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OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que no se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depurao.
Tempo em que no se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou intil.
E os olhos no choram.
E as mos tecem apenas o rude trabalho.
E o corao est seco.

Em vo mulheres batem porta, no abrirs.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
s todo certeza, j no sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele no pesa mais que a mo de uma criana.
As guerras, as fomes, as discusses dentro dos edifcios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando brbaro o espetculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que no adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida uma ordem.
A vida apenas, sem mistificao.

Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do Mundo (1940)


UM BOI V OS HOMENS

To delicados (mais que um arbusto) e correm


e correm de um para outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente, falta-lhes
no sei que atributo essencial, posto se apresentam nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
at sinistros. Coitados, dir-se-ia no escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como tambm parecem no enxergar o que visvel
e comum a cada um de ns, no espao. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam crueldade.
Toda a expresso deles mora nos olhos e perde-se
a um simples baixar de clios, a uma sombra.
Nada nos pelos, nos extremos de inconcebvel fragilidade
e como neles h pouca montanha,
e que secura e que reentrncias e que
impossibilidade de se organizarem em formas calmas,
permanentes e necessrias. Tm, talvez,
certa graa melanclica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitao incmoda e o translcido
vazio interior que os torna to pobres e carecidos
de emitir sons absurdos e agnicos: desejo, amor, cime
(que sabemos ns?), sons que se despedaam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a gua,
e difcil, depois disto, ruminarmos nossa verdade.

Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma (1951)

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