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Anamar
Há uma
juventude
que, no meu
caso, será
eterna
Isto não é um: o que é feito da Anamar. Embora se saiba dela
anos depois do Frágil e d’ A Canção do Mar. Isto é um lugar e
um tempo. Lisboa e os anos 80. Anamar e a pós-modernidade.
Isto é a crónica de uma almada. Saiba o que é essa condição,
cunhada por Agostinho da Silva.
Entrevista Anabela Mota Ribeiro Fotografia Clara Azevedo
E
la já foi Rita Hayworth reito, sempre o vivi transparentemente. Isso Regressei de Nova Iorque em 65/66. Mas fui
no S. Luiz, no espec- exclui o julgamento, e o avesso e o direito. para o Colégio Inglês, continuei a viver numa
táculo Wild Cabaret. Pormenor: houve uma fase da minha vida bolha. Entretanto, foi o liceu. Entretanto, os
E a Marlene do Tejo, em que achava as roupas mais bonitas do meus pais separaram-se. Entretanto, houve
nas noites dos anos avesso que do direito. o 25 de Abril. A pressão política que teste-
de 1980, em Lisboa. É munhava longinquamente em casa, porque
cantora de repertórios Em que momento é que isso aconteceu? o meu pai era de esquerda, nunca a vivi na
improváveis. Tango, Dizia respeito a quê? pele. Deixou de haver esse manto com o 25
fado, música popu- No final dos anos 70, ia bater no punk. Tinha de Abril. Mas o horizonte continuava fechado.
lar americana — toda mais conteúdo vestir um kilt ao contrário Os juízos de valor continuavam rígidos. A vida
a subversão por detrás. Não por acaso, um do que direito. O kilt do direito, vestia-o no continuava pouca.
dos seus discos chama-se Transfado (2004). colégio. Isso reportava-me para uma visão
Trans-qualquer coisa. Transmutação vai bem instituída. A vida continuava pouca?
com ela. E irreverência. Artista sincrética. Era como eu a sentia. A minha rebeldia: não
Punk por acidente. Viajante por condição. Um dever ser? diria que foi para provocar os outros, e muito
Ana, Anamar desde a Suécia, onde viveu me- Tive o privilégio, da parte dos meus pais, de menos para provocar quem gostava de mim
ses e foi vocalista da banda Odd Combo. Para não ter tido de corresponder a uma moral (os meus pais, os meus avós). Foi esse sen-
trás, a Lisboa da Avenida de Roma, um certo vigente. Tive-o da parte da família mais con- timento de escassez de liberdade, foi o não
quadro burguês. Ana Almanave no primeiro vencional, sim. O dever ser, até determinada sentir cumplicidade com o que nos rodeava.
disco a sério (1987), e A Canção do Mar nunca altura, não fez mossa nenhuma na minha vida. E não era a única. Havia tantos outros que
mais foi a mesma coisa. Foi a mulher sedu- Passou a fazer alguma quando, na expressão acabámos por nos juntar e formar aquilo que
tora de Repórter X, de José Nascimento (pai da minha individualidade, me confrontei com hoje, historicamente, se chama o movimento
dos seus filhos). Actriz de Joaquim Leitão. A o facto de ela não ser síncrona com os “de- dos anos 80.
porteira do Frágil. O ícone de um tempo. Uma veres seres” que me rodeavam. E começou
da “querida pandilha dos anos 80”. Anamar, todo o processo de teste. Até onde temos li- Antes disso viveu, como forma de rebelião,
a pós-moderna. berdade de ser no mundo em que estamos, e para respirar um cosmopolitismo que não
Pela primeira vez, numa entrevista, disse a na vida que vivemos? Esse teste, esse desafio, vivia aqui, o movimento punk.
idade. Quase 50 anos. Tem um novo projec- mantém-se. Sim, mas o movimento punk vivi-o sobretudo
to, o das microesculturas murais Bloomart. lá fora. Uma das maneiras de respirar era sair
A arquitectura de interiores é vivida como Fale do processo que a fez reconhecer a sua frequentemente de Portugal. Até aos 20 e tal,
uma paixão resgatada. Falámos em casa. A individualidade, destacar as diferenças, entrei e saí constantemente. Para respirar ou-
casa que é por fora como ela é por dentro. demarcar o seu espaço, e reclamar para si tros ares e para me testar a mim própria.
Algo sumptuosa. Horas de conversa à noite a liberdade de viver a vida como a queria
estão resumidas nas páginas seguintes. Quem viver. Tinha a liberdade de sair. Porque tinha um
foi ela, o que foi um tempo. O dominó que a Não posso esquecer que houve dois mar- mundo anterior que lhe dizia que era pos-
levou até ao que hoje é. cos incríveis na minha infância que alimen- sível procurar isso lá fora? Porque tinha
A voz continua muito grave, talvez por cau- taram essa vontade de ser. Uma conversa, dinheiro para o fazer?
sa dos cigarros. O discurso: muito embrulha- em miúda, pequenina, com o meu pai, na Não obrigatoriamente. Na nossa sede de des-
do, complexo. Nada nela é linear. Mas quem qual questionei: “Afinal, quem manda em coberta e afirmação, contrariamos aqueles
disse que as pessoas e a vida são lineares? mim?” O meu pai disse: “Quem manda em que nos passaram princípios, e que às tantas
O cabelo é o mesmo, mais Rita do que Mar- ti és tu. Mas até seres grande e saberes man- dizem: “Isso não! Acabe lá o curso superior.
lene. (Lembram-se daquela cena do Gilda em dar, tenho de te ajudar.” Muito cedo devo ter Não vai para não sei onde. E se vai, eu não
que a Hayworth penteia o cabelo e levanta a achado que era grande o suficiente... [risos] pago.” Portanto, tive ajudas, com certeza, mas
cabeça? Estamos sempre à espera que Anamar A minha mãe deu-me constantemente meios não posso dizer que saí porque tive dinheiro
faça uma coisa assim.) para descobrir outras maneiras de estar na para o fazer. Essas saídas proporcionaram-me
Taróloga eventual. A última vez que alguém vida — ao nível da arte, da dança. Muito ce- experiências de um radicalismo (ao nível da
a viu — tinham-nos dito — foi a dar consultas do percebi que havia mais do que o by the sobrevivência) que não tinha pensado viver
no Lux… Um enigma, rosebud. Entrevistar book. E cresci em Nova Iorque. Houve essa alguma vez na vida.
Anamar é mais do que entrevistar Anamar. É miscigenação de raiz.
saber de um tempo. Sabendo de uma pessoa Um exemplo.
singular. Em que período esteve em Nova Iorque? Co- [pausa] Pedir na rua. Miúda. Na sequência de
mo é que isso se inscreveu na sua vida? uma dessas saídas. Mas também ser ajudada
Tem a noção de viver, ou de ter vivido, às avessas? Fui para lá muito pequenina, regressei com por desconhecidos que fizeram coisas extra-
Não! Porquê? seis anos. Os anos formativos foram vividos
em Nova Iorque. A primeira memória que
Porque a sua vida, sobretudo no período tenho da escola é de um menino chinês, um
rebelde, e nos anos 80, é uma vida que menino negro, um menino branco a correrem
rompe com as convenções e que mostra pelos corredores. Essa é a minha matriz. Os
o avesso. anos 80, para mim, não foram a descoberta
Nunca tive o conceito do avesso e do direito. disso. Tive a bênção de ter isso de berço. Até aos 20 e tal, entrei
Não tenho essa visão do mundo. Romper com
convenções, sim. Faz parte; a adolescência Os anos 80 foram, então, um reencontro
e saí constantemente
deve existir só mesmo para isso, e eu não sou com essa memória, com essa diversidade [de Portugal]. Para
excepção. Vivi sempre o mais às claras possí- e liberdade?
vel. À flor da pele. Essa memória matricial é tão forte que sus- respirar outros ares e
Porque não havia necessidade de esconder?
citou um confronto com um outro ambiente
— que era Portugal nos anos 70. Foi o que
para me testar a mim
Tenho muito pouco juízo de valor em mim.
Sobre os outros, tenho vindo a aprender a
aconteceu na adolescência. Comparativamen-
te, era um horizonte muito fechado. Esse cho-
própria
não julgar, a ser mais inclusiva, a admitir que, melhor ou pior processado, levou-me
que há uma verdade para todos. Atitude que a um conjunto de provocações, levou-me a
toda a vida tive em relação a mim. Eu tinha acintosamente assumir uma rebeldia. Cá fora,
direito a isso, e não podia ser objecto de era um Portugal que tinha vivido a revolução
julgamento por parte de ninguém. Esse di- há pouco, que vivia as convulsões do PREC.
Como é que construiu a personagem Ana- A música era outra. Mas é possível falar
mar? daqueles anos sem falar disto?
Essa postura que construí, como defesa e dis- É possível, mas é uma generalidade. Nunca c