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O HOMEM, O ESTADO E A GUERRA Uma aniilise te6rica Man, the State and War A theoretical analysis Kenneth N. Waltz Tradugio ADAIL UBIRAJARA SOBRAL Revisto da tradugio MARINA APPENZELLER Martins Fontes 'Sa0 Paulo 2004 CAPITULO DOTS A primeira imagem Conflito internacional ¢ comportamento bumano Existem a fraude © a asticia, e delas advém as guerras, Coxrocio De acordo com a primeira imagem das relagdes internacionais, o local das causas importantes da guer- ra reside na natureza ¢ no comportamento do homem. As guerras resultam do egoismo, de impulsos agressi vos mal canalizados, da estupidez. As outras causas S40 secundarias e devem ser interpretadas a luz desses fa- lores. Se essas so as causas fundamentais da guerra, a climinagao desta tem de vir da elevacdo e do escla. recimento dos homens ou de medidas que assegurem seu reajustamento psicossocial. Essa avaliagdo das cau- sas € dos remédios tem dominado os escritos de muitos estudiosos sérios dos assuntos humanos, de Confiicio aos pacifistas de nossa época. Este também é o tema Principal de muitos cientistas do comportamento’, As prescricdes associadas as andlises da primeira imagem nao tém de exibir um contetido idéntico, como |. Ha uma extensa discussio sobre eles no cap. ts, adianve, oy uns poucos exemplos vio indicar. Henry Wadsworth Longfellow, movido a expresso poética por uma visi- ta ao arsenal de Springfield, registrou os seguintes pen samentos Were nalf the power that fills the world with terror, Were half the wealth bestowed on camps and courts, Given to redeem the human mind from error There were no need of arsenals and forts. ISe metade do poder que enche 0 mundo de tern, Se metade das despesas da casera e das cone Servisse para livrar a mente humana do ert, Nao seriam necessérios arsenais e fortes.] Est implicita nesses versos 2 idéia de que as pes- soas insistiriam na adogao das politicas corretas caso soubessem quais so. O instinto das pessoas € bom, embora sua atual credulidade as possa levar a seguir falsos lideres. Quando se atribuem as dificuldades atuais a uma deficiéncia de conhecimento, a educacao se tor: na o remédio para a guerra, Trata-se de uma idéia dis- seminada. Beverly Nichols, pacifista que escreveu nos anos 1930, julgava que, se Norman Angell “pudesse ser nomeado ditador educacional do mundo, @ guesra se dissiparia como 4 névod matutina numa so geracio” Em 1920, uma conferéncia dos Amigos, que nao dese javam confiar apenas no desenvolvimento ineteca conclamott 0s povos do mundo a substitu a busca dos interesses pessoais pelo espirito de sactifico, de coope- racio e de confiana’, Mais ou menos na mesma €poce € com o mesmo estado de espitito, Bertrand Russell via 2. Nichols, Gry Havoek p. 164 3. Hirst, The Quakers in Peace and n pp: S215. 235 © declinio dos instintos de posse como condigao para 4 paz, Para outros, o aumento das chances da paz exi Re ndo tanto uma mudanga dos “instintos” quanto uma canalizacao de energias que no momento sto despen- didas na loucura destrutiva da guerra. Se houvesse algo @ que os homens dessem preferéncia em lugar de guer- rear, suas batalhas cessariam inteiramente. Aristofanes era dessa opinido, Se as mulheres de Atenas se recusas, sem aos seus maridos e amantes, seus homens teriam de escolher entre os prazeres da alcova e as experién- Cias revigorantes do campo de batalha. Arist6fanes jul- gava conhecer bastante bem os homens e as mulhe- res de Atenas para fazer do resultado uma conclusao inevitdvel. William James seguia essa mesma tradicao, A guerra, na sua opinido, se acha arraigada na natureza belicosa do homem, que € o produto de uma tradi¢ao secular. Sua natureza nao pode ser alterada, nem seus impulsos suprimidos, mas podem ser desviadlos. Como altetnativas ao servico militar, James sugere recrutar os jovens do mundo para minerar carvao e tripular navios, Para construir arranha-céus e estradas, para lavar louca € roupas. Embora sua avaliagdo de quais canalizagdes bastariam seja a um $6 tempo menos realista e com in- tengdes mais sérias do que a de Arist6fanes, sua solu. cdo é claramente do mesmo tipo" As prescrigdes variam, mas todas t¢m em comum a idéia de que, para se conquistar um mundo mais pa cifico, os homens tém de ser transformados em sua Perspectiva moral e intelectual ou em seu comporta- Russel, Political ideals. p. 42. De uma mancint ou de out, ‘ose pensamento se repcte nos muitos escrito de lode Russell sabre 5. James, “The Moral Equivalent of War". Im: Memories and St dies, pp. 262-72, 280, 26 mento psicossocial. Pode-se no entanto concordar com a andlise das causas da primeira imagem sem admitir a possibilidade de prescrigdes praticaveis para sua eli- minacdo. Entre os que aceitam uma explicacao da guer- ra da primeira imagem, ha tanto otimisias como pessi- mistas, os que pensam que as possibiidades de pro- gresso So tao grandes que as guerras vao acabar antes do desaparecimento da proxima geragio e os que pen- sam que as guerras vao continuar ainda que levem to- dos nés & morte. “Otimista” & “pessimista” sd palavras enganosas, mas € dificil encontrar melhores. Se os de- finirmos simplesmente de acordo com as expectativas, © que corresponde to uso popular, € dificil, sendo im- possivel, colocar uma determinada pessoa numa ou na outra categoria. Ha graus de otimismo e de pessimismo, © a mesma pessoa pode ser otimista com relacdo a al gumas coisas ¢ pessimista com respeito a outras. Os significados filos6ficos dos termos so mais claros e de maior utilidade. Pessimismo em filosofia € a crenga de que a realidacle € imperfeita, pensarnento expresso por Milton e Malthus nas afirmag®es citadas no capitulo an terior. Momentaneamente & possivel conceber restri: Ges mais ou menos adequadas ds forcas do mal, mas a expectativa de um resultado geral e permanentemen- te bom é impedicla pela constante consciéncia dos efei tos viciosos de uma falha essencial". O otimista, por outro Indo, acredita que a realidade € boa e a socieda~ de € basicamente harmoniosa. As dificuldades que tm assediado o homem sao superficiais e momentinea Essas dificuldades continuam a existir porque a hist6 ria € uma sucessdo de momentos: mas € possivel mod ficar a qualidade da historia, ¢ os mais otimistas acham que isso pode ser conseguido de uma vez por todas com grande facilidade. Volta-se as expectativas, mas as expectativas baseiam-se em concepgoes de mundo di tintas. Cumpre assinalar que o pessimismo acerca das chances de um sucesso definitivo, a eliminacio da guer 1a, por exemplo, nao equivale a alegar que nada pode ser feito com relacdo ao nosso apuro atual. © pessimis- ta pode ter mais esperangas do que o otimista quanto 40 adiamento da guerra que ameaca o amanha; 0 oti- mista pode acreditar que nao vale a pena fazer nada que fique aquém da aplicaco da solucao que supos- tamente vai levar ao sucesso definitivo e completo. O pessimista merece 0 epiteto porque considera o suces- so definitivo impossivel, mas nao é preciso considerar © epiteto como um oprébrio. No Ambito de cada imagem, ha otimistas pessi- as concordando com as definicdes das causas ¢ di vergindo sobre © que se pode fazer com relaco a elas, se € que se pode fazer algo. Além disso, a consideracio ctitica de uma determinada imagem pode ser uma base insuficiente para formar um conjunto geral de expecta- tivas, j4 que a propria imagem pode deixar a desejar. Isso ficard evidente quando buscarmos compreender as sucessivas imagens, Neste capitulo, consideramos pri- mordialmente aqueles que aceitam a >roposigio de que, para entender a recorréncia da guerra, € preciso examinar antes de mais nada a natureza e o comporta- mento do homem e que, ao examini-los, identificam 05 defeitos inextirpaveis por meio dos quais os males do mundo, inclusive a guerra, podem ser explicados, No préximo capitulo, consideraremos alguns dos mui- tos que, examinando as mesmas causas, confiam que elas podem ser manipuladas ou contro.adas a fim de produzir, se nao uma condicao definitiva de paz, a0 me- nos um notavel decréscimo da incidénea da guerra. mis 28 Quando escreveu que “tudo 0 que pode ser dito ‘em favor de um equilibrio de poder 86 pode dito por que somos perversos”, Jonathan Dymond, um pacifista do comeco do século XIX, elaborou uma declaracao que tanto otimistas como pessimistas endossam’. Os otimistas véem a possibilidade de ransformar os pet versos em bons e de acabar com as guerras resultantes da atual politica de equilibrio de poder. Os pessimistas, ainda que aceitem que a origem do equilibrio de po- der e da guerra é a natureza humana, véem pouca ou nenhuma possibilidade de o homem se corrigit. Ao con- tririo, eles concedem uma posi¢io honrosa 2o equili- brio de poder, porque, para usar a figura de Dymond, ele pode de fato evitar que os “tigres” se despedacem uns aos outros. E, se de vez em quando nao evita, ain- da assim € melhor uma profilaxia deficiente do que nenhuma. / Otimistas ¢ pessimistas concordam em sua anélise da causa, mas, divergindo quanto a possibilidade de al- Terar essa causa, vém a ser os mais amargos criticos uns dos outros. Reinhold Niebuhr, tedlogo que nos tiltimos vinte € cinco anos tem escrito tantas palavras sbias sobre os problemas de politica internacional quanto os specialistas académicos no assunto, critica os utopis- tas, tanto liberais como marxistas, com freqiléncia e com um efeito revelador. O realismo politico, alega, € im- possivel sem que se tenha uma idéia real da natureza do homem*. Todos, naturalmente, julgam suas prép teorias realistas. £ 0 caso dos otimistas, que também julgam que as basearam numa concepgao correta do homem. A dissidéncia de Niebuhr baseia-se no pensa- 7. Dymond, The Accordancy of War with tbe Principles of the Christianity p. 20 : 8, Nichube, Cbristian Realism and Poluical Problems, p. 10h 29 mento de que eles desconsideraram a potencialidade do mal em todos os atos humanos. Eles supoem que © progresso segue uma linha reta, e até ascendente, quando na verdade cada avanco no conhecimento, cada inovacdo técr , tfaz em si tanto a potenciali- dade do mal como a do bem. © homem amplia seu controle sobre a natureza, mas os mesmos instrumen- tos que prometem a seguranca com relacdo ao frio € A fome, a reducdo da carga de trabalho e o aumento do tempo de lazer permitem que alguns homens escravi- zem ou destruam outros. O homem, ser consciente de si, percebe seus limites. Estes sdo inerentes. Igualmen- te inerente € seu desejo de superi-los, O homem é um ser finito com infinitas aspiragdes, um pigmeu que se julga um gigante. A partir de seu interesse pessoal, ele dlesenvolve teorias econdmicas e politicas ¢ tenta fazer com que sejam aceitas como sistemas universais; nasce ¢ € criado na inseguranga e procura a seguranca abso- luta; € homem mas se considera um deus. A sede do mal € 0 ego, e a qualidade do mal pode ser definida como o orgulho’. Essa concepcdo, naturalmente, nasceu bem antes de Niebuhr, Na tradigao crista, ela é afirmada em termos clssicos por Santo Agostinho. Fora dela, é claborada na filosofia de Espinosa. Nos escritos politicos do século XX, € refletida de modo mais claro e coerente nas obras de Hans Morgenthau. Esses quatro autores, apesar das 9. Nichuhr e Edely, Doom and Dawn, p. 16; “0 esforeo hua fo de tomar absolutes nossos valores parciis que constitu sempre © pecalo definitive da vida humana; e ele sempre resulta no mais sangrento dos conflitos humanos.” (Usei, aqui e em outros lugares, spenals parte do livin eserita por Niebuhe.) CE, Nicbuly, The Nature and Destiny of Man, |, pp. 137, 150, 177, 181; ¢ “Is Social Conflict Inevitable", Scribner's Magazine, XCVIM, 1935, p. 167 @ essa conclusao, Santo Agostinho observou a impondncia da auto- Cam aniGto na hierarquia das motivacdes humanss Quando vemos que mesmo os mais infelizes “temem Morrer, € preferem viver na desgraca a acal anata uae fica suficientemente dbvia", pergunta Unico requer; o direito natural, uma afirmagao do que Gls Permite logicamente. © homem que vive de ann clo com a razao demonstra tanto comgem cone no- breza. Isto é, ele se empenha em preservat ae mesmo gm conformidacle com os ditames da razao, bem coms, Ranaiudar 08 outros homens e uni-los a sina amine Mo se trata de uma descricio do comportamente ofa 1 Ene AROstinho. City of God, wad. Dods, lomo X, cap, wi 2 chino, this pare WV. prop sxe ota | Por een as cto natural soberano, todo homem hlga ue ¢ hon queé poste, sisea lt OPte vantagem de acordo com sua prope oe Poneto, vings-se dos males que Ihe infligem ¢ emperhe SEER Sauilo que ama e em destuir aquilo que ence CAs Se 4 he Chief Works 9f Benedict de Spinoza at police 4,TBeeleco-Pottico Tretse {wid bras, Trot teoligéco- politic, S40 Paulo, Martins Fontes, 2003) A Ponies Treatise © The BOS. As referbncias a volumes e paginas Sere datos paréare- 31 2103, mas do comportamento idealmente racional, « Perdue sao deveres que o homem imagen ;COMO Score com os otimistas dhe primeira rane #880 leva a0 anarquismo, “todos assim deve- coms Pores em todos os pontos. as mentes ¢ o5 vintee 9 Ge t©dos deveriam formar, por assim dizer, uma lnica mente e um tinico corpo, todos, com uma tinica iecacle, sem necessicade de uma autoridade po- ltica que os controlasse e dirigisse' Em vez de ser 0 fim do pensamento Politico de Espi- nosa, este € apenas seu comeco. Todo homem busca rennin, de acordo com Espinoss cada eu fia em favor de roa Preservacio, autopreservagae & auto-realizacao tendem, Homnanlt m2 proporeto direta da presenga da azdo na vid de cada brapem cr ODS. pare, prop. vie aps. ew par V. props. 1 Libis Part V, prop, xvi, not, Para a andige Precedente, Testo sil @ Parte I, prop: tix, not, pc I Props. xxix: Prevlgice Putco Tenia caps. Vwi oh ste Conse te Aono, City of Go tad Bode hur xv cap. at como bem, ons homens, ow a6 menos hes erfeitamente bons, nao podem guerrear.” ane ee 32 de fato promover seus proprios interesses, mas, por in- felicidade, nao ce acordo com os ditames da razao. Santo Agostinho explicou isso por meio do pecado ori- ginal, 0 ato que constitui o motivo da deficiéncia tanto da razao como da vontade humanas". Na filosofia de Espinosa, essa explicagio religiosa torna-se uma pro- posigdo da logica e da psicologia. Ele constr6i um mo- delo de comportamento racional: sao racionais 0s atos que levam espontaneamente 2 harmonia em esforgos cooperativos para a perpetuagao da vida. Nao € essa a condicéo em que encontramos o mundo. O fato de ‘6s homens serem falhos torna-se assim um dado em- pitico que nao requer explicagio de fora; na verdade, ndo pode haver uma explicacao vinda de fora, porque Deus se tornou natureza", Os homens sio governados nao pelos preceitos da pura razio, mas por suas pai- x6es, Governados pela paixio, slo levados ao conflito Em vez de ajudar uns aos outros, seu comportamento é destruir uns acs outros. Cada homem procura ser 0 primeiro entre os homens e se orgulha mais do mal que fez ao outro do que do bem que ele fez a si mesmo. A razi0 pode moderar as paixdes, mas isso € to dificil, que quem pensa que os homens “podem um dia set induzidos a viver de acordo com os puros € simples ditames da raz40 deve estar sonhando com a Idade do Ouro poética ou com a encenagao de um drama’ ‘A explicacao dada por Espinosa para os males poli- ticos e sociais se baseia no conflito que ele detecta en- 15. Tid. livro Xl, cap. vis Livro XI, cap. i 16. Ftbies, parte |, proms. xvi, xxix: “Os individuos, suas mentes| compos, nao so senda moos de Deus; e Deus nada mais & do que a toulidade da natureza 17, Political Treatise, cap, i, Secho 5. 33 tre a raziio ¢ a paixao. Santo Agostinho, Niebuhr € Mor- genthau rejeitam o dualismo explicito no pensamento de Espinosa: © homem inteiro, mente e corpo, é, de acor- do com eles, falho. Apesar dessa diferenca, permanece © substrato do acordo; porque cada um deles deduz os males politicos dos defeitcs humanos. Niebuhr, por exemplo, rejeita a assercao de Marx de que a explora- ¢40 do homem pelo homem € causada pela divisio da sociedade em classes, comentando que tanto as di- visbes de classe como a exploracao resultam de uma “tendéncia que habita o corzco humano", E Morgen- thau vé “a ubiqiiidade do mal na acao humana” como procedente da ansia humana inextirpavel pelo poder © wansformando “Igrejas em organizacoes politicas revolucdes em ditaduras ... 0 amor pelo pais em im- perialismo””, Como sugere a assergio de Morgenthau, a explica- 0 que basta aos males dorésticos serve também para explicar os atritos e as guerras entre Estados. Santo Agostinho atribui ao “amor [do homem] muitas coisas vas ¢ danosas”, uma longa lista de tribulagdes huma- nas, que vao de brigas e roubos a assassinatos © guer- ras". Embora proclame a paz como a finalidade do Estado, Espinosa descobre que os Estados so inimi- gos naturais e, nessa condicao, tém de estar constante- mente em guarda uns contra os outros: nao porque os TK, Nichuhr, Christianity ancl Power Politics. pp. 1456. Cl regs, The Power of Non-Violence, pp. 131-2: °O temor © a ambicto sto as raizes da guerra, bem come do capitalise.” A comparicio dlessa alegacio com as de Niebubr e Morgenthau torna clara a seme. isos clos otimnisias © a de meus exticns, ut, Scientific Man, pp, 1945. 20, Santo Agostinho, City of Ged. trad, Deals, live XM, cap. x of five XIV, eap Estados nunca sao honrados e pacificos, mas porque podem, a qualquer momento, tornar-se desonrados beligerantes; nao porque a cooperacao se ope aos seus maiores interesses, mas porque a paixdo obscurece com freqiléncia os verdadeiras interesses dos Estados e dos homens. E Niebuhr escreve simplesmente que a guerra tem sua origem em “fontes sombrias € incons- cientes da psique humana Reflete ainda mais a semelhanca entre otimistas pessimistas 0 fato de ambos muitas vezes parecerem acreditar que a guerra s6 poderia ser eliminada se pelo menos os homens pudessem ser transformados. Esse pensamento é expresso indiretamente por Santo Agos- tinho, quando escreve, a pari de sua sabedoria can- sada do mundo: “Porque ainda que nunca tenham fal- tado ... nacdes hostis fora de Império contra as quais guerras foram e so travadas, supondo no entanto que lessas nacées nao existissem, a propria extensio do Im- pério produziu guerras ainda mais odiosas.™" A idéia de que a forma politica € apencs um fator causal secun- dario € apresentada mais diretamente por Niebuhr. “A possibilidade ideal de toda comunidade histérica”, es- creve ele, “é uma relacio fraternal de vida com a vida, individualmente dentro da ccmunidacle coletivamen- te entre esta e outras.” Mas mesmo “a paz interna de uma comunidade € sempre em parte coercitiva [e] ... & paz externa entre as comunidades € prejudicada pelo conflito competitivo”. Internamente, € necesséria uma oligarquia para sobrepujar os perigos da anarquiia; ex- ternamente, ¢ exigida a forca para afastar 0s inimigos estrangeiros. Ambas as necessidades provém do peca~ 24, Niebuhr, Beyond Tragedy p. 22. Santo Agontinhe, €ily of God, tad, Dod, lero XIX, cap, vi 35 do e permanecem como necessidades “porque os ho- mens nao so bons o suficiente para fazer o que deve ser feito em favor do bem comum em bases puramente voluntarias"*. Onde Espinosa justapoe a razio € as pai- xdes humanas que a toldam, Niebuhr postula o amor contra © pecado que 0 esmaga. O pecado é a causa, € © amor, se pudesse vencer 0 pecado, seria a cura. “S6 um amor que perdoa, baseado no arrependimento, é adequado para curar a animosidade entre as nagoes.”" Avaliagao critica Os pessimistas da primeira imagem aceitam a per- tinéncia do ideal dos otimistas ao mesmo tempo em que rejeitam a possibilidade de realizé-lo. Assim, Espi- nosa contempla os prazeres do Estado de anarquia paci- fica que seria possivel caso os homens fossem verda- deiramente racionais, e Niebuhr aceita 0 mito cristao do Jardim do Eden ou 6 mito estéico da Idade do Ouro, como descrigées de padrées de aco que permanecem 4 um $6 tempo impossibilidades na hist6ria e uma fon- te de inspiracdo para os homens mortais*. Mas qual a aplicabilidade de um ideal impossivel? Esta claro que, se pudessem chegar a um acordo quanto as suas metas € fossem perfeitamente racionais em seus esforcos para 23, Nichuhr, Rall and History, pp. 219-20; c, Moral Mean and Jmmoral Society. 93: °O homem ra ua, com sua Ania de poder & {Ge prestigi fusiada por suas prprias limitacdes e pelas neces des da vida socal. projet seu ego sobre sua nacio e inditamente 24, Niebubs, An Interpretation of Christian Hthics, pe 128 7 tian babies, ee bristian Realism and Political Problems, pp. 1167. 25, Por exemplo, Niebub, interpretation of Christian Eibies, 4; as end Histor: pp 143-4 36 alcancé-las, os homens sempre perceberiam e segui iam a soluedo mais praticével para qualquer problema. Se fossem realmente amorosos, estariam sempre dis- postos a “dar a outra face”, mas na verdade ndo iriam ter a oportunidade de fazé-lo, Nenhuma dessas asser- Ges condicionais descreve © comportamento efetivo dos homens ~ eles nem sto perfeitamente racionais nem verdadeiramente amorosos, nem, acrescenta 0 pes- simista, serao um dia. Assim, Morgenthau rejeita o pres- suposto da “bondade essencial ¢ infinita maleabilidade da natureza humana” explica 0 comportamento poli- tico por meio do comportamento do homem, por ve- zes simplesmente cego € outras vezes muito astutamen- te egoisia, um comportamento que € 0 produto ine- gavel e inevitavel de uma natureza humana que “nao mudou desde a época em que as filosofias clissicas da China, da India e da Grécia se empenhavam por des- cobric” as leis da politica” ‘A atribuicao das mazelas politicas a uma natureza fixa do homem, definida como tendo uma potenciali- dade inerente para o mal, assim como para o bem, € um tema que costuma repetir-se no pensamento de Santo Agostinho, Espinosa, Niebuhr ¢ Morgenthau. Ha tum sentido importante em que essa atribuicao se jus- tifica. Dizer que 0 homem age de maneira contraria a sua natureza é prima facie’ absurdo, Os eventos da his- t6tia do mundo nao podem set isolaclos dos homens que os fizeram, Mas a importincia da natureza huma- na como um fator na andlise causal de eventos sociais é reduzida pelo fato de que « mesma nanureza, qualquer que seja sua definigao, tem de expkcar uma infinita 26, Morgenthau, Polis among Nations, pp. 3-4. Cf. Niebuhr Beyond Tragedy: p. 30 © Bm katim no original, do) 7 variedade de eventos sociais. Qualquer um pode “pro- var” que © homem é ruim simplesmente apontando evidéncias de seu carater vicioso € estapido. Vincular eventos indesejados, como 0 crime e a guerra, a esse cardter vicioso e estipido ¢ entdo tarefa simples. Embo- Ta isso seja insuficiente para estabelecer a validade da primeira imagem, mesmo assim € dificil, se nao impos- sivel, refutar tal interpretacdo particular de uma ima- gem tentando confronté-la com eventos. Tentar con- fronté-la é mergulhar numa imensa gama de fatos e ju 208 de valor. Provas do comportamento do homem, co- mo estupros, assassinatos € roubos, atestam que ele € mau? E 0 que dizer das contraprovas constituidas pelos atos de caridade, de amor ¢ de auto-sactificio? A por- centagem de crimes numa determinada sociedade pro- va que 0s homens que a compdem s4o maus? Ou é espantoso que, nessas circunstancias, ndo haja mais crimes? Pode ser que tenhamos to poucos crimes € Wo poucas guerras porque os homens, sendo bons, se ajustam surpreendentemente bem a circunstincias que sio inerentemente dificeis! Dizer, portanto, que certas coisas acontecem porque os homens sio estlipidos ou maus € uma hipétese aceita ou rejeitada de acordo com © estado de espirito de cada autor. Trata-se de uma as- sercdo que as evidéncias nao podem provar nem refu- tar, porque o que fazemos com as evidencias depen- de da teoria que sustentamos. Como assinalou Emile Durkheim, *o fator psicolégico é demasiadamente ge- ral para predeterminar o curso dos fenémenos so- ciais. Como nao requer uma determinada forma social em vez de outra, ndo pode explicar nenhuma delas"”. Tentar explicar as formas sociais a partir de dados psi- 27. Durkheim, The Rules of Sociological Metbod, trad. Solovay & ‘Mueller, p. 108, 38 cologicos € cometer o erro do psicologismo: a andlise do comportamento individual usada de modo acritico para explicar fendmenos de grupo. Sem uma compreensdo da natureza humana, di- zem-nos com freqiléncia, nfo pode haver :eoria da po- litica. Aplicando essa alegacao, Niebuhr escreve que as estratéyius puliticas", que invariavelmentc envolvem “a contraposicao da forca 4 forca”, se torram necessa- rias devido ao “cardter pecaminoso do homem™. Dei- xando de lado o problema de concordar ou nao com essa afirmacio, podemos perguntar que diferenca faria concordar ou discordar. A natureza humana pode ter sido em algum sentido a causa da guerra de 1914, mas, da mesma maneira, foi a causa da paz em 1910. Entre esses anos, muitas coisas mudaram, mas ndo a nature- za humana. A natureza humana € portanto uma causa apenas no sentido de que, se fossem de algum modo inteiramente diferentes, os homens nao precisariam de absolutamente nenhum controle politico. Esta conside- racdo traz 4 mente o corredor que, quando interpelado por que perdeu a cortida, respondeu: “Corri devagar demais,” A resposta, ainda que correta, nio tem muita utilidade. Uma resposta mais titi] pode ou nao ser pos- sivel. Seria possivel perguntar ao corredor como ele treinou, que tipo de calcados usou, coro dormiu na noite anterior e se controlou adequadamente a veloci- dade em cada etapa do percurso. As respostas a essas perguntas, embora nao afetem as capacidedes inatas do atleta, podem oferecer pistas para um melhor desem- penho futuro seu. Seria tolo prescrever um regime ali- mentar para o atleta sem levar em conta suas caracte- tisticas fisicas, mas concentrar-se obsess.vamente nos fatores invaridveis que afetam o seu desempenho pode DA, Nichuhe, Christianity and Power Politics p. 4. 39 desviar a atengao dos fatores que podem ser manipu- lados. Do mesmo modo, podemos rotular a natureza humana como a causa basica ou principal da guerra, mas trata-se, de acordo com aqueles que aqui conside- ramos, de uma causa que a engenhosidade humana nao pode afetar. Espinosa reivindica explicar 0 comportamento hu- mano tomando fatores psicolégicos como referéncia® Mas a busca de causas € uma tentativa de levar em conta as diferencas. Se os homens estivessem sempre em guerra, ou sempre em paz, nunca surgiria a ques- tao de por que h4 guerra, ou por que hé paz. O que explica a alternancia de periodos de guerra e de paz? Muito embora a natureza humana desempenhe sem davida um papel na geracao da guerra, ela néo pode por si s6 explicar tanto a guetra como a paz, exceto por meio da assercao simples de que a natureza do ho- mem ¢ tal que ele em algumas ocasides guerreia ¢ em outras nao. F essa afirmacao leva inevitavelmente a uma tentativa de explicar por que as vezes ele guerreia € outras vezes ndo, Se a natureza humana é a causa da guerra ¢ se, como nos sistemas dos pessimistas da primeira imagem, é fixa, nunca podemos alimentar esperancas de paz. Se a natureza humana é apenas uma das causas da guerra, entéo, mesmo mantendo- se © pressuposto de que a natureza humana é fixa, podemos levar a efeito uma busca adequada das con- digdes da paz, 29, “Pago saber", escreve ele, “que toda essa minha demonstra ‘¢io procede da necessidade da natureza humana... ~ quero dizer, do esforgo universal de todos os homens em alcancar a autopreserva fo." Seu esforgo na politica foi “deduzir da prépria condicao da na- tureza humana... coisas que melhor se coadunassem com a pr Political Treatise, cap. ti, seg 1, cap. i, seo 4, “0 Essas criticas sao muito prejudiciais aos sistemas ctigidos pelos pessimistas da primeira imagem? Sao de fato bem prejucliciais na medida em que os Pessimistas kentaram de fato deduzir conclusdes politicas especifi- cas diretamente de uma suposta natureza do homem, Nao € possivel fazer isso, mas, com seu método, po- lem ser feitas outras coisus bem imponantes Onde Durkheim assinala que, como nao exige formas sociais epbecificas, 0 fator psicol6gico néo pode explicar ne. nihuma delas, podemos muito bem imaginar Sante Agos- tinho ou Niebuhr replicando que, pelo contririo, ele explica todas elas. “Césares e santos", escrevenn Niebuhr, “tornam-se possiveis pela mesma estrutura do carater Rumano.” Ou, mais uma vez: "A natureza homens é Yo complexa que justifica quase todas aS suposicoes Fengncctes com 08 quis se iniciam uma investigagao cientifica ou um contato humano Corriqueito.”™ Essa as- sercdo admite uma parte, enquanto nega outra, da in- tenc¢ao critica de Durkheim. A fatureza humana pode nio explicar por que, num Estado, o homem ¢ cca, vizado e, em outro, é relativamente livre, por que num dado ano hi guerra e cm ouuw uma Paz relativa, Pode, Poréin, explicar as necessarias imperfeigoes te todse ae formas sociais € politicas, Assim, Niebuhr admira Marx Por ele ter exposto as contradigoes da democracia bur- Suesa ¢, ao mesmo tempo, critica a ilusao marxista de Ne uma mucanca das formas venha dar origem a uma wopia terrena", E Santo Agostinho, longe de sugerir AWE, Como Ocorrem guerras no Ambito de um Estado mundial, a organizacao politica ¢ irrelevante, pretende 20. Nias, Christianity and Power Plites,p. 157; Does Chit ation Need Religion? p. 41 31. Id, Christianity and Power Politics, cap, 11 pelea dicaclo por um conjnnta de tenciemene exibido Eslos essimistas: por um lado, desenvotne, uma pol tica © uma economia sem contetido; por outro, intro. dluzir dominios de causacto além de Psicologia do ho- pee tit de obter contesido. A primein ¢ ilustrada Pela critica de Niebuhr a Santo Agostinho. Embora ale- impor frvios & vontade pessoal do soberanens Mas 0 Préptio Niebuhr por vezes trai um habia similar, Por Tan Pio, S288 Comentitios sobre altherdeden con- trole da economia © sobre a relagao entre a €conomia © @ politica derivam mais de sua Posigao teolégica do due de um exame detido dos problemas ¢ das formas econdmicas € politicas. Embora seus comentarios gerais 3 Niebub, Chrisian Realism cand Poltical Problems, p27 E Chnstianity and Power Potties pp. 40. 2 ttacdo de Niebuhr na finitude do homem levou a algu- mas descobertas brilhantes, como costuma acontecet quando se atenta com cuidado e constincia a um tinico fator, mas também levou a juizos que poderiam com a mesma facilidade ser invertidos". E € possivel inver- té-los com base numa defini¢ao similar da natureza hu- mana, bem a maneira pela qual Niebuhr discorda po- liticamente de Santo Agostinho ao mesmo tempo que aceita sua concepcao de homem. Para a compreensao do significado da anilise das relagdes internacionais oferecida pela primeira imagem, a segunda tendéncia dos pessimistas € mais importan- te, Embora julgue ter conseguido explicar os fendme- nos politicos baseando-se nas qualidades inerentes 20 homem, Espinosa também afirma claramente que, em condigées diferentes, 05 homens tém um comporta- mento diferente. Quando nao esto unidos, tém de es- tar constantemente em guarda uns contra os outros; quando vivem no ambito de uma comunidade, co: ‘tumam gozar de certo grau de paz ¢ seguranga. Sem as restrigdes Co governo, assinala Santo Agostinho, os homens se matariam uns aos outros até extinguir a es- pécie humana. O governo organizado pode ser um Nicbuhe, The remy of American History sap, +: The Chit. dren of Light and the Children of Darkness, cap i, Reflections onthe End of an Bra, passim. Em termos diferentes, Thompson faz. aficma do semelhiante, Ver “Beyond National In of Reinhold Niebuhr's Theory of International Politics”, Review of Po- Utes, XVI, 1955, pp. 185-6: e "The Political Philosophy of Reinhold Niebuhi’. i: Kegley e Bretall, ongs., Retmhold Niebuhr, His Religious, Social and Political Thought. pp. 169-73, Arthur Schlesinger |r. dew alguns exemplos que destacam as qualidades imprevistas dos juizos rest: A Critical Evaluation de Niebuhr sobre os politicos contemporlineos © suas politicas. V Reinhold Niebubr's Réle in American Poliieal Thought ancl Life™ fn tid. pp. 137-43. 6 ‘ator funclamental para que a morte seja substituida pela Possibilidade de se chegar a uma idade avancada com relativa seguranca e felicidade. Santo Agostinho e Espi- Aosa reconhecem isso implicitamente, sem nunca ad- miti-lo explicitamente, Niebuhr e Morgenthau enfren- tam mais diretamente o problema do relacionamento das causas entre si. Niebuhr distingue explicitamente as causas primarias das causas secundérias. “Todas as so- lugOes puramente politicas ou econémicas para o pro- blema da justiga e da paz lidam com as causas especi- ficas € secundarias do conflito e da injustica’, declara le, “Todas as solugdes puramente religiosas lidam com as causas ltimas € primordiais.” Embora os proponen- tes de um tipo de solucdo costumem excluir 0 outro, 0 dois tipos slo necessarios". Niebuhr deixa claro, por exemplo, em sua critica a Santo Agostinho, que uma compreensio realista das doutrinas cristas exige que os homens se preocupem com graus de mérito nas insti- tuigdes sociais e politicas. Nenhuma delas pode ser per- feita, mas as imperfeicdes da democracia sao infinita- mente preferiveis as do totalitarismo. Sendo a justica perfeita impossivel, os homens preocupam-se com a ponderacao de possiveis paliativos, em lutat em favor dos que prometem um pouco mais de justiga ou liber- dade, de seguranca ou de bem-estar, ¢ tentam evitar os que possam levar a um pouco menos. Para Niebuhr, impossibilidade da perfeigao terrena ndo justifica a des- Preocupacao agostiniana, encontrada em Lutero, Hob- bes e Karl Barth, com as qualidades relativas de formas © politicas alternativas®. 34. Niebuhr e Eddy, Doom and Dau, p. 6; c. Leaves from the Notebook of a Tamed Cyne, pp. 88-91 85. Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, 1. pp. 220 Seif andl the Dramas of History. pu 129. The “ Essa intensa preocupagio, de cardter pratico, com des de um pouco mais ou um pouco menos tem causas “secundérias’ ques © interessante efeito de levar a para o centro do paleo. Seria possivel dizer que, de sua causa basica, Niebuhr deduz uma maxima: nao espe re demais. A partir de sua identificagdo das causas se- cundiarias, ele tira suas outras conclusdes: 0 que exata- mente esperar em diferentes condigdes, que condicdes devem ser mudadas a fim de minimizar os efeitos inde- sejados e produzir outros e, de um modo geral, quais tém de ser as regras de conduta para o cidadao ou po- litico consciencioso. ‘A preocupacio demasiada com a causa “princi- pal” do conflito afasta-nos de uma andlise realista da politica mundial. A causa basica € a menos manipulé- vel entre todas as causas. AS causas que de fato expli- cam as diferencas de comportamento devem ser pro: curadas em outro lugar que ndo na propria natureza humana. Niebuhr reconhece este fato quando escreve que “o apuro especifico da civilizagdo moderna nao causado, num certo sentido, pela pecaminosidade da natureza humana ou pela gandncia humana, A gandn- cia do homem coletivo tem de ser admitida na ordem politica". Mas € possivel organizar 0 poder sob 0 g0- verno, ¢ as pretensdes de um grupo ou de um Estado podem ter como contrapartida as assergoes de outro". De uma correta compreensio das causas secundarias vem a chance real de paz. O mesmo movimento de atribuigdo de um peso maior as causas secundarias em relacdo as principais é evidente em Morgenthau — guer- 36. Nieuby e Eddy, Poom and Dawn, p. B 37. Niehubs, Discerning the Signs of the Tomes, pp. 71 Moral Man and Immoral Society, p. 272 045 “6 ‘2. partir da ansia do homem por poder, diz ele, paz a Partir do governo mundial®. E, sendo o governo mun. dial impossivel no momento presente, Morgenthau como Niebuhr, defende de maneira convincente 4 ne. Serial incontornavel da politica do equilibrio de Talvez algumas observagdes restritas acerca do per- sistente debate entre os “realistas” € seus criticos onary ‘ais claro 0 significado pratico dos comentarios a res, Peito dos pessimistas da primeira imagem. Como Mon. genthau recebeu de certo modo menor atencao na ‘asso precedente e como € em tomo dele que se tava a batalha, vamos nos concentrar nele e em seus critics nas paginas a sequi Morgenthau teconhece que, dada a competicao por bens escassos, sem ninguém servindo de atbitro, se. gue-se uma luta pelo poder entre os competidores, @ ve, portanto, pode-se explicar a luta pelo poder sem Teferéncia ao mal que nasce com o homem, A luta pelo poder acontece simplesmente porque os homens dese. jam coisas, nao porque haja algum mal em seus de. Sejos. Ele considera esta uma das das raizes do con. ito; mas, mesmo quando a discute, parece dirigir-se inconscientemente para a “outra raiz do conflito ¢ do concomitante mal" — “o animus dominandi*, 0 dese- jo de poder". 1580 ¢ ilustrado por uma assercio como a seguinte: “O teste do sucesso politico € 0 grau em que se consegue manter, aumentar ou demonstrar 0 Proprio poder sobre os outros." O poder aparece 38. Morgenth tions, pp. 477, 481 39. Morgenthau, Politics among Nations, parte IV. * Em latim no original. (N. do) 40, Morgenthau, Scientific Man, pp. 192, 196, Scientific Man, pp. 187-203; Politics among Na- 46 como um fim em si mesmo, ao passo que uma maior @nfase na primeira raiz da discérdia politica creditaria a0 poder o carter de instrumento necessario ao suces- so nas batalhas competitivas. Mas Morgenthau: consi- dera muitas vezes o esforgo pelo poder inerente aos homens como um dado mais basico do que as condi- cOes casuais em que ocorrem as lutas pelo poder. Isso é indicado por sua afirmacao de que “num mundo no qual o poder conta, nenhuma nagdo em busca de uma politica racional pode optar entre renunciar a0 poder € querer o poder; e, se pudesse optar, a Ansia por po- der do individuo ainda nos confrontaria com seus de- feitos morais menos espetaculares mas ndo menos pre- mentes™ Aqui temos duas idéias: em primeiro lugar, a de que as lutas pela preferéncia surgem em situacdes com- petitivas e, na auséncia de uma autoridade capaz de li- miitar os meios usados pelos competidores, é introduzi- da a forca; em segundo, a de que as lutas pelo poder surgem porque os homens nascem com a ansia de poder. Quais as implicagdes para a politica internacio- nal dessa explicacao dual? Quem aceita a segunda idéia vai definir o interesse nacional como poder, uma vez que os homens buscam naturalmente 0 poder. Quem aceita a primeira, também vai definir o interesse na- cional como poder, mas dessa vez porque, em certas condigdes, 0 poder é o meio necessério para garantir 0 fins dos Estados. Num caso, o poder é um fim; no outro, um instrumento. As linhas de andlise ficam obs- curecidas; porque, caso se revele que o poder € um meio necessdirio, este assume inevitavelmente algumas das qualidades de um fim. A adogio da primeira ou da “4 Thid, p. 200. 0 grifo & de Waltz a7 segunda explica¢ao, ou de uma mistura das duas, pode esse caso fazer pouca diferenca quanto as conclusdes politicas a que se chega. Pode todavia confundir o ana- lista e desconcertar seus criticos. Os realistas tendem a aceitar a idéia de uma dico- tomia clara entre duas escolas de pensamento, Isso fica implicito na afirmacao de Niebuhr que acabamos de citar, a de que a base de todo realismo politico € uma concepcao sofisticada do homem, ¢ na definicao da con- dugao do governo por Kennan como “uma lamentivel tarefa.. delegada a sociedade civilizada, para nossa grande infelicidade, como resultado da natureza iracio- nal do homem, de seu egofsmo, de sua obstinagio, de sua inclinago a violéncia’*. Esta explicito na assercao. de Morgenthau que o pensamento politico moderno se divide em duas escolas: os utopistas, com suas filoso- fias otimistas do homem e da politica, e 08 realistas, que véem que 0 mundo “€ 0 resultado de forcas inerentes @ natureza humana”. Esta também evidente na distin- so de Gerald Stourzh entre aqueles que julgam que © progresso da razdo e da ciéncia torna 9 governo ca- dla vez mais desnecessario e “os que sustentam que hé um elemento inextirpavel de egoismo, orgulho e cor- rupedo na natureza humana” e que, portanto, “se re- cusam a conceder a raz4o € aos ‘principios cientificos’ um papel tdo vital nos assuntos politices"®. Os governos, as manipulagdes politicas e os equi- librios de poder podem ser necesstios em parte por causa da paixao e da irracionalidade do homem, mas 4B Kennan, Realities of American Foreign Palicy, p. 8, 45. Morgenthau, "Another ‘Great Debate’: The National Interest of the United States’, American Political Sctence Review, XLVI, 1952, Pp. 961-2; Stourzh, Benjamin Prantlin and American Foreign Policy, pp. 1-2 48 também o _gens politicas em duas categorias ¢ enganosa, pois tem ‘como base uma afirmacio incompleta das causas do conflito e das conseqiientes necessidades da politica, A dicotomia costursa ser igualmente aceita pelos criticos dos realistas. Numa resenha do livro de John Herz, Po- Intical Realism and Political Idealism \Realismo politico € idealismo politicol, Quincy Wright comenta os preten: sos realistas da seguinte maneira: “Logo, quando se diz que os Estados buscam o poder como seu valor supre- mo, levanta-se de imediato a questio filoséfica: 0 poder deve ser o valor supremo dos Estados? O ‘realista’ res- ponde que sim, afirmando que os Estados dever per- seguir seus interesses nacionais, ¢ o supremo interesse nacional é 0 progresso da posicio de poder do Estado. No entanto, ele nao estd afirmando um axioma eviden- te por si mesmo, mas uma norma ética, € uma norma ética que de modo algum é incontroversa.”" Isso pode ser aceito como critica a Morgenthau, mas ndo a Herz; e, mesmo como critica a Morgenthau, comete 0 erro de aceitar as confusdes que ele mesmo introduziu. ‘Quando se fica :ntrigaclo com assercOes como as cita- das, nas quais se afirma que um esforco de poder arrai- gado no homem é a causa principal das mazelas do mundo, pode ser justo dizer que Morgenthau fez uma afirmacao normativa que se pode aceitar ou rejeitar de acordo com a inclinag’o que se tenha. Mas, segundo a andlise de Herz, os Estados buscam suas posicées com: parativas de poder por causa do “dilema da seguranca’, nascido de uma condicao de anarquia, com que se de- frontam®. O poder aparece antes como um instrumen- 10 por outros motivos. A divisdo das aborda Wright, “Realism andl Idealism in intemational Politics”, World Politics, V, 1952, p. 122. 45, Herz, Political Rewlism and Political ideatism, cap, i ses i 0 to possivelmente titil do que como um valor supremo que 0s homens so levados por sua propria natureza a buscar. Logo, a questo nao € saber se o poder deve ou nao ser “o valor supremo dos Estados’. Tem-se, em vez disso, de perguntar quando ele sera o valor supremo, se em algum momento for, e quando é mero meio. A tentativa de deduzir uma filosofia da politica de uma suposta natureza do homem leva a preocupacao dos estadistas com © papel da ética sem oferecer cri- tétios para distinguir 0 comportamento ético do nao- ético, Essa dificuldade se reflete nos comentirios de um critico preocupado com o problema de dar contetido & ditetriz proposta por Morgenthau para a politica ex- terna, “o interesse nacional”. Grayson Kirk sugere que ‘uma origem dessa dificuldade [com relacdo a0 con- teido] reside na falta de vontade de admitir que muitos de nossos formuladores de politicas, durante este pe- riodo (da histéria da politica externa americana] rotu- lado de ut6pico, incumbiram-se de expressar os inte resses nacionais dos Estados Unidos como prineipios morais, nao por serem te6ricos confusos, mas porque acreditavam honestamente que nossos maiores interes ses nacionais esto na aceitacAo mais ampla possivel de certos principios morais e legais como diretczes da con- duta internacional”®. Se alguns estadistas “acreditavam honestamente” ou ndo que estavam exprimindo nossos interesses nacionais quando buscaram obter “a aceita- ¢4o mais ampla possivel de certos principios morais € legais como diretrizes da conduta interracional”, € mera questo de preocupagio pessoal. £ mais impor. tante perguntar se as condigdes da politica internacio- 46, Ki pon In Search of National Interest”, World Politi, V, 1952, 50 nal permitem que os estadistas pensem e ajam a partir de principios morais ou legais que podem ser vidveis € aceitaveis na politica domestica. Todos sao a favor do ‘interesse nacional”, Nao se apresenta nenhuma po litica com a alegacdo de que, embora va prejudicar 0 proprio pais, vai ajudar outros paises. Os problemas sio de cunho avaliativo, para decidir quais interesses sio le- gitimos, de carter pragmatico, para decidir quais po- liticas vao servir melhor a esses interesses. Para resol- ver esses problemas, € necesséria uma compreensio da politica e do homem — e a compreensio da primeira ndo pode ser extraida da compreensio do segundo, Em um grande némero de ocasides, Morgenthau exibiu admirdvel sofisticacdo e discernimento em seus comentarios politicos. Ele analisou com habilidade as implicagdes da anarquia internacional e distinguiu a acdo possivel internamente da acio possivel externa- mente, mas € s6 culpa dos seus criticos eles terem di- ficuldades para conceber a relacao pretendida por ele entre suas concepcdes do homem e suas teorias po- Iiticas Conclusao. A maldade do homem, ou seu comportamento im- proprio, leva & guerra; a hondade individual, se pudes- se ser universalizada, significatia paz: eis 0 enunciado conciso da primeira imagem. Para os pessimistas, a paz & a um s6 tempo uma meta € um sonho ut6pico, mas outros Ievaram a sério 0 pressuposto de que € possi- vel uma reforma dos individuos suficiente para trazer ao mundo uma paz duradoura. Os homens sav bons problemas sociais nem politicos ~ esta € Jogo, nao h SL (0 verdadeira? A reforma dos individuos, se realizada, curaria as moléstias sociais e politicas? A di- ficuldade reside obviamente na palavra *bom". Como definir bom"? “Sao boas as pessoas que agem espon- taneamente em perfeita harmonia umas com as outras.” Eis uma definiclo tautologica, mas mesmo assim reve- ladora. © que 05 analistas, tanto os otimistas como os pessimistas, da primeira imagem fizeram foi: 1. perce- ber o conflito; 2. perguntar-se por que o conflito ocorre 3. atribuir a culpa a um trago de comportamento ou a um pequeno ntimero dele: Os otimistas da primeira imagem traem uma inge- nuidade politica que vicia seus esforcos de construcao de um mundo novo ¢ melhor. Seu fracasso vincula-se de modo direto a uma visio do homem que é simples € agradavel, mas errada. Os pessimistas da primeira ima- gem desmantelaram argutamente os castelos de areia dos otimistas, mas tiveram menos sucesso em seus es forcos de erigir os edificios titeis mas necessariamente nao inspiradores que tém de tomar seu lugar. Eles opu- seram-se a uma teoria da politica assentada numa de- finicao otimista das capacidades do homem ao indicat que os homens ndo so aquilo que a maioria dos paci fistas € muitos liberais pensam que sao, Niebuhr e Mor- genthau dizem aos otimistas: vocés entenderam errado a politica porque avaliaram erroneamente a natureza humana. Este é, de acordo com eles, 0 verdadeiro erro dos liberais”. Em vez disso, deveriamos dizer um erro de muitos liberais. Um erro mais importante, em que al- guns, porém de maneira alguma todos, liberais incorre: 47. Niebuhr, Reflections on the Bnd of an Bra, p. 48%; Morgenthau Scientific Man, passim. Para uma andlse ampli do pensamento liberal polfuca doméstica e internacional, ver, adiante, cap, quatro. 32 ram, consiste em exagerar a importincia causal da na- tureza humana; porque, como 0 proprio Niebuhr assi- nala em uma declaracdo jé citada, a natureza humana € tao complexa que pode justificar qualquer hipétese que se possa considerar. Nao obstante, os pessimistas da primeira imagem a0 menos oferecem uma valiosa ad- verténcia, ignorada com demasiada freqiiéncia na his- toria moderna, contra esperar demais da aplicacao da raza0 a problemas sociais € politicos, E este é um exem- plo de um possivel resultado dil da andlise da primei- ra imagem. Embora demonstrem a utilidade da primeira ima gem, Santo Agostinho e Espinosa, Niebuhr ¢ Morgen- thau também ajudam a deixar claros os limites de sua viabilidade. Assumir a posi¢io de que os homens po- dem se tomar bons e assim fazer com que as guerras cessem, ou a posicao de que, como os homens s40 maus, a guerra € males semelhantes nunca terdo fim, pode levar a consideragao da estrutura social e politi ca, Se mudar a natureza humana resolve o problema, € imperativo descobrir como efetuar a mudanca. Se a qualidades ruins do homem levam as guerras, € impe- rativo preocupar-se com maneiras dle reprimir essa mal- dade ou de compensi-la. £ comum que, entre aqueles que esperam que uma melhoria do comportamento humano traga a paz ao mundo, influéncia das insti- tuigdes sociopoliticas fique soterrada sob a conviccao de que 0 comportamento individual € determinado mais pela inspiracao religiosa e espiritual do que pelas circunstancias materiais. Com relacdo aqueles que vin- culam a guerra a defeitos inerentes ao homem, o impe- to aparece mais claramente na diregao oposta. O con- trole de homens rapaces requer mais forga que exor- tagao. As instituigdes sociopoliticas, especialmente se 0 3 autor em questdo tem uma orientagio para este mun- do, tendem a passar para o centro do palco. O pressu- posto de uma natureza humana fixa nos mesmos ter- mos do qual tudo o mais deve ser compreendido ajuda a afastar a atencéo da natureza humana ~ porque esta, nos termos de tal pressuposto, ndo pode ser alterada, a0 passo que as instituicdes sociopoliticas podem.

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