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TRADUCOES Forma e significado na Histéria Oral’. A pesquisa como um experimento em igualdade Alessandro Portelli*® Tradugdo: Maria Therezinha Janine Ribeiro Revisdo técnica: Dea Ribeiro Fenelon A percepgdio de um objeto custa exatamente a perda do objeto ~ A percepcao é em si mesma um ganho correspondente ao seu preco.. Emily Dickinson “Isso € 0 que eles costumavam nos fazer cantar.” Em setembro de 1974, carregando meu gravador, cheguci a Greve, uma pequena cidade nas colinas Chianti da Toscania. Eu me encontrava l4 no como um pesquisador independente, mas como mero apéndice de uma maquina, Minha tarcfa era localizar um interlocutor que dominasse 0 dialeto puro, grava-lo durante trinta minutos ¢ entegar © teipe para uma equipe de lingiiistas que estava claborando um atlas de dialetos da Itdlia central. Tudo era muito facil - até que me sentei com Alfredo Crimi, meu informante, diante do microfone ¢ de um copo de vinho, ¢ cle perguntou: “Sobre o que falaremos?” Fiquei estarrecido. Desde que cle falasse dialeto, os lingiiistas nao se preocupariam com 0 tor do falado. Assim, cuidando para que a conversa se processasse naturalmente, pedi a Crimi para me contar sua vida como arrendatério em uma importante propricdade. * Originalmente escrito em 1982; uma versdo mais curta saiu em New York Folklore, XIV, 1-2 (1988), pp. 45-57. ** Professor da Universidade La Sapienza ~ Roma, Proj. Histéria, Sao Paulo, (14), fev. 1997 7 Enquanto ele falava, eu lhe propunha alguma questao ocasional sobre aspectos que me interessavam. Espontaneamente, cle fomecia detalhes, mas nao respondia quando ten- tava induzi-lo a um julgamento, a uma opiniio ou a uma critica, Quando 0s solicitados trinta minutos do teipe se esgotaram, mencionei que estava interessado nos improvvisatori, os poetas populares que faziam e cantavam stanzas sobre qualquer assunto, de politicas momentneas a poesia antiga cavalheiresca. Eles eram encontrados por toda a parte da Itélia central, mas a Toscania é a fonte da tradigao, ¢ ado la. Crimi disse-me que conhecia um e levou-me para o sitio dele. eu nunca os havia cok Quando chegamos, 0 poeta trabalhava em seu pomar. Seu nome era Ferdinando Bandinelli, mas seus amigos 0 chamavam Dante. Ele acenou e cumprimentou-nos: “Old camaradas!”’. Ele nao me conhecia, mas de algum modo o fato de estar com seu amigo definia minhas intengdes. Nas duas horas seguintes, ambos desenrolaram hist6rias, can- ges € poemas sobre sindicatos, politicas, greves e o partido comunista. Quando chegou a hora de eu partir, Crimi perguntou ao poeta: “Vocé nao esta contente por eu ter trazido este cavalheiro? Olhe, ele nunca me perguntou a respeito de padres”. Parecia que, en- quanto eu 0 estava estudando, ele e as suas respostas, ele tinha permanecido estudan- do-me, ¢ as minhas perguntas, e percebeu de que lado cu me encontrava. Isto me ensinou que ha sempre dois temas para uma situagéo de campo, ¢ que os papéis do observado e do observador so mais fluidos do que poderiam aparentar & primeira vista, Foi a mesma ligao que eu aprendera de outra experiéncia quatro anos antes. Em junho de 1970, na aldeia montanhosa de Labro, na fronteira entre 0 Lacio e Umbria, na Itélia central, encontrei Trento Pitotti ¢ registrei seu repertério de cangdes populares. Trento foi de longe o melhor cantor popular que encontrei, e conhecia muitas cangées rituais, religiosas e liricas. Ele também cantou algumas cangées locais, estilo de music-hall, dos anos 30 e 40 deste século, Somente uma injtiria desfigurou meu deleitamento ¢ 0 teipe perfeito que levei para casa aquela noite: duas das cangdes locais de Trento (ambas interessantes ¢ até ent&o nao coletadas) cram, sem erro algum, fas- cistas. Gostei dele de qualquer modo. Assim, um ano mais tarde, quando aconteceu de estar tansitando préximo de Labro, parei para lhe dizer alé. Conversamos um pouco € tornou-se claro que, longe de ser um fascista, Trento era um comunista politicamente ativo. Ele havia sido um operdrio nas usinas de ago de Terni, vinte milhas adiante, ¢ perdera seu emprego nas demissdes de 1953, quando a companhia buscou a oportuni- dade de se livrar de grande parte de esquerdistas e de ativistas sindicais que integravam sua forga de trabalho, Desde entio, nao conseguiu mais emprego ¢ estava levando uma 8 Proj. Histéria, Séo Paulo, (14), fev. 1997 vida mesquinha como sapatciro remendao esperando atingir a idade necessaria para se aposentar. Perguntei-lhe porque, entio, havia cantado aquelas cangoes fascistas. “Bem”, respondeu, “vocé perguntou por cangdes dos tempos antigos, cangdes de quando eu era jovem. Eram estas as que nos faziam cantar naqueles tempos”. Trento nao me conhecia, quando cu gravei suas falas na prim estaria mais resguardado cantando cangGes religiosas, riluais, sentimentais, humoristicas vez. Sua experiéncia de vida ensinou-lhe que ou conservadoras para alguém de fora que nio se parecia ou falava como operirio que nio havia dito nada sobre si mesmo, Nao supusera ser preciso introduzir minhas proprias crengas ¢ identidade na entrevista, ¢ isso Ievou Trento a nao me Walar como uma pessoa € sim como um estercétipo de minba classe, modos ¢ discurso. Estava me colocando como um pesquisador “objetivo” ¢ fui observado com olhares preconceituosos. Este capitulo é uma tentativa de correlacionar as ligSes que aprendi no campo de trabalho, sobre o relacionamento entre 0 pesquisador ¢ 0 “informante”, com as ligées ensinadas pelos antropélogos italianos, organizadores culturais e pensadores politicos que reconheceram e discutiram as implicagdes de igualdade ¢ hierarquia, similaridade e diversidade no campo de trabalho ¢ no estudo de cultura do povo. A identidade e o papel do intelectual militante, nativo ¢ orgdnico haviam tido crucial importancia nestes estudos e em minha propria experiéncia. Um experimento em igualdade Uma entrevista é uma troca entre dois sujeitos: literalmente uma visio miitua. Uma é-la em parte no pode realmente ver a outra a menos que a outra possa vé-lo ou troca. Os dois sujeitos, interatuando, nao podem agir juntos a menos que alguma espécie de mutualidade seja estabclecida. O pesquisador de campo, entretanto, tem um objetivo amparado em igualdade, como condi¢do para uma comunicagao menos distorcida e um conjunto de informagGes menos tendenciosas. Igualdade, entretanto, nao pode ser desejada no fazer. Nao depende da boa vontade do pesquisador mas de condigées sociais. A urgéncia para a pesquisa antropolégica nas sociedades orientais implica 0 reconhecimento e a constatagao da diversidade em indi- viduos que néo pertencem ao mesmo plano social € politico do observador. Enquanto os informantes que integram grupos oprimidos ou marginais hesitam em se abrir para membros da elite, cada campo de trabalhador se envolverd em um complicado jogo de Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 9 esconde-esconde, Emesto De Martino, 0 estudioso ¢ ativista socialista, que inaugurou uma consciéncia antropoldgica da cultura rural da Itdlia sulista, escreveu certa vez: Reabrir um didlogo entre dois mundos, que ha muito deixaram de se comunicar, & tarefa diffcil © ocasiona humilhagdes veementes. Humilha-me tratar pessoas de minha propria idade, cidad rimentagao fiscal ou por um empresario de espeticulos teatrais viajando pela Lucinia em busca de fios do meu proprio pais, como objeto de pesquisa cientifiea, quase de expe- Humitha-me quando eles me tomam ~ como tem acontecido ~ por um agente misicos ¢ cantores. Humilha-me ser compelido em certas aldeias a evitar os comunistas locais, dissimular até mesmo com eles, porque de outro modo © padre nunca contaria a mim coisas que preciso saber.! Como De Martino aponta, nao-somente o observado mas também o observador diminuidos ¢ postos de lado quando condigdcs sociais tormam a igualdade imposs = como sucede na maioria dos casos das experiéncias de campo. E ¢ incontestavel que muitas informagoes The escaparam por causa da dissimulagao forgada envolvida em pesquisar na regiio mais pobre ¢ esquecida do pais, a Lucania. A entrevista de campo, por conseguinte, nao pode criar uma igualdade que nio existe, mas ela pede por isto. A entrevista Jevanta em ambas as partes uma consciénc idade por mais Do mesmo modo que a hierarquia desigual de poder na sociedade cria da ne igualdade a fim de alcangar maior abertura nas comunicagdes arreiras entre am, © poder seré uma questio central Ie n pesquisadores ¢ 0 conhecimento que bus tada, implicita ou explicitamente, em cada encontro entre o pesquisador ¢ 0 informante. Acabar com o poder abertamente transforma uma entrevista de campo num experimento em igualdade. Gianni Bosio (0 fundador de uma tradigao radical no estudo do folclore italiano e a cultura da classe operaria) coloca isto da seguinte mancira: O trabalho cultural define sua identidade contra a légica da assimilagao [para as relagdes sociais dominantes] criando meios para sua propria sobrevivéneia independente. O trabalho cultural no pode ajudar exceto se (ransformando em lula politica para a auto-defesa da alta forma de trabalho cultural. cultura; © a luta politica se toma em conseqiiéneia a mai te, P., Meoni, cultura popolare, 1 De Martino, B, Note di V. Nuovi Argomenti, 2 (1953), pp. 47-79; reimpresso em Clem: M. A. ¢ Squillacciotti, M. (eds.). HU dibattito sul folelore in Itdlia. Mito, 1976, pp. 383-408. izioni di Bosio, G. “Lettera a Giuseppe Morandi”, publicada como pteficio in Bosio, G, [intelletuale rovesciaro, Milio, Edizioni del Gallo, 1967; nova edigi aumentada: Milo, Bella Ciao, 1975, pp. 183-8, 10 Proj. Histéria, Sdo Pawo, (14). fev, 1997 Uma joint venture Trento e cu nos tornamos amigos, ¢ cle me apresentou a Dante Bartolini, um parente scu distante, que era pocta, cantor ¢ contador de histéria local, tanto quanto figura ‘a da resistencia antifascista em 1943-44 simboli De cima do amontoado de carvio de scu celciro ¢ da retaguarda de sua memoria, Dante desenterrou palavras e musicas para cangdes, poemas ¢ hist6rias que havia com- posto ou aprendido em sua vida como agricultor, trabalhador sidenirgico, ativista, anti- fascista do movimento subterraneo, gucrrilhciro, doutor em ervas, matador de porcos, encarregado de bar, ¢ tudo 0 mais possivel numa aldeia. Ele, por sua vez, apresentou-me a outros camaradas. Amerigo Matteucci era um operario de construgao, prefeito da mimiscula cidade montanhosa de Polino e fantastico improvisador de versos altamente politizados em formas tadicionai: Pompilio Pileri, de aparéncia inocente, frigil, de olhos azuis com seus setenta anos. cra um antigo pastor que nunca teve sua propria ovelha, irreverentemente encantador seus amigos ¢ dramaticamente imponente quando i Matteucci, quando i companhava no organetfo uas longas cangées sobre as durezas de vida de um pastor. Lu um empregado de fazenda, nunca (como Pompilio) aprendera a ler ou escrever, mas exccutay: podia cantar qualquer coisa (cxceto talvez as proprias de Trento). Scu vale, o Valnerina, cra a retaguarda rural para as grandes siderirgicas de Terni, ¢ a mistura das formas tuadicionais rurais com a politica industrial urbana tornou os cantores de Valncrina ¢ scus contadores de histéria unicos. Durante muitos anos, as (reqiientes visitas a Valncrina foram uma importante parte de minha vida. Sempre levei comigo amigos ¢ colaboradores para inicid-los nesta tra- digdo da cultura operdria procedente do folclore Uadicional. Ajudamos Dante ¢ seus companheiros a elaborarem um programa com suas cangées ¢ hist6rias ¢ arranjamos para que viajassem pela Italia e para © exterior como mensagciros conscientes da dig- nidade de sua cultura ¢ do papel de sua class Algumas vezes durante este perfodo, um estudante local, que havia se ligado a mim no trabalho de pesquisa, descobrira nos arquivos da Universidade de Perugia uma ndividuos haviam gravado no fim dos anos 50 cole > de tcipes que esics mesmos. para um grupo de antropélogos, de etnomusicélogos do conservatério, ¢ para técnicos da radio estatal, Estes teipes nao continham nada do repert6rio politico de nossos ami- gos. embora © material tivesse todo sido criado antes da feitura dos teipes. No lugar Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 i disso, eles haviam cantado, de preferéncia, inécuas cangdes populares de amor ¢ rituais, velhas baladas, stornelli, c algumas poucas pegas satiricas sobre eventos locais. Isso foi devido, em parte, aos arranjos técnicos ¢ académicos do grupo pesquisador. Nos anos 50, 0 radio (um monopélio estatal) era abertamente anti-comunista: assim, Dante e 0s outros cantaram somente material “politicamente seguro”. Também, os fol- cloristas italianos estavam sempre mais interessados na redescoberta de tradigdes pas- sadas do que em folclore contemporaneo, e mesmo os mais progressistas académicos responsdveis por aqueles teipes foram influenciados por esta abordagem. Outros modelos hist6ricos também estavam em execug’o. Nos anos 50, os operarios ainda sentiam os recuos que tinham sofrido no pés-guerra. Muitos dos préprios infor- mantes (incluindo Dante ¢ Trento) tinham perdido seus empregos em 1953, ¢ estavam amargurando um mau tempo na busca de novos empregos diante da abertura politica discriminatoria. Nao ha diivida de que eles percebiam ser melhor guardar suas cangdes de protesto para si. Mas quando eu os encontrei em 1970, as coisas tinham mudado. A esquerda ¢ os operarios em geral tinham conseguido ganhos dramaticos em 1969, quando um perfodo de greves e revitalizagdo dos sindicatos, vindo de baixo, novamente tuansformou o trabalho numa forga central na sociedade italiana. Dante e seus amigos estavam muito mais seguros financeiramente, menos facilmente chantagedveis, mais confiantes, mesmo mais dispostos a mostrarem sua identidade politica em ptiblico. Também o fato de gravar ndo era mais uma experiéncia tio estranha ¢ intimidadora: eles tinham gravadores em suas casas, € meu préprio equipamento era muito mais leve e menos importuno. Este episddio ensinou-me a natureza historicamente condicionada do trabalho de campo. Um outro clima politico mudado permitiu aos cantores de Valnerina um exer- cicio mais amplo do discurso livre em 1970-72 do que em 1958-59, e fui capaz. de coletar material importante que escapara aos pesquisadores melhor qualificados profis sionalmente que cu, mas que foram inaptos para interagir numa forma mitua com eles. Esta foi a mesma questo posta a Emesto De Martino uma gerag3o antes. Eu me espanto — de novo em vista da base histérica do trabalho de campo — como os cantores de Valnerina teriam reagido se eu os encontrasse agora pela primeira vez. Nao ha diivida que a legitimidade de sua filiagdo comunista teria sido estabclecida, € eles nao teriam escripulos em proclamé-la. Por outro lado, a presente crise na cultura industrial (e, portanto, operdria © comunista) os faria se referir Aquelas cangdes dife- rentemente, mais como parte de sua hist6ria que de sua experiéncia imediata. 12 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 A questdo sulina: regio e classe entrei naquelas casas de camponeses como “camarada”, como investigador de homens ¢ de histérias humanas esquecidas; eu fui como alguém que tem intengao de observar ¢ verificar sua propria humanidade © quer reunir quem encontra trabalhando em diregio a um mundo superior no qual todos estarfamos melhor ~ eu, o investigador, e eles, © povo encontrado. O fato de estarmos juntos como camaradas, nossa tentativa de encontrar dentro de nés uma hist6ria comum, nunca tinha sido experimentada antes em pesquisa etnol6gica.. Uma paixdo por conhecer os aspectos do presente que nos fazem lembrar um passado recente ou distante pode somente existir como parte da paixdo para transformar o presente em realidade mais digna para os seres humanos.* Esta famosa citagao descreve a interago da erudigao e do envolvimento politico que caracterizou a melhor antropologia italiana nos ultimos anos 40 ¢ nos 50. As cién- cias sociais em geral tém sido vistas com hostilidade pelo fascismo por causa de suas criticas latentes potenciais. De outro lado, o melhor humanista, de tradigao nao fascista —representado pelo historiador ¢ fildsofo Benedetto Croce — rejeitou-as como “falsas ciéncias” De acordo com Croce, apenas a hist6ria pode perceber 0 evento individual em sua inerente unicidade, e ¢, portanto, a Unica ciéncia social verdadeira, enquanto a procura por modelos e a comparacao aproximativa da sociologia e antropologia constituem so- de histria de Croce, além disso, enfoca mente um “naturalismo positivista”. A vi © que € descrito como a dimensio “ético-politica”: principalmente a histéria de elites tituigdes. Enquanto liberou a cultura italiana dos residuos romAnticos e positivistas (e corajosamente se pds em contraste como os impulsos anti-culturais do regime fas- cista), a abordagem historicista de Croce certamente nao foi condutiva nem para inte- resse sistematico em folclore nem para o reconhecimento da presenga hist6rica espect- fica das classes “inferiores”.* Apés a II Grande Guerra, 0 contato com a cultura americana, no contexto de re- novagiio e modemizagdo da vida intelectual italiana, provocou a descoberta da sociologia e¢ da antropologia. Os americanos ¢ cientistas sociais teinados na América, que come- caram a trabalhar na Itélia naqueles anos, acharam, na parte sul do pafs, campo ideal para testar (corias sobre sociedades camponesas ¢ modemizacao. O Sul era abordado e 4 De Martino, B. Etnologia e cultura nazionale negli ultimi dieci anni. Societd, vol. IX, 3 (1953); reeditado in De Martino, E. Mondo popolare e magia in Lucania, Romna-Matera, Basilicata Editriee, 1975, p. 59. 4 Ver Croce, B. Etica e politica. Ed. rev. Bari, Laterza, 1945. Proj. Histéria, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 1B mais como um problema na modemizagio e reerguimento do que como uma cultura Uma assungao, mas nado propria de um estadista, parecia ser a que 0 atraso, condigdo subdesenvolvida da regiiio, era, em larga extensiio, causado pelas fendas na em s cultura de seu povo. O papel das ciéncias sociais “aplicadas”, portanto, era mais de reunir informes ¢ preparar o solo para reccber politicas de fora ¢ de cima. Enquanto pesquisadores individuais (tais como Edward Barnficl, Frederick Friedmann, Robert Redfield ¢ Tullio Tentori) sempre fizeram trabalho do mais alto mérito intrinseco, cl do Sul ao Norte, com seu si: audaciosamente interferiram com a subordinagao basi tema de classe, e com a percep¢aio da regido e de scu povo na cultura dominante Naqueles mesmos anos, entretanto, mitos intelcctuais italianos identificavam o Sul nao apenas como um problema no desenvolvimento cultural ¢ econdmico, mas também como fonte de diversidade cultural ¢ riqueza. O encontro com um Terceiro Mundo dentro de uma nagio oriental supostamente avangada (as “Indias de nés mesmos” como De Martino denominou). a descoberta do outro dentro de nés mesmos, conferiu uma carga altamente politica para um pequeno e algumas vezes periférico grupo de intele tuais extremamente ativo (c, a longo termo, influcnte) O livro classico de Carlo Levi, Christ stopped at Eboli (Turim, Einaudi, 1945), abriu o caminho, Artista nortista, judeu ¢ intelectual, exilado pelo fascismo em uma isolada aldeia montanhosa na Lucania, Levi descobriu 14 um mundo “além” de tudo. Ha uma qualidade mistica, bem como uma vi para o Sul de Carlo Levi: scu afastamento, scu distanciamento ¢ sua impermeabilidade a hist6ria, Levi se fascina pela diversidade de um mundo aparentemente sem mudanga que existe dentro do scu se encontrava na Luci » Cstcti nia como © nada tem cm comum com ele. Por outro lado, cle exilado politico; nessa condigio, estava capacitado a ver 0 scu proprio pove também como cidadaos iguais a ele mesmo, dotados dos mesmos dircitos ¢ privados deles pelo ncoe, Hl], The Hee Press, 1958; Friedmann, Ver Banfield, E. The moral basis of a backward society. Gi F, Osservazioni sul mondo contadino dell Itélia metidionale, Quademi di sociolagia, I, 3 (1952), pp. 148-61; Redfield, R. Peasant society and culture, The University of Chicago Press, 1956; ¢ ‘1. Ricerche sociali in ludlia: 1945-1965, Rome, Edizioni AAAL, 1969. Pars uma apreciagao deste uso esto De Martino emi uma carta tori, de das cigncias sociais no contexto do sul da Tkilia, ver anotagd ao editor de La Lapa, 1953: “Alguns estudiosos ligam & etologia ¢ © fol nada sobre eles, apaixonados que sio pola antropologia aplicada americana ¢ desejando transplanta seus esforgos; cles sto alienados em relagdo a nossa cultura nacional & assim lore italianos sem saber pata cf, Bu nio creio e inaptos em contribuir para tornar o folclore uma parte da nossa cultura... Deixe-nos esquecer que, We et al., I dibattito devemos antes de tudo enraizarmos em nosso proprio solo” (reimpresso in Clem sul folkore in Ilia, p. 300). id Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 mesmo sistema opressivo que 0 perseguia. Eles podiam nao ser parte da “historia” como definida por Benedetto Croce, mas certamente nao deveriam ser classificados como fora da humanidade.® Simplesmente por estar 14, com todo o seu afastamento ¢ diversidade, a Lucania mostrou que os valores ¢ prinefpios da alta cultura ocidcntal nao eram Go universais como a escola idealistica de pensamento algumas vezes parecia crer, A mais importante contibuigio de Emesto De Martino (cle mesmo um sulista, um discipulo de Benedetto Croc 0 a uma redcli- nigdo do relacionamento entre a hist6ria ¢ 6 povo que a teoria de Croce excluira.’” De um organizador socialista) foi em din Martino herdou de Croce a crenga na primazia da historia, ¢ viu-se, a si mesmo, prio- ritariamente como um historiador. Por outro lado, a influéncia do marxismo c 0 exemplo da citncia folclérica sovictica fizcram-no ciente da necessidade de uma historia que pudesse levar em conta a presenga ¢ 6 papel da maioria da humanidade. Embora cle lO repartisse 0 envolvimento cmocional profundo com Sul rural de Levi, a aprecia de De Martino nao cra motivada pela diversidade da historia, mas pelo que ele concebia ser 0 novo papel das massas rurais sulistas (e os povos do Terceiro Mundo) dentro da historia. “Através de todo © mundo”, escreveu cm 1949, as massas do povo estao que os lutando para se introdusirem a forga na hist6ria, para se libertarem das cade amarram a “velha ordem”* Nesta explosao hist6rica, cra impossfvel para um historiador ¢ antropslogo permanecer apenas como um observador extemo. 6 Croce separa seres humanos que so parte da “hist6ria” daqueles que pertencem & “realidade inferior” da natureza. Estes so “homiens somente zooldgicamente © nao historicamente"; como animais, eles devem es podem ser domesticados ¢ treinados; quando isto & impossivel, pode ser permitide gens da civilizagao, sem se tornarem o objeto de algume dessas crueldades que to permitida sua ext ser dominades, F aeles viverem as my devem ser evitadas contra qualquer forma de vida, sendo entret s [nativas] gue se encolherani e morreram.... quando uma eivilizagao mani © la natura”, in Croce, B. Filosofia e sucedeu entre as rag 4 qual ndo podiam se opor av sioviografia, Bari, Laterza, 19. ‘ean \gou sobre elas. Ver p. 246 © seguintes. 7 Entre os trabathos de Ernesto De Martino (1908-1965), os mais importantes sio 1/ mondo magico (1948), Morte e pianto rituale nel antico (1958), Sud ¢ magia (1959) ¢ La terra del rimoiso (1961). A maioria destes trubalhos explora o papel da magia ¢ do ritusl como uma protegio contra © que ele decreveu como “crises de presenca"’ : a constante ameaya do fato “néo estar li", de desaparecer da realidade © da histéria, as quais cle reconhecia como uma forga na vida cotidiana e nas alitudes dos pobres camponeses do Sul. Alguns dos escritos de De Martino que dizem mais respeito 2 rel ‘0 in Furove simbolo vatore (1962). Muitos dos cia do folelore no mundo 1us artigos nuais curtos, distribuidos entre problemas politicos © pessoais envolvids cont ¢ (tabalho, foram coletados in Clemente et al., If dibattito sill folctore in Nalia. 8 De Martino, E, Intorno a una storia del mondo popolare subalterno, Societd, vol. V, 3, September 194 5; reimpr. em Clemente et al., op. cit., pp. 63-81. Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev, 1997 15 As rafzes politicas ¢ regionais da militancia de De Martino guiavam-no para se ver como participante desta mudanga histérica ao mesmo tempo que a consciéncia de seu papel e identidade como intelectual 0 tomavam ciente de ambigiiidades. Da mesma forma as massas oprimidas “introduzidas a forga na historia”, ele disse, elas trazem consigo sua Ansia por justica (sempre expressa pelo que ele chamava “folclore progres- sivo”, em oposi¢ao ao conceito de folclore como inerentemente conservador e arcaico); mas elas também trazem os aspectos arcaicos, reacionarios de sua cultura presente mo- om ultima delada pela experiéncia da opressio. O levantamento das massas implicaria, instancia por algum tempo, um grau de “barbarizagio” da cultura como um todo. O dever do intelectual, entretanto, € garantir alguma espécie de “profilaxia’ colo- cando este processo em perspectiva histérica e providenciando a necessaria “piedade hist6rica” para culturas “arcaicas” serem entendidas ¢ protegidas da exploragao pelas forgas da reagiio. A habilidade dos intelectuais em manterem suas pr6prias diversidades, de preservarem distancia das massas mesmo quando eles préprios participam da luta alvagiio, mas para pela emancipacao delas, é necessdria no-somente para a sua propri as das massas, também. De outra parte, De Martino percebeu que esta distancia necesséria é também o resultado de uma injustica histérica, e 6 uma injustiga em si. Quando em confronto com os camponeses sulinos, escreveu, Eu estou envergonhado de meu privilégio de nao ser como eles, como se eu tivesse roubado algo que pertence também a eles. Ou, de preferéncia, estou envergonhado de ter accito esta concessiio de sociedade, de ter permitido a ela, sociedade, usar todas as suas habilidades para me fazer “livre” a este prego.” Um complexo modelo de identificagio ¢ diferenga aparece também no trabalho de outro grande escritor sulino, cientista social ¢ ativista politico, Rocco Scotellaro. Nascido de uma familia de artesos e lavradores em Lucania, Scotellaro esforgou-se toda a vida para ser fiel as rafzes de sua classe, como poeta, como pesquisador, como ativista € mesmo brevemente como prefeito de sua cidade natal de Tricarico, e sentiu a distancia penosa levantada enue ele mesmo e€ seu proprio povo. Por outro lado, percebeu que 9 De Martino, E. Note lucane. Societa, vol. VI, 4, 1950; reimpr. em Furore simbolo valore, Milano, Fel trinclli, 1980; ¢ Clemente ef al. IT dibattito sul folclore in Iidlia, pp. 370-82. 16 Proj. Histéria, Sao Paulo, (14), fev. 1997 essa distincia nao era somente o efeito negativo do afastamento do intelectual, mas também condigio para uma participagao mais efetiva e consciente.'° Esta ambivaléncia modelou sua vida politica e intelectual. Quando foi para a prisio (ap6s liderar camponeses sem terra a buscar as propriedades dos senhores locais), Sco- tellaro empenhou-se em provar aos companheiros que era um deles, buscando um sen- tido quase pré-politico, quase péleo-cristio de irmandade e de “semelhanga”. Mas os companheiros tentaram confortd-lo dizendo-lhe que ele sairia logo, porque “a prisio nao ¢ para pessoas como vocé”. Mais tarde, quando deixou Tricario para estudar em Napoles e assim preparar-se melhor para um papel de lideranga politica, Scotellaro lembrou que os proprietérios e chefes, também, sempre lhe tinham “mostrado 0 caminho da estagdo” como a Ihe indicar que devia separar scu destino do das massas iletradas e tomar seu lugar entre os educados, a elite e os governantes”."' O conflito entre a empatia dos de denuo e o olho critico dos de fora deu forma e significado a sua autobiografia nao terminada bem como a sua colegio pioneira de hist6ria de vida dos camponeses sulinos. Um duplo oximoro — “intelectual nativo”, “intelectual militante” — cruza as vidas de Rocco Scotellaro e de Emesto De Martino. De Martino conta a histéria do velho trabalhador rural que 0 chamou de lado em uma aldeia da cidade onde era presidente do comité socialista local, recitou para ele um longo poema sobre a vida de um pobre trabalhador de fazenda, e entao disse-lhe: “Vocé que pode, vocé que vera”. Este é um mandato ambfguo. Pode significar que 0 inte- a em frente - voc® que sabe, voct lectual democrtico abrir4 o caminho, mas também que o intelectual “seguir” e deixard © camponés atras. Em ambos os casos, 0 problematico termo intelectual — evoca uma diferenga que continua presente, de forma perturbadora através de uma busca duradoura para entendimento, participagio e identificagio. 10 Todos os mais importantes trabalhos de Rocco Scotellaro (1923-1953) foram publicadas apés a sua morte. Entre cles esto: F fatto giomo (1954), Contadini del Sud (1954), L'uva puttanella (1956) ¢ Uno si distrae al bivio (1974). Estou em débito com algumas das observagées na discusséo havida com Vincenzo Padiglione, Osservatore ¢ osservato: problemi di conoscenza e rappresentazione. La vicenda Sotellaro, Problemi del socialismo, vol. XX, 15, 1979, pp. 167-209. 11 Scotellaco, R. L'uva puttanella, Bari, Laterza, 1972, p. 93. 12 De Martino, E. Intomo a una storia del mondo popolare subalterno. Proj. Histéria, Séo Paulo, (14), fev. 1997 17 “Nos ndo temos intelectuais” Como © experimento em Valnerina prosseguiu, aprendi cm primeira mao 0 que De Martino ¢ Scotcllaro cnsinaram: os papéis de “militante intelectual” ¢ de “intelectual nativo” eram ambos mais complicados que pareciam a primeira vista. Por ser politica- mente ligado aos informantes no me tomava um deles; ou, de outro modo, quando a significado do fato de ter também crescido em Temi despertava em mim, isso com- plicava mais que simplifi ‘ava Meu relacionamento com os entrevistados. Quando encontrei Bruno Zenoni, um lider da brigada partisi de Terni com uma memoria hist6rica inacreditavi cando que as motivacécs de minha pesquisa eram mais abrangentemente politicas que académicas. Ele ficou contente, falou livremente e apresentou-me a outras pessoas. De qualquer modo comecei a notar que, embora sua apresentagao fosse suficiente para me assegurar politicamente, ele sempre me aprescntava como “professor”, mais que como mente precisa, apresentei-me como “camarada”, expli- “camarada”, Eu tinha homogeneidade politica acentuada; mas ele punha em primeiro plano minha diferenga c diversidade cultural profissional. A classe operiria de Terni sempre teve relacionamento dificil com intelectuais . na cidade, S ¢ OS antifascistas de qualquer modo essa relagdo sempre foi fugaz ¢ hostil durante gerag Simplesmente parecia suficiente para colocar cm guarda os parti: clandestinos; mais recentemente, jovens intelcctuais tém aliviado vclhos trabalhadorcs de papéis de lideranga nos sindicatos ¢ no partido. Por outro lado, a geragdo de Zenoni linha alto respeito pela cultura, ea falta de educagdo ¢ habilidades profissionais inte- imento do movimento da classe Iectuais era scntida como obsticulo sério para © cres operaria. “Quando assumimos a administrago da cidade ap6s a guerra”, disse Zenoni, “nao havia intclectuais, ¢ tinhamos que fazer tudo com nossa pequena escolaridade”. Uma vez. ele sentiu que minha politica nao era hostil (embora eu ndo fosse um membro do partido), mas 0 fato de ser um “professor” intrigava-o com a possibilidade de que sua hist6ria, que vinha contando ¢ reconstruindo por quarenta anos, podia ser coletada e contada por alguém que tivesse capacidade de fazer isso profissionalmente. A ligao, no caso, cra o outro lado da medalha daqucles de Greve ¢ Labro; aqui, cu estava expondo minha similaridade (uma vez que alguma espécie de igualdade fora consegui- da), mas minha diferenga ¢ que foi apreciada. 0 fato de Entrementes, cu estava aprendendo que havia outro ponto de identidad ter crescido em Terni mudava totalmente o relacionamento, tanto para mim como para os entrevistados. Nunca me ocorrera pensar de mim mesmo como um “intelectual na- 18 Proj. Historia, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 tivo” — eu no nascera em Terni, tinha sempre me sentido como héspede temporario € tinha estado fora por dez anos antes de voltar para as cntrevistas. Contudo, enquanto gradativamente me conyencia que pertencia a Terni como jamais pensara, meus “in- formantes” desenvolviam suis estratégias de contra-informagéo para descobrir quem eu oO padrdio de semelhanga ¢ disscmelhanga cra representado na revelagdo de que eu tinha tinha crescido num bairro de operarios, embora proviesse iia. Descobrir que haviamos nos encontrado, meninos, em realmente cra — soltavam nomes, faziam alusdes ¢ cstudavam as minhas reagoes ido para as mesmas escolas. de uma familia de classe m um campo de futebol algumas vezes, produzia uma toca mais espontinea. Outras vez entretanto, o fato de scr um nativo somente sublinhava a diferenga de class encontramo-nos de novo”, di escola. “Voce ¢ ainda 0 queridinho do professor?” ¢ um siderdrgico, apés me identificar como colega de Orgdnico e de pernas para o ar Cada grupo social [escreveu Antonio Gramsci] nas essencial ao mundo da produgio ccondmica, ¢ cri junto consigo mesmo, organicamente, io homogencidade € uma consciéneia de suas funges nao somente no campo econdmico mas também nos campos social ¢ politico. em um terreno original de fungie um ou mais exratos de intelectuais que Ihe ¢ A tcoria mais influente sobre o relacionamento cnuc intelectuais ¢ 0 opcrariado & a que se baseia no conccito de Antonio Gramsci do “intelectual organico”, formulada em seus escritos durante o tempo em que esteve preso, Um intelectual organico do operariado é um intelectual que é ou se torna parte do movimento operdrio. Exatamente © que faz um intelectual “organico”, entrctanto, € incerto, ¢ a questo tem sido histo- ricamente atingida por curto-circuito do partido politico. “O partido politico”, Gramsci escreveu, “para alguns grupos sociais ¢ nada mais que scu especitico caminho de ela- borar sua propria categoria de intelectuais orginicos dirctamente no campo politico ¢ nao apenas no campo da técnica produtiva”. Entretanto, “um intelectual que associa 0 partido politico de um grupo particular funde-se com os intclectuais organicos do proprio grupo ¢ liga-se fortemente ao grupo.’ 13 Gramsci, A. The formation of the intellectuals, Selections from the prison notebooks. Ld. and trans. Quintin Hoare and Geoffrey Nowell Smith. Londres, Laurence & Wishart, 1971, pp. 5 ¢ 16. B Gramsci para 0 estudo da cultura da classe operdria e do folelore, embora a tre Os conceitos nda relevantes de dade desta discussio, estio a idéia da “hegemonia” (a habilidade da classe dominante em impor Proj, Hist6ria, Sdo Paulo, (14), fev. 1997 19 Na redacao vigiada que usou de modo a despistar a censura da priséo, Gramsci parece desenhar os contornos de dois tipos de intelectuais orgdnicos: um que se origina de dentro do “grupo social”, uma espécie de intelectual “nativo” com consciéncia po- litica de classe; e outro que se une a classe ao se tornar um membro de seu partido politico, Embora tenham muito em comum, nao sao a mesma coisa, e tém sido tratados diferentemente por correntes diversas da esquerda italiana pés-guerra. A maioria da esquerda oficial ¢ organizada tem favorecido 0 segundo tipo de in- telectual orginico, em aparente harmonia com a idéia leninista de que a consciéncia revolucionaria nao pode emanar da propria experiéncia dos trabalhadores, mas deve ser levada a eles de fora. Realmente, as rafzes reais desta colocagdo parecem repousar de preferéncia na prevaléncia continua de um conccito da unidade de cultura, derivada mais de Croce que de Lenin. A cultura permaneceu, entretanto, largamente identificada com a alta cultura das classes mandantes, com seus modos de producao, valores, papéis profissionais — mitigada talvez por um maior acesso A educacio, uma maior distribuigdo democrética de informagdo, maiores contetidos progressistas, e algumas vezes uma linguagem menos obscura. Uma vez que suas credenciais politicas ao se associarem ao partido do operariado fossem asseguradas, os intelectuais organicos ne- cessitariam mudar muito pouco os seus papéis, status ou modus operandi; e dificilmente necessitavam questionar 0 tipo de conhecimento com o qual se relacionavam. Como Gianni Bosio colocou criticamente, a tarefa desta espécie de intelectual organico consiste somente em suprir os trabalhadores com materiais e informagao para sua ascensio ¢ melhoramento, tornando-os alvos para uma mensagem que € apenas reinterpretagdo da cultura tout court, isto é da cultura predominante.'* O criticismo de Bosio representa uma posigao que foi compartilhada pelas minorias libertarias de esquerda nos anos 50 e 60 e pelo que mais tarde viria a ser a Nova Esquerda. Estas correntes diziam mais respeito ao primeiro tipo do intelectual organico, seus pontos de vista A totalidade da sociedade), ¢ sua ligagao pioneita do folclore com a classe nas “Notes on Folcklore”, incluidas em seus escritos feitos na prisio. 14 Bosio, G. Le esperienze del NCI in rapporto con le attivité di cultura popolare ¢ di massa del movimento peraio [1966]. In: L’intellattuale rovesciato, p. 131. (NCI petmanece para Nuovo Canzoniere Italiano, a radical organizagio renovada do povo, fundada por Roberto Leydi ¢ Gianni Bosio, que originou a representagio de musica folclérica na Itélia.) 20 Proj. Historia, Sao Paulo, (14), fev. 1997 originario diretamente de dentro da classe. Um documento programatico de um grupo cultural influente da Nova Esquerda, que se autoconsiderou seguidor de Gianni Bosio, diz: Por intelectual orgdnico entendemos o intelectual que o operariado gera de dentro dele. Organico, ¢ intelectual, € 0 lider grevista, © dispensciro de loja, ou 0 membro do conselho da fabrica, porque estes papéis implicam conhecimento, consciéncia, atitudes decisérias, lideranga, organizagiio. E mais longe, os intelectuais orgdnicos so os poetas do povo & contadores de histéria, os narradores de meméria histérica, os misicos tradicionais, quando tomam ciéncia do significado c relevancia de seu trabalho.!® Gianni Bosio desafiou a colocagao intensamente politica de De Martino sobre an- tropologia c histéria, com muitas importantes inovagdes.'* Antes de tudo, ele deslocou o foco de observacao do Sul rural para o Norte industrial, das massas camponesas para © operariado industrial (embora consistentemente mantivesse que haveria ligagdes e continuidades enue ambos e que a experiéncia de pesquisa de campo nas areas rurais providenciaria uma retaguarda metodolégica essencial para a pesquisa de campo “ur- bana”). Enfocando as regides modernas, regides avangadas do pais, Bosio deu nova significagdio ao conceito de “folclore progressista” de De Martino e contribuiu para a ruptura da distingdo entre etnologia ¢ histéria, recolocando o estreito “homem folclérico” (relevante somente quando portador das reliquias culturais do passado) como o “homem hist6rico” dotado de toda a sua cultura, do folclore tradicional ou folclore progressista © & conscientizago da classe modema."” A segunda inovacdo foi seu conceito da circularizagdo entre o trabalho cultural ¢ politico, ¢ a conseqiiente visio do pesquisador como organizador. “A organizagio da cultura é tio importante, ¢ talvez mais importante, que a produgao da cultura’”.’* Ele nao cra apenas a figura lider na nova “escola de pensamento”, mas também © criador 15 Cuzzanti, A. e Portelli, Alessandro. Introdugio para I giorni cantati, Cultura operdria e contandina a Roma ¢ nel Lazio, editada pelo Circolo Gianni Bosio, Milano, Mazzota, 1978, pp. 8 ¢ 9. O Circolo Gianni Bosio, estabelecido em 1972, & uma organizagao independente devotada & pesquisa sobre miisica folelérica, histéria oral ¢ cultura operdria 16 A maior parte dos escritos de Gianni Bosio (1927-1971) eram de natureza ocasional, pessoal ¢ temporaria, e foram publicados em forma de livro apés a sua morte, Os mais importantes sio Giornale di un organizzatore di cultura (1962); L'intellettuale rovesciato (1975); Il trattore ad Acquanegra (1981). 17 Bosio, G. “Uomo foleklorico/iomo storico”. In: L'intellettuale rovesciato, 1969, pp. 245-62 18 Bosio, G. Lettera a Giuseppe Morandi, p. 186. Proj. Histéria, Sado Paulo, (14), fev. 1997 21 de um movimento politico-cultural, que positivamente clamava ser 0 operariado nao apenas parte da hist6ria (como De Martino mostrara), mas possuidor de uma historia (¢ cultura) propria. A influéncia deste movimento seria scntida, embora a maior parte dos cstudantes nos anos 60 como. das vezes indiretamente, tanto no movimento radic: no “Outono Quente” da classe trabalhadora em 1969. O trabalho de Bosio baseou-se na vi da classe operaria “nao apenas [como] m_ como de protagonista informagao para uma cultura consciente de classe, mas tan ativa’.”” A fungao do intelectual que se vé também como um “militante da classe tra- balhadora” 6 entéio, nao para conduzir ao pove uma versio modificada da cultura he- geménica, mas também para “armar a classe com seu proprio poder”. Ele apelava para um intelectual que nao fosse tao “organico” quanto “invertido” ou “de pemas para © ar”; que poderia “desistir do privilégio de ser um depositério de cultura ¢ accitar a possibilidade de reconhecer ¢ receber mensagens culturais do mundo proletirio”.” O intelectual as avessas niio-somente ensinaria, mas também aprenderia; na situagao de campo, os pesquisadores “de pernas para 0 ar” nao estudariam os informantes, mas aprenderiam com cles ¢ permitiriam por sua vez serem “estudados” de volta. As consideracées de Bosio classe trabalhadora, mas falham em face da qucstao, profundamente entrosada, do re- ‘em respeito ao relacionamento do intelectual com a lacionamento do intelectual com cle proprio ou cla prépria. Os contlitos pessoais. pe- nosos de De Martino enue o ativista ¢ o académico, cnure a simpatia humana ¢ a observagio critica ¢ cientifica so mediados, ¢ até mesmo removidos, pela militincia politica, Os projetos de Bosio podiam funcionar melhor para um grupo de vanguarda. ou algumas vezes para ativistas politicos ferrenhos quando uma solug%o politica para todos os problemas parccia possivel. © intelectual “de pernas para o ar” comegou a aparccer como emocionalmente obsoleto no fim dos anos 70, quando as esperangas ‘s de um. revolucionarias declinaram ¢ 0 operariado nao mais preenchia todas as fungs modelo cultural c politico, do mesmo modo que intelectuais organicos tinham aparecido para os radicais dos anos 60, Quando a média da “massa” intelectual sofreu mudangas dramdticas no emprego, has oportunidades, renda ¢ status; quando a cultura jovem c a liberagao de mulheres 19 Bosio, G. Comunicazioni di classe e cultura di classe. In: L'intellettuale rovesciato, 1966, p. 156. Jorico/uomo storico. In; ['intelletuale rovesciato, pp. 261-2; Le esperienze del NCI 20 Bosio, G. Uomo fol 141. 22 Proj. Histria, Sdo Paulo, (14). fev. 1997 embaragou-nos com problemas da vida politica ¢ particular; e quando questocs de papéis de sexo ¢ de identidade privada se tomam mais ¢ mais urgentes, entio a politica ¢ a cultura operdrias puderam ser vistas como resposta para alguns problemas, mas nao pudcram mais ser imaginadas como resposta satisfatoria para tudo, Tanto o intelectual “organico” quanto o “de pernas para ar” foram treinados para remover deles mesmos a parte individual ~ o primeiro, para manter a maioria de scus privilégios, na retaguarda ¢ implicitamente reté-los; 0 ultimo, de mancira a colocar a maior parte de suas contra- diges pessoais de Jado. Mas como aquela incémoda palavra — “eit” — sc tornou rele- vante de novo, tanto os papéis modelos como as colocagées metodolégicas nao deixaram mais muito espago para um estado falso de consci¢ncia ser satisfatorio. Um novo relacionamento Isto leva-nos de volta ao problema original: 0 papel da igualdade e da diferenga no campo da pesquisa. Os dois conccitos se relacionam, Somente a igualdade nos pre- P lado, sem diferenga nao ha igualdade — ape 4 para accitar a diferenga em outros termos que hicrarquia € subordinagio; de outro semelhanga, que 6 um ideal muito menos somente a diferenga a proveiloso, Somente a igualdade faz a entrevista accilavel, mas faz relevante, O campo de trabalho € significativo como o enconwo de dois sujeitos que se reconhecem enue si como sujcitos, ¢ conseqiicntemente isolados, ¢ tentam cor tir sua igualdade sobre suas diferengas de mancira i Nestes termos, a pesquisa pode ajudar-nos a fazer fe sidades contemporaneas mais cxigidas: a redefinigaio do self ¢ a crise da nagio politica © reconhecimento do outro, que & a base da antropologia, 6, quando muito, limitado, trabalharem juntos. ce a algumas de nossas ncces- a menos que implique também questionamento ¢ redefinigdo da propria identidade do antropélogo (ou do historiador). Num tempo como 0 de nossa histéria comum, quando a crise dos movimentos radicais ¢ revoluciondrios deixou a maioria de nés sozinhos para encarar nossos problemas comuns ¢ individuais, a luta pela autodefinigao sempre toma a forma de narcisismo, cinismo, egoismo categdrico © desprezo para discussdes uma vez mais, colocar a gerais, Creio que ema possivel fungaio de pesquisa hoje é questéio de identidade num plano social ¢ interpe: ajudar-nos a reconhecer a nés proprios no que nos faz. semclhantes embora diferentes dos outros. soal, ¢ Por outro lads, quando 0 enconiro tem lugar a luz da igualdade, no somente 0 observador mas também 0 “observado” podem ser estimulados a pensarem difcrente- Proj. Historia, Sco Paulo, (14), fev. 1997 23 mente sobre si mesmos. Isto joga nova luz sobre velho problema: a interferéncia do observador na realidade observada. O fetiche positivista da nao interferéncia desenvol- veu estranhas técnicas para ultrapassar ou remover este problema. Creio que devemos. mudar a questo em seu ponto basico ¢ considerar as mudangas que nossa presenga possa ocasionar como alguns dos mais importantes resultados de nosso campo de tra- balho2! Nao ha necessidade de se inclinar para a propaganda, de modo a usar o fato em si da entrevista como oportunidade para estimular outras, bem como as nossas proprias, para um mais alto grau de escrutinio e sabedoria inerentes a nés; para ajud-los a crescer mais cientes da relevancia e significagaio de suas culturas e conhecimentos; ¢ para levantar a questio da falta de senso e a injustica da desigualdade entre cles e nds. O trabalho politico é trabalho de mudanga e todas estas mudangas sdo altamente poli- ticas. Num tempo quando a politica, nos termos tradicionais de propaganda, organiza- (Ges © instituigdes, se tornou insatisfat6ria ¢ algumas vezes mesmo sem sabor, 0 fato de que nossa presenga possa facilitar mudanga significativa na autoconsciéncia das p\ soas que encontramos ainda é talvez uma forma, util, da agdo politica. 21 Trabalhei em maior amplitude sobre estas idéias no editorial ndo-assinado “Lavoro culturale ¢ intervento politico. Transformazioni di um rapporto”, I gioni cantati, 4 (1983), pp. 9-19, € no capitulo introdutério de Biografia di una citta (Torino, Einaudi,1985). 24 Proj. Historia, Sao Paulo, (14), fev. 1997 |

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