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SUBDESENVOLVIMENTO, ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA MICHEL CROZIER “No comércio, nas viagens de exploragéo etc, quando temos pela frente um negécio @ um alvo, veriticamos qual 0 caminho mais curto e por éle enveredamos sem perda de tempo. Na burocracia é o contrario: veriti- ‘camos qual 0 caminho mais longo e é néle que entramos com todo o vagar possivel.” — C. Dosst Um dos fatéres determinantes para o desenvolvimento de umia sociedade é a sua capacidade administrativa ou orga- nizacional, quer dizer, a precisdo, o rigor e a eficdcia das administragdes publicas e privadas, e a possibilidade de coordenar as complexas atividades modernas sem corrup- ¢ao, sem opressdo e sem desordem. Certamente, essa capacidade administrativa nao é, em si mesma, mais do que um resultado. Ela nos conduz a nu- merosos’ outros problemas culturais, econémicos e politi- cos que devem ser amplamente estudados. Por outro lado, a analise dessa capacidade administrativa se reflete, tam- ‘bém, em problemas especificos cuja importancia nem sem- pre é avaliada na medida das necessidades. (1) O cres- cimento das “burocracias” e a hostilidade que lhes é geral- MicHEL Crozier — Diretor do “Centre Européen de Sociologie”. Nota da Redacdo: Este artigo é reproduzido com autorizacao do autor e da revista Sociologie du Travail, onde foi publicado em outubro/dezembro de 1962 (ano 4, pags. 367-378). Baseia-se em palestra proferida no Congresso ‘Mundial de Sociologia, em Washington, em setembro de 1962, e foi traduzido do original francés por Carlos Osmar Bertero. (1) Frep W. Rices, “Public Administration: A Neglected nomic Development”, Annuals of the American Academy of Polit Science, maio de 1956. 118 ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA RAE/9 mente manifestada pela grande maioria da populacgéo po- dem ser considerados como fenémenos auténomos, com sua problematica prépria, cuja analise empirica e teérica deveria permitir a descoberta de novos aspectos na socio- logia do desenvolvimento e conduzir, eventualmente, a ela- borac4o de novos métodos de agao. A AUTONOMIA BUROCRATICA DO ESTADO Nos paises que se encontram em desenvolvimento, o pro- blema se pée, sobretudo, no setor da administragao pdbli- ca, onde se reveste de uma acuidade particular. Diversos fatéres, tanto politicos como sociais e técnicos, sao respon- saveis por essas dificuldades. O primeiro désses fatéres é de ordem histérica e contingen- te. Esta ligado ao passado colonial da maior parte désses paises e A maneira pela qual adquiriram sua independén- cia. A luta contra o poder colonial mobilizou todos os esforcos e todas as possibilidades de inovacdo da sociedade. O sucesso foi obtido através de meios politicos e adminis- trativos que se situavam na esfera politica. O seu sim- bolo é o névo Estado que atrai tédas as habilidades, tédas as esperangas e tddas as ambicdes. Se o escol das socie- dades modernas pensar em exprimir-se apenas por meio dos servicos do Estado, sera na Administrag&o e apenas na Administracdo que sero encontradas fércgas para renovar, transformar e dinamizar o processo de desenvolvimento. A esta preeminéncia do Estado e de sua administragéo acrescentam-se geralmente dois fatos: de um lado, o des- crédito das emprésas capitalistas, freqiientemente em mos estrangeiras ou aldégenas e, de outro lado, a tendén- cia natural do grupo dominante a fundamentar seu poder e a estender sua influéncia por meio da distribuicéo de empregos ptblicos e semiptblicos a uma clientela cada vez mais numerosa. (2) (2) JosEPH BEN Davin, “La nouvelle clase dans les pays scus-développés”, Esprit, fevereiro de 1958, pags. 201-212. RAE/9 ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA 119 A luta contra 0 capitalismo estrangeiro ou contra o capita- lismo mais estreitamente unido a grupos estrangeiros é conseqiiéncia inevitavel do processo de independéncia e do clima no qual ésse processo geralmente se desenvolveu. Mas, se as mesmas armas séo empregadas, o terreno do combate é diferente, e desta vez nado mais s4o os partidos politicos e a agéo da massa que saem reforgados, mas ape- nas as burocracias do Estado, as inicas capazes de fazer funcionar as organizag6es expropriadas dos capitais estran- geiros. A importancia dos riscos sé reforca o fascinio que o Estado exerce sdbre as elites, afastando-se das inovacées técnicas, econémicas e cientificas que constituem a infra- -estrutura necessaria do desenvolvimento dos paises in- dustrializados. (3) O crescimento de grupos de “clientes” no poder responde a uma forte necessidade nas sociedades em transicao, que procuram, desesperadamente, atingir a estabilidade. A multiplicagaéo dos cargos administrativos constitui o Gnico meio de recompensar os gestos de boa vontade e assegurar fidelidade . A hipertrofia do setor terciario e administrativo que resul- ta das pressdes conjugadas torna-se mais irresistivel por- que todos ésses paises, em via de desenvolvimento, tém diante de si o exemplo de paises industrializados que lhes oferecem a imagem te atividades administrativas nume- rosas e prestigiadas. No mundo atual o “status” de uma nac&o se mede, sobretudo por sua aparéncia como “Esta- do”, e os governos, bem como as elites, séo incapazes de resistir ao desejo de “aparecer” que os faz competirem. A rapidez da evolugdo parece, finalmente, propor aos pai- ses em via de desenvolvimento modelos superiores aos seus proprios recursos. queremos dizer com isso que as elites se afastam das técnicas mo- dernes, mas que elas véem estes técnicas como modelos a serem imitados ou receitas a serem aplicadas e que negligenciam as pesquisas e as inovacées, os ‘anicos elementos que Ihes poderiam permitir um desenvolvimento independen- te @ harmonioso. 120 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/9 Mas, ésses exemplos e os fatéres histéricos contingentes que os causaram nao teriam influéncia tao grande, nao existissem, ao mesmo tempo, condigdes técnicas imperati- vas. Os objetivos ambiciosos a que tédas as sociedades em via de desenvolvimento se propdem exigem planificag&o rigorosa e intervengao do Estado. A pobreza de recursos é de tal ordem que apenas o conjunto estatal parece poder mobilizar os recursos interiores e exteriores, materiais e psicolégicos, que séo indispensaveis . Surge, entdo, o problema da ac&o de uma minoria evolui- da, partidaria das perspectivas de industrializacao, sébre as massas analfabetas e conservadoras, sem divida influen- ciadas por idéias nacionalistas, mas naturalmente dispostas a resistir a toda mudanca. Como podera a minoria vir a exercer sua influéncia? Le- vando-se em considerac&o a ideologia dessa minoria e as condicgdes de sua luta contra o poder colonial e o modélo idealizado de sociedade moderna, extraido dos exemplos ocidentais ou soviéticos — modélo que essa minoria de- seja, apaixonadamente, impor aos seus paises em via de desenvolvimento —, segue-se que sé seria possivel traba- Thar pelo desenvolvimento:na perspectiva de uma acdo pla- nificadora e coercitiva por parte do Estado. Sucede que essa orientac¢éo da minoria se torna perigosa a medida em que tende a considerar apenas os objetivos aserem atingidos, sem levar em conta os meios necessarios para tanto e sem perceber que, muito mais do que suas eventuais fraquezas politicas, o que de fato Ihes limita as possibilidades de realizag&o é a ignorancia désses meios. Essa minoria tendera a utilizar as formas de organizacio mais simples e mais brutais, aquelas que atingirao as mas- sas mais de imediato. Tais formas, porém, vao perpetuar a distancia social e os habitos de submissdo, tornando cada vez mais dificil aos novos dirigentes o exercicio de uma ac&o em profundidade, ao que responderao com o desen- volvimento crescente do poder burocratico, RA. ADMINISTRACAO E BUROCRACIA 121 Eis que caimos num circulo vicioso.. Nao vemos outro meio de introduzir as formas moternas de organizacao, a nao ser por meio da coac&o, que desperta a hostilidade e detém o progresso. A burocracia é indispensavel e, ao mesmo tempo, o obstaculo mais dificil de ultrapassar . Ela se comporta, cada vez mais, como um fenémeno auténo- mo que impée aos acontecimentos um curso determinado. AS DISFUNGOES BUROCRATICAS ¥ nesta perspectiva que a reflexéio do sociélogo sdbre os caracteres particulares da burocracia, como sistema de or- ganizacao, pode trazer contribuic&o de notavel valor para a solucao dos problemas dos paises em desenvolvimento. De inicio, um primeiro equivoco deve ser dissipado.. E 0 que diz respeito 4 confusdo reinante entre, de um lado, a tendéncia geral & “burocracia”, assinalada por Weber e, de outro lado, a burocracia no sentido vulgar e pejorativo do térmo, que evoca a morosidade, a rotina, a ineficdcia e a falta de democracia de um “organismo burocratico”, e que corresponde aos estudos de disfungées realizados por so- cidlogos. Ja o proprio Max Weber (4), em certas pas- sagens, e, mais tarde, no essencial de suas obras, além de pensadores revolucionarios como Rosa Luxemburg, Bruno Rizzi, Simone Weil (5), francos atiradores como James Burnham (6), e conservadores como William H. Whyte Jr. (7), todos confundiram o crescimento das organizagGes com 0 crescimento das disfungdes burocraticas, ou seja, o crescimento da opressio. Essa tese, que ainda encontra numerosos adeptos, no deixa margem 4 esperanga, salvo (4) Vide, por exemplo, as observacées de WEBER no Cangresso do Verein fuer Sorialpolitik (1909) citades por J. P. MAYER, Max Weber and German Politics, Londres, Faber and Faber, 1943, pags. 127-128. (5) Vide, por exemplo, o nimero da revista Arguments 4 (17), 1960, sdbre ‘a burocracia, com numerosas citagdes de TROTSKY, RoSA LUXEMBURG, BRUNO Rizzi e Simone Wer, (6) JAMES BURNHAM, L’Ere des Organisateurs, traduzido do inglés, Paris, Celmann-Lévy, 1947. Q. W. H. Wuyre Je, The Organization Man, Nova Torque, Simon ¢ Shuster, 19! 122 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/9 nas utopias revolucionarias milenaristas ou numa impos- sivel volta ao passado. Ela é particularmente desencora- jadora para os paises em via de desenvolvimento, aos quais nao deixa outra solugdo a nao ser a opressdo burocratica . Os estudos cientificos das disfungées, infelizmente ainda pouco numerosos, mostraram, contudo, n4o existir relacées simples entre o crescimento das organizagdes e o desen- volvimento da burocracia como forma de rotina e de opres- sAo. Podemos, ao contrario, sustentar que nas sociedades onde as grandes organizacées dominam ha, geralmente, mais democracia, mais participagao e mais iniciativa indi- vidual . Na&o entraremos, aqui, no mérito dessas controvérsias. Mas, distinguiremos, precisamente, a concentrag&o de ati- vidades naturais humanas em unidades cada vez maiores — ou seja, nessas unidades que o grande ptblico chama de burocracia —, e nos deteremos no estudo das disfun- ges que tal térmo encobre. Esse problema aflige os paises em desenvolvimento, que se encontram em dificuldades, nao por deverem criar grandes organizagées, mas por nao possuirem capacidades administrativas necessarias para evitar, ao criar essas organizacées, o desenvolvimento de disfungdes burocraticas . A primeira teoria sébre as disfuncdes burocraticas, exposta por Merton em 1940, acentua a deformacio sofrida pelo agente executivo, ou seja, pelo burocrata. (8) A disci- plina necessdéria para obter, no quadro burocrdtico, um comportamento padronizado, tem como conseqiiéncia um tdesvio dos objetivos por parte dos funciondrios —‘a’‘atitu- de ritualista — e a rigidez resultante acaba por tornar dificil a adaptacdo do funcionario ao seu trabalho. Para- lelamente ao nivel do grupo, essa rigidez desenvolve 0 es- Pirito de casta, o que cria uma lacuna entre o piblico e a organizacdo, tornando esta, conseqiientemente, menos eficaz. (8) Roserr K. MERTON, “Bureaucratic Structure and Personality”, Social Forces, VIII, (1940), pags. 560-568, RAE/ ADMINISTRACAO E BUROCRACIA 123 Gouldner, dez anos mais tarde, propds um esquema mais complexo e mais geral: a disfuncdo constitui uma espécie de circulo vicioso. (9) As regras burocraticas reduzem as tens6es criadas pela subordinac&o e pelo contréle, mas, ao mesmo tempo, protegem essas tensdes e aumentam as di- ficuldades que tornam indispensAvel o recurso 4 subordi- nacio e ao contréle, em particular as diferencas de valores entre grupos, a impossibilidade de elaborar normas acei- taveis para todos e o declinio das intengdes informais de amizade. Essas teorias chamam a atencdo a pontos sensiveis de um sistema de organizacao e, mais particularmente, as fontes da rotina e da ineficacia burocraticas. Entretanto, elas continuam sendo estaticas e descritivas e nado colocam em evidéncia os fatéres de evolucdo que determinam a maior ou menor importancia das referidas disfungées burocra- ticas. Tentamos, recentemente, propor uma teoria mais dindmi- ca, a partir de progressos recentes da teoria das organiza- ges, utilizando em especial os resultados dos estudos sé- bre tomada de decisfo. (10) Para nés um sistema de or- ganizac&o burocratica é um sistema bastante rigido para ser corrigido em funcao dos seus erros e para adaptar-se, sem crise, A transformacgao do seu meio ambiente. A ri- gidez, ou se quisermos, o circulo vicioso burocratico esta condicionado ao sistema de govérno adotado pela organi- zacg&o, ou, em térmos mais simples, aos meios que a orga- nizac&o utiliza para obter de seus membros o minimo de sintonia necessario ao seu funcionamento. Esses sistemas de govérno ou ésses meios devem responder, simulténea- mente, aos fins da organizacdo e as necessidades do indivi- duo. Os individuos e os grupos que exercem pressaéo, num. sentido burocratico ou ritualistico, nao o fazem por terem (9) ALBIN GoULDNER, Patterns of Industrial Bureaucracy, Glencoe, Free Press, 1953. (10) MicHet Crozier, “De la Bureaucratie Comme Systéme d'Organization”, Archives Européennes de Sociologie, 1961, n.° 1, pags. 18-46. 134 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/I sido deformados pelo mundo ao qual devem submeter-se, ou por estarem ligados ao passado, mas sim por terem ne- cessidade absoluta da protecéo que Ihes oferece a rigidez burocratica: para promover seus interésses. Quanto mais brutais e coatores forem os meios empregados para obter a sintonia, tanto mais forte devera ser essa protecao. Se admitirmos essa primeira definig&o e ésse esquema, a importancia da rigidez burocratica depende de varios fa- téres independentes. Temos, em primeiro lugar, a aptidao da populac&o para sintonizar-se com as condigées ambien- tais necess4rias; em segundo, o “quantum” de sintonia re- querido pelas atividades para que estas sejam bem condu- zidas; e, finalmente, a escolha de objetivos e meios, efe- tuada pelos dirigentes em func&o dos fatéres precedentes. A aptidao do pessoal potencial de uma administragao pata sujeitar-se ds regras depende de seu grau de desenvolvi- mento tecnolégico e dos tragos particulares de seu sistema cultural. N&o ha necessidade de insistir s6bre os fatéres acima mencionados. Eles constituem o tema central de muitas das pesquisas levadas a efeito sObre os problemas de desenvolvimento. Temos observado, entretanto, que, freqiientemente, se persiste em examinar os problemas da adaptacgao a vida urbana e a vida industrial, sempre con- siderados os individuos no seu aspecto mais passivo. Gos- tariamos de sugerir que as novas pesquisas féssem realiza- das com o fim de compreender o papel ativo desempenha- do nas organizagées administrativas pelos grupos em via de aculturagéo, bem como a presséo que éstes exercem sObre a organizacao e, finalmente, os meios de que se va- lem para exercé-la. Menos estudado, ainda, foi o montante de sintonia neces- sArio dentro de uma organizacao. Parece confirmar-se que © progresso das técnicas de organi.agdéo e uma melhor com- ‘preensdio da psicologia do individuo e dos grupos que se encontram no seio de uma organizagao, ja permitem que ‘uma menor sintonia seja suficiente dentro das organizacées RAE/S ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA 125 mais avancadas. A previséo com um pessoal melhor adap- tado podera substituir gradativamente, pelo menos em parte, a coagéo e a manipulacao no interior das organiza- g6es. Enfim, na sociedade como um tcdo a planificacao menos rigida permitira ao agente econdmico o exercicio de sua liberdade, atingindo-se com isto o resultado desejado pela coordenacao. Podemos concluir, de maneira muito geral, que a evolucado das formas de organizacao em nossas sociedades industriais deveria permitir uma tolerancia maior em face das singu- laridades e das necessidades de cada individuo, e que, por outro lado, os préprios individuos deveriam sentir-se mais livres e mais fortes em face da sociedade e das organiza- ges de que fizessem parte, 4 medida em que téda parti- cipacgao os aliciasse menos acentuadamente e éles fossem mais facilmente capazes de libertar-se dessas organizacées e da sociedade, encontrando solugdes de substituicéo ma- teriais e morais. Enquanto na Idade Média apenas as or- ganizacées de formas rigidas, talvez apenas as de tipo mo- nastico, absorviam o individuo até o mais intimo de seu comportamento, fazendo-o atingir uma eficacia razoavel, na nossa sociedade industrial temos de ligar-nos a organi- zagdes muito mais superficiais, capazes de satisfazerem-se apenas com uma lealdade temporaria sem que sua efica- cia seja atingida. O Ultimo dos trés fatéres limita, todavia, a extensdo destas conclusées. A escolha que os dirigentes podem fazer dos objetivos a serem procurados e os meios a serem emprega- dos em fungao dos fatéres precedentes nao sdo insignifi- cantes. Certo é que nas sociedades mais avancadas a im- portancia déste ultimo fator é relativamente pequena, via de regra, porque o desenvolvimento, teérico e pratico, da reflexdo sébre as organizagdes tende a tornar os dirigentes cada vez mais conscientes da interdependéncia dos fins e dos meios e da prioridade a ser dada ao estudo dos meios organizacionais na definicgaéo dos objetivos e dos progra- mas. Cada vez mais nos certificamos de que o tnico meio 126 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/9 de que uma organizacAo dispde para superar os obstaculos que se opdem ao seu crescimento é a descentralizacgéo, ou seja, é tornar-se mais flexivel e quebrar os circulos vicio- sos burocraticos que a paralisam. O que podemos dizer, afinal, 6 que a flexibilidade, 4 medida que torna mais su- portavel a participacdo dos individuos em atividades pa- dronizadas e controladas, permite que estas atividades se desenvolyam ao maximo. © BLOQUEAMENTO BUROCRATICO NO DESENVOLVIMENTO A situacdo é totalmente diferente nos paises em desenvol- vimento. Governantes e governados recusam-se, geral- mente, a reconhecer a interdependéncia dos fins e dos meios, porque temem, implicitamente, que, se derem mui- ta importancia aos meios, terao de renunciar aos objetivos que simbolizam sua independéncia e maturidade. Tente- mos ver como pode nosso esquema aplicar-se a tal situagao. Ao contrario das opinides dos pessimistas revolucionarios de 1920, parece, afinal, que a opressdo burocratica é mais um fato do passado do que um fenémeno atual, pois séo justamente os paises em desenvolvimento, e déstes os mais revolucionarios, aquéles que estéo mais arriscados a ser atingidos pela opresséo burocratica. Se aceitarmos o es- quema que acabamos de propor, veremos que é nos paises em desenvolvimento, especialmente nos mais revoluciona- rios, que os fatéres de rigidez sio mais numerosos e mais poderosos. Para que uma organizacao ou um conjunto social pudesse corrigir-se, facilmente, em fungdo de seus erros, e adap- tar-se, sem crise, as transformacées de seu ambiente, seria necessario que as comunicacées féssem mais faceis entre a base e o tépo, entre os dirigentes e os dirigidos. Seria, ain- da, necessario que as transformacées do meio ambiente nao féssem muito grandes e que os objetivos estivessem a altura dos meios organizacionais disponiveis. Sébre todos &sses pontos os paises em desenvolvimento, naturalmente, acumulam as maiores dificuldades. Nao sé sero éles mais RAB/D ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA 127 profundamente afetados que os desenvolvidos pelas dis- fungées burocraticas, como também a natureza dessas dis- fungées seré anacrénica com relac&o as disfuncées dos pai- ses mais adiantados. O ritualismo, descrito por Merton e que se constituiu na alegria dos romancistas europeus do século XIX, quase de. sapareceu das administragées adiantadas, piblicas e pri- vadas e floresceu com mais exuberancia nas administra- g6es dos paises em desenvolvimento. Aqui os fatéres de deformagao profissional se encontram com as necessidades de protecao, procedendo as duas influéncias da existéncia da imensa lacuna entre dirigentes e dirigidos. Para poder obter dos funcionérios recrutados a fidelidade e a responsa- bilidade indispensaveis é necessério submeté-los a treina- mento rigoroso que os patronize e os limite, da mesma for- ma pela qual o “drill” prussiano transformava os grana- deiros em robés. E necessario, também, que se obtenha dos funciondrios uma adaptac&o completa, se quisermos que escapem das pressées exercidas pela tradicao. Funcio- narios submissos a tal tipo de regime nao podem traba- Ihar sem a protecdo de uma rigidez a téda prova, tanto nas relagdes com seus superiores como nas relacgdes com o publico. O ritualismo assegura, ao mesmo tempo, essa pro- tego e sua legitimacao. Num mundo violento, onde a coa- ¢&o é onipresente e onde a arbitrariedade é uma ameaca, apenas as ligacdes as “formas” oferece a estabilidade ne- cessaria para o prosseguimento de uma atividade organi- zada. Os diferentes graus de cultura e, por vézes, até de lingua- gem, que separam os dirigentes e os burocratas do restante da populagao, reforgam ainda mais a necessidade de prote- ¢4o e, conseqiientemente, a prépria disfunc&o. Se os bu- rocratas e os subordinados nao se puderem comunicar, pela auséncia de uma lingua comum ou pela auséncia de concepgGes comuns sdébre os objetivos e os meios de acao, 0 esquema descrito por Gouldner sera inevitavel. Apenas a subordinacdo e o contréle permitem obter a sintonia jul- 128 ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA RAE/9 gada imprescindivel. Para abrandar as tensdes que o em- prégo de tais métodos cria é indispensavel a adog&o de re- gras burocraticas impessoais, muito embora, com isso, se perpetuem as tensdes. O burocrata se refugia no ritualis- mo. Os subordinados se recusam a participar e a maquina administrativa opera initilmente. As dificuldades que os governantes experimentam para traduzir a realidade dos planos grandiosos de desenvolvi- mento, que elaboram segundo a imagem das nagées mais desenvolvidas, nao os conduzem, pelo menos no primeiro estagio em que se encontra a maior parte dos paises em de- senvolvimento, & revisdo de seus objetivos. Seguindo o mesmo circulo vicioso que encontramos por tras das infle- xibilidades burocraticas, aquelas dificuldades acabam por reforgar sua pressdo autoritaria e regulamentadora, que se traduzira pela generalizacéo do ritualismo. Quanto mais forte for a coacdo, tanto mais apatica sera a administracao e tanto mais limitado o pequeno burocrata. A unica solugdo para ésse impasse, além dos disfarces ofi- ciais, sera o recurso aos processos ideolégicos revoluciona- rios de tipo geralmente carismatico. Nao é por acaso que tantos paises em desenvolvimento recorrem a ésse tipo de ideologia, apesar das orientagées politicas totalmente dife- rentes. Mas, se o entusiasmo telecomandado das massas restabelece uma corrente de participagao, quebrada pelos métodos autoritarios dos dirigentes, essa participagao per- manece relativamente ficticia e néo permite escapar as disfungdes burocraticas. Ela apenas atenua suas conse- qiiéncias desfavoraveis, e tende, ao final, da mesma forma anterior, a perpetuar as tensdes que se tornam mais facil- mente suportaveis. As conseqiiéncias sociais da aco administrativa e da acdo ideolégica dos dirigentes, procurando acelerar o desenvol- vimento de uma sociedade até entao estagnada ou colonial, nao séo menos importantes. Elas terminam por criar e re- forcar uma classe social de burocratas que aparece 4 popu- lacéo como parasitaria. A funcdo dessa classe social é cer- RAE/9 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA 129 tamente indispensavel. Ela constitui o tinico meio de aco, o Unico fermento de que dispdem os dirigentes para atingir as massas. Mas ésse fermento, ésses meios de aco, por causa das técnicas de organizacdo utilizadas, s6 vém a desempenhar suas fungdes pagando o alto preco de um grande desperdicio de recursos. A classe burocratica pro- cura aproveitar-se de sua posi¢do estratégica e, agindo desta forma, tende a diminuir o ritmo do progresso, désse mesmo progresso que a burocracia deveria acelerar. (11) Por tédas essas razées podemos falar de bloqueamento bu- rocratico em todos os paises em desenvolvimento. A obser- vacao das experiéncias mais diversas atualmente em curso, por mais cheias de nuancas que sejam, mostra-nos que as conclusdes que podemos tirar da teoria sAo confirmadas pelos fatos. A burocracia no constitui o futuro ameacador que espreita os paises em desenvolvimento. Constitui, sim, mais um obstaculo herdado do passado contra o qual lutam os dirigentes e seus povos, por ser impossivel, no ponto em que se encontram, a descoberta de métodos mais simples que lhes permitam evitar a longa gestacdo por que Passaram os paises ocidentais. (12) AS POSSIVEIS SOLUCOES Até aqui nos contentamos em propor um esquema de in- terpretacao das dificuldades que devem encontrar os pai- ses em desenvolvimento por causa da sujeic¢do burocratica. Pudemos concluir, permanecendo no dominio da teoria, que essa sujeicéo era de ordem diferente daquela de que se queixavam os cidaddos dos paises industrializados. Indo mais longe, poderiamos chegar a propor, senZo solucées, pelo menos caminhos de pesquisa. (11) Frep W. Riccs, “Agraria and Industria. Toward a Typology of Com- parative Administrotion”, em WILLIAM S. SIFFIN, Toward the Comparative Study of Public Administration, pags. 23-117. (12) MONROE BERGER, Bureaucracy and Society in Modern Egypt, Prince ton University Press, 1957. 130 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/9 i atch lr ce O problema que se apresenta, agora, é o da aco social. No quadro de uma sociedade tradicional a aco social nao é consciente de seus fins ou, antes, propée-se fins que saio do dominio do sobrenatural. O homem muda, a sociedade se transforma, sem que individuos e grupos, governantes e governados, tenham querido conscientemente essa mudan- ca. A idade moderna se caracteriza por uma tomeda de consciéncia mais aguda dos fins e dos meios. A acdo social torna-se consciente. Isto ocorre primeiro no quadro de ‘uma racionalidade mecanicista e empobrecida, o que im- plica numa dicotomia profunda entre dirigentes e dirigi- dos, entre o muntdo dos fins e o mundo dos meios, onde os processos normativos e constrangedores tém, natural- mente, conseqiiéncias burocraticas disfuncionais. Foi ape- nas nos tltimos vinte anos, com o aparecimento das novas técnicas de pesquisa sébre a tomada de decisféo e com a invengo de instrumentos cada vez mais aperfeicgoados, que permitem um salto qualitative no dominio do raciocinio administrativo, que um névo tipo de racionalidade, mais flexivel e menos coator, menos categérico mas certamente muito mais rico, acabou por desenvolver-se nos paises mais avangados. (13) A acéo social no quadro dessa nova racionalidade pode-se dar conta de uma multiplicidade de fatéres varidveis, devendo permitir, finalmente, que se di- minuam os erros e as dificeis corregdes necessarias no qua- dro da racionalidade mecanicista. Os paises em desenvolvimento se encontram exatamente no momento de escapar da racionalidade tradicional, e é natural que nao cheguem a escapar dessa racionalidade, como outrora seus precursores europeus, por causa da su- perestimacSo e valorizacéo das categorias, se bem que in- suficientes, da racionalidade mecanicista “taylorista”. Seu entusiasmo natural por essa nova racionalidade implica numa dicotomia entre dirigentes e dirigidos, entre uma autoridade coatora e uma eventual mobilizacdo ideoldgi- ca. Por outro lado, a situagéo, sob certo prisma, agora é (43) JAMES C. MARCH e HERBERT SIMON, Organizations, Nova Iorque, ‘Willey, 1958, especialmente o cap. VI: “Cognitive Limits on Rationality”. RAE/9 ADMINISTRACAO E BULOCRACIA 131 ainda muito mais dificil do que na época das revolugdes industriais européias, pois o progresso foi acelerado. Dessa forma, os esforcos a serem realizados séo muito maiores, e existe, de fato, um modélo bem mais coator que se apresen- ta muito préximo, no quadro da racionalidade cientifica, ao mesmo tempo que, na ordem dos fatos, continua inaces- sivel. A existéncia do modélo oferecido pelos paises desenvolvi- dos deveré facilitar a adaptacdo a partir do momento em que as elites dos paises em desenvolvimento forem capa- zes de inspirar-se nos métodos e nao apenas nos resultados. O progresso das técnicas e dos conhecimentos em matéria de acao, a contribuicao das ciéncias sociais modernas e as novas concepcées da racionalidade, que comecam a emer- gir a partir de todos éstes progressos, poderiam fornecer, efetivamente, possibilidades insuspeitaveis aos paises em desenvolvimento. N&o é temerario esperar que a passagem da sociedade tradicional 4 sociedade industrial possa ser feita poupando-se algumas das mais duras provas que o recurso ao cientificismo constrangedor dos pioneiros do século XIX anunciava. Sem divida, encontramo-nos, ainda, no terreno das es- peculagées. Ja podemos definir, entretanto, certo numero de problemas-chave cujo estudo objetivo traria decisiva contribuicao para a luta contra as tendéncias burocraticas. Muito embora o primeiro désses problemas, o da comuni- cacao, haja sido o mais estudado, talvez nao se tenha dado a devida atengio aos seus aspectos mais diretamente liga- dos 4 ac&o administrativa. (14) Em particular, o estudo sébre o significado das regras e s6- bre a maneira pela qual elas sao interiorizadas poderia ser de grande auxilio. Apdés os trabalhos dos psicélogos sociais as teorias da motivacao, sébre as quais repousa implicita- mente a acéo administrativa nos paises em desenvolvi- (14) Bert Hoseirz, “Non Economic Barriers to Economic Development”, Economic Development ard Cultural Change, marco de 1952, pags. 18-21. 132 ADMINISTRAGAO E BUROCRACIA RAED mento, foram no Ocidente completamente abandonadas. E muito facil afirmar que, nos paises que tem um espaco muito grande a completar no seu caminho para o desen- volvimento, apenas sejam eficazes os métodos de coac&o e de mobilizag&o ideolégica. A tendéncia natural dos di- rigentes os conduz a tal ponto de vista, mas vimos que ceder nestas questdes representa o enorme desperdicio que é 0 preco da rigidez burocratica. Nao se pode negar que a pesquisa venha a mostrar que, mesmo num terreno dificil, outros métodos de comunicacdo, mais lentos talvez no ini- cio, possam conduzir a melhores resultados. Algumas ex- periéncias industriais permitiriam essa previsdo. (15) Po- de-se pensar, outrossim, numa acdo geral de formacao ca- paz de quebrar o monopélio dos burocratas sébre as formas de comunicagao privilegiadas da acéo atdministrativa, o que permitiria se evitassem os obstaculos mais graves do ritualismo e do espirito de casta. Outro tipo de pesquisa que poderia trazer grandes contri- buigdes é 0 relativo ao problema dos “corpos intermedia- tios”. O desenvolvimento se faz, geralmente, contra os cor- pos intermediarios tradicionais que tendem a transformar- -se no refugio do conservantismo. (16) Sua supressao acarreta, geralmente, a paralisacao de uma série de circui- tos Ce comunicacdo informal; acumulam-se, destarte, pro- cessos burocraticos que implicam na apatia, na coacdo e na revoita esporadica. As possibilidades de transformacao e de reconversdo dos corpos intermediarios constituem ou- tro elemento decisivo na luta contra a burocracia. Outra linha de pesquisas que ja deu lugar a progressos muito interessantes poderia completar as duas primeiras. ¥ a que trata do problema do engajamento e da participa- (1S) A. K, Rice, Productivity and Social Organization; The Ahmedabad Ex- periment, Londres, Tavistock Institute, 1958. (16) Davw Arter, The Gold Coast in Transition, Princeton University Press, 1955. RAE/9 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA 133 cao. (17) A éste respeito os trabalhos inicialmente dedi- cados ao mundo industrial poderiam ser estendidos ao mundo administrativo. O problema essencial é o de com- preender como os inidividuos vindos da sociedade tradicio- nal podem chegar a participar, ativa e limitadamente, dum engajamento sério, mas temporario. Como podem os in- dividuos submeter-se a uma concorréncia, sem se deterem pelo médo do risco. Um melhor entendimento dos meios individuais de acultutacao abriria novas perspectivas s6- bre a estratégia da transformacéo e sdbre o papel adminis- trativo no processo de transformacaéo. Tal pesquisa auxi. liaria a aprofundar a reflexdo sobre a utilidade e os limi- tes de regra coatora. Finalmente, o trabalho mais importante seria o de tratar da fungdo, do papel e da ideologia dos dirigentes dos paises em desenvolvimento, e da possivel utilizaco dos calculos estratégicos mais avangados nas decis6es a tomar. (18) Efetivamente, é neste nivel que se poe o problema mais decisivo: o do abandono da racionalidade mecanicista do século XIX. E é provavelmente aqui que o impacto dos paises desenvolvidos pode ser maior. Nada obsta que pos- samos, paulatinamente, obter um modélo completamente diferente de ac4o social, fundamentado, nao mais sébre a primazia do resultado e sébre uma concepcao estreita da’ eficacia, medida em térmos de conformidade ao fim, mas sObre um cAlculo estratégico que leve em considerac&o as resisténcias, os desvios e o custo real dos erros burocrati- cos. Alguns dos elementos désse modélo impor-se-iam em- piricamente e & custa de pesados sacrificios aos dirigentes dos paises industrializados ocidentais, por causa da exis- téncia de uma pluralidade de centros de decisao. E a to- mada de consciéncia que comecamos a realizar agora, atra- vés das mais aperfeicoadas técnicas de analise estratégica, (17) Wiesert Moore e ARNOLD FELDMAN, Labor Commitment and Social Chenge in Developing Areas, Nova lorque, Social Science Research Council, 1960. (18) Vide a éste respeito, MONROE BERGER, obra citada; HARBISON e MYERS, Management in the Industrial World, Nova Torque, McGraw-Hill, 1959, espe- cialmente os capitulos 2, 7 ¢ 8. 134 ADMINISTRACAO E BUROCRACIA RAE/9 haveria de permitir a transformacao das regras tradicio- nais e empiricas em modelos de ac&o racionais, que evi tassem, de um lado, os obstaculos burocraticos da planifi- cacéio mais coatora, e de outro, a anarquia, a morosidade e a injustica que a aplicacéo da tradicional economia de mercado aos paises em desenvolvimento provoca.

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