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LIVRO I CAPITULO 1 SOBRE A ORIGEM DAS ARTES DENTRE TODOS OS BENS QUE ASPIRAMOS, é certo que a sabedoria ocupa o primeiro lugar, posto ser nela que con- siste a forma do Bem perfeito. E Bem perfeito porque, ao iluminar o homem, a sabedoria faz com que ele conhega a si mesmo, de modo que, conhecendo-se, deixe de pen- sar ser apenas algo semelhante a todas as outras coisas criadas, notando que de fato foi criado como ser superior. Na verdade, a alma imortal humana, iluminada pela sabedoria, considera o seu prprio principio, e reconhece como indecorosa a situac4o em que um homem se pro- cure, fora de si mesmo, ou seja, quando busca nas coisas externas 0 que propriamente considera como correspon- dendo a si, pondo de lado 0 adequado para a verdadeira busca intima. Entao, podemos ler 0 escrito no tripode de Apolo: ‘gnoti seauton’,’ isto é, ‘conhece-te a ti mesmo’. E isto porque, de fato, um homem que conhecesse a si mesmo. nao esqueceria de sua propria origem, cujo contraponto é o de que todas as coisas mutaveis, por sua vez, sdo esque- cidas, ou ainda, o Nada é justamente o esquecido. 3 Xenofonte. Memorabilia. 4, 2, 24. Além de ser frase fundamental para a filosofia socratica, a Idade Média foi tomada pela busca do divino, na égide da intimidade pessoal. Santo Agostinho faz referéncia a esta busca intima nas Confissdes; Boécio a repete na Consolagdo; ¢ Pedro Abelardo escreve 0 famoso texto Scito te Ipsum (“Conhece-te a ti mesmo”), com 4rdua influéncia no pensamento dos séculos Xue Xill — NT. 23 e os filésofos, hé uma sentenga Provada e reco. a alma é composta por todas as partes da na. tureza. E 0 Timeu de Plato sustenta que a enteléquias forma-se com substancia dividida, indivisa e mista, bem como da mesma substancia € de diversas, todas elas, ade- mais, designando nosso universo.* ‘A nossa alma, alias, conhece os primeiros principios, bem como as coisas que deles derivam, € compreende, por sua inteligéncia, as causas invisiveis das coisas, ob- tendo, pelas impressdes dos sentidos, as formas visiveis das coisas corporais. Dividida, a alma retine o movimen- to em dois orbes,* porque ou ela procede pelos sentidos - direcionando-se para as coisas sensiveis —, ou pela inteli- géncia — ascendendo As invisiveis. Em suma, ela gira em torno de si, mostrando-se a nds justamente a partir da semelhanca que alcanga com as coisas compreendidas. Entr nhecida, Portanto, o espirito, capaz de captar todas as coisas, independente da substancia e da natureza, representa, Por sua propria imagem, a semelhanga com todas as coi- sas [do universo]. Esta afirmagao nos lembra do dogma dos pitag6ri- Cos, a saber, que os semelhantes si0 compreendidos por meio de outros semelhantes. Entao, se a alma racional nao fosse composta por todas as formas, de nenhum modo seriamos capazes de compreender todas as coisas ae como antes nos foi dito: “compreendemos a tetta Peas coisas terrenas; o fogo, pelas flamejantes; os humo- Tes corporais, i » pelos fluidos; as coi ue saem de 108s0s suspiros” 7 5 oisas, pelas qi oo © cone Univers, mare lei, no sentido platdnico, aproxima-s¢ i (ideais), Na entelequia pee seta peptide refs vn rates fisico ~ NT. ees ™ Ime a Fase ‘como um microcosmo — NT. oe la¢ao da Filosofia. 1, 9, idius. Ti . Timeus : 4 Caleidio translatus commentariorque instruct 5 5 6 7 1. 24 PP a Também nao podemos pensar que grandes peritos, profundos conhecedores da natureza das coisas, tomas- sem uma simples esséncia como correspondendo a uma quantidade phirima de partes. E, para que se demonstras- se sua imagem, expondo com mais clareza seu poder, os pitag6ricos diziam que nela todas as coisas consistiriam. Consistiriam, aliés, nao por composigao [fisica], mas por composigao racional.* Do mesmo modo, nao podemos crer esta semelhanga [formal] com todas as coisas do universo, como originada de outra fonte - diferente da prépria alma -, ou nascida de qualquer fonte externa a si, posto a alma alcangar, por sua natureza propria, o poder maximo e a virtude que lhe é peculiar. Tudo isto, ademais, é confirmado no Perifiseos, de Varro: “nem todas as mudangas externas ocorrem as coisas, pelo mecanismo de que, para que elas se modifi- cassem, seria indispensdvel a perda de alguma qualidade, que antes tinham, ou a aquisigdo de caracteristica pro- veniente de fora, ou seja, algo diferente de si, e que antes nao tinham”. Assim ocorre, por exemplo, com uma parede de pedra que, devidamente esculpida, recebe uma forma de uma fonte externa. Mas quando um ferreiro imprime uma fi- gura determinada em um metal quente, nao passa a re- presentar algo inteiramente existente fora de si, mas re- presenta algo que pertence a sua propria virtude natural [interior e intimal. Nao ha diividas de que o nosso espirito, composto for- malmente pela semelhanga de todas as coisas, pode ser Idem. 228, No trecho, Hugo nos lembra que, para o pitagorismo, todo 0 universo se encontra em nossa alma, Mas nunca por composigéo natural — soma de coisas, em sentido material € natural -, mas por possibilidade formal de concretizagio. Assim, a alma, formalmente, possui a possibilidade de alcangar, por si, semelhanga com todas as coisas, sejam fisicas, sejam espirituais - NT. 25 ili definido, sob certo ponto de Vista, como a de todas elas. No entanto, é claro que, quando em composigao, nado estamos nog teferindg ao Senta jungao integral [de partes], mas visamos um ent og virtual ou potencial de todas as Coisas em nbs, ety dignidade de nossa natureza: Possuir j tae, , igualmente todas coisas, mas sem conhecé-las de um mesmo modo S* Nosso espirito se esquece do que foi, cido pelas paixdes corporeas, ou conduzido Pelas forma, sensiveis. Entdo, como nao Mais se lembra de ter sido Outra coisa [a nao ser a assuncao de sua Condicao tor atual], ndo acredita em nada Mais, sendo NO que ele pa. tece ser. Por isto, é pela doutrina q A procura pela Sabedoria, Portanto, nada mais é do que o grande conforto da nossa vida," porque quem a encontra € feliz; e quem a Possui, santo. Cee 4 fo por * Noexcetto,a alma humana é tomada como elemento mnie sts habitat de nossa dignidade e individoaldnde Hi nla Pera have toda criagio, mas nao o conhecimento atual de todas as aimprescindve!? & "ansposicdo da potencialidade para o conhecimento, é imp! pat !Pagao indelével da inteligéncia ~ wr. 10 Boécio, De institutione musica, 2.2. 26

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