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VALENTE, W. C2002. Aquicutura sustensivel. In: Congresso de Zootecnia, 12°, Vila Real Portugal, 2002, Vila ‘Real: Atsociagdo Pornguesa dos Engenheinos Zootéeicoe. Anais... 111-118. AQUICULTURA SUSTENTAVEL Wagner Cotroni Valenti Centro de Agiticultura da UNESP Depto. de Biologia Aplicada, FCAV, UNESP 14884-900 Jaboticabal SP Brasil e-mail: valenti@caunesp.unesp.br Aghicultura ¢ a produgio de organismos com habitat predominantemente aquético, em cativeiro, em qualquer um de seus estégios de desenvolvimento. A atividade se caracteriza por trés componentes: 0 organismo produzido deve ser aquético, deve existir um manejo para a produgio, a criagiio deve ter um proprietétio, ou seja, ndo é um bem coletivo como so as populagdes exploradas pela pesca (Rana, 1997). Por outro lado, entende-se por sustentabilidade, 0 gerenciamento e conservacio a base de recursos naturais e a orientagdo tecnoldgica e institucional, de modo que assegure a continua satisfagao das necessidades humanas para as geragdes presentes © futuras. A agiticultura utiliza recursos naturais, manufaturados ¢ humanos, tais como’ terra, 4gua, energia, ragao, fertilizantes, equipamentos, mao de obra etc. Portanto, estes devem ser usados de forma racional para que a atividade seja perene e lucrativa. Recentemente, introduziu-se 0 conceito de "Aquicultura Sustentével” (ou "Aquicultura Responsdvel") para designar a forma desejével de se produzir organismos aquéticos, sem degradar o meio ambiente, com lucro ¢ com beneficios sociais. ‘A aglicultura modema envolve trés componentes: a produgio lucrativa, a preservagio do meio ambiente ¢ 0 desenvolvimento social. Estes so essenciais & indissociéveis para que a atividade seja perene. 1, Sustentabilidade econémica A produgio deve ser entendida como um processo amplo, que envolve todo um. conjunto de elementos que se inter-relacionam formando uma rede complexa. Esta & chamada cadeia produtiva, Nas Figuras 1 a 3 foi representada a cadeia produtiva da agiiicultura. Observa-se que ela envolve elementos de diferentes éreas do conhecimento. Se qualquer um dos elos da cadeia for fraco a atividade seré fraca. Para se obter sustentabilidade econdmica, deve-se fortalecer toda a cadeia produtiva, Cada pais, e mesmo dentro do mesmo pafs, cada setor apresenta cadeia produtiva com caracteristicas préprias. No entanto, a Transferencia de Tecnologia e 0 ‘Treinamento de Pessoal s4o, com freqiiéncia, elementos fracos da cadeia produtiva da agiiicultura, que dificultam 0 desenvolvimento da atividade. Em alguns paises, 0 Crédito € facil, enquanto que em outros, hé disponibilidade de recursos, mas questdes burocréticas impedem que o dinheiro cheque ao produtor. De um modo geral, hé maior restrigdo por parte dos gerentes de bancos para conceder empréstimos para aqticultura porque esta é uma atividade mais recente e pouco conhecida. Outro problema crucial é a falta de estratégias de marketing, Frequentemente, 0 produtor rural nio se preocupa com 0 mercado alvo, nem com a qualidade do seu produto. No mundo globalizado atual, dois componentes so bésicos para conquistar os mercados consumidores: a qualidade do produto e a regularidade no fornecimento. A qualidade pode ser obtida com medidas de controle de pontos criticos e com 0 cuidado no processamento, embalagem, armazenamento, distribuigao e preparo do produto. Na verdade, 0 sucesso de vendas depende da satisfagdo do consumidor no momento da refeicdo. Se o consumidor no gostar do que esté comendo, ele ndo compraré mais 0 produto e, entéo, de nada adiantaré o domfnio de técnicas sofisticadas de produgéo. Portanto, 0 produtor deve estar sempre preocupado com o final da cadeia, que € 0 consumidor. Para garantir regularidade, € necessério que a estratégia de producto adotada priorize a produgao escalonada (com despescas parceladas, por exemplo) em detrimento de uma producdo concentrada em curto periodo. A estratégia de producao deve ser planejada de acordo com a estratégia de marketing que seré adotada Os impactos ambientais ou sociais negativos causados pela aguicultura podem ser quantificados monetariamente ¢ incluidos nos custos de produgfo. Isto é chamado extemalidade de um projeto. Os valores arrecadados podem reverter-se para as comunidades prejudicadas. Os projetos devem ser concebidos de modo a garantir lucratividade, considerando todos os custos de produgao, inclusive as extemalidades. ‘A sustentabilidade econdmica de empreendimentos ja implantados pode ser ampliada com a utilizagdo de sistemas integrados de produgo, como o policultivo e 0 consércio (vide item 2), com 0 aproveitamento dos resfduos do beneficiamento para a produgio de embutidos, silagem, e hidrolisados protéicos e com a racionalizagao do uso de insumos (principalmente raco). Estas préticas podem viabilizar economicamente sistemas invidveis, 2, Sustentabilidade ambiental A agiiicultura depende fundamentalmente dos ecossistemas nos quais esté inserida. E impossfvel produzir sem provocar alteragSes ambientais. No entanto, pode- se reduzir 0 impacto sobre 0 meio ambiente a um minimo indispensével, de modo que no haja redugdo da biodiversidade, esgotamento ou comprometimento negativo de qualquer recurso natural e alteragdes significativas na estrutura e funcionamento dos ecossistemas. Esta € uma parte do processo produtivo. Nao pode-se desenvolver tecnologia visando aumentar a produtividade sem avaliar os impactos ambientais produzidos. Os impacios ambientais podem ocomer durante a fase de implantagdo de um sistema de cultivo e durante a sua operacdo. Tomando como exemplo os viveiros escavados, muito usados para 0 cultivo de peixes e camardes, temos que 0s principais, impactos ambientais durante a fase de instalago do empreendimento sao: # remogio da cobertura vegetal no local de construgdo dos viveiros; * remogo de mata ciliar para captagio de 4gua; © erosio com o caregamento de sedimento para cursos d”égua naturais. s principais impactos ambientais causados durante a fase de operagéo dos cultivos so: © liberagdo de efluentes ricos em nutrientes (principalmente Ne P), causando eutroficago em corpos d’agua naturais; © liberagao de efluentes ricos em matéria orginica e sélidos em suspensio, aumentando a turbidez em corpos d’égua naturais; introdugo de espécies exdticas e doengas no ambiente; introdugo de substncias téxicas e drogas bio-acumulativas no ambiente. A sustentabilidade ambiental dos sistemas de produgio pode ser melhorada por meio da implantagao das boas préticas de manejo (‘BMP - Best Management Practices”). Considerando o exemplo do cultivo em viveiros escavados, temos que as principais priticas para reduzir o impacto ambiental so: construgdo de viveiros em éreas previamente degradadas; construcdo dos viveiros durante a estagao seca; edu na taxa de renovagdo de dgua ao mfnimo indispensavel; uso de ragdo balanceada, fornecida de forma controlado para evitar sobras; controle rigoroso no programa de adubagio dos viveiros para evitar excesso de fertilizantes; * povoamento dos viveiros com densidade moderada e compatfvel com a capacidade de carga do ambiente; * uso dos efluentes como agua de irrigagio de plantagbe: * uso de tanques de decantagio, filtros mecdnicos e/ou naturais (ex. vegetais), acoplados ao sistema de escoamento dos efluentes; © Tiberagdo de efluentes em corpos de gua corrente com capacidade de diluigio répida (nunca em corpos de égua lénticos); priorizar a criagtio de espécies nativas; uso de manejo adequado para evitar o escape de animais para o meio ambiente (ex. colocacio de telas nos canais de escoamento e cuidados na despesca); * io aplicar produtos quimicos nos viveiros ou misturé-los & ragdo; * uso de técnicas de manejo que aumentam a produtividade sem custo ambiental; prética do policultivo ou consércio para aproveitar melhor 0 espago dos viveiros; aproveitamento dos resfduos disponiveis na fazenda (ex. descartes da fruticultura, estereo) ¢ dos residuos gerados pelo processamento do pescado produzido. s sistemas integrados de produgio sfio chamados de policultivo, quando duas fou mais espécies aquiticas sfo criadas no mesmo viveiro, ou consércio, quando espécies aquéticas so criadas em associagéo com espécies terrestres. Estes sistemas otimizam 0 uso dos recursos naturais, das instalagdes e da mao de obra, ampliando a sustentabilidade ambiental ¢ econémica. Permitem a transformago de poluentes em biomassa de alto valor econdmico. Podem ser realizados segundo diferentes niveis de integragio: © Nivel 1: quando as espécies cultivadas ocupam espagos diferentes nas instalagies do sistema de produgio. Por ex. no policultivo de camartes de agua doce (Macrobrachium rosenbergit) com carpas prateadas (Hypophthalmichthys molitrix), 08 primeiros ocupam o fundo enquanto que os segundos a coluna d’égua. © Nivel 2: quando as espécies cultivadas ocupam diferentes nichos ecol6gicos. Por ex. 0 policultivo de carpas prateadas (Hypophthalmichthys molitrix), que slo fitoplanctéfagas, com carpas cabega grande (Aristichthys nobilis), que sao zooplanctsfagas e carpas comuns (Cyprinus carpio), que sio iliéfagas. * Nivel 3: quando 0 cultivo de uma espécie melhora as condigées ambientais para outra espécie. Por ex. 0 policultivo de carpas prateadas e cabeca grande, em baixa densidade, com camardes de égua doce traz melhorias significativas na estabilidade do fitoplineton, melhorando as condigdes da dgua para os camardes, Nivel 4: quando uma espécie cultivada origina um subproduto que pode ser usado como insumo no cultivo da outra. Por ex., 08 camardes de égua doce alimentam-se das fezes das tildpias (Oreochromis niloticus) em condigdes de policultivo. * Nivel 5: quando uma espécie cultivada origina subprodutos que servem como ‘insumos para a outra ¢ vice-versa. Por ex. na rizicarcinicultura ou rizipiscicultura, as sobras do arroz, apés a colheita, servem de alimento aos camardes e peixes, enguanto que as fezes ¢ os excreias destes servem como fertilizantes a0 vegetal. Além disso, 05 peixes © camardes controlam plantas competidoras e insetos pragas do arroz. s sistemas integrados sto sempre muito complexos. A complexidade aumenta, & medida que 0 nivel de integragao varia de 1 a 5. Niveis mais elevados, envolvendo, a0 ‘mesmo tempo, animais e plantas terrestres e aquéticos sio admitidos. Porém sua complexidade aumenta muito. Embora 0 policultivo e 0 consércio sejam freqiientemente realizados de forma rudimentar, sao sistemas altamente produtivos podem ser muito lucrativos com baixo impacto ambiental. Muita pouca atengao tem sido dada pela pesquisa cientifica a esses sistemas, talvez devido a sua complexidade, (que desencoraja os pesquisadores. 3, Sustentabilidade social A agiicultura pode ser uma alavanca de desenvolvimento social, mas pode gerar impactos sociais negativos se no houver harmonia com as comunidades locais. Os principais sfo: o deslocamento ou eliminagdo de érea extrativista, comprometendo 0 trabalho de comunidades locais; o desrespeito & propriedade comum (ex. alteragdes nos recursos hidricos de modo a comprometer outras atividades econémicas ou de lazer) © a descaracterizagdo da cultura das comunidades locais. Por outro lado, os recursos naturais podem ser aproveitados de forma efetiva, com a geragdo de renda, criagéo de postos de trabalho assalariado e/ou auto-emprego. Novos nichos econdmicos so gerados, promovendo oportunidade para a entrada de novos investimentos. Em suma, 1 implantagdo de programas de aqiiicultura gera riqueza, com ganhos significativos para a economia regional ¢ nacional, criando empregos diretos ¢ indiretos e melhorando ‘a qualidade de vida da populagao local. A sustentabilidade social é aumentada sempre que se aplicam tecnologias que favorecem a criagao de empregos e/ou auto-empregos. Deve-se desenvolver téenicas que aumentam a lucratividade com o aumento da mo de obra. Assim, a maior lucratividade gerada cobre os custos adicionais dessa mao de obra. A alimentagao de peixes ou camardes em viveiros pode ser feita por alimentador automético ou a lango manual. Ambas técnicas empregam pouca mio de obra, No entanto, pode-se desenvolver 0 uso de comedouros, que seriam vistoriados e abastecidos por funcionérios varias vezes ao dia, Este manejo pode reduzir a quantidade de ragio fornecida, aumentar a eficiéncia alimentar, reduzindo a taxa de conversdo alimentar, com economia significativa de ragio. Se esta economia somada ao aumento de produtividade compensar os gastos com a mo de obra adicional, temos um sistema mais sustentavel sob 0 ponto de vista social, sem reduzir 0 lucro, Recentemente, fazendas de cultivo de camarées marinhos do Brasil vem adotando a técnica de alimentagdo por bandejas abastecidas vérias vezes ao dia conforme 0 consumo. Esse monitoramento das bandejas aumentou a relagio nimero de funcionérios/ha de viveiros, mas melhorou a rentabilidade dos cultivos. Além disso, menos racdo se perde para o meio ambiente, reduzindo a poluigdo. Portanto, tem-se um aumento na sustentabilidade econdmica, social e ambiental, com uma pequena mudanga no manejo alimentar. desemprego tem sido um sério problema na maioria dos pafses do mundo. Portanto, est na hora de mudar o paradigma da tecnologia e desenvolver técnicas que aumentam a eficiéncia, nfo com méquinas ou automagdo, mas com uso de trabalho humano, Isto é perfeitamente fact{vel como foi mostrado no exemplo acima. 4, A aqiiicultura no século XXI HA uma extensa literatura internacional sobre agticultura sustentével. Recomendamos a leitura de Arana (1999) e Assad & Bursztyn (2000), publicados recentemente em lingua portuguesa, que discutem esse assunto em detalhe. Hé dois documentos norteadores dos rumos que a agiiicultura deve trilhar no século XXI: 0 "Code of Conduct for Responsible Fisheries", (FAO, 1995) © "Aquaculture Development Beyond 2000: The Bangkok Declaration and Strategy”, (NACA/FAO, 2000). Os principais pontos enfocados so: © a agilicultura deve produzir alimentos de qualidade para as populagSes humanas e gerar desenvolvimento econdmico; © 0 desenvolvimento da agiiicultura deve ser realizado de modo a preservar a diversidade genética; © as téonicas de manejo devem ser desenvolvidas de modo a preservar as comunidades aquéticas e a integridade dos ecossistemas adjacentes as unidades de produgao; © a agilicultura deve ser desenvolvida de modo a gerar renda para as comunidades locais; © a agiiicultura no deve ser desenvolvida & custa do prejuizo do meio de vida tradicional das comunidades locais; © aagiiicultura deve servir para atender ao homem e néo ao poder econémico, Freqiientemente, 0s cultivos mais Iucrativos e/ou mais produtivos no sio aqueles mais favordveis para o desenvolvimento da aqiicultura. Muitas vezes estes cultivos concentram renda, causam maior impacto ambiental e prejuizos sociais. Além disso, podem ser efémeros porque atraem investidores (e ndo produtores reais) que trocam de atividade em fungao do mercado. Certamente hé sistemas, estratégias de rodugdo e espécies que condicionam maior sustentabilidade que outros. As politicas de desenvolvimento deve considerar sempre os trés componentes da aqilicultura moderna para construir uma atividade forte e perene. 5. Conclusiio A agiiicultura sustentével pode ser definida como a produgio Iucrativa de organismos aquéticos, mantendo uma interagdo harménica duradoura com os ecossistemas ¢ as comunidades locais. Deve ser produtiva e lucrativa, mesmo incluindo as extemnalidades nos custos de produgdo. Deve usar racionalmente os recursos naturais sem degradar 03 ecossistemas no qual se insere. Deve gerar empregos c/ou auto- ‘empregos para a comunidade local, elevando sua qualidade de vida e deve respeitar sua cultura. 6, Referéncias Arana, L. V. 1999, Aqlicultura e desenvolvimento sustentével. Florianpolis, Editora da UFSC. 310p. ‘Assad, L. T. & Bursztyn, M. 2000. Agiiicultura Sustentivel. In: Valenti, W.C.; Poli, CRs Pereira, J.A; Borghetti, J.R. (Ed.) 2000. Agiicultura no Brasil: bases para um desenvolvimento sustentavel. Brasilia, CNPq/MCT. p. 33-72. FAO 1995 Code of Conduct for Responsible Fisheries. FAO, Rome. (obtido via internet hutp://wwwfa0,org/fi/apreemVcodecond/ficonde.asp). NACAJFAQ, 2000. Aquaculture Development Beyond 2000: The Bangkok Declaration and ‘Strategy. Conference on Aquaculture in the Third Millennium, 20-25 February 2000, Bangkok, Thailand, NACA, Bangkok and FAO, Rome. 27p. Rana, K. J, 1997, Guidelines on the collection of structural aquaculture statistics. Supplement 10 the Program for the world census of agriculture 2000. FAO Statistical Development Series, 5b. Roma, FAO 56 p. (consunTuRA ‘ECONOMICA LEGAL Figura 1. Cadeia produtiva da Aqiicultura. ECONOMIA noone oneccoas| Figura 2. Cadeia produtiva da Agiiicultura: elementos da pré-producio DisTmBUIEROE conenciaLizacAo. omocoony Figura 3, Cadeia produtiva da AqUicultura: elementos da pés-producio

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