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> A natureza da psique eat gyaincs EDITORA VOZES X 1 Da esséncia dos sonhos A psicologia médica se distingue de todas as outras disciplinas ci- entificas pelo fato de que deve lidar com os problemas mais complexos sem poder recorrer a dispositivos experimentais comprovados, a ex- periéncias sistematicamente repetidas em laboratério ou a dados logi- camente explicaveis. Pelo contrario, ela se vé diante de uma infinidade de dados irracionais em perpétua mutagio, porque a alma humana é talvez a coisa mais opaca, mais impenetrivel e mais inabordavel que o Pensamento jamais estudou. Por certo, € preciso admitir que todos os fendmenos psiquicos estao ligados entre si por uma espécie de encade- amento causal, entendido este termo em seu sentido mais lar gO, entre- tanto, recomenda-se, precisamente neste dominio, nao esquecer que a causalidade, em tiltima andlise, nada mais é do que uma verdade esta- tistica. Por isto em certos casos talvez nao parega despropositado con- siderar pelo menos a possibilidade de uma irracionalidade absoluta, embora, por razGes heuristica, seja preciso contar sempre com a pers- pectiva causal, Também sera aconselhavel levar em conta uma das dis- tingSes conceituais clissicas, a da causa eficiente (causa efficiens) ea da causa final (causa finalis). Na ordem fisica, nao é necessariamente mais frutuoso perguntar por que e como tal coisa se produz do que indagar com que finalidade ela se realiza. Entre os numerosos problemas da psicologia médica ha um par- ticularmente delicado: € 0 dos sonhos. Seria uma tarefa igualmente interessante e dificil examinar os sonhos exclusivamente sob seus as- pectos médicos, isto é, em relagio com o diagnéstico eo prognéstico 1, Publicado pela primeira vez na Ciba Zeitschrift (Revista Ciba), IX, 1945 [aqui acres- cido de alguns detalhes). 530 S31 532 236 Obra Completa ~ Vol. 8/2 de certos estados patolégicos. O sonho diz respeito, realmente, tanto a satide como a doenca, e, por isto, dada a sua raiz inconsciente, ele extrai elementos de sua composigao também do tesouro das percep- Ges subhiminares, podendo nos proporcionar dados titeis ao conhe- cimento. Eu pude constatar muitas vezes este valor em casos nos quais © diagnéstico diferencial entre sintomas orginicos e psicogénicos cc dificil. Certos sonhos sao também importantes para 0 prognéstico’. Mas neste dominio faltam ainda trabalhos preliminares indispens4- veis, tais como compilagées acuradas de casos observados, e seme- Ihantes. Caberd aos médicos do futuro com formagao psicol6gica fa- zer © registro sistemtico dos sonhos por eles estudados; assim se te- ria ocasido de verificar que, em dado material onfrico, encontram-se elementos que se referem & eclosao ulterior de uma doenga aguda, ou mesrio a um fim fatal, acontecimentos, portanto, que n4o podiam ser previstos na época do registro. A investigagao dos sonhos em ge- ral , em si, tarefa para uma vida inteira: 0 seu estudo detalhado exige a colasoragio de muitos pesquisadores. E por isto que neste breve apanhado geral eu preferi descrever os aspectos fundamentais da psi- cologia onirica e sua interpretagao, de modo a permitir, mesmo Aqueles que nao tém experiéncia neste dominio, uma visao dos pro- blemas e da metodologia utilizada em sua investigacao. O leitor fami- liarizado com esta matéria provavelmente haverd de concordar co- mige que o conhecimento dos principios fundamentais é mais impor- tante do que a enfadonha multiplicagao de casos que, de qualquer modb, é incapaz de suprir a falta de experiéncia pessoal. © sonho € uma parcela da atividade ps{quica involuntdria, que possui, precisamente, suficiente consciéncia para ser reproduzida no estada de vigilia. Entre as manifestagdes psiquicas, sdo talvez os so- nhos aguelas que mais nos oferecem dados “irracionais”. Parecem comportar um minimo de coeréncia légica e daquela hierarquia de va- lores que caracterizam os outros contetidos da consciéncia e, por isto, so menos faceis de penetrar e de compreender. Sonhos cuja estrutura satisfaz a0 mesmo tempo & l6gica, 4 moral e a estética constituem exce- goes. De modo geral, o sonho é um produto estranho e desconcertan- 2. Ci. mew artigo Die praktische Verwendbarkeit der Traumanalyse (A aplicagao préti- ca da anditse dos sonhos), em Wirklichkeit der Seele (Realidade da alma)[OC, 16]. * A natureza da psique te, a ©, que se caracteriza por um grande némero de “més g como a falta de logica, ura moral duvi wealidades™, sa, formas devgracsonas, com trassensos ou absurdos manifestos. Por isso € que sdo pruntamente re jeitados como estiipidos, absurdos € desprovidos de valor. Qualquer interpretagao do sonho € uma afirmagio pricoligea sobre o sentido de certos contetidos psiquicos seus. Esta interpreta: §0 nao deixa de apresentar seus perigos, porque 0 sonhador, de modo geral, como de resto a maior parte dus homens, revela uma sensibilidade muitas vezes espantosa, nao $6 para observagies c1t6- neas, mas, e sobretudo, para observay6es acertadas. Como niv € pos sivel analisar 0 sonho sem a colabora,io do propno sonhador, exce- to em casos inteiramente excepcionais, de modo geral € preciso agit com muito tato, para nao ferir desnecessariamente a sensibilidade alheia, o que exige um esforgo enorme por parte do médico. Que se deve dizer, por exemplo, quando um paciente, contando-nos uma sé- rie de sonhos pouco decentes, langa-nos a pergunta: “Por que justa- mente eu devo ter esses sonhos repugnantes?” £ melhor nao respon- der a semelhante questao, porque a resposta € dificil por varios moti- vos, de modo particular para 0s principiantes: € muito facil em tais condigées dizer alguma tolice, principalmente quando conhecemos a resposta. A compreensio do sonho, de fato, € um trabalho tao dificil, que h4 muito tempo eu estabeleci como regra, quando alguém me conta um sonho e pede minha opiniao, dizer, antes do mais, a mim mesmo: “Nao tenho a minima ideia do que este sonho quer signifi- car”. Ap6s esta constatagdo, posso me entregar ao trabalho da andlise propriamente dita do sonho. Maso leitor a esta altura estar4 certamente perguntando se vale a pena, em geral, diante de um determinado caso, procurar qual seja 0 significado de um determinado sonho, partindo da hipétese de que os sonhos tém algum sentido em geral e de que € possivel demonstri-lo. £ facil de provar, por exemplo, que um animal é vertebrado, pondo a descoberto sua coluna vertebral. Mas como proceder, para “pér a descoberto” uma estrutura externa e significativa de um s0- pho? A primeira vista, parece que nao hé leis univocas que presidam a formagao dos sonhos, nem procedimentos onfricos regulares, exce- to no caso daqueles sonhos “tfpicos” bem conhecidos, como, por exemplo, o pesadelo. Sonhos de medo ¢ de angistia nio sio raros, mas nao constituem a regra. Ao lado deles, h4 os motivos ontricos ti- 534 535 536 537 538 258 Obra Completa - Vol. 8/2 Picos, também conhecidos dos profanos, como, por exemplo, voar, subir escadas ou escalar montanhas, passear sem roupa suficiente, perda de dentes, além de outros temas, como a multidao, o hotel, a estagdo, a estrada de ferro, 0 aviao, 0 automével, os animais que cau- sam medo (serpentes) etc. Estes temas so muito frequentes, mas ab- solutamente nao sio suficientes para nos permitir concluir que a es- trutura do sonho obedece a determinadas leis. HA pessoas que de tempos em tempos tém repetidamente os mes- mos sonhos. Isto acontece de modo particular na juventude, mas 0 fendmeno se prolonga também por um espaco de varias dezenas de anos. Trata-se, ndo poucas vezes, de sonhos muito impressionantes, em presenca dos quais se tem a sensagao de que “devem realmente significar alguma coisa”, Esta sensagio se justifica na medida em que, apesar da prudéncia de que nos cercamos, € impossivel nao admitir que uma determinada situacdo psfquica se repete de tempos em tem- Pos, ocasionando o sonho. Mas uma “situacao” é algo que, quando pode ser expresso logicamente, contém um sentido definido — exceto no caso em que se defenda obstinadamente a hipétese (certamente nao comprovada) de que todos os sonhos tém sua origem em pertur- bagées estomacais ou no fato de o sonhador dormir deitado de cos- tas, ou coisa semelhante. Estes sonhos nos levam efetivamente a su- por, pelo menos, um certo nexo causal. O mesmo se pode dizer, tam- bém, dos temas chamados “tipicos”, que se repetem varias vezes nas séries prolongadas de sonhos. Aqui também é quase impossivel evitar a impressao de que “eles significam alguma coisa”. Mas como se chega a um significado plausivel e como se pode confirmar a exatidao de nossa interpretagao? Um primeiro método, que nio é, porém, cientifico, consistiria em predizer acontecimentos futuros, com a ajuda de uma colegio escrita de sonhos, e verificar a exatidao da profecia, observando se 0 acontecimento predito ocor- reu ou nao, posteriormente, mas isto pressupde que a fungdo do so- nho seja a de antecipar o futuro. Uma outra maneira de descobrir diretamente o sentido do sonho consistitia talvez em voltar ao passado e réconstituir certas experiénci- as pessoais anteriores, a partir da manifestacio de determinados moti- vos oniricos. Embora isto seja possivel em certa medida, contudo, este procedimento sé teria um valor decisivo se nos permitisse conhecer fa- A natureza da psique tos que realmente aconteceram e que, NO entanto, permaneceramn in- conscientes para o sonhador ou que este, em qualquer caso, nao quis sesse absolutamente revelar. Se nao ocorre nem uma trata-se de uma simples lembranga cuja aparigao no sonho n. testada por ninguém € que, além do mais, € completamente irrelevante no que se refere 4 fungao significativa do sonho, porque o sonhador poderia muito bem nos informar conscientemente a este respeito. Infe- lizmente, estas duas hipéteses esgotam todas as possibilidades de pro- var diretamente a existéncia de um sentido para o sonho. O grande mérito de Freud foi o de ter aberto uma pista para a pes- quisa e a interpretacio do sonho’. Ele reconheceu, antes de tudo, que nao podemos empreender nenhuma interpretagio sem a colaboragao do préprio sonhador. As palavras que compoem o relato de un sonho nao tém apenas um sentido, mas muitos. Se alguém sonha, por exem- plo, com uma mesa, estamos ainda bem longe de saber 0 que a palavra “mesa” do sonho significa, embora a palavra “mesa” em si parega sufi- cientemente precisa. Com efeito, h4 qualquer coisa que ignoramos, € é que esta “mesa” é precisamente aquela mesa a qual estava sentado o pai do sonhador, quando lhe recusou qualquer ajuda financeira poste- rior e o expulsou de casa como um sujeito imprestavel. A superficie lustrosa desta mesa est ali, diante de seus olhos, como o simbolo de uma inutilidade catastréfica tanto no estado de vigilia, como nos so- nhos noturnos. Eis o que o sonhador entende por “mesa”. Por isto, precisamos da ajuda do sonhador para limitar a diversidade das signifi- cagGes verbais ao seu contetido essencial e convincente. Qualquer pes- soa que nao estava presente a esta cena pode duvidar de que a “mesa” representa um momento culminante e doloroso na vida do sonhador. Maso sonhador nao duvida, nem eu também. E claro que a interpreta- 40 do sonho é, antes e acima de tudo, uma experiéncia que s6 tem um significado imediato e evidente para duas pessoas. A partir do momento em que conseguimos estabelecer que a “mesa” do sonho significa justamente aquela mesa fatal com tudo que ela implica, teremos interpretado, nao ainda o sonho em si, mas pelo menos aquele motivo isolado, no que ele tem de fundamental, ¢ coisa nem outra, 40 € con 3. Cf. Die Traumdeutung (Interpretagao dos sonbos). $40 = S41 $42 240 Obra Completa - Vol, 8/2 teremos reconhecido 0 cont : 2 'exto subjetiv mesa” do sonho, wee Ba aeschado, examinando metodicamente as associ- 4 . jeitar, porém, os demais procedimentos a que Freud submete os contetidos do sonho, porque foram demasiado influenciados pelo preconceito de que os sonhos sao a realizagao de desejos recalcados”. Embora concordemos que existem também so- nhos desta natureza, contudo, isto nao € ainda suficiente para provar que todos os sonhos sejam a satisfagdo de desejos, assim como nio o sao todos os pensamentos da vida psiquica consciente. Nao encontro nenhum motivo valido para admitir que os processos inconscientes so- bre os quais se baseia o sonho sejam mais limitados ou mais monéto- nos em suas formas e contetidos do que os processos conscientes. Antes, é mais plausivel admitir que estes tiltimos podem ser reduzidos a tipos j4 conhecidos, porque na maior parte do tempo refletem a re- gularidade ou mesmo a monotonia do comportamento consciente. Para determinar o sentido do sonho, eu desenvolvi, a partir das conclusées acima expostas, um procedimento que designo pelo nome de reconstituigao do contexto e que consiste em procurar ver, através das associagées do sonhador, para cada detalhe mais saliente, em que significagdes e com que nuanga ele Ihe aparece. Meu modo de proce- der nao difere daquele usado para decifrar um texto dificil de ler. O re- sultado obtido com este método nem sempre é um texto imediatamen- te compreensivel, mas muitas vezes nao passa de uma primeira, mas preciosa indicag4o que comporta numerosas possibilidades. Certa vez tratei um jover que me contou, na anammnese, que estava noivo, ¢ de maneira muito feliz, de uma jovem de “boa familia”. Nos sonhos, a per- sonagem desta jovem assumia muitas vezes um aspecto pouco reco- mendavel. Do exame do contexto deduziu-se que 0 inconsciente do paciente associava & figura da noiva toda espécie de hist6rias escanda- losas, provenientes de outra fonte, o que Ihe parecia absolutamente in- compreensivel e a mim naturalmente ndo menos também. A repetigao constante destas combinagdes me levou, contudo, a concluir que exis- uma tendéncia in- tia no rapaz, apesar de sua resisténcia consciente, consciente em fazer sua noiva aparecer sob essa luz equivoca. Ele me e tal coisa fosse verdadeira, isto representaria para ele um disse que, s i mace un Sua neurose se manifestara algum tempo depos ea auténtico desastre. A natureza da psique 2a festa do noivado. Embora me parecessem inconcebiveis sem sentido, as suspeitas a respeito da sua noiva me pareciam constituir um ponto de importincia tao capital, que eu Ihe aconselhei a fazer algumas in- vestigages a respeito. As pesquisas mostraram que as Suspeitas eram fundadas € o “choque” causado pela descoberta desagradavel nao s6 nio abateu o paciente, mas o curou de sua neurose € também de sua noiva. Embora a reconstituigao do contexto apontasse uma “inwon- gruéncia” inadmissivel, € conferisse, assim, aos sonhos uma significa- glo aparentemente absurda, contudo, revelou-se exata a luz dos fatos descobertos posteriormente. Este fato é realmente de uma simplicida- de exemplar, € me parece supérfluo sublinhar que pouquissimos so- nhos tém uma solugio tao simples. A reconstituigio do contexto, todavia, é um trabalho simples e quase mecanico que tem um valor meramente preparatério. A produ- gio subsequente de um texto legivel, isto é, a verdadeira interpretagdo do sonho, pelo contririo, é geralmente uma tarefa exigente. Ela pres- supbe empatia psicolégica, capacidade de combinagao, penetracao in- tuitiva, conhecimento do mundo e dos homens e, sobretudo, um saber especifico que se apoia ao mesmo tempo em conhecimentos extensos ¢ numa certa intelligence du coeur. Todas estas condigées preliminares, sobretudo a tiltima, valem também para a arte do diagndstico médico em geral. Nao € preciso um sexto sentido para entender os sonhos, ‘mas exige-se algo mais do que esquemas vazios, como os que se encon- tram nas coleg6es vulgares de sonhos ou aqueles que se desenvolvem quase sempre sob a influéncia de ideias preconcebidas. Devem-se evi- tar interpretacées estereotipadas de motivos oniricos; justificam-se ape- nas as interpretagées especificas as quais se chega pelo exame acurado do contexto. Mesmo quem possui uma grande experiéncia neste do- minio vé-se sempre obrigado a confessar sua ignorancia diante de cada novo sonho ¢, renunciando a qualquer ideia preconcebida, a prepa- rar-se para qualquer coisa totalmente inesperada. Por mais que os sonhos se refiram a uma determinada atitude da consciéncia do sonhador € a uma situacao psfquica particular, suas raf- zes mergulham profundamente no subsolo obscuro e dificilmente co- nhecivel de onde emergem os fendmenos da consciéncia. Por falta de uma expresso mais precisa, damos a este pano de fundo obscuro 0 nome de inconsciente. Nao conhecemos sua esséncia em si mesma, 543 544 545 546 242 Obra Completa — Vol. 8/2 nem € possivel observar senao determinados efeitos seus, cuja textura Nos permite arriscar certas conclusdes a respeito da natureza da psique inconsciente. Como o sonho constitui uma expresso extremamente frequente € normal da psique inconsciente, é ele que nos fornece a maior parte do material empfrico para a exploragao do inconscienté. Como 0 sentido da maior parte dos sonhos nao coincide com as tendéncias da consciéncia, mas revela divergéncias singulares, deve- mos admitir que o inconsciente, a matriz dos sonhos, tem um funcio- namento independente. E 0 que eu designo por autonomia do in- consciente. Nao somente o sonho nao obedece a nossa vontade, mas muitas vezes se opde, até mesmo muito fortemente, as intenges da consciéncia. Esta oposicao, contudo, pode também néo ser tao pro- nunciada. As vezes o sonho diverge apenas fracamente da atitude ou da tendéncia consciente, e introduz apenas pequenas modificagées. As vezes hd até mesmo casos em que ele pode coincidir ocasional- mente com 0 contetido e a tendéncia da consciéncia. Para caracteri- zar, em uma tinica palavra, este comportamento do sonho, o tinico conceito aceitavel que me veio ao espirito foi o de compensagao, pois que me parece o nico em condigées de resumir pertinentemente to- das as modalidades de comportamento do sonho. A compensagio deve ser estritamente distinguida da complementagdo. O comple- mento € um conceito muito limitado e muito limitativo, e por isso no é capaz de explicar, de maneira satisfatoria, a fungao onirica. Com efeito, ele designa uma relagao em que duas ou mais coisas se completam, por assim dizer, forcosamente*. A compensacio, pelo contrario, é, como o préprio termo est dizendo, uma confrontagio € uma comparagao entre diferentes dados ou diferentes pontos de vista, da qual resulta um equilfbrio ou uma retificagaéo. Nesta perspectiva existem trés possibilidades. Se a atitude cons- ciente a respeito de uma situagao dada da vida € fortemente unilate- ral, 0 sonho adota um partido oposto. Se a consciéncia guarda uma Posigao que se aproxima mais ou menos do centro, o sonho se con- tenta em exprimir variantes. Se a atitude da consciéncia é “correta” (adequada), o sonho coincide com esta atitude e lhe sublinha assim as ee 4. Com isto nfo estamos negando o principio da complementaridade. O termo “com Pensagio” indica apenas um refinamento psicol6gico desse principio. A natureza da psique 2a3 tendéncias, sem, contudo, perder a autonomia que lhe é propria. Como, porém, nunca se sabe, ao certo, como se deve apreciar a situa- $0 consciente de um paciente exclui-se a priori uma anilise dos so- nhos sem o interrogatério do sonhador. Mas mesmo conhecendo a situagdo consciente, nés ignoramos a atitude do inconsciente. Como este Ultimo é ndo somente a matriz dos sonhos, mas também a matriz dos sintomas Psicégenos, a questao da atitude do inconsciente assu- me uma importancia pratica muito grande. Mesmo se julgo (¢ outros comigo) apropriada a minha atitude, o inconsciente pode, por assim dizer, ser “de outra opiniao”, Esta contradigao é importante — notada- mente no caso de uma neurose — porque o inconsciente € inteiramente capaz de provocar toda espécie de distirbios desagradaveis, através de atos falhos, muitas vezes plenos de consequéncias, ou sintomas neuré- ticos. Estas perturbagées provém de um desencontro entre “conscien- te” e “inconsciente’ Normalmente, deveria haver a harmonia, mas, na realidade, ela ocorre muito poucas vezes, o que da origem a uma multidao imprevisivel de inconvenientes psicégenos, que vao de aci- dentes e doengas graves até os inocentes lapsus linguae. Coube a Freud © mérito de ter chamado a atengao para estas correlacées?. Embora, na i fim estabelecer um equilibrio psfquico normal, e se comporte como nensa maioria dos casos, a compensagao tenha por uma espécie de autorregulacao do sistema psiquico, contudo, nao po- demos simplesmente nos contentar com esta verificagao, pois a com- pensagao, em certas condigdes e em determinados casos (como, por exemplo, nas psicoses latentes), pode levar a um desenlace fatal (pre- dominio das tendéncias destrutivas), como, por exemplo, o suicidio ou outros comportamentos anormais que parecem “predetermina- dos” no plano da existéncia de certos individuos portadores de tara. A tarefa que nos imp6e o tratamento da neurose é a de estabele- cer aproximadamente a harmonia entre “consciente” e “inconscien- te”. Pode-se conseguir isto, como se sabe, de varias maneiras: pela pratica do “naturismo”, pelo método da persuasao racional, pelo for- talecimento da vontade, ou pela “andlise do inconsciente”. Como os métodos mais simples falham muitas vezes, e 0 médico no sabe mais como continuar a tratar 0 paciente, a fungao compen- 5. CE. Zur Psychopathologie des Alltagslebens (Psicopatologia da vida dria) S47 548 549 550 244 Obra Completa ~ Vol. 8/2 sadora dos sonhos oferece uma a mos d juda que é bem-vinda. Nao quere- rene agar Oa homens modernos apontem imediata- : Tapeuticos apropriados, como se conta a respeito Gos sonhos tidos durante a incubago (sono noturno) nos templos de Esculipio’, mas eles esclarecem a situagao do paciente, de uma ma- reira que pode favorecer grandemente o processo de cura. Esses so- thos nos trazem recordagées, reflexes; relembram acontecimentos vividos outrora; despertam coisas que dormiam no seio da nossa per- sonalidade, e revelam tragos inconscientes nas suas relagdes com 0 ricio ambiente. Por isto € raro que um individuo que tenha se subme- tido ao fatigoso trabalho de andlise de seus sonhos com a competente assisténcia de um especialista, por um longo perfodo de tempo, nao veja seu horizonte se alargar e se enriquecer. Justamente por causa de seu comportamento compensador, a andlise adequadamente condu- zida nos descortina novos pontos de vista e nos abre novos caminhos cue nos ajudam a sair da terrivel estagnacao. Mas a ideia de compensagao caracteriza apenas de maneira gené- rica a fungao do sonho. Quando se contemplam séries que compor- tam varias centenas de sonho, como acontece nos tratamentos pro- longados e dificeis, a ateng4o do observador é atrafda pouco a pouco para um fenémeno que no sonho isolado permanece escondido por tras da compensagao. E uma espécie de processo evolutivo da perso- nalidade. Inicialmente as compensagGes aparecem como ajustamen- tos momentaneos de atitudes unilaterais ou o restabelecimento de certos desequilibrios da situag4o. Mas um conhecimento e uma expe- néncia mais aprofundados nos mostram que estas ag6es compensa- doras aparentemente isoladas obedecem a uma espécie de plano pre- determinado. Parecem ligadas umas as outras e subordinadas, em sentido mais profundo, a um fim comum, de modo que uma longa sé- rie de sonhos nao aparece mais como uma sucess4o fortuita de acon- tecimentos desconexos ¢ isolados, mas como um processo de desen- volvimento ¢ de organizagao que se desdobra segundo um plano bem elaborado. Designei este fendmeno inconsciente, que se exprime es- pontaneamente no simbolismo de longas séries de sonho, pelo nome de processo de individuagao. 6. Cf. MEIER, C.A. Antike Inkubation und moderne Psychotherapie. 245 "ar seria mais apropriado paraa apresentacao de exem- ples ilustrativos do que o estudo descritivo da Psicologia onirica. Mas esta tarefa, infelizmente, é totalmente impossivel no quadro des- te trabalho por raz6es técnicas. Por isto remeto 0 leitor a meu livro Psychologie und Alchemie (Psicologia e alquimia)’ que, entre outros, contém um estudo sobre a estrutura de varias séries de sonhos, com referéncia especial ao processo de individuagao. Por falta de estudos adequados, ainda nao se sabe ao certo se as longas séries de sonhos registrados fora do processo analitico nos permitem deduzir a existéncia de um processo evolutivo que indique a individuagao em curso. O processo analitico, sobretudo quando in- clui a andlise sistemdtica dos sonhos, constitui o que Stanley Hall muito apropriadamente chamou de process of quickened maturation (processo de rapida maturacao). Por isto € muito possivel que os mo- tivos que acompanham 0 processo de individuag4o s6 se manifestem nas séries de sonhos registrados no curso do processo analitico, ao Passo que s6 aparecem nas séries “extra-analiticas” de sonhos a inter- valos de tempo extremamente longos. Lembrei, mais acima, que a interpretagio dos sonhos exige, além de outras qualidades, também um conhecimento especifico. Se, de um lado, acredito que um leigo inteligente, possuidor de algum co- nhecimento de psicologia, de uma certa experiéncia da vida e de um certo treinamento, seja capaz de diagnosticar, de maneira pratica- mente correta, a compensa¢ao produzida pelo sonho, também acre- dito que € impossivel compreender a natureza do processo de indivi- duacao que, como sabemos, esta na base da compensagio psicolégi- ¢a, sem sélidos conhecimentos no campo da mitologia, a psicologia dos primitivos e da histéria comparada da Nem todos os sonhos tém a mesma importancia. mitivos distinguem entre “grandes sonhos” e “pequen os chamariamos de sonhos “significativos” e sonhos “banais”, Se os examinarmos mais de perto, os “pequenos sonhos” nos aparecem como fragmentos da fantasia noturna Corrente, que derivam da esfera subjetiva e pessoal, e sua significacdo se €sgota no 4mbito dos fatos or- do folclore, s religides. Os préprios pri- 10s sonhos”. Nés ——— 7.{OC, 12}, 551 552 553 S54 SSS 246 Obra Completa - Vol. 8/2 dinarios de cada dia. Por isto os esquecemos facilmente, porque sua validade nao ultrapassa as variagdes do equilibrio psiquico. Os sonhos importantes, pelo contrario, ficam gravados muitas vezes na meméria Por toda a vida e Constituem, ndo raramente, a joia mais preciosa do tesouro das experiéncias psfquicas vividas. Quantas pessoas encontrei ao longo de minha vida, que logo na primeira conversa se sentiam compelidas a dizer: “Um dia tive um sonho!” As vezes era 0 pamelo sonho de que se lembravam e que ocorrera entre o terceiro € quinto anos de vida, Examinei grande quantidade destes sonhos ¢ encontrei em muitos deles uma particularidade que os distinguia dos outros so- nhos. Eles apresentam, com efeito, uma conformagio simbélica que encontro também na histéria do espfrito bumano. Fato notavel é queo sonhador sequer tem nogao de que existam tais paralelos. Esta particu- laridade est4 presente também nos sonhos do processo de individua- do, Estes sonhos contém os chamados motivos mitologicos ou mitolo- gemas, que chamei de arquétipos. Este termo designa formas especifi- cas € grupos de imagens que se encontram, sob formas coincidentes, no s6 em todas as épocas ¢ em todas as latitudes, mas também nos so- nhos individuais, nas fantasias, nas visdes e nas ideias delirantes. Tanto sua aparig4o frequente nos casos individuais como sua ubiquidade ét- nica provam que a alma humana é singular, subjetiva e pessoal apenas por um lado, mas coletiva e objetiva quanto ao mai: E por isto que falamos, de um lado, de um inconsciente pessoal ¢, do outro, de um inconsciente coletivo. Este ultimo representa uma camada mais profunda do que o inconsciente pessoal, que esta proxi- mo da consciéncia. Os “grandes” sonhos, isto é, os sonhos tantes”, provém desta camada mais profunda. subjetiva que eles causam em nés, sua importdncia se revela j4na pr6- pria conformagio plastica, muitas vezes tica de forca poéticae de be- leza. Tais sonhos Ocorrem, 0 mais das vezes, da vida, como, por exemplo, na primeira infa demote Sa inept inc ; S ; uitas vezes, di ficuldades considerdveis, porque o material associativo que o sonh: ‘ador pode ee “impor- Além da impressao em momentos cruciais incia, na puberdade e no ° A natureza da psique ear fornecer € muito escasso. As formagdes arquetipicas, com efeito, nao se referem mais a experiéncias pessoais, mas a idetas gerats cuja signi ficasdo principal reside em seu sentido intrinseco € no mais em quais- quer relagdes pessoais do sujeito ou em experiéncias de sua vic Assim, um jovem sonhou com uma grande serpente que montava guarda a uma taga de ouro, sob uma ciipula subterrinea. Certa vez, ele vira uma serpente gigante num jardim zoologico, mas era incapaz de mencionar qualquer outra coisa que pudesse ter dado o¢asido ao sonho, exceto certas reminiscéncias dos contos de fadas. A july alt por este contexto, de si mesmo insuficiente, 0 sonho, que se Caracteriza va, justamente, pelo seu aspecto fortemente emocional, teria apenas um significado indiferente. Mas tal contexto nao explica o carater pronunciadamente emocional do sonho. Em semelhante caso € pre- ciso recorrer a0 mitologema no qual a serpente ou 0 dragio, 0 tesou- ro ea caverna representam uma provaydo que assinala uma etapa de- cisiva da vida do herdi. A partir dai percebe-se claramente que se ¢ ta de uma emogio coletiva, isto €, de uma situayio tipica fortemente afetiva, que nao €, em primeiro lugar, uma experiéncia pessoal, mas 86 se torna de tal natureza em fase posterior. Trata-se, primeiramen- te, de un problema humano geral que, por ndo ter ainda chamado a atengio subjetiva, procura abrir caminho, de maneira objetiva, até a consciéncia do sonhador’. Na forga da idade, 0 homem ainda se sente jovei ¢ longe da ve~ Ihice e da morte. Mas por volta dos trinta ¢ seis anos ele ultrapassa 0 zénite de sua vida, sem tomar consciéncia da importancia deste fato. Se € um homem cuja disposigio intima e cujos dotes nao toleram um grau muito acentuado de inconsciéncia, talvez o reconhecimento da importancia deste momento Ihe advenha sob a forma de um sonho arquetpico que se imporé a seu espirito. Em vio ele procurard enten- der o sentido do sonho com a ajuda de um contexto onirico cuidado- samente elaborado, pois o sonho se exprime em formas estranhas € mitolégicas desconhecidas do sonhador. O sonho se serve de figuras coletivas porque tem como finalidade exprimir um problema eterno gue se repete indefinidamente, ¢ ndo um desequilibrio pessoal. —— 9. Cf. 0 tratado Einfubrung in das Wesen der Mythologie VB, publicado pur Karl Ke- rényi ¢ por mim (OC, 9}. 556 557 558 559 248 Obra Completa ~ Vol. 8/2 Todos aqueles momentos da vida individual em que as leis gerais do destino humano rompem as intengdes, as expectativas € concep- Ges da consciéncia pessoal so, ao mesmo tempo, etapas do processo de individuagao. De fato, este tiltimo € a realizagdo espontanea do ho- mem total. O homem enquanto consciente do préprio eu € apenas uma parte da toralidade vital, ¢ sua existéncia nao representa a reali- zagao deste todo. Quanto mais o homem se torna consciente do pré- prio eu, tanto mais se separa do homem coletivo que ele proprio é, € se encontra mesmo em oposigio a ele. Como, porém, tudo o que vive tende para a totalidade, a atitude unilateral inevitével da vida cons- ciente é corrigida e compensada constantemente pelas componentes essenciais da natureza humana, de modo a integrar definitivamente o inconsciente na consciéncia, ou melhor, a assimilar 0 eu a uma perso- nalidade mais ampla. ' Estas consideragdes s4o inevitéveis, se pretendemos entender 0 sentido dos “grandes” sonhos. Estes, com efeito, utilizam intimeros mitologemas que caracterizam a vida do heréi, esse personagem maior do que 0 comum dos mortais ¢ de natureza semidivina. Trata-se de aventuras perigosas, de provas como as que encontramos nas inicia- oes. Ha dragées, animais benfazejos e deménios. Encontramos o ve- Iho sabio, o homem-animal, tesouro oculto, a drvore magica, a fon- te, a caverna, o jardim protegido por alta muralha, os processos de transformagao € as substancias da alquimia etc., tudo isto coisas que nao apresentam nenhum ponto de contato com as banalidades da vida quotidiana. A raz4o para estas fantasias € que se trata de realizar uma parte da personalidade que ainda nao existe e esta somente em vias de realizagao. A pintura do sonho de Nabucodonosor (Dn 4,7s.) (cf. § 484 des- ta obra) descreve a maneira como esses mitologemas se condensam e se modificam uns aos outros no decorrer do sonho. Embora aparen- temer.te a imagem pretenda ser apenas uma representagdo desse so- nho, contudo, o autor da pintura acrescentou outros elementos ao sonha, como logo perceberemos se estudarmos mais de perto os seus detalhes. A arvore que nasce do umbigo do rei (detalhe que nao cor- responde a histéria) é, portanto, a arvore genealdgica dos antepassa- A natureza da psique Be dos de Cristo que nasce do umbigo de Adao, pai do género huma- no”, £ por isto que ele traz na coroa a figura do pelicano que alimen- tas filhotes com o proprio sangue, famosa allegoria Christi (alego- ria de Cristo). O pelicano forma também o quincunce, juntamente com o tetramorfo, as quatro aves que ocupam o lugar dos simbolos dos quatro evangelistas. Esse mesmo quincunce se encontra também embaixo, constitufdo pelo cervo como simbolo de Cristo", e pelos quatro animais que olham, com expectativa, para cima. Estas duas quaternidades se aproximam, ao maximo, das representagdes alquimi- cas: em cima os volatilia (as aves) e embaixo os terrena (os animais ter- renos), aqueles representados (geralmente) sob a forma de passarus € estes sob a forma de quadrupeda (quadripedes). Assim, na descrigao da imagem do sonho em questo entra nao s6 a representagao da arvo- re genealégica de Cristo ¢ da quaternidade dos evangelistas, como tam- bém a ideia (alquimica) da dupla quaternidade (“superius este sicut quod inferius”) (“a regiao de cima € idéntica a regiao de baixo”). Esta contaminagdo nos mostra de maneira extremamente concreta como os sonhos individuais se comportam com os arquétipos. Estes tiltimos se superpdem, se entrelagam e se misturam, ndo somente entre si (como aqui), mas também com elementos individuais isolados"*. 10. A arvore € também um simbolo alquimico. Cf. Psychologie und Alchemie (Psicolo- gia e alquimia), p. 563 et passim [OC, 12}. 11. 0 cervo ¢ uma allegoria Christi (alegoria de Cristo), porque a lenda lhe atribui a ca- Pacidade de renovar-se a si préprio. Assim Honério de Aurun escreve em seu Speculum Ecclesiae (Migne, PL 162, col. 847); “Fereur quod cervus, postquam serpentem degluti- verit, ad aquam currat, ut per haustum aquae venenum ejiciat; et une cornuam et pilos excutiat et sic denuo nova recipiat” (“Conta-se que o cervo, depois de engolir uma ser- ente, corre até a agua e, tomando um gole dela, vomita fora o veneno. Em seguida, des- faz-se dos chifres ¢ dos pelos, em lugar dos quais crescem novos”). Conta-nos 0 SaintGra- al (Santo Graal) (publicado por HUCHER. Vol. Ill, p. 219 e 224] que Cristo algumas vezes apareceu aos discipulos sob a forma de cervo branco, acompanhado de quatro lees (= evangelistas). Mercirio & alegorizado pela Alquimia em forma de cervo (MANGET. Bibliotheca Chemica, Il, ab. 1X, fig. XIll, et passim), porque o cervo tem a capacidade de se renovar a si mesmo: “ Les os du cuer serf vault mouit conforter le cuer humain” (DELATTE, Textes latins et viewx frangais relatifs aux Cyranildes, p. 346]. 12, Quanto aos conceitos alquimicos utilizados nessa passagem, cf. Psychologie und Alcemie (Psicologia e alguimia) (OC, 12}. 560 561 562 250 Obra Completa ~ Vol. 8/2 Se 08 sonhos produzem compensagdes tao essenciais, por que entao eles ndo sd compreenstveis? Esta questio me tem sido dirigida frequentemente, Devemos responder que 0 sonho € um acontec- mento natural € que a natureza nao est de modo algum disposta 4 oferecer seus frutos de certo modo gratuitamente aos homens, na medida de suas expectativas, Muitas vezes se objeta que a compensa- 40 pode permanecer ineficaz, se nav se entende o sentido do sonho. Mas isto nao € assim tdo claro, porque h4 muitas coisas que atuam Sem serem compreendidas, Mas nés podemos, sem duivida, aumentar consideravelmente sua eficacia pela compreensio, € muitas vezes isto se revela necessdrio, porque a voz do inconsciente pode também nao ser ouvida, “Quod natura relinquit imperfectum, ars perficit”. (“O que a natureza deixa inacabado, a arte completa!) (diz um provérbio da Alquimia), Voltando agora a forma dos sonhos, encontramos ai simplesmen- te de tudo: desde a impressio rpida e fugidia como 0 raio, até as infin- daveis elucubrages oniricas. H4, contudo, uma predominancia de so- nhos “médios” nos quais € possivel reconhecer uma certa estrutura, uma estrutura que tem alguma analogia com a do drama. O sonho co- mega, por exemplo, com uma indicagdo de lugar, como: “Vejo-me numa rua; € uma avenida” (1): ou “Acho-me num grande edificio que me lembra um hotel” (2) etc. Segue-se, muitas vezes, uma i ferente aos personagens da aso: por exemplo: ““Saio a passear cong meu amigo X em um parque pablico. Numa bifurcacao me encontro, de repente, com a Sra. F” (3); ou: “Estou sentado num compartimento da estrada de ferro em companhia de meu Pai e minha mae” (4); ou: “Estou de uniforme militar, cercado por numerosos camaradas de ser- vigo” (5); etc. As indicagdes de tempo so mais raras, Chamo de sigdo a esta fase do sonho. Ela indica 0 lugar da aco, os panied que nela atuam ¢ frequentemente a situagdo inicial, aa indica¢ao re- A segunda fase € a do desenvolvimento daa “Vejo-me numa rua; € uma avenida. Ao longe apa que se aproxima rapidamente. Sua maneira de tranhamente insegura, ¢ eu penso que o motoris gado” (1). Ou: “A Sra. F. parece muito excitad: rapidamente qualquer coisa que meu amigo n S40. Por exemplo: rece um automével movimentar-se é es- ta deve estar embria- '@€ quer me sussurrar ‘40 pode ouvir” GB).A A natureza da psique _ situagdo se complica de uma forma ou de outra, ¢ se estabelece uma ao, porque nao se sabe 0 que vai acontecer. e € a da culminagdo ou peripécia. Aqui acontece certa tens: A terceira fas qualquer coisa de decisivo, plo: “De repente sou eu que estou no carro & aparentemente sou eu mesmo 0 motorista embriagado. Mas nao estou embriagado. Estou oua situagao muda inteiramente. Por exem- apenas estranhamente inseguro € como que sem a diregdo do carro. Nao consigo mais controlar 0 carro € you com ele de encontro a um muro com grande barulho” (1). Ou: “De repente a Sra. F. fica livida como um cadaver € cai desmaiada asolucdo ou 0 resultado produzido no chao” (3). A quartac tiltima fase € a lise, pelo trabalho do sonho. (Ha certos sonhos em que falta a quarta fase, o que, em certas circunstancias, pode representar um problema espe- cial que nao podemos discutir aqui.) Por exemplo: “Observo que a parte dianteira do carro ficou toda amassada. E um carro alheio, que eu desconhego. Eu préprio nao estou ferido. Reflito com certa preo- cupagio sobre minha responsabilidade” (1). Ou: “Pensamos que a Gra. F. est4 morta. Mas trata-se, evidentemente, de um desmaio pas- sageiro. Meu imigo X exclama: ‘E preciso que eu va buscar um médi- co” (3). A tiltima fase mostra-nos a situagdo final que €, a2 mesmo tempo, o resultado “procurado”. No sonho 1 € evidente que, depois de uma certa confusao de descontrole, surge uma nova consciéncia reflexa, ou, antes, deveria surgir, porque © sonho é compensador. No sonho 3 o resultado consiste na ideia de se aconselhar a assistén- cia de uma terceira pessoa que seja competente. O primeiro individuo (1) € um homem gue perdeu wm pouco a cabeca em circunstancias familiares diffceis e receava que acontecesse 6 pior. O segundo sujeito (3) estava em diivida quanto se devia ou nao recorrer & ajuda de um psicoterapeuta para a sua neurose. Natu- ralmene estas indicagdes nao constituem ainda a interpretagao do so- nho; elas apenas esbogam a situagao inicial. Esta divisdo em quatro fases pode ser aplicada, praticamente sem dificuldade especial, 4 maior parte dos sonhos, uma confirmagéo de que o sonho em geral tem uma estrutura “dramiatica”. Como mostrei mais acima, o conteiido essencial da agao onirica é uma espécie de compensagdo extremamente matizada de uma atitude 563 564 565 566 567 568 252 Obra Completa - Vol. 8/2 unilateral errénea, desviad : ‘a ou perturbada da consciéncia. Uma de mi- nhas pacientes histéricas, - uma aristocrata que se considerava, sem fa- a0, uma pessoa infinitamente distinta, encontrava, em seus sonhos, uma série de vendedoras de peixe imundas e prostitutas embriagadas. Nos casos extremos, as compensagées se tornam de tal modo ameaga- doras, que o miedo e a angistia que elas suscitam levam & ins6nia. O sonho pode desmentir o sujeito com a maior crueldade ou re- conforté-lo moralmente de maneira aparentemente muito criadora. O primeiro caso ocorre frequentemente com pessoas que tém ne conceito muito bom. de si mesmas, como a paciente hd pouco mencio- nada; 0 segundo caso se dé com aquelas pessoas que se tém excessiva- mente na conta de humildes. No sonho pode acontecer, porém, nao 86 que o orgulho seja humilhado, mas elevado a uma posi¢ao de emi- néncia inverossfmil que roca pelo ridiculo, enquanto que o humilde pode ser rebaixado também de maneira inverossimil (to rub it in, como dizem os ingleses). Muitas pessoas que tém algumas nog6es, porém insuficientes, a respeito dos sonhos e sua significagéo, quando se acham sob a impres- sao de certas compensagées refinadas ¢ aparentemente intencionais, incidem facilmente no preconceito de que o sonho tem realmente um objetivo moral que o sonho previne, repreende, consola, prediz etc. Persuadidas da onisciéncia do inconsciente, elas facilmente transferem para os sonhos a iniciativa de tomar as decisGes necessarias e ficam de- cepcionadas quando verificam que os sonhos se tornam cada vez mais insignificantes. A experiéncia me tem mostrado que, quando se tem al- gum conhecimento da psicologia dos sonhos, é-se facilmente tentadoa superestimar 0 papel do inconsciente, o que prejudica a forca da deter- minac4o consciente. Entretanto, o inconsciente s6 funciona satisfato- riamente quando a consciéncia cumpre a sua tarefa até o limite do im- possivel. Um sonho pode, entao, suprir 0 que ainda falta ou vir em nosso socorro, quando os nossos melhores esforgos falharam. ; Ml Seo in- consciente fosse efetivamente superior & consciéncia, e | seria simples- mente dificil ver em que consiste afinal a utilidade do inconsciente, ou Por que motivo o fenémeno da consciéncia surgiu no transcurso da evolugao filogenética como um elemento necessério, Se se tratasse apenas de um /usus naturae (um jogo da natureza), © fato de um indivi- + A natureza da psique 253 ae e ele também, nao teria nenhuma signi- c : lo, esta opinido é dificil de assimilar, e por ra- 26es psicolégicas melhor seria evitar de coloca-la em evidéncia, mes- mo sendo verdadeira, 0 que, felizmente, jamais conseguiremos de- monstrar (como, aliés, também o seu oposto). Esta questao pertence ao dominio da metafisica, dominio em que nao existem critérios de verdade. Entretanto, ndo pretendo absolutamente subestimar o fato de que as consideragGes metafisicas s4o da maior import4ncia para 0 bem-estar da alma humana. Ao estudar a psicologia do sonho, deparamo-nos com problemas filos6ficos e mesmo religiosos de alcance extraordinério, problemas cuja compreens4o o fendmeno dos sonhos trouxe contribuigées para contudo, vangloriar-nos de possuir, desde decisivas. Nao podemos, agora, uma teoria ou uma explicagdo universalmente satisfatéria para estes fatos tao dificeis de compreender. Ainda nao conhecemos suficientemente a natureza da psique inconsciente. Neste dominio, é preciso realizar, com paciéncia e sem preconceitos, um imenso traba- lho, ao qual ninguém recusaré sua contribuigdo. O objetivo da pes- quisa nao é fazer-nos acreditar que estamos de posse da tinica teoria correta, mas de nos levar gradualmente & verdade, pondo em divida todas as teorias. 569

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