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TRES LEITORES. “ A CONTRIBUICAO DA ESCOLA DE CONSTANCA PARA O ESTUDO DA LITERATURA Gunter Karl Pressler Universidade Federal do Paré + RESUMO: Teoria ¢ critica literdria nto se definem apenas como influénctas enire autores, ou configuragdes temdticas e esilisticas recorrentes A questdo complexa da identidade entre piblica’e a identidade histérica entra em vigor. O artigo apresenta um balango da pesquisa sobre a Estetica da Recepeaa que envol- ve 0 processo da leitura com erés tipos diferentes de lettores, dentre do agrupe- ‘mento dialético entre obra ~ autor ~ leitor. A pesquisa desde 1997 investiga a proposta da Escola de Constanga e Suas implicardes:o leltor profisioncl,o leitor Iimplicitoe o leitor empirico comum. + PALAVRAS-CHAVE: Escola de Constanca: leitor profissional, eitor implicito @ leitor empirico conum + ABSTRACT: Theory and eriticiom literary define not only a influence between ‘authors ou configuration tematics our silistc eurrentes. Important is a question off complex identity hanwaen public and historical identity. This paper prevent @ bat lance of the investigation about the Esthetic of Reception, wha focuses on the proc ‘ess of reading of three different types of reader in the context of dialectic between work ~ author ~ reader, studing the proposal of the School af Konstane and his Implication: the professional reader, he implied reader and the empiric common reader, + KEY WORDS: Theory of Reception; Reading; Reader. Genette, em Discours du Récit (1972, p. 72), questiona- se por que a teoria da narrativa se preocupou to pouco com “os problemas da enunciag&o narrativa, concentrando toda a sua aten- ‘so no enunciado e seu contetido”. Se isso fosse um fato secundé- rio, as aventuras de Ulisses nao teriam sido contadas tanto por Homero quanto pelo proprio Ulisses. Genette (1972, p. 72) ressal- ta que “sem o ato de narrar ndo bé um enunciado e, naturalmente, nenhum conteiido narrativo”. Jauss, em Histéria da Literatura como Provocagao da Ciéncia da Literatura (1967), questiona-se or que a teoria literdria até agora ndo tinha se preocupado com o elemento oposto: 0 destinatério, o leitor. Percebe-se nos meados Moara ~ Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras URPA. Belém, n.12, 19-41, jul/dee, 1999 UNIVERSIDAD: FEDERAL DO Pane 20 PRESSLER, Gunter Kar da segunda metade do século XX, 0 cruzamento, a complementa- do a diferenciagao de dois elementos fundamentais da narrativa literdria: 0 autor textual e seu discurso (narrador) € 0 leitor empi- rico e implicito. dinamismo epistemolégico do Formalismo e do Estru- turalismo gerou depois da “morte do autor” uma atengao especial & questo do “autor”: o autor textual. Mas o mesmo dinamismo, 36 com outros pressupostos e em oposi¢ao ao conceito “public” da sociologia da literatura, despertou o conceito do “leitor”. O argumento sociolégico direcionou desde a década de 20 0 juizo estético. Jauss distanciou-se criticamente desse conceito “piibli- co” para poder elaborar sua proposta de estudar a “recepe4o”; recepso néo ¢ simplesmente uma palavra homonimica da pala- vyra public, Confundir piblico com recepgao nao permite com- preender a “estética” no contexio da interpretago da literatura e sua historiografia, O livro fundamental que fechou um leque de conhecimento a respeito da proposta inicial (e completa) de Jauss foi publicado em 1989, Estética da Recepgdo e Histéria da Lite- ratura, de Regina Zilberman. A autora nao ressalta somente a abordagem sistematica dos pressupostos filos6ficos da Estética da Recepedo (capitulo 1) e a situa no contexto histérico do debate te6rico desde 0 inicio do século XX (capitulo 2)", mas apresenta explicitamente a proposta dessa vertente de Constanga para uma “nova historia da literatura” (capitulo 3). Em seguida, ela sinteti- za a propria aplicagtio de Jauss sobre o drama Ifigénia em Téuri- de, de Wolfgang von Goethe (capitulo 4) ¢ observa as implica- "CE Roland Rarthes (1968), Umberto Eco (1983) ¢ 0 texto pioneiro de Walter Benja- ‘min (1934) In Id. (1987), p. 120-36 * Uma sintese desta questio encontra-se em Silva (1999, p. 300-329, capitulo 3.11) 2 Na apresentagio, a autora alert o leitor para a intengd0 desse livro, que nao pretende apresentar atrasadamente “o altimo grito ...] depois de a moda ter se esgotado em seu lugar de origem' (p. 5), Essa ndo € a perspectiva, ao contro, nao quer “colabo- rar para a alienagao e dependéncia culturais, de que aquela frivolidade € um dos sin- tomas” (p.5). Pode-se verificar todo o debate no contexto da ANPOLL, pois nio foi crisdo por acaso o GT Histéria da Literatura em 1992, durante o VIE Encontro, em Porto Alegre, Cf. os Cadernos do Ceniro de Pesquisas Literdrias da PUCRS (Porto Alegre), Volume 1, nimero 2, junho de 1995; volume 3, nimero 1, abril de 1997, vo- lume 4, nimero 2, navembro de 1998 e a s publicagoes em torno desse GT). Moara - Rev. dos Cursos de Pér-Grad. em Letras UFPA, Belém, n.12, 19-41, jul/éez, 1999 TRES LEITORES. a g6es teéricas que direcionam 0 seu pensamento para a pesquisa sobre a experiéncia estética na moldura de uma concepgo da Hermenéutica Literdria (capitulos 5 e 6). Um passo decisivo para a aplicabilidade dessa teoria no contexto da literatura brasileira foi o estudo da recepeao do romance machadiano, Helena (capi- tulo 7). No texto da orelha da tradugio do livro de Jauss em 1994, Zilberman dirige a atengdo a questo historiogrifica no contexto da teoria literéria: “Seu [Jauss] propésito era reabilitar a hist6ria da literatura”, mas no como metadiscurso sobre 0 con- ceito “histéria”. Como leitor de Benjamin, Sartre e Gadamer, Jauss concretiza a historicidade da obra e do género na leitura € “formula sua proposta: & histéria da literatura compete Jevar em conta a receps40”. A recepgao é um processo histérico ¢ estético da leitura, que configura uma determinada compreenséo (“as o- bras sfo lidas, ¢ porque sto compreendidas”) — alvo do desdo- bramento tedrico jaussiano. “Jauss é materialista”, diz Zilberman para caracterizar a proposta dele, que nao sé leva em conta a obra € 0 pitblico como constituintes, mas também a sua relago dialéti- ca. Uma condigao imprescindivel da pesquisa cientifica em geral — em analogia a construgao de uma casa — é o fundamento*, mas antes da propria construgao do fundamento ¢ necessério um terreno ¢ marcar o seu lugar: a famosa procura de tema e sua de- limitago. Pensando em nosso assunto da Estética da Recepeao, a pesquisa € cercada por dois momentos: um, vindo do estudo so- bre a recepg&o de Benjamin no Brasil, “a fim de saber como ele * ssa metéfora tem o perigo de entendé-la dentro da nossa vivencia aos trépicos que, tradicionalmente, nfo precisa uma casa com um fundamento sdlido, mas precisa de um teto seguro contra chuva, Nao quer dizer que esse teto seguro deve ser entendido como proteglo contra a critica (seguramente uma preocupaso maior do que mostrar ‘um bom aprofundamento teérico) Critica na sua substincia eno seu efeito &— dentro da nossa metafora da construgao da casa — um seguro contra a mé escola do mestre de obra e falhas na construgo! lacunas, ligagdes fracos, vazamentos, etc. Moara ~ Rev. dos Cursos de Pos-Grad. em Letras UFPA. Belém, 12, p.19-41, jul/dez, 1999 UAIVFRSIDANY FENFRAL DO ene 22 PRESSLER, Gunter Ket, foi lido, interpretado e aplicado” (Pressler, 1997, p.94), mas, para isso, a Estética da Recepedo s6 serviu como suporte idedrio; & outro, situado e contextualizado numa pesquisa no Programa de Iniciago Cientifica. A tarefa era fundamental ¢ iniciante: a busca do conhecimento e sua metodologia. O percurso desse artigo-relatério sobre a pesquisa feita desde 1996 segue a linha das nossas apresentagdes em grupo: Q_primeiro, Sant’ Ana apresenta os conceitos de Jauss sobre Estética da Recepedo e suas tradugdes; 2 segundo, Carmo observa, na pesquisa sobre leitores pro- fissionais (historiadores e criticos literdrios) acerca de obras de José de Alencar e Manuel A. de Almeida, a sua aplicabilidade; ©. terceiro, Lisbéa diferencia os conceitos de Iser sobre Es- tética de Efeito, particularmente o “Ieitor implicito”, a plicado em obras de Machado de Assis; ©. ¢, finalmente, Ferreira & Carvalho verificam a aplicaga0 de determinados conceitos da Estética da Recepgao (ex- periéncia estética, quebra do horizonte de expectativa) num estudo com leitores empfricos comuns (Gunter Grimm e outros). As primeiras tradug6es de textos da Escola de Constanga, apareceram em 1979 ¢ 1984, em antologias organizadas por Li- ma. Mas 0 texto que inaugurou a Estética da Recepgao foi tradu- zido no Brasil somente em 1994 (em Portugal 1974 € 1993): 4 Histéria da Literatura como Provocagdo & Teoria Lueréria. A mais recente tradugao de um artigo de Jauss (um texto de 1970) encontra-se na antologia organizada por uma das primeiras tradu- toras de Jauss, Olinto, Histérias de Literatura. As Novas Teorias Alemas (1996). O objetivo de Sant’Ana (1998), na primeira fase da pes- quisa, era “explicitar seu [Estética da Recepgao] contetido teérico Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras URPA. Belém, 12 p 19-41, jul/dez, 1999) TRES LEITORES, 23 ¢ sua metodologia a saber como ela foi lida, interpretada e aplic: da no Brasil”, e como resultado ele constata: No Brasil, diferente mente do que se acreditava, a indife- renga quanto a Estética da Recepcao nao foi tao grande. As publicagdes de 1979 € 1983 das coletineas contendo os ‘ensaios importantes dos tedricos da Estética da Recepgéo, mesmo realizadas doze anos apés a inauguragao dessa ver- tente, aconteceram logo depois que foram langadas as edi- Ges francesa e americana. (1999) — mas, citando Zilberman, no mesmo instante, outras teorias chamaram a atengao do leitor brasileiro: Todavia, quando a antologia apareceu, outras tendéncias teéricas, vinculadas sobretudo aos trabalhos de M.Bakthin, W.Benjamin e J.Lacan, estavam igualmente sendo divul- gadas, atraindo o intelectual brasileiro e, ao mesmo tempo, diversificando as opgOes de investigaao, enquanto se en- cerrava 0 circulo estruturalista, tfo marcante © quase he- geménico durante a década de 70. (1989, p. 6). Lima (1979, p. 12) compreendeu a importancia da pro- posta de Jauss: sair do quadro fechado da interpretac&o imanente; logo observou o deslocamento da ateng%o para o leitor, perce- beu-a também como saindo da “textualidade” para o “plano dos pressupostos”, mas a sua atengio estava voltada para o leitor € sua experiéncia estética, visando as questées da comunicagao literaria e “deixando de fora a conferéncia [de Jauss]”, por isso (... teria truncado 0 entendimento dessa vertente teérica e teria impedido também de compreender a importancia que assume a experiéncia estética do leitor na proposta de Jauss a respeito da nova escrita da historia da literatura (...] texto que talvez tenha mais contribuido para a divulga- go da Estética da Recepgio no Brasil ¢ 0 livro da profes- sora Regina Zilberman. (Sant’Ana, 1999, p. 111), (Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras UFPA, Belém, 1.12, p 19-41, jul/dez, 1999 UNIVERSIDADE FEGEHM 9 BARE 24 [PRESSLER, Gunter Kar Zilberman voltou-se A proposta de 1967, reescrever a historia da literatura; neste contexto, Sant’ Ana levanta os concei- tos centrais de Jauss: A importincia da Estética da Recepgio deve ser entendida a partir da sua proposta de reescrever a historia mediada via horizonte de expectativa do leitor e pela motivacao de uma série de questionamentos das premissas que, até en- ‘Go, orientaram a historiografia no Ambito da literatura [...] Jauss & 0 inaugurador dessa nova estética ao propor uma historia da literatura que conjugasse tanto a historicidade das obras quanto as suas qualidades estéticas, sem deixar que uma sobrepujasse a outra. (Sant’Ana, 1999), As implicagdes para uma modificagao do ensino da lite- ratura a partir da atenc&o ao leitor, Sant’ Ana (1999c) designa me- taforicamente: (..) 0 aluno sempre foi visto como um copo vazio que pre- cisa ser enchido: hist6ria da literatura, biografia dos auto- res, conceitos ¢ periodos literarios, niio importam as idéias dos alunos, a tarefa é aprender e reproduzir 0 conhecimen- & existente, Numa segunda fase da pesquisa, Sant‘Ana (1999d) con- firma 0 aspecto da ressondncia bastante razoavel de Jauss no Bra- sil e percebe que foi superada a contradi¢ao “entre Histéria da Literatura e Estética, permitindo 0 entendimento da permanéncia de uma obra de arte ao longo do tempo e esclarecendo a formagio do juizo estético™ O livro de Zilberman fechou um leque de conhecimento a respeito da proposta inicial (¢ completa) de Jauss ¢ abriu um espaco para pesquisa nessa linha, p.e. o livro de Figueiredo sobre ima Barreto (1995) eo estudo de Queiroz (1997, p. 21/22) que enfoca a proposta da Escola de Constanga diante da questo do cénone e da perspectiva feminista, observando que ‘a histéria da Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras URPA. Belém, n.12, p.19-, jal ez, 1999 ‘TRES LEITORES. 25 literatura é também histéria dos valores que cada época confere aos objetos de representagao”’ ‘Nesta linha de questionamento encontra-se a pesquisa de Carmo (1998/1999). Ela escolheu a “histéria da recepeao critica das obras Luciola, Iracema e Memérias de um Sargento de Milt cias”, enfocando o leitor profissional identificado por Jauss como critico literdrio e historiador, pois ele (..) realiza um processo de andlise estrutural (recursos ¢s- tilisticos e linglifsticos) e/ou interpretativa (contedido s6- cio-politico-filos6fico), baseado em seus conhecimentos da teoria literéria e na sua viséo de mundo. Essa interpre- tagdo € influenciada pela passagem do tempo, sendo con- ceituada pela Estética da Recepcao como “horizonte de expectativa” e “mudanga de horizonte de expectativa”. (1999, p. 113) Neste sentido, a pesquisa em questio (..) vem demonstrando a historicidade da obra literaria na Carvalho de José de Alencar e de Manuel Ant6nio de Almeida, tomando como referencial nao s6 0s aspectos tematicos (a psicologia, a malandragem, a mestigagem, a prostituigao, a influéncia estrangeira, a corrupgao, 0 folclo- re, 0 machismo, preconceito, etc.) mas também estrutu- rais (linguagem, estética do texto, narrador, marcas est ticas, etc.), analisados pela critica literéria brasileira (1998) Carmo levantou, nas molduras possiveis de uma pesqui- sa na graduagio, a literatura critica acerca das obras referidas identificou os aspectos centrais dessa recepgio nas criticas de Machado de Assis, Silvio Romero, Rachel de Queiroz ¢ etc. Ba- seada no estudo do critico norte-americano Dunn (1997), ela res- salta a semelhanga entre as obras estudas Pocahontas, a Histori- cal Drama, de Owen (1837) e Jracema, de José de Alencar. Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras UFPA. Belém, n.12, p. 19-41, jul/dex, 1999 26 PRESSLER, Gunter Kart Dunn revela a ilusto ideolégica mascarada pelo idealismo roméntico-nacionalista-indianista, quando ressalta 0 fato de o indigena ter sido ‘valorizado” somente apés sua do- minagao, sendo por isso, identificado como uma espécie de instrumento a servigo de fervores nacionalistas da bur- guesia. Neste sentido, os dois romances supracitados traduzem 03 valores culturais da classe sotial de seus produtores, isto é, atribuem ao indigena, que neles aparece descrito, uma i dentidade em que a elite branca deseja que ele tenha, evi- denciando a descaracterizacao da cultura indigena em fa- vor dos interesses do dominante, A fundagio da América “se toma bela ¢ gloriosa, em vez. de violenta e destrutiva”™ (Carmo, 19986) Jracema canonizou-se na literatura brasileira como obra prima e recebeu mais atengdo dos criticos, enquanto a obra Lucio- Ja “no teve a mesma repercussao [...] por apresentar um tema ousado para a época: a prostituicio; até ignorado pela literatura brasileira” (1999, p. 115). A obra recebeu uma recepgao somente na década de 70 com o advento da Psicologia e da questo da literatura feminista. Citando a constatada dicotomia Liicia/Maria da Gléria, objeto de estudo de Leite (1977) que representaria a separago entre corpo e alma, Carmo resume que (..) cada tipo de amor ocupa seu lugar em determinada e: fera social: 0 primeito € dedicado as mulheres de baixa renda (feitas para amar fisicamente), ¢ o segundo as da eli- te (dignas de respeito, pois era convencional, para a socie- dade machista da época, manter os prostibulos a fim de sa- ciar 05 seus desejos e taras, aspectos reprimidos pelo ca- samento). No contato com a prostituigo, o homem nao é ‘em nenhum momento'afetado a mulher, porém, j4 pode * Num trabatho apresentado no III Encontro do [FNOPAP, “Meméria e Comunidade” (Belém-Santarém, julho de 199), Carmo investigou os tragos semelhantes entre Ira- ccema © figuras mitolégicas: Helena, Diana e fara. A partir déssa pesquisa, que se ddesdobrou exclusivamente sobre os romances de Alencar, foi apresentada uma sinte- se na 52 Reunito da SBPC, Brasilia, 92 16 de julho 2000, Moara - Rev. dos Cursgs de Pos-Grad, em Letras UFPA., Belém, 0.12, 19-41, jul ez, 1999 ‘TRES LEITORES. 27 considerar-se irremediavelmente perdida. Grosso modo, os etros do homem sao perdoados e os da mulher séo cruel- mente castigados. (1999, p. 115-6). A escolha das Memérias justificou-se pela contempora- neidade dos autores e pela mesma (..) quebra do horizonte de expectativa” no leitor contem- pordneo. Os critices literdrios e historiadores ficam até ho- je na incerteza de classificé-la genericamente (nove~ la/romance?) € periodicamente (Romantismo/Realismo?) Mas jé a estrutura narrativa rompe o horizonte de expecta tiva: “A comegar pelas primeiras paginas, quando se espe- rava um narrador-protagonista contando suas memérias [.--] aparece uim narrador heterodiegético, que ndo é Leo- nardo. Sobre o fato de Leonardo se tornar Sargento, que deveria ser 0 tema do livro, s6 se faré mengao no tiltimo capitulo, apés as travessuras da infancia, das paixdes e da ociosidade, ocasionando a passagem de uma vida irregular para outra ordenada conforme os padres. romanticos, (1999e). Uma marca na recepgao € 0 estudo de Anténio Candido de 1970: “A Dialética da Malandragem”. A grande mestria de Anténio Candido encontra-se na sua tentativa sistematica de fun- dar a disciplina teoria literdria como uma disciplina de investiga- G0 de assuntos de estudos literdrios ¢ aprofundamento da eterna discussao sobre a rela¢o entre histéria e literatura. E seu aluno Davi Arrigucci Jr. constata: “Desde o principio [...] Candido bus- cou desenvolver um método critico que fosse de fato estético ¢ histérico a um s6 tempo [...] Seu trago fundamental talvez seja ainda uma propriedade do leitor: a profundidade ¢ a amplitude da compreensiio” (1999, p.246). A respeito dos conceitos centrais de Jauss, aplicados nesse levantamento, Carmo conclu previamente que todas as trés obras quebraram o horizonte de expectativa e se classificaram na Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad.em Letras UFPA. Belém, n 12, 19-4 UNIVERSIDBDE FEDR«: lider, 1999) 90 Bass 28 PRESSLER, Gunter Kat historia da literatura brasileira pela mudanga de horizonte de ex- pectativa da leitura histérica e critica O texto central e o ponto de partida do estudo sobre Iser, na moldura do nosso projeto, € 0 livro O Ato de Leitura de 1976, traduzido o primeiro volume em 1996, ou seja, os dois primeiros dos quatro capitulos. A maior parte do capitulo IV jé foi traduzi- do na antologia de Lima em 1979. Na introdugao da primeira edigdo, Iser (1996, p.15) apresenta sua terceira obra, depois de A Estrutura Apelativa do Texto (1970) ¢ O Leitor Implicito (1972), da seguinte forma: “o texto é um potencial de efeitos que se atua- liza no processo da leitura”. Desses pélos — texto € leitor —e sua interagdo, parte a teorizagao sobre os efeitos dos textos literérios, abordados nos capitulos Il, III, IV. Mas 0 priprio texto é uma comunicagao em e por si mesmo, quer dizer, no centro esté a “in- tengdo comunicativa do texto” — a estrutura do texto e 0 proces- so da leitura provocado pelo texto. Iser alerta que até agora s6 se encontra a descri¢do dessa situacdo especifica. Quais so os seus impulsos? Pois eles constituem “os pressupostos necessérios para © processo de constituigéo do texto [...] na consciéncia do leitor” (1996, p. 16; esses impulsos so tratados no wltimo capitulo, se- guindo a légica da indagago fenomenolégica de Iser). Nessa “dialética de trés passos” (dialektischer Dreischritt), a relagao entre texto, leitor € sua interagao, Iser fundamenta sua Estética do Efeito, na qual inerentemente est a questdo da esséncia, natureza e definigao da literatura. O que, entdo, consta no primeiro capitu- lo? A “situagao do problema”, desenvolvida a partir de um texto de Henry James, 4 Figura no Tapete (1896), que é um metadis- curso narrativo sobre a estrutura € sua estratégia como texto lite- ratio. A segunda parte desse capitulo trata da concepgao do lei- tor implicito — a pesquisa de Elen M. M. Lisbéa. A trajetéria de Iser parte ~ como jé vimos acima ~ do texto (a estrutura apelativa do texto), passa pelo leitor (0 outro pélo, mas nao o leitor empiri- co da Estética da Recepedo como objeto de estudo) pelo proces- Moara ~ Rey. dos Cursos de P6s-Gred. em Letras UFPA, Belém, n.12,p.19-41, jul/dez, 1999 TRES LEITORES, 29 so da leitura para chegar numa antropologia literéria’, “A inter- pretago comega hoje a descobrir sua propria historia, ou seja, nao $6 0s limites de suas respectivas normas, mas também os fatores que nfo se manifestavam sob as normas tradicionais. Um desses fatores é, sem diivida, o leitor” (1996, p. 49). Junto com Jauss, Iser prope a proposta teérica que se consagrou como E: cola de Constanga: 0 desdobramento critico sobre uma prética interpretativa que ausentou esse fato constitutive no (auto)engano jdeoldgico de uma objetivagao do juizo estético. Se a interpretagao orientada para a significago (bedeu- tungsorientierte Interpretation] tratava 08 dois processos ~ o de constituigao [a estrutura do texto] e 0 de realizagdo de sentido (no processo da leitura] ~ como se prescindissem de explicagio, entio era para isso decisiva a sua meta (1996, p. 55)” de averiguar 0 significado objetivo, pois determinante nas suas caracteristicas, dos textos. Iser fala de uma “subjetividade culti- vada" que se apresentou como objetividade e responde, assim, as criticas direcionadas & teoria do efeito, a qual favorece uma arbi- trariedade subjetiva e a privatizagao do texto. Eagleton (1997, p. 109), por exemplo, desvia uma compreensdo certa — “Iser [leva- nos] a uma autoconsciéncia mais profunda, catalisar uma visio mais critica de nossas préprias identidades” — a uma interpreta- g40 ideolégica: o “humanismo liberal de Iser [é] autoritério” (1997, p. 112) © Em 1987, Iser publica Laurence Sternes ‘Tristram Shandy’, um estudo que € conside- ado modelo de aplicagdo da sua teoris. Além disso, o estudo € uma introdugo & es- trutora do romance modemo em geral: a reconstrugo da génese da subjetividade moderna, Em 1931, Iser publica a “suma mais instigante e complexa” (Luiz Costa Lima) da sua reflexao sobre @ literatura: O Ficticio e a Imagindrio. Perspectivas de uma Aniropologia Literéria, tad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EDUERS 1996. * 4 tradugdo de Kretschmer continua nesse trecho de seguinte forma “de aprender a significagto referencial do texto” Moara - Rey, dos Cursos de P6s-Grad. em Letras UFPA. Belém, n.12, p.19-41, jul/dez, 1999 UNIVERSIDADE FRORRAL 8 RAR 30 PRESSLER, Gunter Kas! A reflex4o sobre a relagao entre texto e leitor ressalta tanto os constituintes do texto e seus possiveis efeitos quanto a constituigo e compreenséo no leitor. De um lado, a obra ao ser consumida provoca um determi- nado efeito sobre 0 destinatério, de outro, ela passa por um proceso histérico, sendo ao longo do tempo recebida ¢ in- terpretada de maneiras diferentes, esta é a sua recepeao. Desse modo as palavras-chave efeito e recepedo, que aqui sao diferenciadas, terminam por formar os principios cen- trais da Estética da Recepgdo que aleanga, portanto a sua plena dimensio quando esses principios se interligam Neste ponto, encontra-se presente uma das possiveis con. tribuigdes que Iser concedeu & pesquisa de Jauss. (Lisbéa, 1998; nas palavras de Iser: “o proprio texto é a ‘prefigura~ so da recepgao”, 1996, p.7) A partir desta distingao entre as estéticas da Escola de Constanga, Lisbéa (1998) enfoca sua tarefa ressaltando na estru- tura do texto “a interagao entre 0 texto eo leitor”™, Essa relagio ocorre num primeiro contato entre o texto literério e o leitor em- pirico, mas 0 interesse epistemolégico ¢ fenomenolégico de Iser detém-se na relagao dialética que antecede a empirica da recep- g80, aquela entre os pélos do préprio texto (narrador e. lei- tor/narratério), que Iser denomina a “concepgao do leitor implici- to” (1996, p.63-79). O objetivo da pesquisa situa-se na compreensto e apli- cago, uma forma de concretizacfo da reflexfo teérica dessa con- cepeao do leitor implicito em que Iser pronuncia o ponto da inde- terminagao da interago entre texto e leitor: Num outro momento, um trabalho apresentado no lil. Encontro do IFNOPAP, “Me- méria ¢ Comunidade” (Belém-Santarém, jutho de 1999), Lisbéa diz: “Esse plo de ‘comunicagto irk se desenvolver a partir do momento em que dcorrer uma interagio entre 0 narrador © o leitar, como se ambos pudessem estabelecer um tipo especial de iflogo” (grit nosso) Moara ~ Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em L 48 UFPA. Belém, n.12,p.19-41, jude, 1999 TRES LEITORES, 31 Para o entendimento do Leitor Implicito iremos explorar, ‘em particular, a concepgio de vazio em um texto literario. s vazios existentes em-um texto fazem com que o leitor sinta necessidade de preenché-los ¢ para que isso ocorra teremos na maioria dos casos a projegao do leitor em rela- 0 & obra. (Lisbéa, 19992) Apoiando-se nas constatagbes de Costa Lima (1983, p. 23) de que “a comunicag6 entre o texto e 0 leitor fracassard quando tais projegdes se impuserem independentes do texto”, Lisbéa destaca os pressupostos essenciais para o processo de es- truturagao do Leitor Implicito. leitor, enquanto receptor de textos, deve evitar certas vi- soes estereotipadas no momento da leitura. Segundo Costa Lima, a comunicagdo entre 0 texto ¢ o leitor ‘dependera de © texto forgar o leitor & mudanga de suas representagdes projetivas habituais’ (Lima, 1983, p. 23). Com isso, o lei- tor deveria “sair de sua casa © se prestar a uma vivéncia no estrangeiro; testar o seu horizonte de expectativas; pér a prova sua capacidade de preencher o indeterminado com um determinavel”, (Lima, 1983, p. 24 apud Lisb6a) Com o estudo do Leitor Implicito, Lisbéa afirma a pos- sibilidade de ultrapassar 0 alcance limitado da interpretagao estrutu- ral de textos literdrios, proporcionando uma particular a~ tengo para o papel do leitor. Em vista disso, ressaltamos o estudo do Leitor Implicito e de suas estratégias textuais pa- ra uma elaboragao metodolégica que possui a capacidade de auxiliar a anélise da obra literéria por intermédio de es- truturas especificas do texto, procurando um equilibri tte 08 papéis oferecidos pelo texto e as reagdes evidenci das no leitor a partir de sua recepeao. (Lisbéa, 1999 a, b) Num primeito momento da pesquisa inicial, percebe-se que 0 conceito “leitor implicito” foi detectado como destinatério ‘Moara ~ Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras UFPA. Belém, 0.12, p. 19-8, jul/dez, 1999 UHIVERSIDANE FEOERAL 110 32 PRESSLER, Gunter Karl identificado na naragao “por meio de referéncias explicitas” co- mo “leitor”, “querido leitor”, etc. — e ai, a obra da chamada se- gunda fase de Joaquim Maria Machado de Assis se oferece como objeto par excellence ao estudo desse tipo de leitor. Num segun- do momento, a pesquisa levanta formas graficas e retéricas que identificam um leitor implicito, p.c., utilizagaio de travessdes no meio da narrativa: “Se além dessas prendas, — tinicas dignas da preocupagao de um sabio”; exclamagées, p.e.: “Tinha uns sessen- ta € quatro anos, rijos e présperos, era solteiro, possuia cerca de trezentos contos ¢ fui acompanhado ao cemitério por onze ami- gos. Onze amigos!”; utilizago dos pronomes pessoais, p.e.: “nos- so médico” ¢ formas de elipse que implicam o preenchimento (do vazio) pelo leitor: “De como Itaguaf ganhou uma casa de orates” (trechos das duas obras Memérias Péstumas de Bras Cuba e O Alienista, escolhidos por E.Lisbéa (1999). Depois da familiarizago com os pressupostos fenome- noldgicos e a terminologia de Iser, percebe-se que o leitor impli- cito nao é simplesmente uma categoria concretizada em recursos lingtiisticos e/ou retoricos, o proprio “processo de leitura se reve- la inerente como parte imprescindivel da estrutura narrativa”” (1999¢, p.5). A pesquisa continua com a obra de Machado de Assis, pois “inicia, numa forma inovadora na literatura brasileira, © discurso com 0 leitor’;? além de “tor demonstrado em seus romances uma técnica textual capaz de interromper a narrativa para assim dirigir-se a fi- gura do leitor e por ser contemporaneo do romancista Hen- ry James, 0 qual constitui uma referencia significativa para Tser. (Lisbéa, 2000). Para que a comunicagao ocorra (..) € necessério preencher os vazios no texto. Segundo Queiroz (1997, p.89), “assim como na relacdo face a face ° A inovagdo da interapto narrador ~ leitor/narratério foi reconhecida e trabalhada por Camara Jr. (1977) Moara - Rev. dos Cursos de P6s-Gred. em Letras UPA. Belém, 0.12,» 19-41, joLldez, 1999 ‘TRES LEITORES. @ interagao é controlada por planos de conduta e impulsi- onada pela inapreensibilidade da experiéncia alheia, do mesmo modo os vazios, enquanto assimetria fundamental entre 0 texto e 0 leitor, funcionam como elementos tensio- nadores e mobilizadores da interag&o entre essas duas instancias”. Assim, conclui Lisbéa (2000) previamente o seu estudo, é necessdrio e altamente fecundo para a viséo narratolégica, no Ambito da Teoria Literéria, procurar “um equilibrio entre ‘os pa- péis oferecidos pelo texto e as disposigées do leitor’ (Iser, 1996, p77”. Trabalhar com leitores empiricos comuns foi 0 objetivo de Ferreira e de Carvalho. Elas escolheram alunos da 5" série para esse levantamento, guiadas pelo suporte tedrico de Jauss ¢ seus conceitos centrais, “horizonte de expectativa” e “quebra do hori- zonte de expectativa”, num contexto maior de verificar a experi- Encia estética desses alunos. A justificativa da pesquisa encontra- se na realidade escolar: Durante muitos anos o estudo eo ensino da literatura fo- ram efetivados em bases estilisticas e formais, nos quais 0 autor ¢ a obra ocupam 0 lugar central, isto é denominado por Jauss (1967) como estética de produc, O resultado desse tipo de postura contribui para a formago de leitores passivos, desacostumados a estabelecer sua propria inter- pretagdo de uma obra literaria ou mesmo de um simples texto. (1999). Baseadas nos pressupostos da Estética da Recepgao, a- Iém do acompanhamento da pesquisa, Ferreira e Carvalho desen- volveram uma metodologia que busca “propiciar condigées para "®~Bssa linha de estudo [sobre leitores comuns) foi promovida na Alemanha por estu- diosos como H, Steinmetz, Hartmut Eggert, Hans Christoph Berg, Michaele Rutschky © Ganter Grimm, nto havendo, até o presente momento, eferéncias ao leitor empit co comum em obras genuinamente brasieiras” (Plano de Trabalho: Introdugao” 1998), Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad. em Letras UFPA, Belém, n.12, p. 19-4, jul de, 1999 MMIVERSIFs - 34 PRESSLER, Guater Kas! que o leitor possa expressar opinides pessoais a respeito da obra literaria com a qual est4 interagindo” (1998). Por razdes praticas, escolheram como leitores alunos da 5’ série do ensino fundamen- tal, os quais deveriam ler algumas histérias de Hans Christian Andersen, selecionadas por duas razdes: uma, por nelas estar ine- rente a intengdo estruturada de despertar o leitor — na terminolo- gia de Jauss, quebrar 0 “horizonte de expectativa”; a outra, pela propria experiéncia de Ferreira com contos de Andersen, 0 que estimulou a curiosidade cientifica das pesquisadoras. Com isso, esperava-se que os leitores escolhidos emitis- sem suas opinides sobre as hist6rias: sera que se decepcionariam, ou melhor, “se despertariam” — nas palavras de Andersen — com o final inesperado e, muitas vezes, triste dos contos? Antes de iniciar na pesquisa, as duas aprofundaram-se nos pressupostos tedricos e suas categorias: primeiramente era necessario trabalhar ¢ denominar 0 conceito “leitor empirico” especifico para esta pesquisa"; segundo precisavam esclarecer a escolha dos textos literdrios: os contos infantis ha muito questio- nados na obra de Hans Christian Andersen. Hoje, a obra de An- dersen 6, indubitavelmente, clissica da literatura infantil, “no dizer do poeta Auden: ‘Andersen foi o primeiro homem a fazer dos contos de fadas uma obra literéria e inventar novas histérias de fadas deliberadamente” (Paes, p. 8). Entiio, foram selecionados sete contos para serem traba- Ihados: “A Pequena Vendedora de Fésforo”, “A Sereiazinha”, “O Isqueiro”, “A Menina que pisou no Pao”, “O Intrépido Soldadi- nho de Chumbo”, “O Patinho Feio” e “A Sombra”. Foi claborado um questiondrio para os alunos e um percurso metodolégico (p-c., Ef. no Relatério Final (“Resultados”) e na apresentagao na XVII Jornada de Estudos Lingbisticos do GELNE, Fortaleza, de 1 a3 de setembro de 1999, como foi delimita- do 6 leitor empirico de forma restrita em fungio dos objetivos da pesquisa. No se~ gundo ano da pesquisa nas molduras do Programa de iniciag8o Cientifica, as alunas tmodificaram plano de trabalho abjetivando um levantamento comparativo entre as Teituras dos letores empiricos comuns e leitores profissionais (estudantes avancados, professores ¢ crticos literdrios): “Leitor e Literatura: um Estudo comparativo entte Leitores Comum ¢ Leitores Profissionais, observando a Quebra do Horizonte de Ex- pectativa na Recepgdo dos Contos de Hans Christian Andersen” (PIPES/UFPA, 1999), Moara - Rev. dos Cursos de P6s-Grad. em Letras UFPA. Belém, 0.12, p. 19-41, ju/dez, 1999 TRES LEITORES. 35 interromper a leitura do conto num momento-chave da narrativa para testar a expectativa, ¢ pedir uma criago de um possivel final do conto, etc.); resumindo, Ferreira e Carvalho (1999) consta- tam que para 98% dos leitores o horizonte de expectativa foi que- brado mas, ao contrério das hipéteses defendidas por alguns criti. cos, os contos ~ embora com quebra da expectativa ~ foram bem. recebidos. Os tragos de melancolia e tristeza, segundo nossos interlo- cutores, percorrem alguns contos e tém sido por eles [os leitores] entendidos como um meio eficaz para tocar sua sensibilidade, de forma doce e terna."” Além disso, uma grande maioria dos leitores comuns percebem as marcas estéticas da obra de Andersen. “Eles aponta- ram 0 maravilhoso, o realismo, a linguagem trabalhada, a aventu- ra, a melancolia ¢ a tristeza como principais caracteristicas” (19998). Para o Ill Encontro do projeto IFNOPAP, Carvalho e Ferreira aplicaram a pesquisa as narrativas populares amazénicas. A narrativa A Cobra de Prainha (Simées, 1995, p.94-98) foi se- lecionada, final acabou surpreendendo 0s leitores (a mae nao tinha coragem de desencantar os filhos, mas o soldado desencan- tou os filhos, pagando 0 prego do encanto), “envolvido ¢ condu- zido pelo narrador a esperar um determinado desfecho para a his- toria [...] contrariando todas as hipdteses construidas ao longo da leitura” (1999c). E a respeito da experiéncia estética constatam, em seguida, que as. ° (..) marcas de oralidade nao dificultaram a compreenséo do texto. Dos trinta e dois interlocutores, vinte compreen- deram a narrativa original sem problemas”. Portanto “os conceitos abordados pela estética da recepcao podem ser aplicados as nartativas orais, propiciando um estudo desse " As duas modificaram num segundo passo @ narrativa, tiraram os marcadores da oralidade (repetigdes, verbos de encher, ete) © a adaptaram a linguagem escrta Moars Rev. dos Cursos de Pds-Grad, em Letras UPA. Belém, n.12,p.19-41 jul/dez, 1999 UMIVERSINE ro aks 8S 36 PRESSLER, Gunter Kast tipo especial de textos nos moldes em que se estuda uma, obra literdria. (19960) Compreendemos que o leitor empirico comum confirma seu direito histérico e didético como leitor ativo, realiza e concre- tiza 0 texto literdrio, tem critérios para perceber e avaliar a estéti- ca do texto, sem conhecer e aplicar uma terminologia especifica da teoria literéria. Isso deveria modificar o ensino da literatura a fim de liberar 0 aluno das leituras mastigadas ¢ mecanizadas, tipo as do vestibular. A pesquisa de campo limitado, mas representati vo para a situac&o educacional, prova que o tratamento da litera- tura na sala de aula deve pressupor e contar com um leitor ativo. Ensinar literatura de maneira prazeCarvalho e educativa nao é mais utopia, ou s6 assunto das pesquisas universitérias, deve en- trar em pratica, pois o leitor comum é ativo (se as condigdes de ensino permitam) e competente para a leitura literaria. © aluno nao precisa do professor como “muleta” para uma explicagdo simplificada e didatica, precisa sim de um moderador e guia no aprofundamento teérico ¢ histérico dessa percepeao, reconhecen- do que o ato de ler é uma atividade emancipativa no sentido de Paulo Freire. A pesquisa sobre as propostas da Estética da Recep¢ao, da Escola de Constanca, aborda a relagao entre literatura, teoria literéria, histéria e sociedade e, particularmente como resultado implicito, a significagao dos estudos sobre literatura e ensino da literatura. A ateng&o ao processo da recepso, da leitura © seus leitores envolve e exige uma reflexao sobre o ensino da literatura na Universidade. Por outro lado, abordar essa vertente recente no campo da teoria literdria significa fazer um balango das linhas gerais da ciéncia da literatura desde o final do século XVIII até hoje. A estética da representagao a qual se desdobra sobre a obra, sua forma, seu contetido e sua mensagem desde ‘a Poética de A- ristételes € a estética da produgaio que envolve a prépria criagdo Moara - Rev. dos Cursos de Pés-Grad, em Letras UFPA. Belém, n.12,p 194th, jez, 1999 ONIVEGXSIDADS ruutau UU FAK BIBLIOTECA DO ILC TRES LEITORES. 37 literdria e sua autoria (autor e/ou sujeito empirico) se fundamen- tam numa estética da recepgao que envolve a leitura eo leitor. O que € estética? Podemos perguntar neste instante. A ciéncia que trata o belo; a filosofia das belas artes. Com a funda- mentagao da disciplina da estética com Baumgarten (1735-50) e Kant (1790) no ambito da filosofia, o estudo da teoria e critica literdria ganhou seu proprio espaco ao lado da historia da literatu- ra, Kant atribufa a arte uma “finalidade sem fim”, uma “satisfago desinteressada” ¢ uma “beleza pura”, considerando a arte uma posi¢do autOnoma e libertadora, sem fins didéticos ou titeis — assim, um projeto idealista da filosofia do Iluminismo. Mas, natu- ralmente, a histéria do gosto, do belo é uma histéria parcial do belo, sua ideologia, seu cénone, etc. Nao cabe aqui entrar nessa questdo, s6 queremos apontar para nossos fins os “aspectos de toda experiéncia estética: um, sujeito (0 sujeito que sente e julga), € outro, objeto (0 objeto que condiciona ou provoca 0 que senti- mos € julgamos)” (Nunes, 1989, p.13/14). O sujeito é 0 leitor como historiador, artista ou professor (Leitor I) — ou como leitor comum (Leitor III); 0 objeto, o livro, a obra de arte. O aconteci- mento chama-se leitura (Leitor I1). O conceito “recepgao/leitura” difere do conceito “piblico”, conseqiientemente a Escola de Constanga nao se identifica com a sociologia da literatura, ela se compreende como vertente tedrica da hermenéutica literaria. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARRIGUCCI JR, Davi. Outros Achados ¢ Perdidos. Sto Paulo: Cia das Letras, 1999. BARTHES, Roland, La mort de auteur. I gue. Paris: Seuil, 1969. BENJAMIN, Walter. O Autor como Produtor. In _. Obras Escothidas. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3. éd. Sao Paulo: Brasilien- _ se, 1987. P. 120-36. V. CAMARA JR., Joaquim Mattoso. O Discurso Indireto Livre em Ma- chado de Assis. In: Ensaios Machadianos. Rio de .e Bruissement de la Lan- my 039.9 19-4 jy) ee 1899 38 PRESSLER, Gunter Katt Janeiro: Ao Livro Técnico, 1977. P. 25-41. (Col. Lingtiistica ¢ Filo- logiay CANDIDO, Anténio. A Dialgtica da Malandragem. Revista do Instituto de Estudas Brasileiros. Sao Paulo, n. 8, p. 67-89, 1970. CARMO, Roberta Bandeira do. 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