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entrevista

Anamar
Há uma
juventude
que, no meu
caso, será
eterna
Isto não é um: o que é feito da Anamar. Embora se saiba dela
anos depois do Frágil e d’ A Canção do Mar. Isto é um lugar e
um tempo. Lisboa e os anos 80. Anamar e a pós-modernidade.
Isto é a crónica de uma almada. Saiba o que é essa condição,
cunhada por Agostinho da Silva.
Entrevista Anabela Mota Ribeiro Fotografia Clara Azevedo

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entrevista

E
la já foi Rita Hayworth reito, sempre o vivi transparentemente. Isso Regressei de Nova Iorque em 65/66. Mas fui
no S. Luiz, no espec- exclui o julgamento, e o avesso e o direito. para o Colégio Inglês, continuei a viver numa
táculo Wild Cabaret. Pormenor: houve uma fase da minha vida bolha. Entretanto, foi o liceu. Entretanto, os
E a Marlene do Tejo, em que achava as roupas mais bonitas do meus pais separaram-se. Entretanto, houve
nas noites dos anos avesso que do direito. o 25 de Abril. A pressão política que teste-
de 1980, em Lisboa. É munhava longinquamente em casa, porque
cantora de repertórios Em que momento é que isso aconteceu? o meu pai era de esquerda, nunca a vivi na
improváveis. Tango, Dizia respeito a quê? pele. Deixou de haver esse manto com o 25
fado, música popu- No final dos anos 70, ia bater no punk. Tinha de Abril. Mas o horizonte continuava fechado.
lar americana — toda mais conteúdo vestir um kilt ao contrário Os juízos de valor continuavam rígidos. A vida
a subversão por detrás. Não por acaso, um do que direito. O kilt do direito, vestia-o no continuava pouca.
dos seus discos chama-se Transfado (2004). colégio. Isso reportava-me para uma visão
Trans-qualquer coisa. Transmutação vai bem instituída. A vida continuava pouca?
com ela. E irreverência. Artista sincrética. Era como eu a sentia. A minha rebeldia: não
Punk por acidente. Viajante por condição. Um dever ser? diria que foi para provocar os outros, e muito
Ana, Anamar desde a Suécia, onde viveu me- Tive o privilégio, da parte dos meus pais, de menos para provocar quem gostava de mim
ses e foi vocalista da banda Odd Combo. Para não ter tido de corresponder a uma moral (os meus pais, os meus avós). Foi esse sen-
trás, a Lisboa da Avenida de Roma, um certo vigente. Tive-o da parte da família mais con- timento de escassez de liberdade, foi o não
quadro burguês. Ana Almanave no primeiro vencional, sim. O dever ser, até determinada sentir cumplicidade com o que nos rodeava.
disco a sério (1987), e A Canção do Mar nunca altura, não fez mossa nenhuma na minha vida. E não era a única. Havia tantos outros que
mais foi a mesma coisa. Foi a mulher sedu- Passou a fazer alguma quando, na expressão acabámos por nos juntar e formar aquilo que
tora de Repórter X, de José Nascimento (pai da minha individualidade, me confrontei com hoje, historicamente, se chama o movimento
dos seus filhos). Actriz de Joaquim Leitão. A o facto de ela não ser síncrona com os “de- dos anos 80.
porteira do Frágil. O ícone de um tempo. Uma veres seres” que me rodeavam. E começou
da “querida pandilha dos anos 80”. Anamar, todo o processo de teste. Até onde temos li- Antes disso viveu, como forma de rebelião,
a pós-moderna. berdade de ser no mundo em que estamos, e para respirar um cosmopolitismo que não
Pela primeira vez, numa entrevista, disse a na vida que vivemos? Esse teste, esse desafio, vivia aqui, o movimento punk.
idade. Quase 50 anos. Tem um novo projec- mantém-se. Sim, mas o movimento punk vivi-o sobretudo
to, o das microesculturas murais Bloomart. lá fora. Uma das maneiras de respirar era sair
A arquitectura de interiores é vivida como Fale do processo que a fez reconhecer a sua frequentemente de Portugal. Até aos 20 e tal,
uma paixão resgatada. Falámos em casa. A individualidade, destacar as diferenças, entrei e saí constantemente. Para respirar ou-
casa que é por fora como ela é por dentro. demarcar o seu espaço, e reclamar para si tros ares e para me testar a mim própria.
Algo sumptuosa. Horas de conversa à noite a liberdade de viver a vida como a queria
estão resumidas nas páginas seguintes. Quem viver. Tinha a liberdade de sair. Porque tinha um
foi ela, o que foi um tempo. O dominó que a Não posso esquecer que houve dois mar- mundo anterior que lhe dizia que era pos-
levou até ao que hoje é. cos incríveis na minha infância que alimen- sível procurar isso lá fora? Porque tinha
A voz continua muito grave, talvez por cau- taram essa vontade de ser. Uma conversa, dinheiro para o fazer?
sa dos cigarros. O discurso: muito embrulha- em miúda, pequenina, com o meu pai, na Não obrigatoriamente. Na nossa sede de des-
do, complexo. Nada nela é linear. Mas quem qual questionei: “Afinal, quem manda em coberta e afirmação, contrariamos aqueles
disse que as pessoas e a vida são lineares? mim?” O meu pai disse: “Quem manda em que nos passaram princípios, e que às tantas
O cabelo é o mesmo, mais Rita do que Mar- ti és tu. Mas até seres grande e saberes man- dizem: “Isso não! Acabe lá o curso superior.
lene. (Lembram-se daquela cena do Gilda em dar, tenho de te ajudar.” Muito cedo devo ter Não vai para não sei onde. E se vai, eu não
que a Hayworth penteia o cabelo e levanta a achado que era grande o suficiente... [risos] pago.” Portanto, tive ajudas, com certeza, mas
cabeça? Estamos sempre à espera que Anamar A minha mãe deu-me constantemente meios não posso dizer que saí porque tive dinheiro
faça uma coisa assim.) para descobrir outras maneiras de estar na para o fazer. Essas saídas proporcionaram-me
Taróloga eventual. A última vez que alguém vida — ao nível da arte, da dança. Muito ce- experiências de um radicalismo (ao nível da
a viu — tinham-nos dito — foi a dar consultas do percebi que havia mais do que o by the sobrevivência) que não tinha pensado viver
no Lux… Um enigma, rosebud. Entrevistar book. E cresci em Nova Iorque. Houve essa alguma vez na vida.
Anamar é mais do que entrevistar Anamar. É miscigenação de raiz.
saber de um tempo. Sabendo de uma pessoa Um exemplo.
singular. Em que período esteve em Nova Iorque? Co- [pausa] Pedir na rua. Miúda. Na sequência de
mo é que isso se inscreveu na sua vida? uma dessas saídas. Mas também ser ajudada
Tem a noção de viver, ou de ter vivido, às avessas? Fui para lá muito pequenina, regressei com por desconhecidos que fizeram coisas extra-
Não! Porquê? seis anos. Os anos formativos foram vividos
em Nova Iorque. A primeira memória que
Porque a sua vida, sobretudo no período tenho da escola é de um menino chinês, um
rebelde, e nos anos 80, é uma vida que menino negro, um menino branco a correrem
rompe com as convenções e que mostra pelos corredores. Essa é a minha matriz. Os
o avesso. anos 80, para mim, não foram a descoberta
Nunca tive o conceito do avesso e do direito. disso. Tive a bênção de ter isso de berço. Até aos 20 e tal, entrei
Não tenho essa visão do mundo. Romper com
convenções, sim. Faz parte; a adolescência Os anos 80 foram, então, um reencontro
e saí constantemente
deve existir só mesmo para isso, e eu não sou com essa memória, com essa diversidade [de Portugal]. Para
excepção. Vivi sempre o mais às claras possí- e liberdade?
vel. À flor da pele. Essa memória matricial é tão forte que sus- respirar outros ares e
Porque não havia necessidade de esconder?
citou um confronto com um outro ambiente
— que era Portugal nos anos 70. Foi o que
para me testar a mim
Tenho muito pouco juízo de valor em mim.
Sobre os outros, tenho vindo a aprender a
aconteceu na adolescência. Comparativamen-
te, era um horizonte muito fechado. Esse cho-
própria
não julgar, a ser mais inclusiva, a admitir que, melhor ou pior processado, levou-me
que há uma verdade para todos. Atitude que a um conjunto de provocações, levou-me a
toda a vida tive em relação a mim. Eu tinha acintosamente assumir uma rebeldia. Cá fora,
direito a isso, e não podia ser objecto de era um Portugal que tinha vivido a revolução
julgamento por parte de ninguém. Esse di- há pouco, que vivia as convulsões do PREC.

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ordinárias por mim, como se fossem meu pai,
meu irmão, sei lá. Isto para dizer que entre
cantar no Palace (uma referência da movida
parisiense) e pedir na rua, é o oito e o oiten-
ta. Muito da minha adolescência foi o oito e
As esculturas de o oitenta. Na minha sede de saber até onde
Anamar têm várias a vida crescia, ou quais eram os limites — se
camadas de criação é que a vida tem limites —, expus-me a esses
(tintas, texturas, limites.
diversos materiais).
E contêm anéis com Que limites se impôs? Ou não impôs? Que
história, adquiridos é um modo de perguntar até onde estava
por todo o mundo disposta a ir.
Havia limites que tinham que ver com os meus
valores intrínsecos. Não eram limites físicos,
não eram limites religiosos nem morais. Eram
valores que decorriam de uma ética interior.
Humanista. O que é mais sagrado para mim:
a liberdade de ser o melhor de cada um. Isso
impunha-me como limite não tolher, não di-
ficultar, não atraiçoar o outro.

Pedir na rua: viveu-o como sendo uma coi-


sa vexatória?
Era a sobrevivência de adolescentes numa ci-
dade estrangeira. A experimentar o que era a
vida, e se nos virávamos sozinho. Fomos pedir
na rua. Why not? Quem és tu para não fazer is-
so? Princesa? Não foi: coitada de mim, eis-me
a pedir na neve, sozinha, numa rua de Paris.
Não era a Menina dos Fósforos. Confesso que
me custou imenso isso. Nunca tinha estado
daquele lado. Está-se sujeito a emoções como
o desprezo, a ironia, a crítica. Tudo isso nos
olhares. Um acto simples como pedir na rua
pode suscitar emoções violentas.

De Paris seguiu para a Suécia, onde viveu


uns meses, tanto quanto reza a biografia.
Foi assim?
Se me perguntar pela sequência cronológi-
ca, não vai ser fácil... Sim, de Paris fui para a
Suécia. Mas depois de regressar a Portugal,
fui novamente para Paris. Entretanto, tinha
ido para Londres. Esse episódio — pedir na
rua — foi da primeira vez, tinha 17, 18 anos.
Interrompi o Conservatório para ir.

Havia algum medo? Era superior a isso,


mais do que o desejo, a necessidade de
sair?
De o desejo ser superior ao medo: em última
análise, sim, porque eu ia. Tinha receios, ti-
nha. De não me safar. Não tinha receio de ser
atacada, roubada, de não dominar a língua,
de não conseguir trabalhar. Tinha receio de
não ter a estrutura psíquica, a maturidade nos
momentos críticos, perante o desconhecido.
Eu tinha uma lucidez que me permitia aferir
a existência de riscos. Mais importante era a
necessidade de respirar. Até à altura da minha
vida em que descobri, ou fui descobrindo, que
ou se respira por dentro ou não vale a pena
sair e andar à procura.

No Portugal dos anos 70, o discurso era


dominado pelo político, estava-se colecti-
vamente. Culturalmente, era um cenário
engajado. O seu movimento, e o punk no
qual se insere, são outra coisa.
O pouco que vivi do movimento punk nem
foi cá. O movimento punk existiu. Os Minas e
Armadilhas, os Faíscas, o Pedro Ayres [Maga-
lhães], o Zé Pedro [dos Xutos e Pontapés]... c

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Tocava-me que a
Anamar fosse mais
um ícone do que
uma pessoa
entrevista
Rapidamente se passou para a new wave. Os
Heróis do Mar já são new wave. De onde eu
vinha era do ambiente do jazz, das artes plás-
ticas. Os centros eram os cafés. Alguém estu-
dava para Medicina, alguém lia os Cahiers du Com o projecto
Cinéma, alguém trazia um disco dos Clash. Tu- Bloomart, que
do muito enquadrado. Uma certa intelligent- assina com Telma
sia reminiscente de uma França qualquer, ali Teixeira da Silva, cria
condensada em três gatos pingados. O punk, microesculturas que
que lá fora era violento, foi aqui assimilado parecem jóias. São
mais do ponto de vista cultural do que social. esculturas murais que
À boa maneira portuguesa: suavemente. encerram um tesouro
lá dentro
Era um fenómeno muito localizado? Quem
eram os que compunham o grupo?
A grande maioria de nós tinha um nível cul-
tural médio/alto, exigências como tal. Punk
puro e duro, não sei de nada em Portugal. Sei
que nos ligou. Não sei se foi o punk, não sei se
foi a new wave — os rótulos são um mistério.
O que nos ligou foi a necessidade de que a
vida fosse mais ampla. Esse movimento, que
não era o dominante, era o de pessoas que
queriam mais ar, mais vida, mais possibili-
dade, mais tolerância perante a diferença,
mais descobertas de outras formas de estar
no mundo. Pouco ligados a um movimento
colectivo mais político, mais engagé. Todos
tínhamos uma noção messiânica de que tam-
bém era importante trazer essa lufada de ar
fresco. O “tudo é possível” para um ambiente
estreito, como era o ambiente da altura. Não
me identifico se disser: o movimento punk
de que fez parte. Identifico-me se disser: o
movimento dos almados.

O que são almados?


É uma expressão que o Agostinho da Silva (que é
um ser que admiro profundamente) usava. Alma-
dos são as pessoas que têm a alma na boca. Que
não queriam viver à margem dela. Alma essa que
estava sequiosa de possibilidades. A forma como
cada um escolheu descobrir essas possibilidades
não se revelou sempre construtiva.

O que é que a música e os poetas fizeram


por si nessa fase? Como é que a fizeram que-
rer sair, estilhaçar-se contra o mundo.
Algo que me alimentava (além de escrever,
desenhar, dançar, ler, essas coisas): a paixão
pela mitologia. Devorava livros de heróis gre-
gos. Não lia livros de quadradinhos, não lia
Os Cinco, nada. O universo mítico foi o meu
berço, em termos culturais e arquetípicos.
Poetas, filmes, livros, estética: tudo tinha um
sinal que hoje identifico como sendo bigger
than life. Coisas que me obrigassem a trans-
cender-me para as sentir. Ao nível musical,
as minhas grandes referências são as vozes.
Que me arrepiam, que trazem o mundo ne-
las. Cabe aí o Leonard Cohen, mais do que
a Joan Baez. Em vez dos Clash, eu preferia a
Siouxsie & The Banshees nos anos 80. Em vez
dos Beatles, eu preferia os Doors, por causa
da voz do Jim Morrison. Em vez de Pet Shop
Boys, David Sylvian.

Uma figura da mitologia e um mito.


Atenas. O mito que me enfeitiça é a possibili-
dade de, dentro, vivermos mundos sublimes.
Isso habita-me, é a minha casa. Essa utopia
foi alimentada por essas visões e leituras. Se
não a mantiver viva, uma parte de nós morre.
E a vida volta a ser pouca.

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Eu queria descobrir, eu queria construir, não mo tempo, sabia que tinha um lado reservado, tanciamento em relação ao que era vigente
queria rebentar com nada. Queria descobrir o conceptual, cioso da sua privacidade, sensível à e ao meio fadista, também era uma função.
que é que de genuíno trazia para esta vida. criação do belo no anonimato. Porque é que não podemos tocar no fado e
cantá-lo como o Tom Waits o faria? Rasgá-lo
É um modo de perguntar: quem sou eu, o Porque é que se sente tão confortável em como a Siouxsie rasgava. Porque é que não po-
que é que valho, qual é a minha singulari- palco? Porque está bem com o seu corpo? demos pegar no glamour da Hanna Schygulla
dade, qual é a minha cicatriz? Estar no palco implica uma enorme desi- e pô-lo aqui no meio? Porque é que não pode-
Que cicatriz é que deixo — é-me pouco rele- nibição? mos criar algo novo, sincrético de referências
vante. É-me relevante abrir caminhos. Quem É muito comum os animais de palco não se- internacionais, contemporâneas? Porque é
era eu antes de partir? Era alguém à procura rem pessoas desinibidas. O palco tem uma que não podemos pôr os corações do Minho,
do seu espaço, à descoberta do que tinha para técnica, e depois é a chave que entra na fe- de 12 centímetros, nas orelhas, e cantar com
fazer aqui. Era alguém que queria mais. Aquela chadura. Ou as pessoas, naquele ambiente, se uma bateria atrás? Havia uma certa dureza,
que voltou não foi forçosamente alguém que transcendem ou não. Há pessoas que no palco uma certa solidão orgulhosa, uma certa pro-
encontrou mais. Foi alguém que se expôs às são capazes de uma série de possibilidades de vocação que ajudaram a criar essa imagem da
franjas limítrofes do que era aceitável, e que que são incapazes na vida do dia-a-dia. Foi Anamar. E um certo despudor no modo como
com isso ganhou experiência, vida, possibilida- uma das fricções da minha vida pública. O me marimbava para esse julgamento.
des. Nem sempre boas, mas que contribuíram que se passava no palco, enquanto performer,
para a pessoa que sou hoje, também. ficava-me colado à pele. Esteve sozinha na definição dessas perso-
nagens (a porteira, a cantora)?
Era determinante perceber qual era a sua Uma indistinção do espaço público e priva- Que me lembre, criei uma personagem na vi-
forma de expressão? Uma coisa é ir, ter ou- do? Não para si, mas para os outros. da: a Anamar Lusa. A porteira do Frágil é uma
sadia — pura experiência. Outra é saber o Para mim também. Resta saber se a pessoa tem função e foi uma imagem criada com o Manuel
que é que justifica esse movimento e como perfil para lidar com isso. E eu não tinha. Hou- Reis. Mesmo na Anamar há inputs de tantas
traduzi-lo. ve alturas em que a exposição pública foi uma pessoas, tantas vivências... Mas não, não há
O Rumi, um poeta sufi marcante para mim, agressão. Aquilo era um trabalho. Ser cantora, um conselheiro, um mentor. De que modo é
hedonista e inspirado, escreveu sobre a li- ser actriz, trazer para o palco uma certa moder- que eu, Ana, me relaciono com a personagem
berdade de as pessoas se expressarem a par nidade e ousadia, era um trabalho. Pretendia que foi criada na cabeça das pessoas? Nos
e passo de acordo com aquilo que são. De que, ao sair do palco, a minha vida fosse a mi- anos subsequentes, deu para perceber que,
não ter de ser toda a vida cantora, toda a vida nha vida. Eu não queria estar sempre nas luzes fazendo eu o que fizesse, essa personagem era
actriz, toda a vida arquitecta [de interiores]. da ribalta, precisava de resguardo. Basicamente mais poderosa. Há uma impotência quase to-
Uma possibilidade multidisciplinar e de mul- sou uma solitária. Não sou histriónica. tal para desmontar o mito. Foi a coisa menos
tiexpressão. Havia em mim a preocupação de sábia de se fazer. É como querer controlar
saber como é que eu expressaria com qualida- Temia ser olhada como uma pessoa dile- o filme na cabeça dos outros — impossível.
de aquilo que queria expressar. Sempre soube tante? Por não se fixar, justamente, numa A única coisa que se me apresentou como
que jamais iria expressar uma única coisa. coisa apenas. inteligente e válida foi: como é que me rela-
Diletante, nunca me passou pela cabeça. ciono com esse mito, como é que lido com
Nunca pensou que teria uma profissão de- [Vivemos] num ambiente em que a especia- ele, como é que o trabalho que vou fazendo
finida, mais ou menos rígida? Como o seu lização é confundida com prestígio, em que interage com esse mito.
pai, que é médico. o valor da permanência num determinado
Não. Dar-me-ia autorização para ser as coisas que rumo é superior ao das maravilhas da des- A verdade é que toda a vida quis ser bigger
quisesse ser. Desde que as fosse com qualidade, coberta. Eu não correspondo a isso. Nunca than life, quis ser essa personagem.
consistência e verdade. Com presunção, deci- quis corresponder. É tão distante de mim, da Eu quero viver plenamente a vida, e isso é vi-
di cedo que ninguém me dava autorização para minha realidade, que não me toca. É como ver bigger than life. Estou-me nas tintas para as
coisa nenhuma. Eu dava-me autorização, ponto. insultar-me e dizer-me que sou verde. personagens. Os mitos são estáticos. Há coisas
Sabia que queria criar nas artes do espectáculo. que têm um impacto extraordinário, mas que
E queria ser arquitecta e tinha uma proximida- O que é que a tocava, no que as pessoas são datadas. (Como se eu pusesse uma cassete
de com as artes plásticas. Estive em ateliers da diziam? do meu concerto no Rock Rendez-Vous no
Cecília Menano, fiz cursos na [galeria] Quadro e Toca-nos tudo aquilo com que nos identifica- vídeo...) São para ficar lá. Lá, têm um papel
na 111, e não sei o quê na [escola] António Arroio. mos. Tocava-me que a Anamar fosse mais um de referência. Esses mitos que se nos colam à
Ao mesmo tempo que dançava. O território da ícone do que uma pessoa. Houve um impacto pele, descontextualizados, são vazios. Posso
auto-expressão, que implica exposição pública — criado por uma figura que as pessoas iden- actualizar-me a cada instante. Sou íntima de
ser cantora, actriz — era importante. Até porque tificavam comigo, que era eu, basicamente. mim mesma, posso testemunhar isso. Mas as
sou um animal de palco, continuo a ser. Ao mes- Quase parece que essa figura ganhou vida pa- outras pessoas não.
ra além de mim... E se cristalizou numa certa
imagem referencial, que não era eu, mas a Quando pensa na movida dos anos 80, pen-
função que estava a desempenhar. sa numa coisa extraordinária que aconte-
ceu a uma geração?
Um exemplo. Foi um privilégio ter vivido essa movida dos
A porteira do Frágil. Tinha um briefing para ter anos 80. Tal como acho que é um privilégio
Não tenho uma pers- uma atitude. Muito desagradável para quem viver agora. Há uma movida de início de sécu-
pectiva geracional da não entrava, porreiríssima para quem lá estava
dentro. Isso significa que na cabeça de algumas
lo XXI que não é tanto de expressão exterior,
mas que tem um poder... O território da cultu-
vida. E encaro as coisas pessoas, eu era aquela porta fechada. Mais ou ra, do entretenimento, é dos mais influentes
menos snob, mais ou menos provocatória, era ao nível das mentalidades, dos comportamen-
como um dominó. um grande não. Há pessoas que me dizem: “Eu tos, das atitudes, do que cada um respira.
Aquele dominó fez não podia contigo, porque tu barraste-me a por-
ta de entrada no Frágil.” Isso existe! Tal como É possível pensar os anos 80 sem sex, drugs
sentido nos anos 80 existe a Anamar cantora, com a sua provocação
sensual, com a ousadia de pegar em fados não
and rock and roll?
Sex, drugs and rock and roll foi mais anos 60,
tendo uma voz de canário. não foi? [riso]

Como é que construiu a personagem Ana- A música era outra. Mas é possível falar
mar? daqueles anos sem falar disto?
Essa postura que construí, como defesa e dis- É possível, mas é uma generalidade. Nunca c

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vivi esse chavão todo. Vivi partes. A pandilha, a tia dessa premissa: a de o dinheiro e o poder É a ideia da cadeia?
querida pandilha dos anos 80, o Pedro Cabrita serem inimigos da liberdade e da solidariedade É a ideia do sem fim, da relação, da união, da
Reis, o Julião Sarmento, o Manuel Reis, o Pedro e das outras coisas todas que eram boas. Até celebração, do objecto mágico. [Os anéis] foram
Ayres, tantos, tantos. Houve uma condensação aos 20 e muitos anos, mais até, tive uma relação escolhidos pela história que encerram ou por
de carisma per capita, ali, muito forte. Cada disfuncional com essas duas energias — poder serem um objecto único, referencial. Foi criado
um viveu isso à sua maneira. A herança dos e dinheiro. Em si não são boas nem más, de- um acervo ao longo dos anos. Incluindo-os numa
anos 80 em cada um de nós é actualizada de pende de como são usadas. Tive momentos de obra de arte, foi-lhes dada uma nova vida.
maneira diferente. Mas fica ali uma referência muito dinheiro e momentos de pouco dinheiro.
brutal, parada no tempo. Isso é giro. E momentos de grande poder de intervenção A forma esférica, a textura, apontam qua-
e presença e momentos de total impotência. se taxativamente para o rosebud de Orson
Esses que fomos? Houve uma aprendizagem, altos e baixos. Welles, para a decifração inaugural, a quin-
Sim. Mas é só giro. Não tem presença significa- tessência.
tiva além de “esses que fomos”. Como outros, Havia um mínimo que estava adquirido. Isso está na génese da criação destas obras.
noutras épocas, abrimos umas portas. Os dos Uma rede, uma retaguarda. Isso fazia toda São filmes, estas Bloomart, reportando sem-
anos 90 já tinham essas abertas e abriram ou- a diferença? pre ao inaugural e ao essencial. Há uma banda
tras. Não tenho uma perspectiva geracional Estaria a ser ingrata se dissesse que não tinha sonora própria para elas, há uma plasticidade
da vida. E encaro as coisas como um dominó. retaguarda. Mas vivia como se não tivesse. Até para elas. Há metais exactos para passar de-
Aquele dominó fez sentido nos anos 80. O que por uma questão de orgulho. Então a miúda terminada energia. Há uma presença cromáti-
estou a fazer agora é Anamar hoje. Tem graça é rebelde e vem agora pedir batatinhas? Nem ca com determinado efeito. É possível entrar
falar da história, não mais do que graça. pensar! Mais do que o orgulho, era uma questão dentro daquela obra de arte e interagir com
de validação pessoal. Eu tinha de ser capaz. ela. Em breve vamos fazer uma exposição das
O que é que o tarot tem a ver com isto? De me responsabilizar pelo pacote todo. Sou peças, num sítio de referência.
Lançava as cartas do tarot no Lux. uma self-made woman, com uma estrutura de
Há encontros na vida que são essenciais e estru- apoio (família, amigos, virtuosos acasos). Mas Chamavam-lhe Marlene do Tejo. Marlene,
turantes para fazermos um caminho de auto- há um sentimento de total responsabilização a mais misteriosa das actrizes.
descoberta. Recebi como presente de aniversá- pelo bom e pelo mau que me acontece. Quando Marlene do Tejo, Dama da Noite, essas coisas.
rio da minha mãe, aos 20 anos, uma consulta de se tem filhos, a questão do dinheiro coloca-se, Não sou nada disso. Sou brincalhona, espon-
astrologia. (A minha mãe é outra figura muito a questão de um determinado nível de vida tânea. Sou uma tipa mental, brinco muito com
importante na minha vida.) A astrologia é uma coloca-se. De gémeos, separada do pai e com as ideias, as imagens e danço e exponho-me.
ferramenta de conhecimento extraordinária. uma realidade de artista que é flutuante. O Al- Não me passa pela cabeça fazer uma franja e
Houve uma altura em que pratiquei profissio- cântara Café, o Frágil, a dada altura [onde era um penteado não sei o quê para ficar com um
nalmente, dei consultas, estudei afincadamen- relações públicas], tinham muito que ver com ar misterioso. Ou olhar penetrantemente para
te. A seguir à astrologia, veio o aprofundamento isto: que base económica existia para propor- um objecto para ficar não sei que mais. Não me
da linguagem do tarot. Foi nos anos 90. Não cionar bem-estar a mim e aos meus. passa pela cabeça a gestão do claro-escuro.
sou taróloga, não pratico profissionalmente. É
uma linguagem facilitadora, como há outras. Que idade têm os seus filhos? Tudo seria diferente na sua vida se não
Como a própria psicologia. O entendimento da Vão fazer 21 daqui a bocadinho. fosse bonita?
dimensão invisível, que é a mais essencial na Mais do que bonita, acho que sou uma mulher
existência humana, é um objecto de estudo e Por que nome responde hoje? Anamar é a feia-bonita (o meu segundo LP chamava-se Feia
de paixão muito grande para mim. cantora e actriz, a personagem dos anos Bonita). Não tenho uma beleza tipo estampa,
80. Mas se vai ao café, ao banco, à escola bela todos os dias — nada disso. Há um carisma
Dava consultas para ganhar dinheiro? Não dos filhos, é quem? qualquer que me envolve. Uma energia. Admi-
se falou ainda da importância do dinheiro À conta de uma vontade de anonimato e da to que seja responsável por esse conjunto de
na sua vida. Se ele foi determinante. Se to- necessidade um tempo de resguardo que ter- títulos e medalhas [riso]. Honestamente, não
lheu caminhos, se deu a possibilidade de minou — de outro modo não estaríamos aqui faço por isso. Há outra componente que pode
fazer coisas. a conversar —, sinto-me agora num tempo em alimentar esse lado misterioso ou sensual: sou
Seja por uma ascendência de esquerda, seja por que a exposição ou não-exposição fazem parte uma esteta por natureza, a começar por mim.
[provir de] uma família com algum dinheiro, da minha vida. Foi um tempo que coincidiu Gosto de me sentir bem com a roupa que visto,
seja por eu própria menosprezar a sua impor- com uma opção de fundo em termos profis- adoro botas; gosto de me sentir bem com o meu
tância, até muito tarde achava que o dinheiro sionais; entendi abraçar a minha paixão pri- corpo. Essa relação sensual começa e acaba co-
era mau, vil. Nunca estive comprometida com meira, que era a arquitectura. Estive a estudar migo. Excepto em cima de um palco. Não é para
qualquer corrente política existente. Brincava e a trabalhar em arquitectura e design de in- ter um impacto no exterior que me penteio.
dizendo que era monarco-anarquista. Mas par- teriores, coisa que ainda faço. Já se passa há Ando quase sempre desmaquilhada.
mais de uma década. Decidi usar o meu nome
de família. Concomitantemente saiu o disco Que idade tem?
Transfado, houve concertos. Digamos que na 49. Há uma juventude que, no meu caso, será
minha profissão secreta, aquela que não es- eterna. Juventude cá dentro. Free spirit. Neste
tava sujeita a exposição, dava pelo nome Ana momento sinto-me sem idade. Sinto-me mais
de Brito. Era frequente as pessoas confron- livre dentro de mim agora do que quando ti-
Sou brincalhona, tarem-me: “A sua cara não me é estranha.” E nha 20 anos. Mais capaz de ser eu própria.
espontânea. Sou uma terminei com isso. Assumi o Anamar. Porque me habita uma paz que era impos-
sível sentir com aquela sofreguidão. O que
tipa mental, brinco De momento está envolvida no projecto
Bloomart. Porque é que decidiu fazer es-
veio substituir uma vontade de experienciar e
puxar ao limite as possibilidades da existência
muito com as ideias, tas peças, microesculturas que parecem foi uma alegria imensa. Passamos a ser donos
jóias? de nós próprios. Ter um veículo físico que
as imagens e danço e É um projecto criado por mim e pela Telma permita viver isso plenamente, por dentro
exponho-me Teixeira da Silva. São esculturas murais que
encerram um tesouro lá dentro. Anéis. É uma
e por fora, é importante. O confronto com a
acção do tempo: é mais determinante para as
obra de arte que tem várias camadas de cria- mulheres que foram consideradas bonitas ou
ção (tintas, texturas, diversos materiais). E ícones. Como é que isso se processa? Não sei.
inclui uma obra realizada por outrem: anéis Estou a aprender. a
com história, adquiridos por todo o mundo.
O anel é um símbolo de ligação, um elo. anabela.mota.ribeiro@publico.pt

42 • 17 Janeiro 2010 • Pública

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