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Capitulo 1 Governanga, ordem e transtormacao na politica mundial James N. Rosenau No momento em que as hegemonias declinam, as fronteiras ( ‘os muros que as selam) desaparecem, quando nas cidades de todo ‘0 mundo as pracas esto repletas de cidadaos que desafiam as au- toridades, quando as aliangas militares perdem sua viabilidade (para mencionar apenas algumas das muitas mudangas que estio transformando a politica mundial), as perspectivas da ordem e da governanga mundiais tornaram-se um (ema transcendente. A medi da que aumenta a amplitude dessa transformagio, com a intensi cao do seu ritmo, mais urgentes se fazem as questdes relacionadas com a natureza da ordem e da governanga. Mudar significa ferir pelo atrito os padrdes estabetecidos, reduzir a ordem € a governan- ¢a até que novos padrdes se formem e se estabelegam nas rotinas da politica mundial — a situagio que temos hoje. Sente-se que curso da histéria chegou a um ponto de mutagio, oportunidade para que © movimento no sentido da cooperagio pacifica, da ex- pansio dos direitos humanos e da elevagio dos padrées de vida sio pouco menos evidentes do que as perspectivas de um agravamento, dos conflitos de grupos, a deterioragio dos sistemas sociais e das condigdes ambientais. dois conjuntos, ¢ possivelmente am- bos, poderiam desenvolver-se 4 medida que os fideres € o ptib! 32 James N. Rosenau se acostumam A percepgio estimulante de que, devido a todas es- sas mudangas, reconquistamos um certo controle sobre o futuro. A meta do projeto de colaboragio que teve como resultado os textos aqui reunidos é precisamente aproveitar esta época de mu- danga para esclarecer a natureza da ordem mundial e os processos em que se manifesta a governanga na escala mundial. Nao quere- mos antecipar as formas especificas de ordem e governanca que emergirao provavelmente das ruinas da Guerra Fria ou do conflito militar no golfo Pérsico. Anos podem passar antes que surja o perfil dessa nova ordem, Mas a atual dindmica das mudangas e a estatica da continuidade so de tal forma importantes para focali- zar algumas questdes cruciais que seguramente servirio de con- texto para compreendermos o que esté 4 nossa frente. Que enlendemos por goveruanga na escala mundial? De que modo ela pode funcionar sem um governo? Se a governanca implica um sistema de ordenagio ¢ se nio est apoiada em um governo organi- zado, quem vai formular ¢ implementar as regras a seguir? A or- dem mundial hoje prevalecente depende da natureza e da amplitude da governanga? Com efeito, qual 0 ponto de referéncia da ordem mundial e que formas ela pode assumir? Serd a ordem mundial uma construgio mental, uma imagem de como as coisas funcionam? Seri um complexo de normas, impli- citas e em grande parte nao reconhecidas, que limita e influencia a conduta dos atores internacionais? Ou sera um conjunto de mode- los e de regularidades perceptiveis empiricamente? Podemos dizer que um conflito extenso e desordenado é uma variedade de ordem? Qu o fundamento de qualquer ardem seria as consideragées nor- mativas que valorizam a cooperagio € nos proibem de aceitar a nogio de uma ordem cadtica, feita de conflitos? Pode haver uma ordem mundial durante um periodo de ripida tansformacio? E como distinguir a ordem da estabilidade e dos interesses e con- digdes materiais em que ela se baseia? Na bibliografia sobre relagées internacionais, essas quest6es tém merecido a atengéo dos autores.' No entanto, diferentemente ' Hedley Bull, The Anarchical Sociely: A Study of Order in World Politics (Nova York, Columbia Univ. Press, 1977) e, Lynn H. Miller, Global Order: Values and Power in International Politics (Boulder, Westview Press, 1990) so dois cestudos abrangentes sobre a natureza da ordem internacional. Governanca, ordem e transformacao na politica mundial 13 dos ensaios que seguem, a maioria das tentativas anteriores de delinear a ordem mundial nao teve o estimulo de um mundo em transformagio na ordem fundamental em que se desenrolam os acontecimentos. Nossa vantagem, agora, é a perplexidade induzida por eventos recentes, a qual nos permite formular perguntas que de outra forma nao seriam formuladas ¢ identificar linhas alternativas de desenvolvimento que de outro modo nao seriam exploradas. No entanto, foi mais facil formular essas perguntas do que thes dar resposta. Tivemos cinco encontros para discutir esses assuntos, a0 longo de quatro anos, ¢ todas as vezes achdvamos as respostas vagas, em parte porque nosso enfoque coletivo dos con- ceitos de ordem, governanga, instituigées e poliarquia mudava em cada encontro; em parte porque havia diferengas de matiz entre nés no que concere ao escopo essencial e ao contetido desses importantes conceitos. Algumas dessas nuances persistem, ¢ uma leitura cuidadosa de varios capitulos mostrard que preferimos admitir uma variedade de énfases em vez de forgar a convergéncia para uma formulagio consensual menos consistente. Mas é importante que nao nos deixemos enganar por essas di- ferencas. Podemos distinguir-nos de aigum modo no emprego dos conceitos e da terminologia, mas sio os mesmos problemas que nos preocupam a todos, Compartilhamos um tinico ponto de vista a respeito dos temas fundamentais confrontados pelos analistas que buscam compreender as estruturas emergentes da politica mundial. Notadamente, concordamos em que num mundo onde a autoridade sofre deslocamento continuo, tanto exteriormente, no sentido das entidades supranacionais, como internamente, no sentido dos gru- pos subnacionais, € cada vez mais necessdrio verificar como pode existir a governanca na auséncia de um governo. O objetivo deste capitulo introdutério € ditado pelas nossas di- ferengas e as concepgies que compartilhamos. Ele procura acen- tuar a gama de sentidos abrangida pelas mossas preacupacées co- letivas, indicando de que forma os varios capitulos se ajustam a um todo coerente. 4 James N. Rosenau A governanga ea ordem Presumir a existéncia da governanga sem um governo signi ca conceber fungdes que precisam ser executadas para dar viabilt dade a qualquer sistema humano, mesmo que o sistema nao tenha produzido organizacées e instituicdes incumbidas explicitamente de exercé-las. Entre essas numerosas fungdes necessinias estio, por exemplo, a de interagir com os desafios externos que ocorrem em qualquer sistema; evitar que conflitos entre os membros ou facgdes provoquem uma destruicéo irreparivel; buscar recursos para a preservacio ¢ o bem-estar do sistema; definir abjetivos e condutas destinadas a alcangd-los. Sejam os sistemas mundiais ou locais, essas necessidades funcionais devem sempre estar presentes para que os sistemas se preservem ao longo do tempo. As atividades dirigidas para atender as necessidades funcio- nais dos sistemas sio evidentes nas operagdes dos governos que, normalmente, desenvolvem constituigdes para regulamentar inter- namente sua conduta ou assinam tratados que os orientem intern: cionalmente. No entanto, durante este perfodo de mudanga mundial ripida e ampla, as constituigdes nacionais ¢ os tratados tém sido prejudicados por: exigéncias e maior coeréncia de subgrupos étni- cos ¢ de outra natureza, globalizagio das economias, advento de movimentos sociais amplos, redugio das distincias politicas cau- sada pela tecnologia micrveletronica ¢ pelo florescimento dos vinculos globais de interdependéncia devidos as crises monetarias, poluigio ambiental, terrorismo, tréfico de drogas, Aids e muitos outros temas transnacionais constantes da agenda global. Essas dinamicas centralizadoras e descentralizadoras tm minado as constituigdes nacionais ¢ os tratados, pois contribuem para deslo- camentos dos centros de autoridade. Sob muitos aspectos, os go- vernos ainda funcionam e retém sua soberania; no entanto, como observamos anteriormente, uma parte da sua autoridade foi trans- ferida para coletividades subnacionais. Em outras palavras, agora certas fungées da governanga estio sendo executadas mediante atividades que nao tém origem nos governos. Qual sera, entéo, a maneira apropriada de formular o conceito de governanga como ele funciona na politica mundial? Seré mera- ‘Governanga, ordem e transformacao na politica mundial 15 mente um sindnimo das instituigGes e dos regimes internacionais? Pode a governanga ser eficaz na auséncia de uma autoridade ce: tral? Em que medida a estabilidade de uma ordem mundial deper de da presenga da governanga? Essas so perguntas que convidam a.uma longa discussao so- bre a natureza do governo e sobre fato de que os-sistemas de Estados nacionais sio muito mais propicios 4s operagées gover- namentais do que aqueles onde nao ha poderes soberanos. Com efeito, o fim da Guerra Fria e as numerosas mudangas de outra natureza que caracterizam a nossa época justificam -plenamente esse debate, Dadas as transformagoes profundas ocorridas na natu- reza e na localizagao da legitimidade, da autoridade e sua aceitacao, e dados os papéis e as estruturas emergentes do Estado moderno, das organizagdes transnacionais, dos movimentos sociais, dos mercados comuns e dos partidos politicos, ‘torna-se certamente obrigatério um amplo reexame do governo e da governanga em um mundo cada vez mais interdependente. No entanto, € ébvio que nao € esta a oportunidade para tal tarefa. Neste livro, podemos apenas anotar os possiveis sentidos da governanga no novo con- texto internacional e como ela se vincula a ordem prevalecente e as perspectivas de mudanga.? Conforme © titulo do livro ja indica, governanga nao é 0 mesmo que governo. Os dois conceitos referem-se a um compor- tamento visando a um objetivo, a atividades orientadas para metas, a sistemas de ordenagao; no entanto, governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de policia que garante a implementagdo das politicas ‘devidamente instituidas, enquanto governanca refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou nao derivar de responsabilidades legais formalmente prescritas ¢ nao dependem, necessariamente, do po- der de policia para que sejam aceitas e vengam resisténcias. Em outras palavras, governanga é um fendmeno mais amplo do que governo; abrange as instituigées governamentais, mas implica ? Vide outra investigagio mais ampla e convincente do sentido de governanca em Lawrence S, Finkelstein, “What is International Governance”, documento apre- sentado na reuniao anual] da Associagio de Estudos Internacionais (Vancouver, 21 de margo de 1991). 16 James N. Rosenau também mecanismos informais, de cardter naio-governamental, que fazem com que as pessoas ¢ as organizagées dentro da sua area de atuagao tenham uma conduta determinada, satisfagam suas neces- sidades € respondam as suas demandas. Portanto, a governanga € um sistema de ordenagao que depen- de de sentidos intersubjetivos, mas também de constituigdes ¢ estatutos formalmente institufdos. Para dizé-lo mais claramente, a governanca é um sistema de ordenagio que s6 funciona se for aceito pela maioria (ou pelo menos pelos atores mais poderosos do seu universo), enquanto os governos podem funcionar mesmo em face de ampla oposigio a sua politica. Nesse sentido, a governanga € sempre eficaz, quando se trata das fungdes necessdrias para a persisténcia sistémica, ou entiio nao é concebida para existir efeti- vamente (com efeito, nfo se fala em uma governanga ineficaz, mas sim de anarquia ow caos). Por outro lado, os governos podem ser bastante ineficazes sem que deixem de ser considerades como existentes — diz-se simplesmente que sio “fracos”. Portanto, pode-se falar em governanga sem governo — sem mecanismos regulatérios em uma esfera de atividade que funcione efetivamente mesmo que nao tenha o endosso de uma autoridade formal. Nao € excessivo derivar dessa linha de raciocinio um cendrio plausivel marcado pelo governo sem governanca. Na verdade, se pensarmos em todos os paises que sofrem di isdes profundas e cuja agio politica se encontra paralisada, concluiremos que no mundo ha varias autoridades formais as quais faltam mecanismos regulatorios funcionando efetivamente — sio governos sem go- vernanga. Levando em conta a natureza nociva de alguns governos, poder-se- até mesmo argumentar que a governanga sem um go- verno € de certo modo preferivel a governos capazes de governan- ca. Para repetir a observagio sucinta e reveladora de um analista exasperado, “os governos usurparam a governanga”.’ Sugerir que a governanga é sempre efetiva significa postular um vinculo estreito entre governanga e ordem. E possivel até mesmo dizer que a governanga corresponde A ordem mais a inten- cionalidade. A ordem global consiste na série de entendimentos 3 Rajhi Kothari, “On Human Governance”, Alternatives, 12 (1987), p.277. Governanga, ordem e transformacio na poli Ww rotineiros por meio dos quais flui a politica mundial, de um mo- mento para outro. Alguns desses entendimentos sio fundamentais (por exemplo, a dispersio do poder entre os principais atores, as diferencas de hierarquia entre eles, as regras que limitam sua intera- ¢4o, as premissas que compartilham a respeito da fungao que tem a forga, a diplomacia, a cooperagao e 0 conflite), outros sao perfei- tamente rotinizados (tais como 0 comércio, os procedimentos rela- cionados com os correios ¢ 0 uso de passaportes). Contudo, sejam fundamentais ou rotineiros, nem todos esses entendimentos resul- tam do esforco consciente daqueles que os sustentam; alguns deri- vam da soma de decisées individuais planejadas para atender a preocupagdes subsistémicas imediatas, mas que se. acumulam ¢ assumem a forma de ordenagio de todo o sistema. A determinagao dos precgos no mercado ilustra 0 processo de soma auto-regulatéria, que facilita a ordem: os vendedores querem receber 0 maior prego possivel pelas suas mercadorias, ¢ os compradores desejam pagar ‘o menos possivel, mas 0 resultado das suas barganhas individuais € normalmente um sistema de mercado estavel e ordenado. Da mes- ma forma, 0s membros individuais da Anistia Internacional traba- Tham em casos especificos de tortura e prisio ilegal, mas a soma dos seus esforcos contribui substancialmente para aquela dimensio da ordem mundial que preserva um minimo de direitos humanos. Veja-se, por exemplo, 0 que aconteceu com um grupo de cidadaos. da Alemanha Oriental que fugiu daquele pais no outono de 1989; como participantes da ordem da Guerra Fria, eles se tinham curva- do previamente proibigdo de cruzar a fronteira entre os paises socialistas e a Europa ocidental, um consenso quebrado pela deci- sia de cada familia de escapar para 0 Ocidente; em poucas sema- nas, © impacto cumulativo dessas decisdes apressou o fim de um sistema de governanga, substituido por outro que se encontra ainda em pleno processo de formagio. Por outro lado, alguns dos entendimentos subjacentes a ordem mundial decorrem de atividades que sav planejadas consciente- mente para manter essa ordem. Na maioria dos mercados, h4 nor- mas e funcionarios incumbidos de monitorar e impedir praticas improprias; a Anistia Internacional tem uma comissio executiva que atribui os casos considerados a determinadas pessoas e publica 18 James N. Rosenau relatérios reguilares sobre o campo dos direitos humanos; durante a Guerra Fria, havia leis e funcionarios da Alemanha Oriental que se valiam do poder de policia para manter o consenso que proibia os cidadios daquele pais de emigrar; da mesma forma, a derrubada subseqiiente desse consenso foi facilitada pelas autoridades da Alemanha Oriental, da-Hungria ¢ de outros Estados, que procura- ram encorajar a emergéncia de uma nova ordem. E nesse ponto, nas dimensoes da ordem impregnadas de intencionalidade, que seus vinculos estreitos com a governanca podem ser percebidos mais facilmente. Embora as exemplos ajudem a esclarecer 0 conceito de gover- nanga e de que forma ele € mais abrangente que o de governo, obviamente nao garantem a solugao de uma ambigiiidade conceitual. Com efeilo, a distingdo entre governanga e governo € os vinculos entre governanga e ordem nao séo-evidentes. Em algumas linguas {o alemao, por exemplo) nao hé sequer uma palavra facilmente identificavel que denote a governanga. A nogio de sistemas inter- subjetivos de ordenagdo sem o apoio de uma autoridade legal ou constitucional € um aspecto tio improvavel dos processos politicos existentes nas culturas que usam essas Iinguas que nao houve a convergéncia para um termo simplificado que designasse 0 con- ceito. Por outro lado, mesmo as linguas em que esse termo existe podem enfrentar dificuldades no uso do conceito, Assim, em in- glés, 0 emprego da palavra governance est preso a uma série de matizes distintas (mas néo incompativeis). Coriforme dissemos anteriormente, certas formulagdes concebem a governanga em termos funcionais, ou seja, em termos das tarefas que precisam ser executadas para manter os entendimentos rotinizados da ordem prevalecente e que podem ou nfo caber aos governos. Para outros observadores, contudo, a governanga esté associada a capacidade de regulamentar esses entendimentos para que eles permanegam como rotinas. Outros ainda associam a governanga as circunstincias em que o poder é exercido independentemente da autoridade do governo. Alguns autores interpretam a governanga como uma for- ma de distribuir valores e consideram que so os governos que operam os mecanismos pelos quais essa distribuigdo é feita. Em Governanca, ordem e transformagao na politica mundial 19 alguns exemplos, a governanca ¢ identificada com o surgimento de sistemas de regras ¢ recursos para a solugao de problemas." ‘A despeito da variedade de sentidos especiais associados a esse conceito, hd uma dimensao da governanga aceita em todos os capitulos deste livro. Uma andlise da “governanga sem um gover- no” nfo exige a exclusio de-governos nacionais ou subnacionai: mas implica uma investigagio que presuna a auséneia de alguma autoridade governamental suprema no nivel internacional. Em outras patavras, 0 conceito de governanga sem um governo leva especialmente ao estudo da politica mundial, na medida em que nesse dominio € conspicua a auséncia de uma autoridade central, embora seja também Gbvio que um minimo de ordem e de enten- dimentos rotinizados esta normalmente presente na conduta da vida mundial. Admitida uma ordem que exista sem uma autoridade central capaz de impor decisdes em escala global, segue-se que a primeira tarefa da investigacio consistira em explorar a medida em que as fungdes habitualmente associadas 4 governanga sio execu- tadas, na politica mundial, sem instituigdes governamentais. Muitos estudiosos da politica mundial inclinam-se a usar o termo “anarquia” para designar a auséncia de uma autoridade cet tral na politica mundial. Para eles , “anarquia” no tem conotagdes. favoraveis ou desfavordveis e nado implica, necessariamente, que a ordem mundial prevalecente seja caracterizada por comogdes € desarranjos extensos. Na verdade, 0 termo “anarquia” € usado descritivamente, indicando a auséncia de uma autoridade central acima dos governos nacionais, capaz de ordenar sua conduta, se necessirio com o uso da forga. Para alguns analistas, contudo, “anarquia” significa a falta de uma estrutura de ordenagio, a ten- déncia para que os atores sigam caminhos préprios e distintos, sem + James N. Rosenau, “Governance without Government: Systems of Rule in World Politics” (Los Angeles, Institute for Transnational Studies, Universidade da Califérnia Meridional, novembra de 1987) investiga ¢ identifica dezesseis situagdes distintas em que a governanga funciona como um sistema de ordena- ao. Uma ampla critica desse ensaio é a de Richard K. Ashley em “Imposing International Purpose: Notes on a Problematic of Governance”, que consta de Global Changes aud Theoretical Challenges: Approaches to World Politics for the 1990s, editado por Erast-Otto Czempiel ¢ James N. Rosenau (Lexington, Lexington Books, 1989, cap. 13). 20 James N. Rosenau levar em conta principios, normas, regras e procedimentos co- muns. Ora, essa implicagio parece altamente questiondvel. Como afirma um observador, apontando a autoridade de muitos tratados, dos precedentes legais internacionais ¢ das organizacdes internacio- aais, “o sistema internacional (a despeito da falta de um governo mundial ou de um regime supremo) esta varios passos distante de ser uma anarquia” Em suma, a governanca e a ordem sio fendmenos clarariente interativos, Como atividades intencionais planejadas para regulari- zat os entendimentos que sustentam os assuntos mundiais, a go- vernanga obviamente modela a natureza da ordem mundial prevalecente, 0 que nao poderia fazer se a estrutura que constitui essa ordem nao 0 facilitasse. Portanto, a ordem é a0 mesmo tempo uma precondigao € uma conseqiéncia do governo. Uma coisa aju- daa explicar a outra, e nenhuma aparece em primeiro lugar. Nao pode haver governanga sem ordem, ¢ nao pode haver ordem sem governanga (a no ser que os periodos de desordem sejam conside- rados uma modalidade de ordem). A governanga, os regimes ¢ as instituigdes Algumas pessoas podem especular se a descrigio que fizemos da governanga difere do conceito de regime internacional que hoje esta em voga no estudo da politica mundial.° Como a governanca, 0s regimes sio concebidos como arranjos ou entendimentos, “conjuntos de principios implicitos ou explicitos, normas, regras ¢ procedimentos decisérios para os quais convergem as expectativas dos atores”,” destinados a sustentar e a regulamentar as atividades que ultrapassam as fronteiras nacionais. Com efeito, como a go- vernanga, os regimes abrangem atores governamentais ¢ nio- governamentais que concordam intersubjetivamente em que a coo- * Robert C. North, War, Peace, Survival: Global Politics and Concepnat Syn- thesis (Boulder, Westview Press, 1990, p. 136). * Vide, por exemplo, Stephen D. Krasner, ed., International Regimes (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1983). ? Ibid, p. 2. Governanca, ordem ¢ transformagao na politica mundial 22 peragio em nome dos seus interesses compartilhados justiica a aceitagao de principios, normas, regras e procedimentos que dife- renciam e dio coeréncia a seus regimes. Portanto, como funcionam sem qualquer autoridade central, os regimes podem ser descritos como formas de governanga sem governo. Nao serio, portanto, 0 equivalente ao que identificamos aqui como a governanga inerente A ordem mundial? A resposta é negativa. Nao, porque, a despeito das semelhangas entre os dois conceitos, eles estio longe de ser a mesina coisa. A definigao das caracteristicas dos regimes, que enunciamos anteriormente, ¢ que € amplamente aceita, tem uma frase adicional que sintetiza essa diferenga essencial: principios, normas, regras ¢ procedimentos de qualquer regime convergem, por definigio, “para uma drea determinada das relagdes internacio- nais”, ou o que tem sido denominado de issue-area, ou seja, “area {ematica”. Ora, 0 modo como entendemos a governanca neste livro tem a ver com a ordem global, nao limitada a uma esfera singular; © conceito refere-se, assim, aos entendimentos prevalecentes nos hiatos entre os varios regimes e, 0 que talvez seja mais importante, aos principios, as normas, as regras e aos procedimentos aplicados quando dois ou mais regimes se sobrepGem, conflitam ou de algum outro modo exigem a acomodagio entre interesses conflitantes. No caso da Guerra Fria, por exemplo, a governanca implicava a atri- buigao de maior prioridade ao regime de controle de armamentos em comparagio, por exemplo, com a livre movimentagio das pes- soas; em conseqiiéncia, as negociagdes sobre o controle de armas entre os Estados Unidos ¢ a Uniao Soviética nunca foram inter rompidas pelos problemas relacionados com a emigracio de judeus deste tltimo pais, a0 contritio do que acontecia com as negs ges comerciais. Em suma, como dissemos, a governanga inerente 4 ordem mundial € 0 conceito mais amplo. Nas palavras de um estudioso da teoria dos regimes, uma ordem internacional é um conjunto de entendimentos man- tidos dentro de um contexto amplo para reger as atividades de ® Ibid.. p. 2. 22 James N. Rosenau todos (ou quase todos) os membros da sociedade internacional em largo espectro de (emas especificos De outro lado, 08 regimes internacionais, em contraste, s4o entendimentos mais especializados relatives a atividades bem definidas, a recursos ow a areas gcogriificas que com freqiiéncia envolvem sé um sub- Conjunto determinado dos membros da socicdade internacional. Assim, falamos em regimes internacionais da pesca da baleia, da conservagio dos ursos polares. do uso do espectro eletromagné- tico, das atividades humanas na Antartica.” © autor dessa formulacao propde a governanga das ordens e dos regimes internacionais como subcategorias distintas das insti- tuigGes internacionais — um estrato conceitual a mais que parece mais optativo do que necessério. As instituigdes implicam a pre- senga de principios de autoridade, de normas, de regras ¢ de pro- cedimentos, correndo assim o risco de ocultar as dimensdes informais, desprovidas de autoridade, que tém tanta importincia no funcionamento das ordens e dos regimes internacionais, Ordem analitica versus ordem normativa A dinamica das transformagdes mundiais € especialmente conducente ao esclarecimento da distingio entre “ordem”, como conceito analftico ¢ como preceito normativo. As mudangas pro- vocam incerteza, e quanto mais dinamicos os processos de mudan- ga maior a incerteza, pois as pessoas ficam apreensivas com a perda da estabilidade anterior e temem que as mudangas possam resultar em condigGes ¢ instituigdes menos satisfatorias do que as antes existentes. Assim, a dinamica da transformagdo leva a que as preocupagées focalizem a desejabilidade dos entendimentos ° Oran R. Young, International Cooperation: Building Regimes for Natural Resources and the Environment (Ithaca, Nova York, Cornell Univ. Press, 1989, p. 13), Governanga, ordem ¢ transformacdo na politica mundial 23 globais emergentes, em comparagdo com os que vio ser substitul- dos. Em outras palavras, a preocupacio normativa aumenta a me- dida que diividas sobre a ordem mundial — os entendimentos fundamentais para lidar com conflitos e perseguir certos objetivos — sobem A superficie na arena politica. No entanto, hi claramente uma grande diferenga entre idemtificar empiricamente esses enten- dimentos subjacentes e, de outro lado, analisar suas conseqiiéncias potenciais ¢ avaliar as respeclivas vantagens e desvantagens. A ordem percebida empiricamente pode solicitar um julgamento, enquanto a ordem normativa pode convidar a uma descrigéo preci- sa; € os dois exercicios intelectuais reservam dificuldaces, pois a fronteira entre eles pode ser obscura ¢ varidivel. Nao obstante, é uma fronteira importante, e os analistas das relagGes internacionais precisam ter todo cuidado ao cruzd-la. Nao ter sensibilidade para distinguir entre julgamentos normativos e observacdes empiricas 6 correr 0 risco de prejudicar uma anilise correta com resultados intencionais ou confundir esses resultados desejados com reco- mendagées empiricamente defeituosas. E possivel que mesmo a sensibilidade mais aguda nao consiga evitar uma certa confusio, j4 que sob certos aspectos a observagio € um empreendimento nor- mativo, mas com certeza essa confusio pode ser mantida em nivel minimo se monitorarmos 0 tempo todo nossa tendéncia para per- mitir que 0 desejo seja o pai das nossas idéias, ou que uma afirma- tiva empitica se transforme em fonte dos nossos julgamentos.'° O problema de distinguir entre as ordens empirica e normativa pode ser bem ilustrado pela questio de saber se os entendimentos mundiais maicados por um grau elevado de desordem devem ser considerados uma modalidade de ordem. Se entendemos por “or: dem empirica” os entendimentos pelos quais os assuntos mundiais Um bom exemplo € 0 World Order Models Project (WOMP), Projeto de Mo- delos da Ordem Mundial que. segundo alguns analistas, violou a linha divisGria entre as ordens empirica ¢ normativa. Argumenta-se que, por buscar propor vi ses normativas especificas da ordem mundial, o WOMP incorpora o raciacinio em favor da ordem em contexto racionalista e cientffico, que implica abjetivi- dade, mas que na verdade esti carregado de valores. Para uma indicagao a res- peito da abordagem do WOMP, veja os ensaios em Saul H. Mendiovitz, ed., On the Creation of a Just World Order (Nova York, Free Press. 1975). 24 James N. Rosenau transitam no tempo, entio € dbvio que uma vasta colegao desses entendimentos pode ser qualificada como formas de ordem. Assim, a historia registra anos de ordem hegemdnica, em que um dnico pais dominava a politica mundial, eras de equitibrio de poder, em que os paises formavam aliangas para contrabalangar sua forga, décadas de rivalidade bipolar, em que dois paises disputavam a lideranca mundial ¢ perfodos de poliarquia, em que muitos paises competiam pela influéncia mundial. Com efeito, um observador identificou oito formas possiveis de ordem, que poderao evoluir no " Qualquer que seja sua forma, uma ordem global pode ser lo- calizada em um continuum que diferencia entre os modelos funda- dos na cooperagio e na coesio e, no outro extremo, aqueles marcados pelo conflito ¢ pelo desarranjo, ou seja, a desordem. Desse ponto de vista, boa parte do século XX, com suas guerras “frias” e “quentes” e disputas ideolégicas, pode ser tratada como a manifestagio de uma ordem internacional, da mesma forma que as condigdes pacificas € relativamente estaveis que prevaleceram durante o Concerto Europeu, no século XIX. Em outras palavras, € possivel conceber qualquer momento da histéria como uma ordem internacional, por mais indesejavel que seja. Muitos analistas, contudo, nfo se sentem confortiveis com essa formulagao. Tendem a associar a ordem com um grau minima, de estabilidade € coeréncia e consideram que os periodos marcados. pela guerra, pela exploragiio e outras priticas nocivas sito situagdes de desordem, de “caos” ou “entropia” — qualquer coisa menos a ordem. Para eles, ordem tem uma conotagao positiva € normativa, embora admitam as vezes que um excesso de estabilidade e coe- réncia possa manifestar um quadro de estagnagéo, que nao deixa lugar para 0 progresso. A distingio entre a ordem empirica e a normativa é também manifesta quando a anélise focaliza questdes de politica relaciona- das com a promogio ou a prevengio de novos entendimentos glo- bais. Os que associam as formas de ordem sistemica com objetivos politicos trabalham necessariamente com imagens de ordem nor- "' Bull, The Anarchical Society, pp. 248-256. Governanga, ordem e transformacao na politica mundial__25 mativa. Podem esforgar-se por recomendar somente agGes basea- das em uma avaliagio empiricamente sadia, mas, ao se deslocarem do campo das avaliagées para o das recomendagées, penetram necessariamente no reino das normas, das ordens que sao institui- das ou reforgadas para valorizar ou reduzir 0 estabelecimento de valores especificos. Preocupar-se com a protegio ou com 0 pro- aresso dos direitos humanos, por exemplo, ¢ imergir nos proble~ mas da ordem normativa, 4 medida que focalizamos os _modos como os entendimentos mundi prevalecentes influenciam os individuos e como a liberdade que estes tém de falar, organizar-se ¢ praticar seus cultos est4 ou pode estar limitada pelas priticas € instituigdes que governam a sua vida. Os estratos da ordem empirica ‘As dimensdes normativas da ordem mundial sao inevitaveis ¢ interpenetrantes; contudo, mesmo assim é possivel discriminar e analisar separadamente as dimensdes empiricas. Lembrando que as observagdes podem transformar-se sutilmente em julgamentos, podemos descrever atividades ¢ antecipar resultados sem chegar a aprovar ou a reprovar as primeiras, a aplaudir ou a lamentar os segundos. Quando menos, € possivel ter mais éxito relativo na suspensao ou na postergagao dos julgamentos. Assim como 0 estu- dioso da teoria normativa esté sempre pronto a caracterizar as qualidades desejaveis e indesejaveis inerentes a uma atividade, a um resultado ou a uma instituigdo, da mesma forma 0 estudioso da teoria empirica esta sempre alerta para o que constitui ou pressagia determinado resultado, atividade ou instituigio, independente- mente da sua desejabilidade. Com efeito, pode-se muito bem ar- gumentar que quanto mais as avaliagbes e as secomendagdes normativas se basearem em estimativas empiricas adequadas, mais provavelmente serio incisivas e efetivas. Em outras patavras, para que os objetivos das politicas seguidas sejam realizaveis e emocio- nalmente satisfatérios, eles precisam ter um apoio minimo nas circunstincias empiricas que cercam os esforgos para executé-las. Essas circunstdncias podem escapar & percepgio dos atores que 26 James N. Rosenau nfo se detenham na distingdo entre a ordem empirica e normativa que buscam compreender ¢ modificar. O que nao significa que reconhecer ¢ antecipar as dimensées empiricas da ordem global seja algo facil de realizar: Separar o empiric do normativo € apenas o primeiro de uma série de passos importantes. O passo seguinte leva-nos & tarefa igualmente dificil de delinear as ordens empiricas em diferentes niveis, de compre- ender a extraordindria complexidade dos assuntos humanos e identificar os estratos da ordem que as sustentam. Ao lado das consideragées normativas, nao hd um conjunto consistente de en- tendimentos que explique como uma politica mundial passa de um dia para 0 outro. Com efeito, os modelos que representam a ordem de nm relacionamento mundial, de uma regiio geografica, de toda a politica mundial, surgem em diferentes locais, em ritmos distin- tos, em formas variadas. Cada forma influencia e & influenciada pelas outras, modelando, assim, um todo orgénico — uma ordem que, com graus variados de sucesso e fracasso, enfrenta desafios, administra mudangas e perdura até que seus fundamentos deixem de ser consistentes com as necessidades, as capacidades, as de- mandas € as praticas dos individuos, Segue-se, portanto, que a ordem mundial prevalecente, qual- quer que seja, em qualquer periodo, consiste em uma diversidade de locais, ritmos de transformagiio e configuragées estruturais do que qualquer ordem internacional. A ordem mundial, que chama- mos também de world politics, “politica mundial”, & concebida de forma abrangentc, cnvolvendo todas as regides, patses, relaciona- mentos internacionais, movimentos sociais e organizagSes priva- das que se dedicam a atividades através das fronteiras nacionais. O escopo e os objetivos dessas atividades podem limitar-se a temas especificos, preocupagées bilaterais ou controvérsias regionais. Na verdade, poucas atividades executadas no palco mundial pre- tendem ter conseqiiéncias que abranjam todo o mundo; no entanto, nao deixam de ser uma parte da ordem mundial prevalecente. Isto as atividades realizadas em lugares diferentes podem no se relacio- nar umas com as outras, € suas repercussdes podem nio se esten- der além de determinadas regides ou de influenciar certos relacio- ttamentos, mas nfo deixam de constituir a expressio de uma ordem 27 Governanga, ordem e transformagao na pol mundial prevalecente, no sentido de que suas proprias limitagdes manifestam uma das caracteristicas com que a politica mundial se desenvolve ao longo da histéria. Dito de outra forma, uma caracteristica central da ordem glo- bal prevalecente é 0 grau de conexiio ou desconexao entre os ato- res do sistema que marca seus diferentes aspectos, Nos séculos passados, por exemplo, a tecnologia do transporte e das comu gées levava ao isolamento dos varios componentes do sistema global, com o resultado de que a ordem prevalecente era sustenta- da por arranjos altamente decentralizados para sua evolugio no tempo. Nao hi divida de que o lado europeu dessas antigas ordens mundiais era dominante, mas sua predominancia sé se tornou efe~ tivamente global em meados do século XIX.'? Contudo, 0 que acontecia nas outras partes do mundo antes da abertura do Extre- mo Oriente-aos costumes curopeus, em meados do século XIX, era seguramente parte da ordem mundial, embora a atengio dos politi- cos e dos historiadores focalizasse principalmente a Europa. A medida que a tecnologia reduziu as distincias geogrificas € sociais, pode-se dizer que a ordem prevalecente se tornou cada vez mais centralizada, com a repercussio das atividades em cada parte do mundo alcangando as outras partes, Hoje, com a tecnologia dos: transporles e-das comunicagdes mais dindmica do que nunca, os problemas do Terceiro Mundo mais aparentes, a globalizagio das economias nacionais mais completa, a ordem prevalecente de- monstra provavelmente um grau de conexiio jamais visto, embora os arranjos que sustentam a presente ordem continuem permitindo a ocorséncia de atividades desconectadas entre si, localizadas no seu escopo e impacto. Assim, por exemplo, a presente ordem glo- bal inclui uma subordem islamica, além da ocidental, dois compo- nentes que funcionam lado a lado em uma relagao dificil, distante, cheia de fricgdes, marcada muitas vezes por atividades descone- xas, assim como por esforgos coordenados de acomodagio. ® Para uma apresentagdo convincente do papel da Europa na ordem mundial dos séculos anteriores, vide William H. MeNeil, The Rise of the West: A History of the Human Community (Chicago, Univ. of Chicago Press, 1963). 28 James N. Rosenau Em suma, concebemos aqui a ordem global como um conjunto Gnico de entendimentos e arranjos, embora estes no estejam as- sociados causalmente em uma dnica matriz estrutural. O “conjunto organico” da ordem mundial presente ou futura sé é “organico” no sentido de que seus varios atores dependem dos mesmos recursos terrestres e todos enfrentam as mesmas condigGes ambientais, por mais nocivas ¢ polufdas que sojam. Pode-se imaginar que as numerosas estruluras que sustentam a ordem mundial desenvolvam-se em trés niveis fundamentais de atividade: 0 nivel ideacional ou intersubjetivo do que as pessoas sentem com pouca clareza, percebem intuitivamente ou de algum outro modo entendem como os arranjos com os quais seus assuntos sio tratados; 0 nivel objetivo ou comportamental do que as pessoas fazem rotineiramente, muilas vezes de forma inconsciente, para manter os arranjos globais prevalecentes; 0 nivel politico ou agre- gado onde se situa a governanga, no qual as instituigdes e os regi- mes voltados para a ordenagio implementam as politicas inerentes aos dois primeiros niveis. O primeiro deles envolve os sistemas de crenga, os contextos mentais, os valores compartilhados e todos os outros “filtros” feitos de altitudes e percepgdes pelos quais transi- tem os eventos da politica mundial antes de provocar reagdes ou inagGes determinadas. O nivel ideacional manifesta-se mais clara- mente nos temas recorrentes dos discursos, dos editoriais, dos livros e de outros meios pelos quais as pessoas que participam das selagdes internacionais ventilam sua compreensio da ordem mun- dial. Exceto durante os perfodos de transformagio, quando € gran- de a incerteza a respeito da evolugio das estruturas da ordem global, esses temas recorrentes tendem a ser largamente comparti- Ihados tanto pelos aliados como pelos adversérios, formando assim um consenso intersubjetivo que uniformiza todos os atores, pren- dendo-os is mesmas premissas sobre a natureza dos entendimentos subjacentes para a conduta dos assuntos mundiais. Dessa perspec- tiva, a Guerra Fria nfo foi sendio um conjunto de premissas, aceitas universalmente, que uniam os Estados Unidos ¢ a Unido Soviélica em uma dispula por influéncia e poder, hostil, competitiva e ideo- logica. Governanca, ordem ¢ transformacio na politica mundial 29 O segundo nivel de atividade que sustenta qualquer ordem mundial consiste nfio no que os atores pensam ou percebem, mas no que fazem de modo regular ¢ estruturado para exprimir sua compreensio ideacional. Eles ameagam, negociam, armam, conce- dem ou de alguma outra forma se empenham em toda uma gama de condulas recorrentes que modelam ¢ relorgam as concepgdes pre~ dominantes da ordem mundial subjacente.'? No auge da Guerra Fria, por exemplo, a exigéncia reiterada pelas superpoténcias de que seus aliados apoiassem suas politicas tornou-se um aspecto habitual da ordem existente, embora, retrospectivamente, se perce- ba que a subseqiiente resisténcia, cada vez maior, a essas solicita- goes eram sinais claros de que a ordem prevalecente comegava a desmoronar. O terceiro nivel de atividade envolve a dimensdo mais formal © organizada da ordem predominante. As instituigdes ¢ os regimes instituidos pelos diferentes atores do sistema, tais como Bretton Woods, 0 Conselho de Assisténcia Econémica Matua (0 Come- con) e as Nagées Unidas, como uma forma de responder a suas inclinag6es ideacionais e comportamentais, sio obviamente cle- mentos que dao forma aos entendimentos por meio dos quais a politica global se desenvolve no tempo. E preciso salientar que, qualquer que seja 0 grau de ordem que caracterize qualquer perfodo histérico, ele resulta da atividade ‘exercida em todos os trés niveis mencionados. Isso fica evidente na andilise do Concerto Europeu, no Capitulo 2, ¢ talvez ainda mais no perfodo da Guerra Fria, que nao teria durado mais de quatro décadas se 0 piiblico ¢ as autoridades nos dois grupos néo com- partilhassem intersubjetivamente a premissa de que os dois lados estavam presos a um processo de competigio agressiva, com 0 3 Por exemplo, o World Event/Interaction Category System (WEIS). um esquema de contetido analitico para criar bancos de dados de eventos, consistindo em 63 tipos principais de aco que os Estados podem tomar na politica mundial, Uma anilise inicial de 5,500 eventos produziu um conjunto de modelos recorrentes, refletindo a extensfo do conflito e da cooperagio prevalecentes em escala mun- dial no ano de 1966, Cf. Charles McClelland e Gary D. Hoggard, “Conflict Patterns in the Interactions among Nations”, em James N. Rosenau, ed., re national Politics and Foreign Policy: A Reader in Research and Theory (Nova York, Free Press, ed. rev., 1969, pp. 711-724). 30 James N. Rosenau objetivo de afirmar-se sobre 0 outro, como também nao teria per- sistido sem a conduta regularizada das autoridades e do ptblico que articulavam, conscientemente ou nio, essa premissa da com- petigio agressiva. Por outro lado, € evidente que a competigao nao se teria sustentado sem a Organizagio do Tratado do Atlintico Norte (Otan ou, em inglés, Nato), 0 Pacto de Varsévia e os nume- rosos arranjos institucionais que davam expressio € dirego aos consensos ideacionais e as rotinas comportamentais dos individuos situados dos dois lados da chamada Cortina de Ferro (ela propria um simbolo da fronteira imposta pela ordem prevalecente). Quan- do 0 curso dos acontecimentos comegou a minat as premissas € as estruturas nos trés niveis, a Guerra Fria rapidamente se desfez, com um desenvolvimento que dos dois lados reforgava reciproca- mente as mudangas ocorridas, apressando assim o fim desse perio- do € 0 inicio da transigao para a nova era, na qual vivemos hoje. Note-se mais uma vez que as atividades em todos os trés niveis sio componentes necessarios para a transformagio. Sem uma percep- Gio crescente compartithada pelos habitantes da Europa oriental de que seu comportamento no podia ser controlado pelos soviéticos, a Guerra Fria nao teria terminado, como também nao terminaria sem a ocorréncia de novas formas de conduta, em que as pessoas se rcuniam nas pragas ¢ subiam o muro de Berlim (um simbolo do cardter obsoleto das fronteiras da Guerra Fria). Da mesma forma, nao teria havido o advento de uma ordem pés-Guerra Fria sem as iniciativas politicas das grandes poténcias ¢ do seu sistema de aliangas, que facilitaram a substituigao da premissa rigida da com- petigio agressiva pela procura menos estruturada de novas rela- Goes de poder. Para os analistas que tém a oportunidade de mergulhar pro- fundamente nas origens da ordem global, essa formulagao tridi- mensional pode parecer insuficiente, pois deixa de distinguir as praticas das fontes das ordens empiricas; argumentam também que ela no explica se uma ordem global é 0 conjunto das atividades regularizadas da politica mundial ou os resultados de tais ativida- des, Poderio perguntar, por exemplo: durante a Guerra Fria, quais as formas assumidas pela ordem mundial daquele periodo? Foram a corrida armamentista, as politicas de dissuasio, a competigio Governanca, ordem e transformacao na politica mundial 31 pela influéncia sobre 0 Terceiro Mundo, as redes de espionagem, a retrica das ideologias que se opunham? Ou terio sido os efeitos dessas atividades — a crise dos misseis de Cuba, os encontros de ciipula sem resultados, as fronteiras fechadas, a proibigio das transfer€ncias de tecnologia, a desconfianga dos piblicos hostis, etc.? Ou tera sido a altitude de profunda suspeita ¢ hostilidade que fazia com que 0 pdblico e as elites se empenhassem em tais ativi- dades, provocando tais resultados? Nao sera preciso fazer um esforgo para responder a essas per- guntas, pois em qualquer ordem mundial as diversas fontes ideacio- nais, os padrées comportamentais e as instituigGes politicas interagem; cada um desses elementos é uma fonte, uma atividade € um resultado com relagdo aos outros dois. Basta acentuar que todas as trés dimensGes sao necessarias, mas nenhuma delas é sufi- ciente para determinar a ordem prevalecente. S6 quando queremos narrar a evolugio € o declinio dessa ordem, ao longo do tempo, € que precisaremos especificar as seqiiéncias temporais de causali- dade. Para o analista, basta focalizar a natureza interativa da dind- mica ideacional, comportamental e institucional, tratando o problema da sua prioridade no tempo como fazemos no caso da pergunta sobre a precedéncia do ovo ou da galinha, que nao per- mite uma resposta clara. . No entanto, evitar as seqiéncias especificas de causalidade nao quer dizer que estejamos minimizando a fora das interagGes multidirecionais entre os trés niveis. Nao se pode negar, por exem- plo, o alto grau em que a inércia e os custos transacionais susten- tam uma delerminada ordem por muito tempo depois da mudanga das condigdes materiais, passando a exercer pressiio pela transfor- magio ideacional, comportamental ¢ institucional, Mas, quando a dinamica da mudanga desafia fortemente a base ideacional da or- dem prevalecente, levando a alteragGes nas atitudes e na orienta- gio, as outras dimensdes dessa ordem estardo debilitadas e, eventualmente, cairio por terra, Por outro lado, se as bases com- portamentais ¢ institucionais de uma nova ordem forem instituidas a despeito da inércia dos velhos habitos, as perspectivas ideacio- nais estarao sob forte pressio para acompanha-las. Em suma, a politica mundial, como os outros dominios da atividade humana, € 32 James N. Rosenau caracterizada por forte tend@ncia para ajustar as crengas ao com- portamento, e vice-versa; portanto, seria um erro equacionar a perspectiva interativa com a auséncia de uma poderosa dinamica causal. E precisamente porque o cariter multidirecional dos fluxos de causalidade pode ser muito forte que uma perspectiva interativa parece preferivel a tentativa de localizé-los em seqiiéncia temporal. Aqui também a Guerra Fria ofcrece uma boa ilustragio. Pelo menos retrospectivamente, é possivel discernir como a conduta, digamos, na corrida armamentista facilitou as priticas institucio- nalizadas dos sistemas de aliangas e dos encontros de cipula, e como esses arranjos institucionais exerceram pressio para formar consensos ideacionais intersubjetivos; como os contextos mentais compartilhados se refletiam na corrida armamentista e estimula- vam os esforgos institucionais para controlar os armamentos, 0 que, por sua vez, reforgava os sistemas de idéias que distinguiam a Guerra Fria dos sistemas precedente e subseqiiente como modali- dades de ordem mundial. Em suma, vista de uma perspectiva intera- tiva, a ordem mundial é indivisivel: € tanto idéia como pratica, estimulo e resultado, premissa e instituigéo. Tudo 0 que contribui para as formas esperadas © regulares com que os eventos aconte- cem é um componente da ordem prevalecente na politica mundial durante um periodo histérico reconhecivel — o enredamento dos adversdrios, a barganha dos aliados, 0 afloramento de temas, 0 declinio das controvérsias. Na verdade, € essa ordem que torna reconhecfvel um perfodo histéri Além disso, do ponto de vista da dinimica interativa, todas as varias dimensGes da ordem mundial podem servir como porta de entrada para os analistas interessados em avaliar a viabilidade de uma ordem determinada. O interesse principal pode ser 0 solo ideacional em que a ordem floresce, mas em pouco tempo esse enfoque levara 0 analista a testar e a exemplificar as idéias do: nantes por meio da conduta e das instituigdes que manifestam con- cretamente aquela ordem. Naturalmente, nada o impede de especializar-se em uma dessas dimensdes, mas, ao fazé-lo, nao poderd ignorar a relevancia das outras. A perspectiva de que as dimensées ideacional, comportamen- tal e institucional da ordem mundial sao de tal forma interativas Governanga, ordem e transformacéo na pol que inibem a identificagao de seqiiéncias causais coloca um pro- blema metodoldgico importante, pois essa concepgao desafia a formulagao de hipéteses que associem de forma sistematica varia- veis dependentes e independentes. Esse procedimento cientifico desvia a atengao da dinamica interativa da ordem global, presu- mindo que certos fendmenos (as varidveis independentes) sio an- teriores no tempo aos outros fendmenos afetados sistematicamente {as variéveis dependentes). Isso pode acontecer no curto prazo, mas pode nao se sustentar na perspectiva de longo prazo que abrange a natureza interativa dessas varidveis e que considera os novos valores nas varidveis dependentes como estimulos sistema- ticos a mudangas nas varidveis independentes originais. Em outras palavras, a dindmica essencial de qualquer ordem global é, na rea- lidade, um conjunto de variveis que sio independentes ¢ também dependentes nos processos continuos que mantém as estruturas da ordem. Ha trés solugdes possiveis para esse problema. A primeira consiste em confinar a analise a hipoteses limitadas ao curto prazo, focalizando relagdes lineares e nao interativas. Assim, os analistas podem, por exemplo, apresentar hipdteses sobre o impacto de de- terminadas premissas ideacionais em modelos especificos de con- duta, deixando para hipéteses subseqientes a questio de como estes iltimos afetam as premissas mediante um processo de feedback, Uma segunda solugao consiste em focalizar empiricamente situa- Ges criticas, casos “dificeis”, para avancar perspectivas tedricas. Se as expectativas contidas nas hipdteses sobrevivem ao teste de um caso “dificil”, com circunstancias cujas varidveis de tal com- plexidade que ele constitui um desafio para 0 exercicio, parecer razodvel concluir que outros casos, mais simples, podem também ser explicados. Varios capitulos deste livro usam alguma forma desse método para testar as proposigGes teéricas apresentadas. Uma terceira solugdo, que se presta particularmente & pers- pectiva de longo prazo assumida por alguns dos capftulos que se- guem, a de evitar o procedimento cientifico de designar variivei independentes e¢ dependentes, substituindo-o pelo método que respeita a complexidade interativa da ordem mundial estimando continuamente 0 modo como uma mudanga ocorrida em um dos 3a James N. Rosenau niveis dessa dindmica pode afetar os outros dois ¢ como em retor- no pode influir no sentido do reforgo ou do desenvolvimento adi- cional da mudanga original. Um procedimento sem ditvida pouco elegante e sujeito a erros, ja que a presungio de miltipla causali- dade pode estimular uma atribuigo de conseqiiéncias irrestrita, apressada e possivelmente errdnea, mas as alternativas existentes para compreendermos de forma mais ampla a natureza da ordem mundial sio seguramente ainda mais improprias. Ordem e¢ transformagdo Se as estruturas ideacionais, comportamentais e institucionais sustentam interativamente a ordem global, 0 que faz com que ela mude? Nio basta responder que alteragdes nessas estruturas pro- vocam transformagées correspondentes na ordem predominante. Esta seria nao sé uma resposta evidente e tautoldgica, mas deixaria de levar em conta a questio fundamental: 0 que esté por tris das mudangas ocorridas na dindmica ideacional, comportamental e institucional. Naturalmente, quando existe uma determinada ordem, essa dindmica funciona como fonte, isto €, ela se alimenta interati- vamente dos trés niveis para manter a ordem. E dbvio que ha fon- tes ainda mais profundas, agindo no sentido de impedir a transformagio do modelo dinamico ou de alterd-lo para que se instale uma nova ordem. Por outro lado, as questées relacionadas com 0 vinculo entre mudanga e ordem nao se esgotam com a identificagao dessas fon- tes mais profundas, subjacentes as estruturas ideacionais, compor- tamentais e institucionais. Surge também a pergunta: a mudanga refletird uma decadéncia ou a reconstituigho da antiga ordem? As transformagGes serao suficientemente basicas para instituir uma nova ordem ou serao limitadas, de tal forma que certas dimensdes da antiga ordem permanecerio intactas? A emergéncia de uma nova ordem mundial significaré uma alteragdo sistémica ov uma mu- danga dentro do sistema? Havera uma diferenga entre as possiveis mudangas no modelo de comportamento dos atores ¢ mudangas na distribuigio de poder entre esses atores? Haverd provavelmente Governanga, ordem e transformagio na politica mundial__35 um hiato de tempo considerivel entre as mudangas, por exemplo, na dimensao ideacional ¢ as dos outros dois niveis? As fases de conflito intenso e generalizado podem persistir por muito tempo ou a ordem predominante nao resistiré se 0 conflito for excessiva- mente intenso e por demais extenso? Sera a ordem um fenémeno ciclico, de tal modo que os periodos conflitivos, marcados pela desordem e pelo cans, sin apenas, momentos de transigio na histé- tia, seguidos depois de pouco tempo por noves arranjos, mais or- denados? Sera possivel criar novas: ordens‘mundiais por meio da imaginagio e da vontade politica, ou sua emergéncia depende mais de fatores que esto fora do controle humano (a dindmica das tec- nologias, as condigdes socioecondmicas modificadas € a transfor- magio das perspectivas psicolégicas)? Como € natural,.nZo ha resposta definitiva para essas pergun- tas. Muito depende do modo como conceituamos a ordem ¢ a sua transformagio."* Quanto mais a ordem mundial for especificada elaboradamente em termos que abranjam fenémenos ideacionais, comportamentais ¢ institucionais, maior a probabilidade de que o delineamento de uma ordem em colapso ¢ 0 surgimento de uma nova ordem se fimitem aquelas raras circunstincias em que a di- nimica dessa transformagiio é vista como a manifestagio de uma decadéncia fundamental, em vez de uma reconstituigéo limitada — como mudangas de sistema em lugar de mudangas dentro do siste- ma, ocorrendo em prazo longo e no precipitadamente, complexas demais para serem atribuidas A vontade politica de uma tinica ge- \ Esforgos importantes para conceitualizar a nogio de mudanca foram feitos por Robert Gilpin, War and Change in World Politics (Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1981); James N. Rosenau, “Global Transformations: Notes for a Workshop on Change'in'the International System”, Emerging Issues, Doc. aca- sional: k (Cambridge, American Academy of Arts and Sciences, novembro de 1989); ¢ John Gerard Ruggie, “Continuity and Transformation in World Polity: ‘Toward 1 Neorealist Synthesis”, World Politics, 35 Ganeiro de 1983), pp. 261- 285. O leitor encontrar compilagies de ensaios sobre o tema em Czempicl € Rosenau, eds., Global Changes and Theoretical Challenges; Ole R. Holsti, Randolph M. Siverson. e Alexandre L. George, eds., Change in the liternatio- nal System (Boulder, Westview Press, 1980): e Barry Buzan ¢ R. J. Barry Jo- nes, eds., Change and the Study of International Relations: The Evaded Dimension (Nova York, St. Martin’s Press, 1981). 36 James N. Rosenau ragao. Além disso, como quer que se detina a ordem ¢ a sua trans- formagio, cada uma dessas transigbes pode resultar de uma com- binagio distinta de condigdes subjacentes, de natureza tecnolgica, sociveconémica e psicoldgica. Em outras palavras, cada ordem mundial floresce ou fracassa em um contexto hist6rico especifico que nao pode ser ignorado © que deve ser levado em conta até mesmo pela farmulagia mais elaborada do conceito de “ordem mundial”. Uma forma de desenvolver visées tentativas, se nao respostas, com respeito as perguntas precedentes, € leva-las ao contexto de um cenirio internacional especifico. Assim, por que terminou a ordem da Guerra Fria? Porque ficou claro que as premissas a ela subjacentes, de competigao agressiva e rivalidade ideolégica, eram imagens mentais e nao realidades objetivas e, portanto, cafram por terra tao depressa quanto o muro de Berlim. Mas, por que a Guerra Fria tinha de terminar em 1989 e néo em 1979, 1969 ou 1959? Por que nio se protongou até 1999 ou até o préximo século? Em outras palavras, presumindo que os acontecimentos de 1989 foram apenas a fase final e mais dramética de um longo processo de colapso sistémico, quando comegou o fim da Guerra Fria? Com 0 advento da Solidariedade, na Poldnia? Com a eleiggo de Ronald Reagan? Com a morte de Leonid Brejnev? Com a produgao em massa de aparelhos de video e o langamento de satélites de TV? Ao formularmos 0 problema das relagGes entre a ordem e a sua transformagio, nesses termos, nossa atengao volta-se para a grande importincia dos interesses ¢ condicdes materiais, como fonte exd- gena da vida e da morte das ordens mundiais. Como ja se expds em outra parte,'* hd uma grande variedade de condiges materiais que podem influenciar as regras que sustentam a governanga sem governo € mantém a ordenagio do mundo. Por outro lado, a trans- formagio das condigées materiais pode provocar o desmoronamento da ordem prevalecente ou, quando menos, a sua reestruturagio. Por exemplo: se uma ordem esta baseada em discrepancias econdmicas crescentes entre os atores, as pressdes em favor da mudanga e da instauragio de uma nova ordem serio amplas € constantes, Do ** Cf. Rosenau, “Governance without Government”. Governanga, ordem ¢ transformacao na politica mundial___37 mesmo modo, se por uma variedade de razécs a distribuigio dos recursos entre os atores principais sofrer uma mudanga substancial, € provavel que ocorram alteragdes correspondentes na hierarquia desses atores, para que ela se mantenha coerente com 0 embasa- mento material. Em larga medida foi o que aconteceu com o fim da Guerra Fria. Embora 0 advento do governo de Reagan e de Gorba- chev tenha contribufdo para esse fim, um fator possivelmente mais fundamental foi a faléncia da economia soviética ¢ a percepgio generalizada, no mundo comunista, de que as premissas da sua ideologia tinham falhas profundas. Os acontecimentos culminaram em 1989 e nao nas décadas anteriores, porque foi necessario todo esse tempo para que a disparidade entre os objetivos da ideologia e a realidade do padrio de vida dos cidadios nao pudesse ser nega- da. Em outras palavras, uma das primeiras mudangas foi a das condigées materiais em que um dos lados da Guerra Fria baseava sua competigao. Os protestos dos trabalhadores poloneses ¢ a fuga dos alemies orientais de varias profissGes foram em parte respos- tas 4 repressio politica prolongada; mas para explicar o que fize- ram nao é menos importante o auge do desespero a que chegaram com a sua situago econémica e o abandono da esperanga de que essa situagdo pudesse melhorar. Outra condigéo material que sofreu uma transformacio, aba- lando os fundamentos ideacionais, comportamentais ¢ institucio- nais da ordem da Guerra Fria, tem a ver com a competéncia analitica dos individuos dos dois lados da fronteira ideolégica. Ajudados pelas oportunidades educacionais em expansio, pela proliferacdo dos aparelhos de video, pela televisio glubal, pelos computadores € por muitos outros produtos da revolugao havida na microeletrnica, em toda parte, as pessoas passaram a explicar os cendrios em termos macroecondmicos, sociais e em fungio das circunstincias politicas do meio em que viviam. Desse modo, elas se tornaram mais conscientes de como, quando e onde podiam contribuir para a combinagio de demandas que atendiam aos seus interesses.'® Assim, nao foi por coincidéncia que a ordem da Guer- "© © Capitulo 10, adiante, desenvolve essa tese. Em James N. Rosenau, Turbulen- ce in World Politics: A Theory of Change and Continuity (Princeton, Princeton 38 James N. Rosenau chegou ao fim nas pragas das cidades da Europa oriental e Soviética. Essa ordem tinha-se baseado, em parte, na presungio ideacional de que as massas aceilavam a necessidade da competigio agressiva das superpoténcias ¢ se conduziriam de acordo com as implicagSes comportamentais dessa idéia; que apoiariam — ou pelo menos nao contestariam — as instituigdes militares, econ6micas e politicas por meio das quais a Guerra Fria era conduzida. O aumento da capacidade do povo em perceber a crescente impropriedade desses arranjos, em um mundo cada vez mais interdependente, modificou uma das condigées materiais bisicas, o nivel da capacitagio humana, do qual a ordem do pés- guerra derivava boa parte da sua forga. Outro interesse exégeno que se modificou e assim contribuiu para apressar 0 declinio da Guerra Fria foi o surgimento de temas de debate piiblico que a estrutura existente nio tinha boas condi- ges de enfrentar. Conforme jd observamos, a dindmica do ambiente poluido, das crises monetarias, dos alaques terroristas, da Aids e do tréfico de drogas propde desafios que ultrapassam as fronteiras nacionais ¢ a rivalidade das superpoténcias; exigem a cooperacio, € nao 0 conflito, e assim aumentaram a demanda por mudangas dos padrées ideacionais, comportamentais e institucionais destinadas a suplementar, ou substituir, aqueles que a ordem mundial sustentara nas primeiras décadas depois da Segunda Grande Guerra. Desse ponto de vista, o acidente na usina nuclear de Chernobil, em 1986, transformou-se em um simbolo do inicio e, talvez, mesmo da fase posterior do proceso que levou ao fim da Guerra Fria, Mudangas de sistema versus mudangas dentro do sistema Descrevemos a ordem mundial como o conjunto de entendi- mentos € arranjos rotinizados, por meio dos quais sio conduzidos 0s assuntos de interesse mundial, ¢ sugerimos a forma como uma determinada ordem entra em declinio ¢ € substituida; permanece Univ. Press, 1990, esp. cap. 13), 0 leitor encontraré uma ampla base de dados em apoio & idéia de uma skill revolution, uma revolugo de capacitacao, entre 08 cidadaos. Governanca, ordem e transformacao na politica mundial __39 em aberto, contudo, a seguinte quest a ordem emergente, que tomou o lugar da anterior, tem os mesmos fundamentos sistémicos ou os deriva da reconstituigio do sistema? Os capitulos seguintes esclarecem bastante esse tema, mas pode ser Util antecipar suas respostas reagindo & pergunta precedente. Para usar uma lingua- gem mais especifica, deverfamos considerar 0 fim da Guerra Fria como mudanea sistémica para uma nova ordem ou uma mudanca dentro do sistema da antiga ordem? Muito depende, naturalmente, de como percebemos e identifi- camos as caracteristicas do sistema global. Se as concebemos em termos amplos, enfatizando a continuagio da competéncia e do dominio dos Estados e do seu sistema anarquico, que Ihes da sobe- rania e igualdade, entio podemos considerar o fim da Guerra Fria € a subslituicio da rivalidade entre as superpoténcias por uma competic¢ao menos concentrada e menos militar entre muitos Esta- dos meramente como uma nova forma da ordem existente. Houve modificacio dos relacionamentos, alteragio das hierarquias e no- vos modelos de interagio, mas afinal-temos o mesmo sistema de Estados, com os mesmos entendimentos basicos para a condugdo dos seus assuntos. Nao ha diivida de que o fim da Guerra Fria trouxe mudangas extensas e profundas, com conseqiiéncias muito importantes para as préximas décadas, mas de acordo com essa interpretagio 0 que houve foi simplesmente uma mudanga dentro do sistema existente.!” Por outro lado, se pomos énfase na menor competéncia dos Estados, na_globalizagao das economias na nais, na fragmentacdo das sociedades em subgrupos étnicos, reli- giosos, politicos, lingiiisticos e de nacionalidade, no advento dos temas transnacionais que levam A criagio de autoridades desse nivel e na maior disposig’o da cidadania em reunir-se em praga piiblica, entio o fim da Guerra Fria e os arranjos subseqiientes para manter a vida global podem ser vistos como a base de uma "7 Para uma formulacao elaborada em apoio & permanéncia do sistema de Estados, vide James Mayall, Nationalism and International Society (Cambridge, Car bridge Univ. Press, 1990, esp. cap, 4: “Nationalism and the International Or- der"), que se pode sintetizar na “concluséo de que o mapa territorial [de um mundo composio de Estados} est4 congelado para sempre” (p. 67), e portanto sé haverd mudangas internas nesse sistema. 40 James N. Rosenau ordem totalmente nova. [ bem verdade que os Estados continuam ativos e mantém sua importincia, mas a forma como participam nos processos da politica mundial tem uma natureza diferente, menos impositiva, 0 que explica a interpretagio de que estarfamos diante de uma mudanga sistémica fundamental.”® Haverd testemunhos claros apoiando uma dessas perspectivas? Ainda nfo, Pode-se dizer que, quando menos, 0 assunto est em aberto. Depois do colapso do império soviético, muitos dos enten- dimentos mundiais de hoje parecem ainda excessivamente fluidos para que se aceite uma ou outra perspectiva. Mas vale a pena repe- tir: muito dependerd de como definirmos os conceitos fundamentais, pelo que diferentes analistas chegario a interpretagdes divergentes, na medida em que alribuam um peso maior ou menor \ competén- cia dos Estados no perfodo que sucedeu a Guerra Fria, 4 forga dos temas transnacionais, ao poder da dinimica dos subgrupos e A nova capacitagio dos cidadios. O fato de que a evidéncia relativa 4 amplitude dessas trans- formages a que estamos assistindo na politica mundial permanece ‘obscura pée em evidéncia um aspecto fundamental dos processos que levam uma ordem global a sofrer mudangas sistémivas ou sub- sistémicas: os dois tipos de mudanga sio tio bésicos que nenhum deles se desenvolve rapidamente. As tltimas fases de uma antiga ordem podem acontecer tio subitamente quanto a queda do muro de Berlim ou dos governos da Europa oriental, mas os processos pelos quais se chega a uma nova ordenagio sio muito mais vaci lantes ¢ complicados. Por que razio? Porque em larga medida os fundamentos ideacionais, comportamentais ¢ institucionais de uma ordem tém raizes em habitos — formas rotineiras, padronizadas ¢ repetitivas de reagir aos acontecimentos —, que sao dificeis de alterar. Eles podem desfazer-se em pouco tempo, quando confron- tados com indicagées indisfargaveis da sua inutilidade, mas coisa bem diferente é a construgio de novas rotinas, adequadas a novas circunstancias, pouco familiares. E preciso tempo para que se ad- quira confianga nas mudangas ocorridas, para que se possa discri- '* Para uma apresentagio ampla dessa perspectiva, vide Rosenau, Turbulence ist World Politics, cap. 10. Governanga, ordem e transformacdo na politica mundial 41 minar oportunidades e perigos nessas mudangas, para que se desen- volva um repertério de respostas diferentes das habituais, para que certas agies & predisposicées sejam repels muita vezes € se tornem regulares. ‘Além disso, se a ordem prevalecente na politica mundial é uma /uman contrivance, uma “maquinagio humana” (para usar uma frase com que se caracterizou o Concerto Europeu), € se seus fundamentos intersubjetivos precisam hoje ter um escopo global, nesse caso, 0 ritmo com que emerge uma nova ordem, ou uma ordem reconstituida, é obrigatoriamente lento. O Concerto da Eu- ropa foi concebido por umas poucas pessoas, enquanto a “maqui- nagio” que vemos agora deve alcancar milhdes e milhdes de pessoas," algumas das quais provavelmente se distanciarao das outras na rapidez com que virio participar da base intersubjetiva das novas estruturas globais. Em suma, vista como um processo de formagio de hdbitos ¢ de consenso, uma ordem global nova ou reconstituida pode muito bem levar décadas para amadurecer. Aplicagées especificas Cada um dos capitulos seguintes explora um aspecto impor- tante da ordem mundial, das mudangas ¢ da governanga, no con- texto das consideragdes precedentes e levando em conta as oportunidades de discernimento proporcionadas pela dinamica de transformagao presente atualmente na politica mundial. No Capi- tulo 2, K. J. Holsti procura desenvolver uma perspectiva do cenarto corrente, examinando as origens, as operagdes e as conseqiiéncias do sistema de governanga que prevaleceu entre as grandes potén- cias européias do século XIX. Desafiando diretamente a teoria da estabilidade hegeménica, segundo a qual a ordem nas relagées internacionais é institufda e sustentada por uma tinica grande po- 9 Na fase inicial da controvérsia de 1990 sobre a unificagdo da Alemania, por exemplo, o chanceler soviético Eduard Shevardnadze propds que © assunto fos- se decidido mediante um referendo de que participariam todos os povos da Eu- ropa, ocidental ¢ oriental. Embora essa proposta nao tenhia prosperado, ela sugere a escala em que se pode formar uma ordem nova ou reconstituida, a2 James N, Rosenau téncia, a hegemon, Holsti demonstra que na politica mundial pode florescer uma “condugiio multinacional”. Sua andlise demonstra como a experiéncia compartilhada do drama napolednico deu um forte impeto as elites da Prassia, da Russia, da Gra-Bretanha e da Austria-Hungria para impedir a repetigio de uma guerra hegem6- nica contra a Franga e evitar as futas e as revolug6es liberais po- pulistas que mais hostilidades entre os Estados provavelmente provocaria, Em conseqiiéncia, 0 estudo de Holsti mostra que a convergéncia de tarefas de governo especificas, de instituigées regras decisérias, de decisGes autoritdrias e capacidade coercitiva criou um sistema de governanga responsivel pelo efeito positivo e independente sobre as relagdes entre as grandes poténcias no século XIX. No Capitulo 3, Mark W. Zacher usa 0 método da comparagio hist6rica para fazer uma aniilise da “decadéncia” do “templo westfali- ano”, isto €, o sistema de Estados que tem condicionado a estrutura ¢ o funcionamento da politica mundial desde 0 século XVII. Za- cher argumenta que o desenvolvimento de instituigées, de regimes, da interdependéncia e dos esforcos regulatérios confirma de forma inescapavel os sistemas de governanca emergentes na politica mundial contempordnea. Os Estados enredam-se cada vez mais no quadro de arranjos e regimes de colaboragéo que modelam a poli- tica internacional de forma muito diferente da que existiu nos Gltimos séculos. E a medida que demonstram sua disposigio de trocar a propria autonomia por outros valores, as premissas sobre a politica mundial que se baseiam na centralidade do Estado sobera no tornam-se cada vez menos aceitaveis. No Capitulo 4, Thomas J. Biersteker explora 0 esiudo da go- vernanga na politica mundial, procurando explicar por que houve recentemente uma convergéncia neoclassica entre os paises sub- desenvolvidos. Focaliza as novas politicas, internas e internacio- nais, com que os paises do Terceiro Mundo esto participando da politica econdmica internacional como base para refletir sobre as relagdes entre distintas formas de ordem (isto é, ardem entendida como um sistema de idéias, convergéncia de condutas, governanga com objetivos determinados) ¢ como um modo de esclarecer a importincia explanatéria especifica de fatores que encontramos Governanga, ordem e transformacao na politica mundial___43 em diferentes niveis analiticos. A hipdtese central de Biersteker € que, se a convergéncia comportamental tende a facilitar a gover- nanga com objetivos certos na economia politica internacional, um grau de convergéncia ideacional (resultado, muitas vezes, de cho- ques sistémicos) tende a preceder a convergéncia das condulas na cadeia causal. Ao mesmo tempo, na andlise final, o triunfo da eco- nomia neoclassica no mundo em desenvolvimento € interpretado como 0 resultado de complexa interagao de varios niveis e tipos de ordem na politica mundial. Como Biersteker, Robert W. Cox preocupa-se especialmente com a dimensio ideacional da governanga, que considera o fun- damento “intersubjetivo” da politica mundial. No entanto, para explorar essa dimensio, ele olha para o passado. No Capitulo 5, examina a governanga sem um governo nos textos de Ibn Katdun, um filésofo islimico do século XIV, como vefculo para delinear um quadro de referéncias destinado a desconstruir os construtos onto- lgicos do “presente que passa”. A tese de Cox € coerente com outros capitulos deste volume, no sentido de que um dos seus ob- jetivos principais € formular um quadro analitico que permitira compreender as ordens, as instituigdes € as estruturas como pro- dutos trans-histéricos, fenomenolégicos, que adquirem um siaius “material” precisamente devido 4 sua difusio intersubjetiva. De outro lado, 0 capitulo escrito por Cox distancia-se dos outros por- que busca tragar uma metodologia nio-positivista para detetar mudangas na ordem mundial. Ao fazer isso, fornece imma base para a agio voltada para a transformagio estrutural da politica mundial, um conhecimento pritico que serve como guia para a atividade politica. A contribuigao da filosofia islimica de Kaldun, nesse particular, consiste na nogio de que os analistas precisam ter cons- ciéncia do condicionamento do periodo histérico dentro do qual trabalham e, a0 mesmo tempo, perseguir principios morais dentro do reino do possivel. As dimensdes institucionais da governanga sem governo ser vem como o foco do Capitulo 6, onde Oran R. Young avalia o efeito causal independente, ou “eficacia”, das instituigGes envolvi- das na politica internacional. O tema do capitulo de Young tem a ver com o papel das instituigdes sociais em moldar tanto 0 com- cs James N. Rosenau portamento dos membros individuais da sociedade internacional como a conduta coletiva resultante da sua interagéo, Assim, em que sentido © comportamento dos Estados responde aos ditados das instituigGes internacionais? Em que circunsténcias a sua con- duta contribui para a implementagio dos requisites implicitos e explicitos dos regimes internacionais? Para o autor, uma institui- fo internacional é “efetiva”, na medida em que suas operagdes podem comprovadamente levar os atores a conduzir-se de forma distinta da que teria sido a sua conduta na auséncia daquela insti- tuigdo ou sob a influéncia de outra instituigio significativamente diferente. Segundo Young, esse nexo fica mais claro nos “casos dificeis”, situagdes desfavordveis A operagiio das instituigdes sociais; estudando uma série de casos, ele identifica algumas varidveis criticas que explicam em boa parte a efetividade relativa das insti- tuigGes. No Capitulo 7, Janice E. Thomson avalia a utilidade da cha- mada state-building theory, a teoria da construgio do Estado, como hip6tese apropriada para compreender a emergéncia da ordenacao internacional. Segundo essa teoria, o que € e deixa de ser regula- mentado no nivel internacional é fungio da vontade dos Estados fortes. A hipdtese é testada por meio da andlise comparativa da natureza dos esforgos de ordenagio internacional em temas como o terrorismo, as tropas mercenirias, o trafico de dlcool, armas e drogas ilicitas. A conclusio é que o valor dessa teoria € nebuloso; ela nao da uma resposta definitiva quanto ao que € possivel regulamentar no nivel internacional, e por qué. Por outro lado, Thomson mostra que se 0 poder de um Estado nao determina plenamente o surgimento e a natureza da ordenagao internacional, em certa medida os Estados poderosos geram a legitimidade ¢ a forma que essa ordenagio vai assumir. Poder-se-ia estar inclinado a admitir a governanca desse tipo como 0 resultado do crescimento gradual das praticas ociden- tais, mas ao que parece as normas da politica mundial derivam mais de conseqiiéncias nin deliheradas da longa histéria de construgio do Estado. Em suma, Thomson conchui que a regulamentagio interna- cional é um fendmeno politico, ¢ nao moral. No Capitulo 8, Linda Cornett ¢ James A. Caporaso exploram abordagens alternativas & governanga sem o Estado, examinando o Governanga, ordem e transformacao na politica mundial__45 ressurgimento de tendéncias para a integraco européia em meados e no fim da década de 1980. As oportunidades criadas pelo pro- grama EC 1992, juntamente com a incerteza e a complexidade relacionadas com os distirbios na Europa oriental e na Uniao So- viética, s4o interpretadas como fatores que emprestam “urgéncia especial” As pesquisas sobre a governanca nas relagdes imternacio- nais, Cornett ¢ Caporaso situam a integragdo européia dentro do discurso sobre a ordem internacional, comparando 0 valor explicati- vo de varias perspectivas teéricas contrastantes: 0 neo-realismo, 0 institucionalismo neoliberal, o funcionalismo € © neofuncionalis- mo. Argumentam que, enquanto cada perspectiva propoe uma explicagao diferente da dindmica fundamental subjacente ao desen- volvimento da Comunidade Européia, na década de 1980, s6 em conjunto clas conseguem captar todas as complexidades ¢ contra digdes dos sistemas de governanga existentes na Europa. Ao exa- minarem os pontos de intersecgao ¢ divergéncia entre as varias teorias, sintetizam os fundamentos necessdrios para uma compre- ensio mais sofisticada dos pontos positivos das visdes alternativas da governanga sem governo e das respectivas debilidades. No Capitulo 9, Ernst-Otto Czempiel baseia-se na tradigio libe- ral que vé a democratizagio gtobal como uma base geral positiva para a convergéncia de idéias, condutas e objetivos. Baseando-se. na proposigao de que os Estados liberais tendem a nao entrar em guerra uns com os outros, propée a hipétese de que as interagdes em uma sociedade global que consista predominantemente em Estados baseados no modelo ocidental terio como resultado um sistema pacifico de governanga. Desse ponto de vista, Czempiel analisa a erosio da ordem da Guerra Fria e faz projegdes e prescri~ Ges para as futuras ordens na politica mundial. O Capitulo 10 afasta-se da premissa amplamente aceita de que a ordem global e suas mudancas séo fendmenos macroscdpicos; explora, assim, 0 papel dos atores do nivel micro no desenvolvi- mento da governanga sem governo. Pode haver transformagGes profundas na natureza da governanga global sem que haja altera- gGes na orientagéo dos cidadios? De forma mais direta, em que medida podemos afirmar que a ordem e as suas transformagées sio conseqiiéncias de mudangas no nivel micro? Sio perguntas com 46 James N. Rosenau dimensdes tanto empiticas come tedricas. No nivel empirico, 0 capitulo sugere que a expansiio da interdependéncia e a skill revo- lution — a revolugio havida na capacitagao dos individuos —, que acompanhou a revolugio microeletrénica, tornaram os cidadaos e suas circunstincias muito diferentes do que eram no passado. No nivel tedrico, mostra como o aumento da capacitagao intelectual e de penetragao dos individuos, em todo o mundo, contribuiu para as transformagées que ocorreram em nivel global. Embora o aumento da capacitagio micro nio seja considerado como determinante da exata natureza e diregao da ordem macroscépica e suas mudangas, os estudiosos da politica mundial precisam reconhecer que as pes- soas estio sempre se adaptando, nio permanecem constantes, € que os desenvolvimentos nos niveis micro e macro sio interativos com relacio aos processos de governanga sem governo. Em conjunto, os capitulos que se seguem afirmam uma obser- vagio feita por Inis Claude, no sentido de que o mundo tem menos governanga do que a maioria dos Estados, mais do que alguns de- les e provavelmente menos do que necessita.”” Os autores desses capitulos concordam em que os sistemas de governanga funcionam no nivel global e podem basear-se em crengas, habitos e institui gGes profundamente enraizados, embora permanegam sempre sus- ceptiveis a mudangas; e que podem oferecer a base para a cooperacio e vantagens coletivas na politica mundial, Talvez ainda mais importante para uma disciplina que ha muito se fundamenta na premissa de que a governanga est vinculada as prerrogativas do poder soberano, esses capitulos enfatizam um desafio: a pro- posta de que ha muito a aprender com a natureza, 0 escopo € os limites da governanga em um contexto no qual as agdes dos Esta- dos, sua soberania e seu governo nao sio precondigées para a for- ma como os eventos acontecem, ™ Nio consegui localizar a citagio exala, mas a memoria me diz que ela se en- contra em alguma pagina de Inis L. Claude Jr., Swords into Plowshares: The Problems and Progress of international Organization (Nova York, Random House, 3 ed. rev., 1964).

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