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Memédria (res\sentinnento Indagagées sobre uma questao sensivel Stella Bresciani Marcia Naxara ) (ores row exwocianes wasonsb rca Bngorica CEvTRA! os Uso ee Meméria © (resjsentimento: indagasces sob M519 questio sensivel! Organizadora: Stella Bresciani © Marci Novara, ~ Campinas, SP Eitora da Cnieamp, 2001 1. Missotiogeafin, 2s Meméri ts Maney Bs Regina C. Il: Bresiani, Maria Stella. 11). Tula cop -4972 | ISBNs 85.268.0534.7 | ices par catego alcembtico 1. Historiogesin 907.2 2 Meméria 153-12 Copyright © by Editor da Unicamp, 2001 [Nenhuens parte desta publicasSo pode ser gravada, armazenada em sistema eletrnivo, fotocopiaa, reprodunida por meies mecisicos fu outror quaisquer stm autarizagio prévia do edivor. Laser Segall, Refigiados, 1922, Pincura a aquarela © guache «! papel, 39.5 cm x 48,6 cm ‘Acerve do. Museu Lastr Segll ~ IrnayiMinG Foto do creme Tie Houske 2001 =~ Editors da Usicamp ”) ABEW engi gay. Abe pte aetna = heat train THLSON BS ONS life 9) seo Nee atime Srvthen afore — SuMARIO Apnesentagho (Stella Bresciani e¢ Mercia Naxara) 0.0m nesinen® 1 Histonia E MEMORIA DOS RESSENTIMENTOS (Pierre Ansart) co AS 2. PERCURSOS DE MIEMORIAS EM TERRAS DE HISTORIA: PROBLEMATICAS ATUAIS acy Alves de Seis) ener 37 3. RESSENTIMENTO — HISTORIA DE UMA EMOGIO (David Konstan) i . 59 Parte I — Pencunsos Ds MEMOMIA E DE HISTORIA MEMORIA F ESQUECIMENTO: LINGUAGENS E NARRATIVAS 4 MENORIA, HISTORIA, TESTEMUNHO Ueanne Marie Gagnebin) 85 5. Tucibipes: 4 RETORICA DO METODO, A AGLIRA DEAUTORIDADEE (05 DESVIOS DA MEMORIA (Francisco Murari Pires) 95 6 FOUCAULT, & DOENCA A LINGUAGEM DELIRANTE DA MEMORIA (lealo Tronca) 129 7 LITERATURAEM RUINAS OU AS RUINAS NA LITERATURA? (Edgar Salvadori de Decca) reams 149 «Joan Rivitre, LAmour et le baine (1937), Pars: Payot, 1968. Michel Ernriquer, Ans carefours del hain Pantie mseciome,apathie Pais i oe Eiger 2 apatbi, Paris: Ep, Desckée de "Sigmund Freud, Malate... op. cit. cap. VU © Ldem, op. ci, p. 66 "9 Tdem, op. cit, pp. 67-68, % Idem, "Considérations actuelles sur ° actuelle sur la guerte et sur la mort” [1915], in Euais paphanaiye, Vass: Payot, 1977. ae ei Max Scheles, op. cit, p. 37 * Louis Dumont, Homo bierarhicus, Lesitime des cates ees Lads pote de rplications. Pais: Gallimard, ® Alexis de Tocqueville, op. cit, tomo I, p. 44 * Pierre Rosanvallon, La crise de 'Esar Providence, Pats; Editions du Seuil, 1981 Gérard Namer, Bataille pour la mémoire. La comménaneton en France, : r 1944-1982, Pais Jean Michel Chaumone, La concurrence dor itimer: genocide, identi reconnaisance.P ientte reconnatnans © Hannah Arend, Eichmann a Jerusalem. Rapport sur la banalité di mal (19 Horak heal sop ité du mal (1963]. Paris ° Daniel Jonah Goldhagen, Le onrrennx oltre de Hite, es allem (Helos (1996) ai ons du Sui 1997. uments 36 y > cessa de irromper em escal intern a PERCURSOS DE MEMORIAS EM TERRAS DE HISTORIA: PROBLEMATICAS ATUAIS* Jacy Alves de Seixas Universidade Federal de Uberlandia “Temos a sensasio de viver sob o império da meméria (e de seu cor- relato, o esquecimento). Pierre Nora refere-se conr acuidade, em estudo que “fecha” o seu extenso Les lieux de mémoire,& “obsessto comemora- tiva” que tomou conta de todas as sociedades contempordneas nas tilti- mas décadas do século XX. Em 2000, o Brasil dos 500 anos reavivou o ‘mesmo fendmeno, alimentando, no entanto, um aparente paradoxo: a ¢grandiosa comemoragio do “Descobrimento” em um pais tradicional- mente carente de comemuragdes, postu que tido “sem meméria”, ¢ que se efetivou precisamente excluindo do lugar de meméria oficial a mani- festagio da meméria dos excluidos (trabalhadores sem-terta, povos indi- sgenas, negros, estudantes...). Luta sub-repricia de memérias que emergiu com violencia em 22 de abril, colocando a questo sensfvel e muitas vezes recalcada do reconhecimento social e da cidadania. Este artigo visa refletir sobre a arualidade dessa meméria que nfo nal, pelos poros e cicatrizes sociais, sobre sua presenga marcante no seio da historiografia e destacar certos + Estas reflexbesinserem-se numa pesquisa mais abrangente — De Todas as Memérias, a -Meméria: Estudos sobre a Memria Histrica —, que procuta apreender as elagiesreci- das entre histéria e meméria, reeorrendo a um enfoque transdisciplinas, que privilegia sobretudo a literatura (as obras de M. Proust) e 3 filosofia (H. Bergson, G, Bachelard e E, Nietzsche). Tal pesquisa ¢ financiada pelo CNPg, a7 aspectos que os estudos sobre a relagao histéria-meméria té medida desconsiderado. semen Meméria versus histéria: as reflesteshistoriogrficas hoje A crescente revalorizagio da memoria, tanto na esfera individual como nas priticas sociais ou mesmo no interior da historiografia o aci- mulo de falas de meméria, sua operacionalizacao cada vee mais eficaz, 0 dircito co dever de memoria reivindicados por inimeros grupos sociais ¢ politicos, convivem com um movimento inverso, que aponta um | descaso ou fragilidade teérica realmence instigantes, ferimeno que Pierre | Vidal Naquet designou como “ama espécie de vergonha da meméria” Por parte dos historiadores que de “alguma maneira esforcam-se para pagi-la como tal’! Em uma palavra, muito se fala ese pratica a “memé- sla" hist6rica — 0 boom atual da histéria oral e das biografias cautobio- Braflas é, nesse sentido, bastante expressivo flete sobre ela? + mas pouquissimo se re- ; Essa reflexdo, entretanto, parece iluminar-se no ambito da transdisci- Plinaridade, a partir da construcao de tramas que coloquem a hist6ria em diélogo com campos do saber e da sensibilidade que também, e de formas diversas, tematizaram e problemarizaraim a memoria, A partir desseolhar, muitasinterrogasses se apresentami ora, élegitimo pensar- ‘mos num estatuto tedrico proprio A meméria especificamente histéri_ ca Seria tal formulagio pertinence: a particularidade de uma memé bistbrica,distinta por exemplo da memoria lcedria ou, ainda, da mem fia constitutiva do individuo enquanro tal? Sem enfrentar a questo, ou driblando-a.com mais ou menos sutilezas, a historiografia tem proce- dlido como se a respostaa essa problemiticaestivesse a priori dada, consti- tuida por um inequivoco ¢ inexplicitado “sim”, que se impoe eamedia mesmo em que sio desconsideradas muitas das categorias e contetidos da meméria definids “fora” do campo de investigasto historiografico equea tém singularizado ¢ definido cnyuanto tal. Como sea meméria, em sua relagio com a histéria, deixasse em grande medida de ser meméria 38. para enquadrar-se nos preceitos teérico-metodolégicos da(s) historiogra- fia(s), como se ela espontaneamente se redefinisse, abandonando peda- 0s importantes que a definem, no contato taumatiirgico da histéri io que gostaria de levantar é 0 verdadeiro parti Uma primeira quest pris constituido pela consideracio da meméria voluntdria, ocupando todo 0 espaco conceitual consagrado & tematica, regulando as relagies entre meméria e hist6ria, entre meméria e esquecimento, entre memé- ria e conhecimento, Buscar tracar a genealogia de tal postura nos remete 4208 antigos gregos, ou melhor, aos gregos da época clissica, que em virios ‘campos realizaram uma aproximagio fecunda e problematica entre me- maria ¢ hist6ria, a primeira constituindo-se finalmence como 0 meio privilegiado de acesso ao verdadeiro conhecimento. Essa nogio, que retém dominancemente a meméria como faculdade intelectual, a me- iméria-conhecimenso, alimentou toda a tradigao platdnica e neoplatonica que, por sua ver, fecundou a Idade Média, de onde, a partir da impor- tincia da concepgio agostiniana da meméria,” influenciou toda a cul- tura racionalista posterior, A adequacio entre meméria e histéria pos- sui, portanto, raizes sélidas ¢ longas. Mas a memdria apreendida unica- mente em sua fungio cognitiva nao é algo evidente ou “nacural”, mas profundamente histérico, que se insere numa epistemologia especifica ce supe uma trajetéria (digamos, uma trajetéria de “exilios”). Vale ressal- taraqui (ainda que nao nos detenhamos nessa andlise) que as “categorias arcaicas da meméria” retém a sua trifuncionalidade, como meméria-aao, ‘meméria afetiva e meméria-conhecimento.* Recentemente, a partir do inicio da década de 80, a historiografia vem afirmando nogio diversas cla toma consciéneia de que a relagio me- miéria-histéria é mais uma relagio de conflito € oposigio do que de complementaridade, ao mesmo tempo — aqui se inscreve a novidade da critica —em que coloca a histéria como senhora da memétia, pro- dusora de memérias. ‘A oposigio entre memdria e histéria, no entanto, é construfda sem que haja ruptura efetiva com a tradigdo aristorélica que entende a mems- tia (ou mellws, a seminiscéncia, o ato de lembrae), sobretudo em sua | funsio cognitiva, como conhecimento do passado, 39 Ao redebrugar-se sobre a meméria, a historiografia contempora thea pouco tem recorrido as reflexées da filosofia ou da literatura, mas tem estabelecido com a sociologia seu didlogo preferencial, De fato, éa sociologia da meméria de Maurice Halbwachs que se constitui na base tedrica fundamental & maioria dos trabalhos historiogrficos. Neste 0 tido, é importante assinalar a influéncia da sociologia de Halbwachs — que elabora, em 1925, uma sociologia da meméria coletiva — sobre Pierre Nora, que no terreno historiografico elaborari a divinio ¢ oposigao ‘entre era) ria e histéria. Escreve Nora, em 1984, de forma provocativa: ‘Meméria, histéria: longe de serem sinénimas, comamos consciéncia de que tudo as opae” Nora retoma e apropria-se® das idéias bisicas de Halbwachs —a oposigio que estabelece entre meméria individual e memsria coletiva «¢, sobretudo, entre meméria coletiva ¢ histéria, A meméria coletiva Halbwachs confere o atributo de atividade natural, espontinea, desince- ressada e seletiva, que guarda do passado apenas 0 que lhe possa ser titil para criar um elo entre o presente ¢ 0 passado, ao contrdtio da histéria, que consttui um processointetessado, politico e, portanto, manipulador. A meméria coletiva, sendo sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a histéria é uma atividade da escrita, organi- zando ¢ unificando numa toralidade sistematizada as diferengas€ lacus, Enfim, a histéria comega seu percurso justamente no ponto onde se detém a meméria coletiva. Em suas reflexes sobre memsria e histéria, Pierre Nora as opord ainda mais radicalmente, Afirma que é impossivel, hoje, operar-se uma distingao clara entre meméria coletiva e meméria historia, pois a pri meita passa necessariamente pela histéria, ¢filtrada por cla; é imposstvel a meméria escapar contemporancamente dos procedimentos hist6ri- cos. Assistimos hoje ao fim das “sociedades-memeérias”, ¢ 0 que eviden- ciamos como uma revalorizagao retérica da meméria esconde, na ver- dade, um vaio. “Fale-seranto de meméria precisamente porque ela no ‘existe mais."” ‘Nora organiza uma classificagao rigida e dicotémica entre meméria chistéria. A meméria é a tradigao vivida — “a meméria é a vida"* —, 40 «sua atualizacao no “eterno presente” é espontanca ¢ afeciva, mikipla e . uma operacio profana, uma vulnerdvel; a hist6ria € 0 seu contrat! reconstrucao intelectual sempre problematizadora que demanda anise c explicagio, uma representagao sistematizada ¢ critica do passado. A © meméria tece vinculos com a tradigio ¢ 0 mundo pré-industrial, a his- memaéria é sobre- téria, com a modernidade; neste sentido, a historia tudo conservadora; a histéria-critica € subversiva ¢ iconoclasta. Tudo aquilo a que chamamos hoje de memria, conclui Pierre Nora, ja ndo 0 6 jd é historia, ‘A memoria encontra-se, assim, prisioneira da historia ou encurra- Jada nos dominios do privado e do intimo, transformou-se em objeto ce trama da historia, em meméria historicizada. Esse movimento ¢ ine- \_ xorivel esem volt, rod meméria hoje em dia € uma meméria exilada, : restam-lhe, assim, os lugares de meméria sob “o olhat de uma histéria recons- que busca reftigio na hist6ri \ (de uma meméria que apenas titufda’”)’ como scu grande testemunho. ‘A recente historiografia anglo-sax6nica,” igualmente sensibilizada pelas novas velhias questées relativas & meméria e suas relagdes com 2 histéria, vem apontando para outros enfoques que, partindo da critica 4 oposigdo halbwachsiana entre meméria coletiva ¢ histéria, buscam ‘conferir maior autonomia A meméria. Mas, apesar de partir de pressu- postos diversos e nriquccida por valiosos estudos e pesquisas empiricas (sobretudo no campo da histdria oral), ela vai desembocar, trilhando caminhos diversos, na mesma apropriagdo da meméria pela histéria ope- rada pela historiografia francesa. No esforgo de recompatibilizar memé- tia histéria a temdtica da meméria é aproximada em demasia da nogio de histéria, de tal forma que uma unio simbidtica se efetua e se acaba por aplicar aos procedimentos e mecanismos da memSria, aqueles que teconhecemos de longa data como historiogréficos. Enfim, acaba-se por ‘inggo clara entre meméria ¢ histéria, ope- nfo se reconhecer uma di rando-se uma identificagio entre elas. No lugar do carder espontaneo ¢ natural, ressaltam-se os empre- endimentos deliberados de reconstrugau ciupreendides pela meméria, que responde por via de regraa demandas e intereses politicos precisos. 4 / Toda memsria ¢ fundamentalmente “criagio do passado”: uma recons- / trugio engajada do passado (muicas vezes subversiva, resgatando a peri- feria ¢ 0s marginalizados) e que desempenha um papel fundamental na ‘mancira como os grupos sociais mais heterogéneos apreendem 0 mundo presente e reconstroem sua identidade, inscrindo-se assim nas estraté- gias de reivindicagio por um complexo direito ao reconhecimento,"! O que €aqui colocado em primeirissimo plano é, portanto, a relacio en- tre meméria e (contra)poder, memiéria ¢ politica ‘A meméria ¢ ativada visando, de alguma forma, a0 controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em fungio do presence via gestio das memérias significa, antes de mais nada, contro- Jara material lade em que a meméria se expressa (das reliquias aos mo- numentos, aos arquivos, simbolos, rituais, dacas, comemoragics...) Nogio de que a meméria torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e con- trola(m). [Nessa abordagem, a funcio da meméria, potencializada particular- mente nos momentos de crise ¢ rupcura histéricas, €a de servir a histéria, © quea aproxima do enfoque de Pierre Nora — da nogio de “memoria histoticizada” —, ainda que se diferenciem sob varios outros aspectos. Ao querer abolir a relagio dicovémica entre meméria coletiva e histéria (© “tndo as opde” de Nora), elas sio aproximadas em demasia, de tal forma que a meméria, essencialmente seletiva, reveste-se por intciro dos tragos atribuidos i histéria. Dificil, entio, perceber quaisquer distingSes entre meméria e histéria (ainda que ni sejam dicotomicas...), porque ‘memiéria passa a identificar-se com histéria. Ou seja, a meméria ¢ 0 es- quecimento aqui também s6 existem sob os olhares da histéria, inves- tindo-se na reconsttugto de novas identidades, a partir de um criério seja ela ‘individual, ‘coletiva’ ou ‘his- t6rica’, é uma meméria para qualquer coisa, ¢ nao se pode ignorar esta finalidade politica (no sentido amplo do termo).”"” ‘Seem Nora toda meméria ¢ apropriada e historicizada, aqui toda meméria é imediatamente historia; uma diferenga, portanto, de grat, mas nao de qualidade, distingutria, grasso mado, as historiogratias dedi- cadas hoje ao estudo da meméria e da histéria. 42 Hi dois efeitos importantes derivados desta contempordnea apro- priacao da meméria pela bistéria sobre os quais gostaria de deter-me. Apropriagio esta que se viabiliza, em grande medida, pela consciéncia historiogeifica que se constitui, desde Tucidides, realizando precisamente a critica da meméria, desincompatibilizando-se com ela, Ou seja, a historiografia deixando de se colocar como unt dos campos constitutivos da meméria para posicionar-se “fora” dela, numa postura vigilante € critica; sobre a meméria paira, doravante, nesse longo percurso em que a histéria busca se constituir como um saber cientifico, o “olho"? vigi- lante da histéria. Um primeito efeito desta recente apropriagito da meméria pela bis- téria é a sua extrema operacionalidade e produtividade. £ 0 “frenesi de memoria” (segundo a expressdo de Arno Mayer)" das duas tiltimas déca- das, fendmeno novo e sem duivida salutar, que esté na raiz de importan- tes movimentos identitérios (socizis e/ou politicos) ede afirmagio de novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsivel pelo resgate de expe- rigncias marginais ou historicamente traumaticas, localizadas fora das, fronteiras ou na periferia da hist6ria oficial ou dominante. Responsével, igualmente, por um debate historiogréfico que teve como desdobramen- 10 0 aparecimento de novas nogbes, como as de “memérias subterri nas”, “lembrangas di ‘ identes”, “lembran gas proibidas”, “mem quadradas”, “memerias silenciadas”, mas nao esquecidas,"* e outras que buscam dar conta da complexidade dos fendmenos contemporineos da meméria. ‘O segundo efeito, que se entrelaga com o primero, concerne a sua vulnerabilidade tedrica, pois, no mesmo momento em que sc levanta 0 divisor de dguas entre histéria e meméria para, em seguida, destrut-lo, no se discutem finalmente os mecanismos de producao e reproducao da meméria, seja ela coletiva ou histérica. Apenas se designam algumas | de suas caracteristicas, definidas em relagao ao préprio paradigma his- \ t6rico, apresentado em toda sua positividade e voracidade. Tudo se passa como se a meméria sé existisse teoricamente sob os refletores da prd- pria histéria, postura que nio resiste a uma observagio mais atenta € descentrada. 43 Assim, a afirmagao sedurora de Pierre Nora de que, se ainda habi- tdssemos nossa memséria, nao haveria necessidade de lhe consagrar lugares especificos desconsidera um trago insticuidor da meméria, que é preci samente a espacializagio do tempo" (retomaremos, a seguir, essa nogio) ¢, precisamente, o exprimir-se, materializar-se e a lugares. Os lugares de meméria, neste senti ializar-se através de fo, representariam menos uma auséncia de meméria ou a manifestagio de uma meméria histor cizada do que irrupgoes afetivas e simbélicas da meméria em seu didlogo sempre atual com a hist6ria. £ porque habitamos ainda nossa meméria — tio descontinuae fragmentada quanto o sio as experiéncias da moder- nidade — e ndo porque estejamos dela exilados que Ihe consagramos lugares, cada vez mais numerosos e, freqlientemente, inusitados (ao menos ao olhar sempre armado da hist6ria) Por outro lado, enfatizar exclusivamence a fungio polit da memé- ria de controle voluntério do passado (e, portanto, do presente) nio sig- nifica inibi-la ou deixar de reconhecé-la em outras de suas facetas,FungOes € movimentos diferentemente polit Memoria icos? ist 5 Memoria versus histor descaracterizada ou s6 reconhecida parcialmente — naquilo que mais a aproxima dos procedimentos voluntitios, sistémicos e intelectuais da histdria —, abocanhada pela voracidade historiografica, a meméria no ‘entanto parece perseverar, de forma clandestina e poderosa, maneira que the é propria, em sua relagao sempre atual com a histéria. Se nos interrogarmos sobre o que, enfim, a insisténcia historio- grifica exclusiva na meméria voluntiria esté deixando de lado, uma re- flexdo nova pode se desvelar, apontando, entio, aspectos até agora pouco considerados: a dimensio afetiva e descontinua das experiéncias huma- nas, sociais ¢ politicas; a fungio criativa inscrita na memoria de atualiza- io do passado langando-se em direcio a um futuro, que se reinveste dessa forma de toda a carga afetiva atribuida comumente as utopias ¢ aos mitos. Em poucas palavras: se buscamos refletir sobre as relagbes entre meméria e hist6ria, penso ser necessdrio iluminar a meméria tam- bém a partir de seus préprios relletores ¢ prismas; necessdrio, portanto, incorporar tanto o papel desempenhado pela aferividade e sensibilidade sj meméria e histéria: 44 K na histbria quanto 0 da meméria involuntaria. Necessario, igualmente, atentarmos para o movimento pr6prio & meméria humana, ou seja, 0 tempo-espago no qual ela se move € 0 decorrente cariter de atualizagao inscrito em todo percurso de meméria. A releitura de Marcel Proust e de Henri Bergson pode trazer, nesse sen- tido, treflexio historiografica importantes e sugestivos pontos de apoio. Meméria involuntdria e historia Proust, assim como Bergson, em muitas passagens de sua obra alereou para o fato de que seria mais legitimo falarmos de memérias, no plural; memérias (e esquecimentos) desiguais ¢ de estatutos diversos que ‘ocupam lugares diferentes nos diversos plavos que constituem a meméria cm seu percurso, Essas varias memérias nfo possuem 0 mesmo alcance e nem a mesma consisténcia; essa distingao fundamental pos Proust realizar uma critica veemente ¢ desabusada da meméria intelec- tual, ao menos 20s nossos ouvidos historiogrificos. Escreve ele: “Cada dia atribuo menos valor & inteligencia. Cada dia percebo melhor que € apenas fora dela que o escritor pode apreender alguma coisa de nossas impressoes passadas [...]. O que a inteligéncia nos dé sob 0 name de passado nao é ele”."” me Para Bergson, assim como para Proust, a memdria voluntdria nto atinge o pleno estatuto da meméria,”* ela configura uma memsria me- nor, essencial a vida, porém corriqueira e superficial, pois atada ao hdbito 4 “vida pratica’, 4 repetigdo passiva e mecinica. Ela é segundo o filé- sofo, na melhor das hipéteses, “o hébito iluminado pela meméria ao jinvés da memoria ela mesma”,"” insere-se no presente do mesmo modo que nosso habito de andar ou de escrever: ao invés de representar 0 pas- sado, ela simplesmente o “executa”, repete-o, sendo por definigdo sen- sorial e motora. Para Proust, igualmente, 2 meméria voluntéria no é nada além da anddina “meméria dos fatos”,” representando na realidade um obsta- culo a cxpressio da verdadeira meméria. Estima que é necessario, antes 45 de mais nada, “romper com todas as nossas forgas 0 gelo do habito” 2 levantar “o véu pesado do habito (habito imbecilizante que durante todo © curso de nossa vida nos oculta mais ou menos todo o universo)”.”” Encontramos em Proust uma radicalizagio da critica 4 nogio de memsria voluntéria: aviltada pelo habito, certamente, mas também pela inteligéncia, Proust afasta-se aqui de Bergson, criticando a meméria voluntéria enquanto meméria intelectual, “Para mim”, escreve Proust, a meméria voluntéria, que é sobretudo uma memé Pe da inteli- agénci dos olhos, nos da do passado apenas faces sem verdades mas quando um odos, um sabor encontrados em circunstincias muito diferentes despertam em nés, apesar de nds, 0 passado, sentimos o quanto este passado era diferente do que acreditiva- ‘mos lembrar, ¢ que nossa meméria voluntdria pintava, como o fazem os maus pintores, com cores sem verdade.® __ Ameméria voluntitia é uma meméria uniforme e, em grande me- dida, enganadora, pois opera com imagens que, apesar de representa rem a vida, nfo “guardam” nada dela. Nesse sentido, observa Proust, “podemos prolongar os espeticulos da meméria voluntaria que no exige de nés mais forgas do que folhear um livro de imagens” Em Proust, a meméria involunsécia é aquela que rompe com 0 habito (que constitut a camada mais superficial da memsria voluntéria), mas sobretudo rompe com todo o esforgo vio de busca e captura intelectual do passado. Buscar © passado por meio do gesto voluntério da inteligéncia é, a um sé tempo, desgastante ¢ infecundo: este o julgamento do narrador adulto a0 de- frontar-se com a verdadeira meméria c seu poder de “fazer reencontrat 8 dias antigos, 0 tempo perdido, face aos quais os esforgos de minha ‘meméria ¢ de minha inteligéncia sempte fracassavam” 2 Com a nosio de meméria involuntéria atingimos, tanto na ética bergsoniana quanto na proustiana, um outro plano da meméria humana, somos conduzidos a uma meméria “mais elevada’,” a “verdadeira me- maria”. Espontanea, ela ¢ feita de imagens que aparecem e desapate- cem independentemente de nossa vontade, revela-se por “lampejos brus- Cos, mas se afasta 20 minimo movimento da meméria volunté 46 Ambas as memérias para Bergson, “a meméria que imagina e aquela que repete”,” vio “lado a lado e se apdiam mutuamente”, A meméria involuntiria, em Proust, ¢ instavel ¢ descontinua, nao ‘vem para preencher os espagos em branco, supde as lacunase constrdi-se comelas. Bla ndo soma nem subtrai, cla condensa, Neste sentido, memé- a distinguem-se por procedimentos diferentes: ia voluntdria einvoluntai 1 mem

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