~ mesmo que isso envolva muitas despesas e longas viagens. ‘Apesar desse ponto de vista, é importante en- fatizar que hd exemplos de colaboracio bem-sucedi- da entre os curandeiros tradicionais e o sistema mé- dico oficial, especialmente quanto & prevengio da AIDS,"” as parteiras tradicionais,”* ao planejamento familiar, A promocao da terapia de reidratagao oral,” ao tratamento da doenca mental* e ao trata- mento ¢ reabilitago dos drogaditos.*” Medicina tradicional na China e na india Em paises como a india e a China, os fortes siste- ‘mas nativos de cura tém quase a mesma legitimidade e popularidade que a medicina ocidental, e atualmente, com apoio do governo, oferecem & populagao sistemas paralelos de cuidaclos de satide. De certa forma, eles jé esto “profissionalizados”, Na China, apesar de diver- Cee G. Helman ssas mudangas da politica do governo, a medicina tradi- ‘ional chinesa — incluindo acupuntura, moxibustio € fitoterapia — ainda constitui um sistema complementar de cuidados de satide para boa parte da populacio, pecialmente em éreas ruras, existindo junto com ci cas biomédicas e outras instalagdes. Na india, hé 91 ‘escolas médicas reconhecidas aiurvédicas (hindus) e 10 undné (mugulmanas), sendo que a medicina aiurvédica serve a uma grande proporgéo da populacao. O Indian ‘Medicine Central Gouneil Act de 1970 criou um Conse- Tho Central para a medicina aiurvédica, que estabele ceu um registro de praticantes qualificados e supervisi ona o treinamento dos novos. O conselho concede 0 grau de bacharel em Medicina e Cirurgia Aiurvédica apés trés anos de estudo, seguidos por uma pés-gradu- aco de mais trés anos. Porém, no final da década de 1980, somente 12% dos praticantes aiurvédicos havi- am obtido o diploma de uma instituicao de ensino re- conhecida, 54% tinham diplomas de escolas no reco- hecidas e 33% no tinham nenhuma qualificacio.*2 Um processo semelhante ocorreu com a homeopatia (que chegou a india em 1830)" e que, desde 1973, é supervisionada por um Conselho Central de Homeopatia. Este reconhecen 200.000 praticantes de ‘homeopatia e supervisiona 104 faculdades que minis- tram cursos de graduacao sobre o assunto. Os diplo- mas de pés-graduagao séo emitidos pelo National Institute of Homeopathy em Calcuté, e ha 130 a 150 hospitais homeopéticos e 1.500 dispensérios homeo- paticos na india, todos apoiados pelo governo. Os homeopatas superam os praticantes aiurvédicos em di- vversos estados, e a homeopatia é particularmente di- fundida no estado de West Bengal, mas também em Uttar Pradesh, Bihar, Tamil Nadu e Kerala, e tende a ser ‘mais prevalente em éreas urbanas do que em rurais.© Srinavasan“ observou, em 1995, que a medici- na aiurvédica estava perdendo popularidade para a medicina ocidental (alopética) em muitas partes do pas. Uma pesquisa em toda a india mostrou que, enquanto 80% dos domicilios em 4reas urbanas usa- vam a medicina alopatica e somente 436 usavam a aiurvédica, nos domicilios em zonas rurais, 75% usa- vam a alopética e 8% a aiurvédica, Isso aplicava-se & aioria das classes sociais. Ao contrério, no Sri Lanka, Srinavasan observou que a politica do governo enco- rajava fortemente a medicina aiurvédica tradicional, havendo agora 13.000 médicos aiurvédicos (1 por 1.400 habitantes), comparados aos 380.000 (1 por 2.200 habitantes) na india. ‘Medicina altemativa e complementar Na maioria dos pafses ocidentais, uma forma especial de cuidados de satide a medicina alternati- ‘va ou complementar (algumas vezes conhecida como MAC) - sobrepde-se tanto ao setor popular quanto 0 profissional. Seus muitos tipos de curandeiros ger- almente incluem acupunturistas, homeopatas, quiropraticos, osteopatas, herbalistas, naturopatas, curandeiros espirituais, especialistas em hipnose, massoterapeutas e especialistas em meditacdo, Uma das formas mais populares de MAC é a acupuntura (que atualmente ¢ usada em, no minimo, 78 paises em todo o mundo).** ‘Medicina nao-convencional na Europa e na Asia ‘Na Buropa, 0 setor MAC dos cuidados de saide esté aumentando rapidamente em popularidade. Em 1981, por exemplo, cerca de 6,4% da populagdo da Holanda haviam consultado um terapeuta ou médi- co que praticava a medicina complementar, niimero que subiu para 15,7% em 1990, e 47% dos médicos de familia” holandeses agora usam uma terapia com- plementaz.** Na Alemanha, milhares de Heilpraktikers (naturopatas que praticam a “cura pela natureza” e a hidroterapia) muitas vezes também praticam a acu- puntura, o herbalismo ou a quiropraxia.”” Esses natu- ropatas séo reconhecidos oficialmente desde 1939 e, de acordo com Wirsing, havia cerca de 7.000 deles atuando na Alemanha em 1996. O autor também es- timou que havia cerca de 2.000 médicos praticando a homeopatia e outros 1.000 praticando a medicina “antroposéfica”, que baseia-se nos ensinamentos de Rudolf Steiner. Além disso, 77% das clfnicas de dor na Alemanha utilizam agora a acupuntura. De acor- do com a OMS, 90% da populacdo alema usou um “remédio natural” em algum estagio de sua vida e, entre 1995 e 2000, o nimero de médicos que recebe- ram treinamento especial em medicina com remédi- os naturais quase dobrou, subindo para 10.800. Ha amplas variagGes entre os pafses europeus a respeito do ramo preferido da medicina alternativa. De acordo com Fisher e Ward, © embora a antroposo- fia seja popular em todos os paises de lingua alema, a homeopatia é popular na Bélgica (com cerca de 50% da populagéo consultando homeopatas, o que aparentemente é a maior taxa na Europa), a reflexolo- gia é particularmente popular na Dinamarca (31% dos usuarios de MAC), a massagem é popular na Fin- Tanda, a cura espiritual é popular na Holanda e, na Franca, a forma mais popular de terapia complemen- “N. de RIT No original, o termo utilizado é general practi- tioner (GP), que corresponde, no Brasil, por sua formago «e forma de atuar, mais ao médico de familia e comunidade do que a0 “clinico geral”. ——- tar é a homeopatia, cuja utilizacdo subiu de 16% da populacdo em 1982 para 36% em 1992. Fora da Europa, a OMS* estima que 60 a 70% dos médicos no Japio também prescrevem medicina kampo (remédios herbais tradicionais), que 46% da populaco australiana jd usou alguma forma de MAC e que, na Maldsia, 0 uso das formas tradicionais de medicina malaia, chinesa e indiana ¢ comum. De modo geral, estes dados indicam que, mesmo em pafses desenvolvidos e industrializados, uma grande proporcio da populacdo prefere usar outras formas de cuidados de satide - em vez. da biomedicina ou além dela. Medicina ndo-convencional nos Estados Unidos Nos Estados Unidos, Eisenberg e colaboradores” estimaram que, em 1990, quase uma em cada trés, pessoas usou alguma forma de medicina ndo-conven- cional, mais freqiientemente para problemas lomba- res (36%), cefaléias (27%), dor erénica (26%) e can- ceres ou tumores (24%). Os tratamentos mais comuns usados foram as téenicas de relaxamento, a quiro- praxia e a massagem. Na maioria dos casos (8996), cles consultaram estes praticantes sem a recomenda- fo de seus médicos, e 72% jamais relataram o fato a eles. De modo geral, os autores estimaram que os norte-americanos fizeram cerea de 425 milhdes de consultas a praticantes nao-convencionais em 1990, um dado que excede o mimero total de consultas a todos os médicos de cuidados primérios dos Estados Unidos (388 milhdes). E mais, eles pagaram “de seu bolso” cerca de 10,3 bilhdes de délares para essas terapias, em comparacéo com 12,8 bilhdes pagos a todo o cuidado hospitalar nos Estados Unidos. A mai- oria dos usuérios de terapias ndo-convencionais ti- nha entre 25 e 49 anos, mas provinha de todos os, ‘grupos sociodemograficos. De acordo com a OMS," no ano 2000, 158 milhdes de adultos nos Estados Unidos usaram algum tipo de medicina complemen- tar, e 17 bilhées de délares foram gastos nela. A acupuntura foi particularmente popular, com 12.000 acupunturistas licenciados; a pratica da acupuntura era legal em 38 estados. A OMS também estimou que cerca de 75% das pessoas vivendo com HIV/AIDS em San Francisco usaram alguma forma de terapia tradicional ow alternativa (uma proporcao semelhante a de Londres, Inglaterra, e A da Africa do Sul).® Al- gumas das formas menos ortodoxas de terapia usa- das para HIV/AIDS nos Estados Unidos sao descritas no Capitulo 16. Kaptehuk e Eisenberg®™ revisaram 0 aumento constante da medicina alternativa nos Estados Uni- dos de 1800 até os dias atuais. Eles citam um estudo Cultura, sade ¢ doenca nacional que mostra que, de 1990 a 1997, o niimero de respondentes que usou no minimo uma das 15 terapias alternativas representativas durante um pe- riodo de 12 meses subiu de 34% para 42%. Eles des- tacam que o pluralismo médico nos Estados Unidos é agora um fato, e nao pode mais ser omitido ou igno- rado pela profisséo médica, H4 agora um diélogo emergente entre as medicinas convencional e alter- nativa, bem como um reconhecimento crescente da nova diversidade cultural, religiosa e étnica no pais, além do poder crescente da escolha do consumidor. Em 1991, 0 National Institutes of Health criow um Office of Alternative Medicine (OAM), e cerca de 75 escolas médicas dos Estados Unidos oferecem agora cursos de medicina alternativa.® Kaptchuk Bisenberg’*! também fornecem uma taxonomia itil das préticas de cura alternativas (“ndo-convencio- nais") nos Estados Unidos: + Sistemas médicos profissionalizados ow distintos, com suas préprias teorias, préticas, instituigdes € métodos de treinamento. Estes incluem os prati- cantes de quiropraxia, acupuntura, homeopatia, naturopatia, massagem, bem como os médicos de formacao convencional que também praticam es- ses sistemas de cura. + Praticas alternativas de dieta e estilo de vida (tam- bém conhecidas como sistemas de “Reforma da Satide Popular”), que incluem o movimento de “ali- mentos saudaveis”, 0 uso de megavitaminas, su- plementos botinicos e nutricionais e aqueles que seguem uma dieta macrobidtica, de alimentos or- ‘ginicos ou vegetariana. + Cura New Age (Nova Era), uma variedade dispar de crencas e préticas ~ muitas origindrias de reli- gides orientais ou do paganismo - que fregiien- temente focalizam as “energias” esotéricas, visan- do atingir um equilibrio entre elas. Aqui esto in- clufdas as consultas com espfritos ou médiuns e as formas orientais de cura como Reiki ou Qi-Dong, além do uso de cristais de cura ou magnetos. + Intervengées psicolégicas: a Cura pela Mente ¢ a medicina “Mente-Corpo” variam das formas mais, convencionais de psicoterapia ao uso de visuali zagées orientadas, meditagées, afirmacdes & hipnoterapia; elas concentram-se na nogo de que “a mente é a energia mais dominante para restau- rar o bem-estar e manter a satide” e que, portanto, ‘as emogdes negativas podem causar ou exacerbar, doencas fisicas importantes. + Os empreendimentos cientificos ndo-normativos s80 formas de tratamento médico ou medicacées, ou formas de diagnéstico, que nao sao validadas pelo establishment cientifico, is quaisfreqiientemente re- correm aqueles com doengas graves como o céncer terminal. Incluem iridologia, tratamento com “anti- neoplastons”, “andlise dos cabelos” para detectar doencas e desequilibrio de nutrientes e “terapia de quelagéo” para reverter a doenca arteriosclerstica ‘A medicina ndo-convencional paroquial consiste em Draticas foleloricas espectficas, com profundas raizes culturais em certos grupos nos Estados Unidos. Ela inclui o espiritismo entre os porto-riquenhos, 0 ‘curandeirismo entre os norte-americanos de origem ‘mexicana, 0 vodu entre os haitiano-americanos varias formas de cura dos nativos norte-america- nos. Também estio inclufdas aqui a medicina fol- clérica indigena norte-americana (algumas vezes de regides especificas, como o sul dos Appalaches) e muitas formas diferentes de cura espiritual e religi- ‘sa, como o Christian Science e uma variedade de igrejas pentecosiais e carisméticas. 0 setor profissional Este compreende as profissbes de cura organi- zadas, legalmente sancionadas, como a medicina ci- entifica ocidental moderna, também conhecida como alopatia ou biomedicina. Ble inclui néo somente mé- dicos de varios tipos e especialidades, mas também as profisses paramédicas reconhecidas, como enfer- meiros, parteiras e fisioterapeutas. Todas as socieda- des tém sua prépria etnomedicina ~ aquela parte de seu sistema cultural que trata especificamente da do- enca e da cura® ~ e a biomedicina pode ser conside- rada a etnomedicina do mundo ocidental industrial zado. Como tal, ela ndo apenas origina-se dessa so- ciedade, mas também expressa (e constantemente ajuda a recriar) algumas das suas premissas culturais basicas, inclusive seus modos de ver o mundo, suas. hierarquias e organizagdo social, papéis sexuais e ati- tudes em relagéo a doenca e ao sofrimento. No iiltimo século, essa biomedicina ocidental di- fundiu-se para cobrir boa parte do globo, de modo que agora ela é a forma dominante de cura encontrada em todo 0 mundo e, na maioria dos paises, forma a base do setor profissional. Porém, em certos paises, os sistemas ‘médicos tradicionais também podem profssionalizar se em certa medida e, assim, serem capazes de compe- tir com a biomedicina; exemplos disso sio as faculda- des de medicina aiurvédica e undni na india, que re- cebem apoio governamental, e cujos graduados so re- gularmente consultados por milhées de pessoas. E importante compreender que, com todo o seu Poder e prestigio, a biomedicina ocidental fornece apenas uma pequena proporcao dos cuidados de sati- de na maior parte do mundo. Os recursos humanos médicos freqiientemente sao escassos, com a maioria dos cuidados de satide ocorrendo nos setores infor- mal e popular. Em 2005, 0 relatério World Health Statistics da OMS® ilustrou as amplas variacées na disponibilidade de médicos —_bem como de enfermei- z0s e parteiras ~ em todo o mundo (Tabela 4.1). Com base nos dados de 1997 a 2003, esse relatério mos- trou uma variacdo considerdvel entre os paises quan- to A disponibilidade de recursos humanos médicos, indo de paises como Uganda, com 0,1 médicos por 10.000 habitantes, até paises como a {ndia com 5,9, China com 16,4, Reino Unido com 21,3, Estados Uni dos com 27,9 e Federacio Russa com 42,5. Uma com- paragio das seis principais regides do mundo (Tabe~ la 4.2) mostra graficamente qudo variada e desigual € a distribuigéo do niimero de médicos, enfermeiros ¢ leitos hospitalares disponiveis para a populacao dessas diferentes regides.®° Esses dados, porém, provavelmente superesti- mam o ntimero de médicos de fato envolvidos no cuidado direto do paciente, pois muitos deles traba- Tham em pesquisa e administracéo, e nao na prética clinica. Além disso, a distribuico de médicos néo é uniforme; em muitas sociedades nao-industrializadas, eles tendem a agrupar-se nas cidades, onde as insta lagées so melhores e a pritica é mais lucrativa, dei- xando boa parte do campo para os setores informal e popular de cuidados. Em Mogambique, em 1994, por exemplo, 52% dos médicos do pais estavam concen- trados na capital Maputo, enquanto a maior parte do restante trabalhava nas outras cidades maiores.®” Em muitos desses paises, a proporcao de médicos traba- Ihando no setor privado tem aumentado de modo constante, reduzindo assim ainda mais o niimero dis- ponivel desses profissionais para fornecer cuidados de satide de baixo custo pelo estado. No Zimbabue, em 1993, por exemplo, 66% dos médicos trabalha- vam no setor privado, enquanto 59% o faziam na Africa do Sul e 25% em Papua Nova Guiné.® A prati ca médica particular aumentou muito em Malawi e na Tanzania apés alteragées na politica do governo, enquanto em Uganda, Bennett argumenta que 0 aumento de médicos particulares “eriou uma cultura em que 0 bom atendimento deve estar associado & disponibilidade de injecdes e outras drogas, indepen- dente de ser clinicamente apropriado”. Na maioria dos paises, especialmente no mun- do ocidental, os praticantes da medicina cientifica formam o tinico grupo de agentes de cura cujas posi- ‘ges so defendidas por lei. Eles desfrutam de status social mais elevado, renda maior e direitos e obriga- ‘ges mais claramente definidos do que os outros ti- pos de agentes de cura. Eles tém o poder de interro- gar e de examinar seus pacientes, prescrever trata- ‘mentos e medicagdes poderosos e algumas vezes pe- rigosos, bem como de privar certas pessoas de sua liberdade de confind-tas a hospitais, caso sejam di- Perey ee pee ea Cultura, sade e doenea re Pais [Médias por 10.000 habitantes Enfermelrose parteiras por 10.000 habitantes Malaul on 26 Niger 03 27 Uganda oO og Afeganistio 19 22 india 59 Tt Jamaica 35 165 Filipinas us aia hina 16.4 96 México ara 108 Jep80 204 853 Reino Unido 243 540 Egto 222 265 Estados Unidos 29 97.2 Ucrania 304 228 Grecia 335 73.0 Feceragdo Russe 425 854 ‘rganizagbo Mundial Sale (2008) Screed Rolagao de See ey Co ‘Médicas por Enfermelrose parteiras Letos hospitalares Regito 10,000 habitantos or 10.000 habitantes. por 19.000 habitantes Arica 18 88 ™ Sudeste da Asia 50 74 17.0 Leste do Mediterraneo 10.4 137 130 este do Pacico 158 197 340 Américas, 218 408 250 Europa 334 72.0 7.0 ‘rganizaqao Mundial de Saice (2005) Ge dads pore leas hospitaares na Arica no est incuidos no relat, agnosticadas como psicéticas ou contagiosas. No hos- pital, eles podem controlar rigidamente a dieta, 0 comportamento, padrdes de sono e medicagdes de seus pacientes, podendo realizar varios testes, como bidpsias, raios X ou punges venosas. Eles também podem rotular seus pacientes (algumas vezes perma- nentemente) como doentes, incuréveis, simuladores, hipocondrfacos ou como plenamente recuperados ~ tum rétulo que pode entrar em conflito com a pers- pectiva do paciente. Tais rétulos podem ter efeitos importantes, tanto sociais (confirmando o paciente no papel de doente) quanto econdmicos (influencian- do os pagamentos de seguro-satide ou pensao). O sistema médico ‘Como jé mencionado, o sistema dominante de cuidados de satide de qualquer sociedade nao pode ser estudado isoladamente de outros aspectos dessa sociedade, pois o sistema médico (ou setot profissio- nal dos cuidados de satide) néo existe em um vacuo social ou cultural, Ao contrério, ele é uma expresso e, em certa medida, um modelo em miniatura dos valores e da estrutura social da sociedade da qual se origina. Assim, diferentes tipos de sociedade produ- zem diferentes tipos de sistemas médicos e diferen- tes atitudes em relacdo a satide e & doenca, depen- dendo de sua ideologia dominante ~ quer seja capi- talista, estatizada, socialista ou comunista. Uma so- ciedade pode considerar os cuidados de saide gra- tuitos (ou relativamente baratos) como um direito bésico do cidado ou como direito bésico apenas das pessoas pobres, ou muito idosas, enquanto outra pode ver os cuidados médicos como uma commodity a ser comprada somente por aqueles que podem pagar por la. Neste iiltimo caso, a busca de lucros nos cuida- dos de satide vai excluir muitos desses membros mais pobres da sociedade que no possuem os recursos para pagar por eles. Qualquer que seja o tipo de socie- Cecil G. Hetman dade, o sistema médico ndo somente reflete esses va- lores ¢ ideologias bésicos, mas, por sua vez, também ajuda a moldé-los e manté-los.” ‘Como um exemplo disso, 0s citicos dos sistemas médicos no mundo ocidental tém apontado como a organizagdo interna do setor profissional reflete algu- mas das desigualdades basicas nessas sociedades, espe- cialmente em relagdo ao género, a classe social e & ori- gem étnica. Dentro do sistema médico, a maioria dos médicos so homens (e getalmente brancos) e, como na sociedade geral, ocupam muito mais cargos de pres- tigio, poderosos e mais bem remunerados do que as meédicas mulheres e enfermeiras. Além disso, o pessoal dentro desse setor € arranjado em hierarquias seme- Ihantes aos estratos sociais da sociedade geral. Ao lidar com a populagéo, o sistema médico pode reproduzir muitos dos preconceitos subjacentes da sociedade, bem como presuingses culturais sobre o que constitui o bom 0 mau comportamento, Por exemplo, sugeriu-se que © preconceito racial desempenha um papel importan- tena forma como alguns pacientes afro-caribenhos no Reino Unido séo classificados pelos psiquiatras como “loucos”, mesmo quando hé evidéncias do contrétio® (ver Capitulo 10). Um proceso parecido ocorria na antiga Unio Soviética, na atitude da psiquiatria esta- tal em relagao aos dissidentes politicos." Outras eriticas do sistema médico ocidental in- cluem aquelas feitas por Illich, que alega que a medicina moderna de alta tecnologia tornou-se cada vex mais perigosa para a satide da populacio ao re- duzir sua autonomia, torné-la dependente da profis- so médica e lesar sua satide pelos efeitos colaterais de drogas ¢ intervencGes cintrgicas. Além disso, 0 sis- tema médico esta em uma relacio simbiética com os fabricantes dos produtos farmacéuticos e equipamen- tos médicos, e essa relacio nao necessariamente aten- de os interesses do paciente. ‘Como Illich, outros criticos do sistema médico alegam que a medicina moderna, além de controlar ‘0s microrganismos, também visa controlar o compor- tamento da populacdo, especialmente pela “medica- lizaedo” do comportamento desviante e de muitos estagios normais do ciclo vital humano. Stacey®? e outros sugeriram que este fenémeno é particularmen- te evidente no caso das mulheres, sobretudo durante a gravidez € 0 parto (ver Capitulo 6). E mais, boa parte da ma satide na sociedade ocidental que pode ser causada por outros fatores como pobreza, desem- rego, crises econdmicas, poluicéo ou perseguigao & freqiientemente ignorada pelo sistema médico, pois seu foco principal esta cada vez, mais voltado ao pa- ciente individual (ou mesmo ao drgdo individual) e aos fatores de risco em seu priprio estilo de vida. Assim, para compreender qualquer sistema mé- dico é importante sempre consideré-lo no contexto dos valores bésicos, da ideologia, da organizacio politica e do sistema econémico da sociedade da qual ele se origina. Nesse sentido, o setor profissional dos cuidados de satide, como os outros dois setores, est sempre, em certa medida, “ligado & cultura”. Comparagéo dos sistemas médicos Pode-se ilustrar este aspecto de ligagio & cultu- ra, no caso da medicina ocidental, pela comparacao dos sistemas médicos de diferentes pafses ocidentais, com niveis semelhantes de desenvolvimento econé- mico. Obviamente, esses paises variam no que diz respeito ao caréter privado ou ptiblico do setor do- minante de atendimento de satide, & distribuicéo dos recursos médicos, as caracteristicas do seguro-satide e assim por diante, mas seus setores profissionais sio todos enraizados na mesma tradigéo da medicina ci- entifica ocidental, havendo considerdvel intercambio de dados médicos e téenicas entre eles. ‘Apesar da alegacio de universalidade da medi- cina ocidental, vérios estudos tém ilustrado diferen- «as significativas nos tipos de diagnéstico fornecido € no tratamento prescrito nos diferentes sistemas médicos ocidentais. Por exemplo, em 1984, uma com- paracdo dos padrées de prescri¢ao de cinco diferen- tes pafses europeus (Reino Unido, Alemanha, Itdtia, Franga e Espanha)* encontrou variagdes marcantes, entre eles —e que no poderiam ser explicadas unica- mente pelas disparidades na satide de suas popula- Ges. O estudo examinow as 20 principais categorias diagnésticas e 03 20 principais tipos de drogas pres- critas em cada um desses paises. No Reino Unido, pot exemplo, o principal grupo de drogas prescrito foi o de trangiilizantes, hipnticos e sedativos (8,6% do miimero total de prescrigdes), comparado com 6,8% na Franca, 6,0% na Alemanha, 3,1% na Itélia e 2,0% na Espanha. No Reino Unido, as neuroses esta- vam entre os diagnésticos mais comuns (5,1% do miimero total de diagnésticos fornecidos), em com- arago com 4,1% na Franca, 3,2% na Italia ¢ 1,7% nna Espanha. Essas discrepancias podem representar no apenas diferencas na morbidade entre os cinco paises, mas também diferengas importantes na no- menclatura, nos critérios diagnésticos e em atitudes culturais quanto a certos tipos de comportamento e & forma como eles deveriam ser manejados. Outros es- tudos, alguns dos quais sto descritos posteriormente neste livro, mostraram diferengas entre 0s psiquia- tras do Reino Unido e dos Estados Unidos, bem como entre os psiquiatras do Reino Unido e da Franca nos critétios que eles usam para diagnosticar e tratar a esquizofrenia (ver Capitulo 10); diferengas entre Rei- no Unido, Canadé e Estados Unidos nas taxas de va-

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