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) | : K 25, n. 3, 1982 ISSN 0011-5258 ___ REVISTA DE CIENCIAS SOCIAIS Uma publicagdo do INSTITUTO UNIVERSITARIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO. Apresentacaio 265 Cartas 267 INTERPRETACOES SOBRE O BRASIL TRADICIONAL E CONTEMPORANEO Seis Interpretagdes sobre o Luiz Carlos Bresser Pereira 269 Brasil Crise e Transiggo: Sérgio Henrique Abranches 307 Uma Interpretagao do Momento Politico Nacional Elites Agrérias, Elisa Maria Pereira Reis 331 State-Building e Autoritarismo A Trajetéria do Pragmatismo Maria Regina Soares de Lima — Uma Anilise da Pol ftica Gerson Moura 349 Externa Brasileira Realinhamento Politico e Olavo Brasil de Lima Junior 365 Desestabilizag&o do Sistema Partidério: Brasil, 1945-1962 O Brasil no Conselho de José Murilo de Carvalho 379 Estado: Imagem e Modelo. Sumério do Volume 25, n° 1,2e3 4039 (English language table of contents on page 407) EDITORA CAMPUS ELITES AGRARIAS, STATE-BUILDING E AUTORITARISMO* Elisa Maria Pereira Reis INTRODUGAO Este trabalho tem por objetivo central esbocar, de forma sumdria, um conjunto de proposigGes tedricas que, com maior ou me- nor grau de previsibilidade, orientaram um projeto bastante amplo que empreendemos sobre o papel das elites agrérias na constitui- ¢Ho de um padriio de moderizagao autori- téria no Brasil.’ Na primeira parte, partiremos de uma breve apresentacdo da problemdtica de in- vestigaco. Apresentaremos a seguir 0 mo- delo tedrico que nos pareceu mais afim a referida problemdtica, qual seja, aquele proposto por Barrington Moore quanto ao papel de “senhores e camponeses na cons- trugdo do mundo modemo”? Acrescenta- remos ent&o algumas modificag6es tedricas que nos pareceram pertinentes para tornar 0 modelo mais fértil. ‘A segunda seeao serd dedicada a um retrospecto da experiéncia histérica brasi- leira, no perfodo que vai da aboli¢éo do trabalho escravo a revolugao de 30, a luz das proposigdes te6ricas sugeridas anterior- mente. Finalmente, na terceira parte do tra- balho, serd conferida énfase a andlise his- torico-comparada enquanto instrumento de compreensfo teérica de processos singula- res de um lado, e enquanto recurso util na propria atividade de teorizagao de outro. Nesse sentido, procederemos a uma breve comparacdo entre o Brasil e a Alemanha, salientando paralelos e contrastes entre es- sas duas experiéncias. Os propésitos reconhecidamente ambi- ciosos da discusso proposta parecem-nos justificdveis na medida em que desde jé fi- que explicito seu cardter meramente explo- * Trabalho apresentado na Reuniao do Grupo de Trabalho “Elites Politicas”, durante o V Encon- tro Anual da Associaggo Nacional de P6s-Graduacao e Pesquisa em Ciéncias Sociais, Friburgo, 21 a 23 de outubro de 1981. Cambridge, MIT, Tese de Doutorado, 1979. Elisa Pereira-Reis, “The Agrarian Roots of Authoritarian Modemization in Brazil, 1880-1930”, Barrington Moore Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy, Lords and Peasants in the Making of the Modern World, Boston, Beacon Press, 1967. dados ~ Revista de Ciéncias Sociais, Rio de Janeiro, Vol, 25, n° 3, 1982, pp. 331 a 348. ratério. E a partir dessa relativizagao aprio- ristica que deve ser entendida nossa preten- sdo de colocar teoria e andlise histérico- comparada como dimensdes simultaneas e interdependentes do conhecimento de fend- menos sociais.* Nesse sentido, partimos do suposto de que o exame da trajet6ria singu- lar brasileira ganha sentido e clareza a par- tir de seu enquadramento em um arcabou- 0 tedrico macro-histérico, que funciona muito mais como instrumento heuristico do que como proposta légica de teste do real. Ao mesmo tempo, reconhecemos tam- bém como objetivo explicito o intuito de usar a discussio do caso brasileiro para, através da andlise comparada, apontar pos- siveis revisOes tedricas que contribuam por sua vez para aclarar processos hist6ricos particulares. A busca de explicagées para a persis- téncia de elementos ndo-democrdticos na ordem politica brasileira tem sido um desa- fio constante na literatura, sobretudo entre aqueles que véem 0 autoritarismo como al- go persistente na histéria do pafs e nao ape- nas como algo efémero, transitorio. Assim, de uma perspectiva normativa, Azevedo ‘Amaral identificava como um dos proble- mas nacionais mais graves a importacdo de formas pol{ticas liberais incompativeis com a realidade nacional? No mesmo sentido, Oliveira Viana denunciava o que considera- va fiiteis tentativas de democratizagao da ordem politica brasileira. Racionalizando a necessidade de um sistema autoritério, diria ele: “O erro de nossos reformadores politi- cos tem sido a pretensao de criar aqui, em meio a nossa cultura politica rudimentar, uma democracia de tipo inglés ...”§ Despojada de conotagdes normativas, a noo de continuidade reaparece com fre- qiiéncia em esforgos mais recentes de expli- car a faléncia da democracia liberal no Bra- sil e em outros pa(ses latino-americanos, Grande parte desses esforgos tem se concen- trado nos fatores culturais como aqueles decisivos para se compreender a persistén- cia de formulas politicas autoritdrias. A “tra- digdo ibero-americana”, 0 “ethos mediterra- neo” e o “corporativismo” enquanto ideo- logia nacional so versdes diferentes de uma mesma matriz teérica, a cultura poli- tica & considerada o obstdculo crucial a de- mocratizagdo® Nao nos deteremos aqui na critica as explicagoes centradas na esfera cultural, tema que tem sido amplamente ‘Veja-se a respeito Theda Skocpol e Margaret Somers, “The Uses of Comparative History in Macrosocial Inquiry”, Comparative Studies in Society and History, Vol. 22, n. 2, 1980, pp. 174-197. Azevedo Amaral, O Estado Autoritério e a Realidade Nacional, Rio de Janeiro, José Olympio, 1938. Francisco José de Oliveira 1949, Vol. 2, p. 184. Howard J. Wiarda, “Toward a Framework for the Study of Political Change in the Iberic-Latin Tradition: The Corporative Model”, World Politics, Vol. XXV, n. 2, 1973, pp. 206-235. Kalman AH, Silvert, “Leadership Formation and Modemization in Latin America”, Journal of Interna- tional Affairs, Vol. X, n. 2, 1966, pp. 318-331. James M. Malloy, “Authoritarianism, Corporatism and Mobilization in Peru”, F. B. Pike e T. Stritch, eds., The New Corporatism: Social-Political ‘Structures in the Iberian World, Londres, Notre Dame University Press, 1974, pp. 52-84. jana, Instituiges Politicas Brasileiras, Rio de Janeiro, José Olympio, 332 explorado na literatura.” Gostarfamos ape- nas de chamar atenco para o fato de que explicagdes de tipo cultural tendem a to- mar como “dados” aspectos da realidade que merecem eles proprios explicaco cui- dadosa, Tais explicagoes freqiientemente negligenciam o fato de que a propria per- sistencia de tragos culturais ¢ constantemen- te recriada e que, nesse sentido, a continui- dade de valores, atitudes etc., merece tan- to esforgo de explicagéo quanto a mudanga dos mesmos. Outra linha de interpretaao teérica si- tua as origens do autoritarismo brasileiro na estrutura jurfdico-politica que, a seme- Ihanga dos fatores culturais, tende a ser con- siderada como dada e imutdvel, Assim, Faoro viu nos primeiros estdgios do proces- so de construgdo do Estado no Brasil a mar- ca genealdgica do patrimonialismo-burocr4- tico portugués, que persistiria até o presen- te como obstéculo poderoso 4 consolida- ¢40 da ordem liberal® Mais recentemente, Schmitter e Schwartzman adotaram pers- pectivas de certa forma similares a essa. En- quanto o primeiro identifica um sistema corporativo de representacao de interesses como 0 aspecto distintivo do sistema polf- tico nacional, 0 segundo vé uma tensio constante entre formas representativas e cooptativas de participacao politica no Bra- sil? A predominancia de Tepresentacdo cor- porativa em um caso e de cooptagao politi- ca no outro explica em ampla medida a fa- léncia da democracia liberal. Essas andlises tiveram 0 mérito inesti- mével de legitimar 0 papel explicativo dos 2vols., 1977. fatores polfticos, demolindo assim as inter- pretacdes simplistas que véem o Estado autoritério como mero instrumento da do- minagdo de uma classe. Entretanto, é preci- so estar atento ao fato de que, da mesma forma que caracteristicas politicas parti- culares afetam o perfil da ordem social, 0 Teverso é igualmente vdlido: fatores econd- micos € sociais especificos desempenham um papel decisivo na delimitagao dos para. metros politicos nacionais. Essa afirmagdo trivial implica na prtica na dificil tarefa de explicitar a influéncia mtitua entre caracte- risticas politicas historicamente consolida- das e interesses sociais especificos. Sem um esforgo consciente de integrar a andlise do processo de state-building com a dinamica das classes sociais, corremos 0 risco de con- verter 0 impacto de fatores juridico-polit cos em uma forma de determinismo politi- co e/ou supor imutdveis certas caracterfsti- cas institucionais supostamente responsé- veis por wma tradi¢Go antidemocritica. Isso nao implica em negar a importancia do legado juridico portugués ou de quaisquer outras caracteristicas politicas relevantes. Contudo, toma-se crucial evidenciar os fa- tores ¢ processos que viabilizaram continui- dades, Tradig6es politicas interagem com a dinamica social através de um processo de influéncias reciprocas. O proprio fendmeno de construgdo do Estado nacional deve ser entendido como um processo continuo se se quer evitar mecanicismos ¢ redugGes ina- dequadas na explicagdo de fendmenos que dizem respeito simultaneamente a socieda- de ¢ ao Estado. Vejase, por exemplo, Edward W. Lehman, “On the Concept of Political Culture: A Theoretical Reassesment”, Social Forces, Vol. 5, n. 3, 1972. Raimundo Faoro, Os Donos do Poder, 44 edigdo revista e amplisda, Porto Alegre, Editora Globo, Simon Schwarztman, Sdo Paulo e 0 Estado Nacional, Sio Paulo, DIFEL, 1975, Philippe C. Schmit ter, Interest Conflict and Political Change in Brazil, Stanford, Stanford University Press, 1971. 333 Da perspectiva indicada acima, sem ne- gar a importancia explicativa de valores ¢ tradig6es, a presente discusséo concentra-se na atuagfo de classes sociais espectficas, frente a condi¢des econdmicas particulares, em interaedo dinamica com o centro polf- tico nacional. Enfase ¢ também conferida aqui as opgbes politicas confrontadas pelos atores politicos pertinentes, de forma a se evitar a rigidez inerente a nogao de “inevi- tabilidade historica”!° Assim, sustentamos a necessidade de se ter sempre presente, de forma simulténea, duas dimensées cruciais: os limites paramétricos constituidos pelos condicionantes estruturais, e as escolhas efetivas dos atores politicos em situagoes histérico-concretas. Em particular, tratare- mos de enfatizar aqui as relagdes de traba- Tho na agricultura e a interagao entre a clas- se proprietéria rural ¢ o Estado. A relagao entre estruturas agrrias par- ticulares e resultados politicos especfficos tem tradicionalmente despertado a atengao de cientistas sociais historicamente orienta- dos. Assim, por exemplo, Weber, Turner, Gerschenkron exploraram de dngulos parti- culares a questo das implicagbes de longo prazo da sociedade rural para a consolida- cdo da ordem polftica nacional.’ A obra cldssica de Barrington Moore sobre as origens da ditadura e da democracia é her- deira legitima dessa tradiao, ao privilegiar as classes agrarias na andlise da emergéncia de caminhos politicos altemativos no mun- do modermo.”? A andlise da interagao des- 10 u sas classes entre si, com 0 centro politico nacional e com as classes urbanas emergen- tes permite ao autor delinear trés variantes politicas basicas do processo de desenvolvi- imento: revolucdes liberais-burguesas, revo- lugSes conservadoras e revolugdes campo- nesas levando @ instaurag&o de sistemas co- munistas. Estas trés vias pol{ticas de moderniza- go nacional constituiriam, na visio de Moore, alternativas historicamente esgota- das no sentido de que parece totalmente inadequado pensar na repeticao de uma ou outra delas no caso das nagdes ainda em de- senyolvimento, Acrescente-se a isso 0 fato de que, no caso da grande maioria das na- gOes emergentes, a dominagao colonial in- terferiu de varias maneiras no sentido de tornar mais complexa a estrutura de classes e nessa medida levou o setor agrario a re- partir importéncia com outros interesses sociais. De qualquer forma, parece-nos ainda itil pensar a partir das alternativas politi- cas de modemizacao acima referidas 0 caso do Brasil ou de outras nag6es latino-ameri- canas, jd que af a emergéncia do Estado na- cional data da primeira metade do século 19 e nesse sentido a importancia estratégica das classes agrdrias é inquestionvel. Embo- raa natureza dos lagos coloniais no passado ea peculiaridade de nossa integrag4o no mercado mundial introduzam variagdes im- portantes relativamente a experiéncia euro- péia, ainda assim a dindmica interna da so- Norbert Elias, What is Sociology , Nova York, Columbia University Press, 1978, esp. pp. 158-174. Max Weber, “Capitalism and Rural Society in Germany”, H. H. Gerth e C. W. Mills, eds., From Max Weber: Essays in Sociology, Nova York, Oxford University Press, 1958, pp. 363-385. R. A. Billington, ed., Selected Essays of Frederick Jackson Turner: Frontier and Section, Englewood Cliffs, Prentice Hall, 1961. Alexander Gerschenkron, Bread and Democracy in Germany, 22 edi- a0, Nova York, Howard Fertig, 1966. Elisa Pereira-Reis, “Sociedade Agriria e Ordem Politica”, Dados, Vol. 23, n. 3, 1980, pp. 275-296. 2B. Moore, Social Origins... ., op. cit. 334 ciedade agrdria e sua interagZo com o cen- tro polftico permanecem cruciais na con- formago do sistema politico. Isso nd sig- nifica que nos propomos a aplicar mecani- camente um conjunto de proposigées lo- gicamente integradas, e nem ¢ certo que Moore nos fornece um modelo abstrato- formal que se preste a tal empreendimento, O que temos em vista é to-somente explo- rar a dimensio heuristica da proposta ted- rica por ele esbogada, tomando como re- ferencial basico de discussfo as cinco’ con- digdes hist6ricas que o autor identifica co- mo decisivas para a consolida¢fo da via li- beral-burguesa, A primeira condieao enunciada no mo- delo liberal-burgués de modemizacao diz respeito ao estabelecimento de um equilf- brio de poder entre a autoridade central e os grandes proprietdrios rurais. Um balango de poder que favorega, seja a coroa, scja a aristocracia rural, ¢ visto como desfavord- vel a emergéncia da democracia liberal. O que essa condieao parece estabelecer ¢ ba- sicamente a emergéncia precoce de um sis- tema de pesos e contra-pesos evoluindo da tensfo t{pica entre os elementos feudais patrimoniais usualmente presentes nos es- tagios iniciais dos processos de staze-buil- ding no contexto europeu. De qualquer forma, a condigao se manteria vélida tam- bém em situagdes onde o balango entre o piiblico e o privado nao envolve disputas patrimoniais-feudais, tal como ilustrado pelo caso norte-americano. A segunda condig#o do modelo refe- re-se a “uma transigdéo. bem-sucedida para a agricultura comercial, seja por parte das classes dos grandes proprietérios rurais, seja por parte do campesinato”. Conforme reve- la a experiencia inglesa, a habilidade reve- lada pela aristocracia rural em converter-se a produego mercantil e sua firme insereao na ordem comercial parecem constituir um bom augirio para a democracia liberal. Tal conversao alinharia as antigas elites agrérias a servigo das tendéncias modernizadoras, eliminando assim posstveis focos de tensio social. No caso inglés, ocorreu uma forma de simbiose entre elementos aristocréticos e burgueses que parece ter sido estratégica no estabelecimento de uma ordem polftica liberal. Ela aumentou as chances de uma politica pluralista e tornou pouco provavel a sobrevivéncia de um Estado absolutista. O caso americano merece atengdo especial aqui, j4 que nesse particular ele é mais pr6- ximo experiéncia brasileira. Nos Estados Unidos, o lugar da comercializagao agricola estava estabelecido desde cedo e os arran- jos feudais nunca se desenvolyeram. Os obstaculos 4 democracia liberal ali eram de- correntes sobretudo da vigéncia de relagdes escravistas de trabalho; mas uma vez que o conflito regional foi superado, a porta esta- va aberta para a cénsolidagdo da ordem li- beral. Redefinindo, dirfamos que na reali- dade essa segunda condi¢do prende-se mui- to mais a superagéo de formas extra-eco- nOmicas de coergao nas relagdes de tra- balho. Uma terceira condig&o diz respeito ao “enfraquecimento oportuno da classe pro- prictdria rural”. © que ¢ enfatizado aqui é uma mudanga na coalizdo de poder, no sen- tido de privilegiar os interesses urbano-in- dustriais sobre os agrdrios. Embora nfo seja explicito, o elemento que nos parece cru- cial aqui € a questdo do timing adequado: “quando”, no processo de modemizacao, © setor urbano-industrial ultrapassa_o agrério em termos de poder parece uma varidvel decisiva. A predomindncia persis- tente do setor agrério aumenta as chances de que um Estado autoritério venha subs- tituir a burguesia industrial no papel de lideranga estratégica no processo de mo- dernizagio. 335 Uma quarta condiggéo no modelo deve ser entendida como derivacao da imediata- mente anterior: ela se refere a inviabiliza- go de uma coalizdo reaciondria entre elites agrdrias e industriais. Nos casos em que a burguesia urbana foi incapaz de desafiar o predominio das elites agrdrias, a evolugdo mais “natural” foi uma coalizdo entre essas elites, legitimada por um Estado autoritd- rio que garantia aos interesses industriais um papel de sécio menor na coalizdo de poder. Nesses casos, a polarizagao de inte- tesse colocou de um lado as classes traba- Ihadoras ou subalternas, de outro os capi- talistas urbanos e rurais. O Estado desem- penhou uma fungo estabilizadora nesse modelo, impedindo revoltas, seja através de formas abertas de repressdio, seja através de algum tipo de apelo popular para neutrali- zar demandas de classe. Nesse contexto, as chances de consolidagao da democracia li- beral eram minimas. O Estado ocupou uma posigéo estratégica que lhe possibilitou controlar 0 acesso a arena polftica, e a competigao de interesses matiplos, tipica das sociedades liberais, nunca se tornou le- gitima. Finalmente, como que culminando as quatro condigdes anteriores, alguma forma de ruptura revolucionéria com © passado tem que ocorrer para cimentar a vitoria da democracia-liberal. A Guerra Civil de 1641 e a Revolucdo Gloriosa de 1681 na Ingla- terra, a Grande Revolugdo Francesa e a Guerra Civil Americana assinalaram na visio de Moore a vitéria da via democratico-bur- guesa nesses sociedades. Sem essa ruptura radical, o capitalismo poderia ter triunfado, mas ndo o capitalismo liberal. Onde a mo- dernizag&o capitalista teve lugar sem esse ingrediente de ruptura com o passado, a re- sultante politica mais natural foi a “revolu- Go pelo alto” ou “‘modemizagio conserva- dora”, que preservou as antigas elites na coalizdo de poder. O Estado emergiu nes- sas experiéncias como 0 ator estratégico pa- ra conciliar a velha e a nova ordem, como bem ilustram as experiéncias da Alemanha edo Japao. ‘Assim, pode-se concluir do acima ex- posto que duas variantes polfticas de mo- dernizagao capitalista foram historicamen- te consolidadas: a via liberal-burguesa e a via conservadora. Uma terceira alternativa politica de modemizagao diz respeito aos casos em que o campesinato —e nfo a ari tocracia rural — desempenhou o papel prin- cipal, como nas experiéncizs russa e chinesa. Também nessa variante histérica ocorre uma ruptura radical com o passado, mas a nova ordem af nao se conforma 4 6tica mo- dernizadora de mercado t{pica do capitalis- mo. Se a via liberal-burguesa e a da moder- nizagéio consorvadora constituiram alterna- tivas histdricas de modemizacdo, parece va- lido interpretar a recorréncia do autoritaris- mo em diversas sociedades atualmente em processo de desenvolvimento como conse- quéncia de condig6es basicas que diferem significativamente daquelas identificadas no modelo anteriormente descrito como decisivas na consolidagdo de uma trajetéria capitalista-democrética. Razdes de natureza pragmatica ¢ substantiva concorrem para tornar atraente esta estratégia de andlise. Assim, por exemplo, parece-nos interessan- te fazer uso do modelo em questdo para langar luz sobre experiéncias particulares de modemizaco autoritaria que, ao nivel da retOrica, se propoem como democrati- zantes. Mais ainda, é possivel que o modelo nos sugira algumas generalizacSes substanti- vas que permitam, a partir de eventos his- téricos singulares, redefinir nossa propria compreensio das ditaduras e outras pana- céias autoritdrias que freqtientemente se in- sinuam como medicina desenvolvimentista. 336 Conceder tamanho destaque a via libe- ral-burguesa de modernizacdo pode parecer inadequado jé que, privilegiando-a como instramento de andlise, poderfamos termi- ar por incorporar © vigs etnocéntrico que identifica a experiéncia anglo-saxénica com © padrao de desenvolvimento politico, Esse isco nos parece porém perfeitamente con- trolavel, sobretudo na medida em que a pré- ria andlise comparada aguca nossa percep- go da historicidade dos processos sociais. Nesse sentido, é bastante claro que a via li- beral-burguesa de modemizacao constitui uma alternativa historicamente esgotada. ‘Nao podemos esperar ver repetidas hoje tra- jetorias modernizantes tais como as que ca- racterizaram a Inglaterra, a Franca ou 0s Es- tados Unidos. O que a andlise histérica real- ga € sobretudo a possibilidade de desmis- tificar a rigidez dos processos sociais. E quanto mais compreendemos as tendéncias hist6ricas de uma sociedade, tanto mais nos capacitamos para claborar estratégizs flexi- veis de mudanga, Se por um lado parece-nos extrema- mente atraente a possibilidade de usar o modelo liberal-democratico de Moore para explorar outros processos de modemizacao, por outro parece-nos crucial introduzir af duas alteragOes teoricas radicais: a primeira delas diz respeito a inclusao do Estado co- mo um ator politico em si mesmo, Enquan- to portador de interesses peculiares e auto- nomos, o ator publico nos parece merecer uma atencdo especial, sob pena de perma- necer oculto sob 0 jogo dos interesses so- ciais e nessa mesma medida ocultar dina- mismos politicos decisivos.? Em segundo B “ Para uma critica nesse sentido, vejase Theda Social Origins of ‘Dictatorship and Democracy”, Para uma critica contundente da falsa antites Tugar, propomos que as escolhas efetivas dos atores politicos em jogo sejam sempre que possivel explicitadas. Identificada a existéncia histérica de cursos altemnativos de aco, 0 reconhecimento de opcodes so- ciais permite, por um lado, a superagdo de determinismos mecénicos e, por outro, um entendimento ndo-metafisico da nogdo de tesponsabilidade histérica dos atores so- ciais.4 Em que medida os aspectos tedricos enfatizados nas péginas anteriores podem ser uteis 4 compreensio do processo hist6- ico brasileiro? Conquanto as possibilida- des de uso do referencial tedrico em ques- tdo nos paregam miultiplas, limitamo-nos aqui a exploré-lo para refletir sobre a ques- tao da continuidadee da mudanga no perio- do que vai da transig&o para o trabalho livre © ainstauragao da Republica a consolidaego de um processo de modernizacao autorité- tia a partir dos anos trinta, A aboli¢o do trabalho escravo ¢ a queda do Império ao final do século deze- nove sdo normalmente considerados mar- Cos decisivos do proceso de modernizacao capitalista no Brasil. Entretanto, pouca aten¢do tem sido dada a natureza e as im- plicagBes politicas de longo prazo desses dois eventos. A transicao para o trabalho li- vre égeralmente vista sob um prisma econé- mico que enfatiza basicamente os requisitos técnicos do processo de acumulacao. Nessa perspectiva, as mudangas da sociedade sto vistas essencialmente como ajustamentos as ‘Skocpol, ““A Critical Review of Barrington Moore's » Politics and Society, Vol. 4, n, 1, 1973, pp. 1-34 se entre determinacdes sistémicas ¢ agdes sociais, ve- Jase Philip Abrams, “History, Sociology, Historical Sociology", Past and Present, n, 87, maio, 1980, pp. 3-16, 337 alteragées de mercado e em padroes de in- vestimento, Nesse sentido, a persisténcia de fatores extramercado como determinantes de relagdes de trabalho rural aparece como anacr6nica e ineficiente. Por sua parte, a li- teratura politica e sociolégica referente 20 perfodo pés-abolicao considera as relagdes sociais persistentes no meio rural brasileiro como tipicas da preservagdo do poder dos grandes senhores de terra. Uma vez que ten- tamos integrar as dimens6es politica e eco- nOmica dos processos de mudanga aqui em questo, as transformagdes econdmicas e a persisténcia de dimensdes sociais tradicio- nais ganham sentido como aspectos que, aparentemente contraditérios, se reforgam mutuamente. Quais teriam sido as implicagées polt- ticas de longo prazo do processo através do qual a escravidao foi abolida? Quais teriam sido as consequéncias da propalada transi- go “lenta, pacffica e gradual” para o tra- balho livre? Embora esse no seja o lugar apropriado para uma andlise detalhada do processo de aboligao, queremos sugerir, ten- do em vista 0 contraste com a experiéncia norte-americana, que o encaminhamento da questo do trabalho rural aqui teve con- seqiiéncias pol iticas conservadoras. No assistimos, no caso brasileiro, a uma ruptura radical com o passado, na me- dida mesmo em que a aboligdo aqui nao implicou um confronto entre formas auto- ritdrias e liberais de capitalismo. Apesar das interpretagdes do fim da escravidéo como uma vitéria dos cafeicultores liberais-bur- gueses sobre os latifundidrios conservadores do Nordeste, a evidéncia dispontvel corro- 15 bora perfeitamente uma interpretagao al- temnativa: a transigéo para o trabalho livre se deu gracas a uma coalizdo entre latifun- didrios “velhos” e “novos”. Qs cafeicultores de Sao Paulo — fre- qientemente identificados com os precur- sores da revolugdo burguesa — aliaram-se aos antigos donos de engenhos do Nordeste para promover uma transigGo pacifica ao trabalho livre.!° A negociacao politica da questiio do trabalho permitiu aos cafeicul- tores paulistas evitar a competicao com a elite rural nordestina pela mao-de-obra na- cional. A demanda crescente de trabalho nas 4reas cafeciras seria suprida pela impor- taco de trabalhadores europeus, assistida pelo poder publico. Como tem sido apon- tado naliteratura, a op¢do paulista pela imi- gracdo estrangeira implicou uma segmenta- ¢Go regional do mercado de trabalho.!¢ Acrescentarfamos a esse argumento que tal evolugdo retardou também a expansio do mercado politico, na medida em que pre- servou formas na coergao extra-econémica de trabalho em amplas éreas do pais. O po- der politico do proprietdrio rural foi pre- servado, jf que a massa da populacio do campo no contava com a possibilidade de Jealdades politicas altemativas. Em resumo, a abolicgo da escravidao foi uma mudanca crucial, mas néo uma mu- danga revoluciondria. A condugao politica do problema abolicionista garantiu a unida- de das elites agrdrias nacionais. Uma vez mais recorrendo & comparacio com o caso norte-americano, a transiggo para o trabalho livre no Brasil teve um impacto moderniza- dor incontestével, mas néo implicou uma E, Pereira-Reis, “The Agrarian...” op. cit., capitulo dois; ¢ “Conservative Modernization in Brazilian Agriculture: The Post-Abolition Plantation”, trabalho apresentado na reunido anual da Latin American Studies Association, Houston, 1977 16 Nathaniel Leff, “Desenvolvimento Econémico ¢ Desigualdades Regionais: Origens do Caso Bra- sileiro”, Revista Brasileira de Economia, Vol. XXVI, n. 1, 1972, pp. 3-22. 338 revolugdo liberal-burguesa.!” Sob o predo- minio dos cafeicultores paulistas, uma es- tratégia de conciliagdo de elites impediu 0 “enfraquecimento oportuno dos grandes senhores rurais”, e permitiu a continuidade de formas repressivas de trabalho no cam- po. /{ ~~ Se a questdo da abolicdo nos permite \observar de forma privilegiada a dinamica das relagdes inter e intraclasses no mundo agrétio, 0 segundo marco histérico ante- riormente mencionado, a queda do Império, favorece 0 exame das relag6es entre as eli- tes agrdrias e o poder publico. Ressaltamos em outro lugar que sentido da queda do Império foi sobretudo o de fazer pender significativamente a balanga de poder em favor dos proprietérios rurais.'® Embora a crise interna ao Estado seja mais elucidati- va do esfacelamento efetivo do Império, os interesses, estratégias e comportamento da ~ oposicfo civil, e particularmente dos seto- res mais dinamicos da agricultura, ganham predomindncia quando nos detemos nas conseqiiéncias polfticas, econdmicas € so- ciais desse processo de mudanga. Apesar da profissao de fé liberal do re- gime republicano estabelecido em 1889, 0 exercicio do liberalismo estava seriamente comprometido, dada a representagdo exclu- siva das elites agrérias. Nesse sentido, o Es- tado ndo enfrentou o desafio de mediar en- tre interesses sociais conflitantes; nfo se viu ele na contingéncia de celebrar aliangas po- Iiticas tépicas com um setor urbano com- bativo como se observa historicamente no caso da Inglaterra, nem de se aliar a um campesinato independente como ocorreu no caso francés. O poder piiblico respondia basicamente as elites agrarias, sendo timi- 7 das as tentativas de exigir dele maior res- ponsabilidade social. Faltavam nesse senti- do incentivos de base para criar os alicer- ces de um processo politico pluralista, A fungao politica primordial da autoridade central era arbitrar disputas entre as elites agrérias regionais, e mesmo essa tarefa era consideravelmente suavizada pela considerd- vel descentralizacao politico-administrativa do perfodo. Dentro das condigoes vigentes, a federalizagao do Estado fomentou um pa- dro de segmentagdo de interesses que tor- nou particularmente dificil institucionali- zar oposig6es politicas. Se € verdade, conforme sugerimos aci- ma, que o Estado na Primeira Republica re- velava uma grande permeabilidade aos in- teresses agrdrios, também verdade que es- se mesmo fendmeno deu lugar a um para- doxo extremamente curioso: quanto mais © Estado respondia as demandas dos pro- prietdrios rurais, mais ele consolidava uma fungao tutelar sobre a economia, aspecto esse que, dadas as regras limitadas do jogo politico do periodo, viria a ter profundas conseqiéncias. A politica imigracionista e a defesa agressiva dos pregos do café no mercado internacional revelam a extensdio da dependéncia dos fazendeiros frente a so- Tugées de autoridade em detrimento de so- lugdes de mercado. Da mesma forma que 0 liberalismo politico, o liberalismo econd- mico adquiriu um sentido peculiar dentro dos pardmetros da politica oligérquica. grau e a natureza do crescimento do Estado durante a Republica Velha, influen- ciados pelas praticas econdmicas € politicas das elites agrdrias, sugerem-nos que as bases para um processo de modemizacao autori- trio jé tinham sido langadas antes de trinta. Para uma comparagdo entre 0 processo abolicionista no Brasil e a experiéneia dos Estados Unidos, veja-se Pereira-Reis, “The Agrarian ...”, op. cit, pp. 78-86. 18 Idem, capitulo tres. 339 fortalecimento relativo do poder executi- Yo, as intervenges freqiientes nos Estados, a reforma constitucional de 1926 sao indi- cagées claras do crescimento do poder do Estado numa direcao pouco afim ao padro liberal-demoeratico.!® A precocidade relati- va desse fortalecimento do Estado se torna visivel quando nos damos conta de que a autoridade publica estava estendendo suas bases de poder em um contexto onde as eli- tes agrdrias ndo enfrentavam séria competi- Go de outros interesses sociais na arena po- litica. Dessa forma, quando se desmoronou a “reptiblica dos fazendeiros” em 1930, 0 Estado j4 contava com recursos cruciais que Ihe possibilitaram regular e tutelar mes- mo a entrada de novos atores politicos no cendrio. A posigao privilegiada do Estado e a natureza da coalizdo de poder que se con- solida depois de 1930 sao os elementos-cha- ye para uma compreensao do processo mo- dernizante que tem lugar com Vargas. Em- bora percam a exclusividade de representa- ¢4o, as elites agrdrias no so alijadas do poder. No novo arranjo politico, elas divi- dem o poder com as elites industrializantes, Sob 0 patrocinio de um Estado significati- yamente auténomo. A preservacao do siste- ma de propriedade de terra e das relagdes de trabalho no campo permitiu manter inalteradas as bases do poder local dos lati- fundidrios. No contexto urbano, a estraté- gia adotada para incorporar a classe traba- lhadora ao sistema politico atrelou-a fir- memente ao controle do Estado. A moder- nizago “pelo alto” gradualmente se afir- mou, promovendo mudangas decisivas, sem contudo permitir uma ruptura radical com os antigos padroes de dominagao. Sumariando a discussfo, reafirmarta- mos que, sob a dominaggo rural-oligérqui- '° Idem, pp. 217-262. ca no Brasil, fatores de ordem estrutural ¢ escolhas politicas concretas interagiram de- cisivamente na moldagem do futuro pol{ti- co da nacdo. A notdvel capacidade de “mu- dar conservando”, que caracteriza o proces- so hist6rico brasileiro, no pode ser enten- dida apenas ao nivel da cultura nacional, da mesma forma como também nio satisfa- zem as explicagdes que atrelam o sucesso da modemizacdo conservadora unicamente a habilidade pessoal da lideranca. Para en- tender os elementos de continuidade de for- ma adequada, temos que ter sempre pre- sente: a) os interesses sociais concretos, tais como eles se confrontam em situagdes par- ticulares; b) 0 proceso de state-building que, apesar do equivoco freqiiente, nao constitui um evento discreto na historia de uma sociedade; e c) a interacdo dindmica entreaeb. Para coneluir, propomo-nos a compa- rar brevemente alexperiénia brasileira refe- rida nas paginas anteriores com outro pro- cesso histérico onde € notéria a contribui- G0 das clites agrarias 4 emergéncia de uma estratégia conservadora de modemizacao. A oportunidade de uma comparacio com a Alemanha se impde de imediato, quando se tem em conta que, como no caso dos gran- des fazendeiros no Brasil, os junkers prus- sianos controlavam firmemente de um lado sua forga de trabalho, e dominavam de outro 0 cendrio politico nacional, enquan- to a naco unificada embarcava em um pro- cesso de modemmizagdo “pelo alto”. A experiéncia de desenvolvimento ale- ma tem inspirado diversas tentativas de ex- plicagio tedrica das diferencas entre pa- drdes de desenvolvimento no leste e no. ceste da Europa, Significativamente, a 340 maioria desses esforgos se centra na dinami- ca da sociedade agréria. Assim, Lenin dife- renciou uma via “Ocidental” e outra “Prus- siana” de desenvolvimento do capitalismo na agricultura, com base no papel diferen- ciado que senhores e camponeses exerce- Tam na comercializagio da producgo ru- ral.° Em épocas mais recentes, observa-se uma preocupagdo académica recorrente com as implicagGes especificamente politi- cas da experiéncia alema. Bendix, por exem- plo, salientou o papel conservador dos jun- kers a0 criarem obstdculos a uma evolucao liberal-democrdtica?' Barrington Moore considera a Alemanha um caso claro de mo- dernizagao capitalista autoritdria, ampla- mente condicionada pelas aces ¢ reagdes da classe proprietdria rural.2? Anderson contrasta a ascensdo do Estado absolutista no leste € no oeste europeus com base na forga relativa da aristocracia agréria 3 Gers. chenkron via nas opgdes politicas dos jun- kers @ em suas manobras para impé-las o obstéculo decisive A democratizagao da Alemanha.”* Em seu prefacio a segunda edieao de Bread and Democracy in Germany, Gers- chenkron ressaltoua persisténciae a notdvel capacidade de sobrevivéncia dos latifundia- rios prussianos. Como ele observa, ‘os jun- ers cram capazes de transformar qualquer situagdo nova, crise grave ou adversidade ameacadora em seu proprio beneficio”.* Essa capacidade de sobrevivéncia e 0 suces- so em digerir mudangas lembram em certa medida os latifundidrios brasileiros. Mesmo 0s cafeicultores paulistas, que freqiiente- mente aparecem como os agentes de uma revolucdo liberal-burguesa, se prestam a al- guns paralelos com os senhores de terra a leste do Elba. Assim, por exemplo, diante da inelasticidade da oferta de escravos, os cafeicultores de Sao Paulo converteram-se a Ultima hora a causa abolicionista, transfor- mando-a a0 mesmo tempo num investimen- to lucrativo, Da mesma forma que os junkers, os ca- feicultores auferiram grandes beneficios de uma tardia adogao do trabalho livre, gracas 4 hdbil manipulagdo de recursos econémi- cos e politicos. Em ambos os casos, os fato- res politicos desempenharam um papel-cha- ve na capacidade de sobrevivéncia da classe proprietaria rural. No caso brasileiro, foram utilizados recursos puiblicos para criar uma oferta abundante de mao-de-obra estrangei- ra que comprimia os saldrios e tormava pos- sivel a operagao de um mercado de traba- Iho gracas 4 incorporagao continua de no- Yos contingentes migrat6rios. No caso da agricultura prussiana, 0 Estado tomou a ini- ciativa de abolir a servidao no comeso do século 19, mas 0 processo reverteu em be- neficio da aristocracia rural, que ampliou seus dom{nios territoriais e manteve a forca de trabalho politicamente subordinada.2® V. I. Lenin, “Agrarian Programme of Social Democracy”, Collected Works, Vol. 13, Londres, Reinhard Bendix, Nation Building and Citizenship, Berkeley, University of California Press, 1974. Perry Anderson, Lineages of the Absolutist State, Londres, Verson Edition, 1979, » Lawrence Wisbart, 1962. 2 ® B. Moore, Social Origins... ., op. cit. B * Gerschenkron, Bread and Democracy... , op. cit. Idem, p. vii 2% Sobre esta questo veja-se, por exemplo, Hans Rosenberg, ‘The Rise of the Junkers in Branden- burg Prussia”, American Historical Review, Vol. XLIX, n. 1, pp. 1-22.¢ n. 2, pp. 228-242, 1943. 341 Em ambos os casos, pode-se argumentar, 0 Estado teve um papel ativo na manutengao de condig6es para a expansfio da agricultu- ra sem alteragao no sistema de dominacao latifundidrio. Além da questo do trabalho, outros elementos de convergéncia parecem existir entre os junkers e os cafeicultores paulistas. Diante da competicao imbativel da produ- go cerealffera norte-americana, os junkers conseguiram impor uma série de medidas protecionistas que anularam os efeitos das condig6es adversas do mercado. Na andlise de Gerschenkron referida acima, a preocu- pagdo central era salientar as implicagoes politicamente conservadoras desse protecio- nismo agrario. Poder-se-ia sugerir uma in- terpretagdo similar da preferéncia dos cafei- cultores paulistas pela intervengio estatal no mercado? No caso brasileiro, diante de crises de superproducio, o Estado foi cha- mado a retirar estoques do mercado para manter 0s precos artificialmente altos. Em ambos os casos, observa-se que os setores agrérios dominantes conseguiram impor seus interesses especificos como in- teresses da nago como um todo.”” 0 para- Ielo entre as duas experiéncias histéricas é ainda mais sugestivo quando lembramos que, em ambos os casos, as respectivas cli- tes agrérias tinham sido antes defensoras ati- vas do laissez-faire. Inicialmente, como su- ptidoras de bens primarios no mercado in- ternacional, ambas elites defenderam a su- perioridade dos mecanismos de mercado frente a qualquer esforco governamental de regulamentacao. E significativamente, am- bas abandonaram Smith em favor de List, quando se tornou claro que a autoridade do Estado podia ser ativada para neutrali- zar condigdes de mercado desfavordveis, Em ambas as experiéncias confronta- das aqui, 0 poder politico foi um elemento decisivo no sucesso econdmico dos senho- es rurais, 0 que por sua vez reforgava seu poder politico, garantindo assim a longo prazo sua persisténcia na coalizio dominan- te. No Brasil, como na Alemanha, 0 poder politico dos proprietarios rurais no foi en- fraquecido pela consolidagao de uma bur- guesia combativa que desafiasse suas bases de poder. No caso alemgo, os junkers pre- servaram sua ascendéncia politica e econd- mica sob 0 histérico casamento do ferro com © centeio, apadrinhado pelo Estado. No caso do Brasil, conforme observado an- teriormente, o estabelecimento da Repbli- a legitimou a inclinago da balanga do po- der em favor das elites rurais. As elites agré- nas contsolidaram um sistema de domina- odo oligérquica, enquanto o setor industrial aceitava uma posicao subordinada. Também € significativo o paralelo refe- rente as implicagoes efetivas da adogao de um modelo politico liberal em condigées de dominagZo agréria. Em ambos 08 casos, aauséncia de power contenders fortes con- finou 0 jogo politico a limites muito aca- nhados. Os junkers, em alianca com a buro- cracia estatal, imprimiram a politica um ca- rater aristocrdtico e autoritario. A clite agré- ria brasileira, durante a Republica Velha, entendia o Estado como seu “comité exe- cutivo”, e os prdprios prinetpios demoeré- tico-libersis cram utilizados para reforcar seu monopélio de poder. Existiram também diferencas significa- tivas entre as duas experiéncias em questo, Theodore $. Hamerow, Restoration, Revolution, Reaction: Economics and Politics in Germany, 1815-1871, Princeton, Princeton University Press, 1966. 2” “The Agrarian ...”, op, cit., capitulo cinco, A. Gerschenkron, Bread and Democracy... , op. cit, Com relagdo ao Brasil, veja-se Perei Reis, 342 € negligencié-las seria fazer violéncia 2 hist6- tia e barbarismo tedrico. Assim, ressaltemos de comego que o contexto e as circunstén- cias envolvendo os processos através dos quais os servos na Alemanha e os escravos no Brasil foram emancipados foram pro- fundamente diferentes. Mais ainda, embora constituam ambas formas coercivas de tra- balho, servidao e escravidao tém implicagoes de longo prazo bastante diferenciadas.?® Apesar dos paralelos que viemos de es- tabelecer entre junkers ¢ cafeicultores, tais atores histéricos também se prestam a con- trastes relevantes. Observemos a esse respei- to que a agricultura a oeste do Elba evoluira cedo para relagGes de produgdo modemas, seguindo de perto 0 padrao classico da Eu- ropa ocidental nos primdrdios da expansao capitalista, A aristocracia do leste, ao con- trdrio, persistiu utilizando tradigoes feudais para reforgar seus interesses j capitalistas, sem abrir mao de uma mistura peculiar de autoritarismo e benevoléncia como instru- mento de dominagio. Nesse sentido, no contexto alemdo os junkers constitufam o setor social mais tradicional — embora ndo atrasado. Em contraste, os cafeicultores bra- sileiros nem sequer contaram com tradigdes feudais e nunca desenvolveram qualquer coisa parecida com a configuragdo de status que caracterizava a ordem junkeriana, Os ca- feicultores paulistas constitufram de fato 0 setor mais modemizado da agricultura na- cional, ¢ os pioneiros na adocao de uma so- Jugao de mercado para a questdo do traba- Iho. Nesse sentido, aqui so as formas extra- economicas de coereao do trabalho ampla- mente difundidas no nordeste do pats que mais se assemelham a experiéncia dos jun- kers, Com relagdo as implicagées politicas da intervengao estatal na economia, hd tam- bém diferengas importantes entre o Brasil ¢ a Alemanha, No caso desta tiltima, as po- liticas adotadas para proteger a producdo cerealifera doméstica, com Bismarck, tive- ram sua implicacdo politica mais grave na inviabilizagdo de uma coalizao liberal entre as classes populares urbanas e os pequenos € médios proprietérios rurais que poderiam ter constitufdo uma oposigao efetiva aos Junkers. Como salientou Gerschenkron, as classes baixas urbanas se opuseram radical- mente ao protecionismo, agrério, que incidia diretamente sobre 0 curso de sua dieta basi- ca.” Contudo, sem o concurso de aliados politicos, sua oposi¢do foi indcua. Os pe- quenos agricultores, que poderiam ter for- necido o apoio decisivo a oposicdo, referen daram ao contrério a orientagao politica junkeriana, Seduzidos por promessas pol iti- cas, os pequenos agricultores foram levados aconfundir os interesses do setor latifundid- rio com os seus. No contexto brasileiro, a manutengdo de pregos artificialmente altos para o café teve implicagdes pol{ticas diferentes. A ya- lorizagao cafeeira ndo tinha um impacto di- reto sobre os pregos domésticos de alimen- tos, jd que se tratava de um produto de ex- portac&o! As politicas adotadas para prote. ger 0 setor cafeeiro envolviam basicamente a formagao de mecanismos de tipo carteli- zador, sob a coordenacdo do poder piiblico, para atuar no mercado intemacional. E ver- dade que,aexemplo do que ocorreu na Ale- manha, 0 protecionismo concorreu para preservar 0 poder latifundidrio. Ha porém aqui uma conseqiiéncia adicional menos Obvia, que diz respeito ao papel privilegi A propésito das implicagdes diferentes da serviddo e da escravidio, veja-se John Hicks, A Theory of Economic History, Oxford, Oxford University Press, 1969, pp. 122-140. ® Gerschenkron, Bread and Democracy op. cit, esp. capitulo II, 343 do que o Estado vai adquirir. Conforme sa- lientdvamos anteriormente, o Estado surge como um ator importante na economia bra- sileira antes que outros setores sociais se equipassem para desafiar os interesses agra- rios. E quando a Revolucdo de 1930 pos fim a Republica Velha, enfraquecidas tem- porariamente as elites agrdrias, o Estado contava jd com recursos politicos que lhe permitiriam cooptar novos atores politicos para impor de cima para baixo um processo de modemizacao nacional. Recapitulando a discussfo, o aspecto comum as duas experiéncias que parece mais Obvio é a auséncia de uma ruptura re- voluciondria com o passado. Apesar de gran- des transformagées sociais, o lugar das elites agrérias na coalizdo de poder foi sempre preservado. Em ambos 0s casos, os proprie- térios rurais demonstraram grande habilida- de para se adaptarem 4 mudanea e lograram estabelecer aliancas conservadoras com as elites industriais emergentes. Mais ainda, nos dois casos 0 sucesso dessas aliancas depen- deu em grande parte do concurso do Esta- do. Recursos de autoridade propiciaram, tanto na Alemanha como no Brasil, 0 éxito da modernizagao de cima para baixo. Nes- se sentido, parece bastante clara, quando confrontamos os dois processos, a similari- dade entre os padres de interagdo da elite agrdria com o Estado e com 0 setor indus- trial ascendente de um lado, e 0 sucesso de uma formula capitalista autoritdria de mo- dernizagao por outro. A compara¢do sugere que um determi- nante decisivo da modernizagao autoritdria 0 31 Veja-se a propésito Bendix, Nation Building so 08 obstaculos erigidos pelos senhores de terra a uma ruptura revoluciondria. Em am- bos os casos, as elites agrérias reconhece- ram a necessidade de “mudar para conser- var” e, controlando a mudanga, neutraliza-, ram as chances de qualquer desafio revolu: ciondrio.\No caso da Alemanha, a aristocra- cia rural do leste assumiu ela prépria o pa- pel de empresdrio capitalista, quando a oportunidade de produzir para o mercado internacional se tornou uma realidade ao fi- nal do século dezoito. Ao mesmo tempo, essa “aristocracia empresdtia” reforgou o controle exercido sobre a mao-de-obra, ¢ usurpou a fungdes comerciais tradicional- mente exercidas pelos mercadores urba- nos.*° Ha Sbvios paralelos com a experién- cia do Brasil, onde o latifiindio também es- tava ativamente enyolvido na produgio pa- ra omercado, apesar das diferencas introdu- zidas pelo status original de col6nia e da maior vulnerabilidade da economia brasilei- ra. Aqui também, ao invés de desafiar pro- prietarios rurais “pré-capitalistas retrogra- dos”, as elites industriais aliaram-se a empre- sdrios agricolas dinamicos. Mais do que isso, historicamente as cidades brasileiras estive- ram subordinadas ao dinamismo do mundo tural ¢ nesse sentido se aproximam mais da trajet6ria alema que do padrao cléssico li- beral-burgués,*" No que se refere a importancia estraté- gica do Estado, a tese de que no caso alemao ela se deve a uma situagdo de atraso nacio- nal relativo € amplamente aceita.>* Isto é, © fato de que a Alemanha tenha iniciado sua trajetéria modemizante tardiamente + 0p. cit., p. 224. Sobre a evolucao diferente das cidades no leste ¢ no oeste da Europa, veja-se Jerome Blum, “The Rise of Serfdom in Eastern Europe”, American Historical Review, Vol. LXU, n. 4, 1957, pp. 807-836, %2 A formulagao cldssi dessa tese aparece em Alexander Gerschenkron, Economic Backwardness in Historical Perspective, Cambridge, Belknap Press, 1966 344 torna necessdrio um esforeo rdpido e massi- vo de mobilizacao de capital e capacidade empresarial. Nessas circunstdncias, argu- menta-se, faz-se crucial a ago enérgica do poder publico para mobilizar os recursos re- queridos e superar os obstdculos politicos e sociais 4 mudanca. Mesmo que aceitemos essa explicagdio sobre a’ adequagao funcio- nal do “Estado empresdrio” em sociedades de moderizagao tardia, questoes tedricas importantes persistem. Assim, além do fato de que o proprio atraso relativo é alguma coisa a ser explicada, restaria saber que tipo de condig#o toma possivel a consolidagao de um Estado forte, de que maneira as no- vas e as velhas elites logram estabelecer uma coalizdo de poder, e que tipo de conexdes existe entre 0 poder relativo do Estado e 0 autoritarismo. Na tentativa de estimular a discussdo das quest6es acima sugeridas, recapitulemos aqui alguns elementos comuns aos dois pro- cessos histéricos que nos propomes a com- parar. Em ambos os casos, 0 papel dos lati- fundirios foi decisivo no proceso de cen- tralizagdo do poder. Na Prissia, e depois na Alemanha, embora varidveis polftico-milita- res intrinsecas ao cendrio europeu estimu- lassem a consolidagdo de um Estado forte, foi 0 apoio dos junkers todo-poderosos que tornou possivel esse fendmeno.*? Como tem sido amplamente ressaltado na literatu- ra, a simbiose entre a aristocracia rural, uma casta de burocratas e a corporagdo militar constitufa a base da concentracdo estatal de poder. No caso do Brasil, o papel das elites agrdrias foi bastante mais contradité- rio: defendendo a descentralizagio de poder sob © federalismo, elas paradoxalmente contribuiram para concentrar a autoridade publica. Na medida mesma em que estas elites lograram sucesso em diluir a fronteira entre as esferas publica e privada, elas con- tribufram para a centralizagao de poder Tanto politica como economicamente, os fazendeiros atuaram de forma a conferir 20 Estado o status de ator polftico privilegia- do. Fortalecendo o Poder Executivo sobre © Legislativo ¢ o Judicidrio, neutralizando a competigao politica, exigindo a interven- edo constante do Estado na economia, a do- minagao oligérquico-rural abriu caminho para um Estado forte. ‘A coalizao entre a elite agréria e a in- dustrial foi estimulada em ambos os casos comparados aqui por dois fatores basicos: em primeiro lugar, 0 sucesso comercial do latiftindio e a preservagdo de formas nao- mercantis de trabalho no campo. Em segun- do lugar, a consolidagao de um Estado for- te que patrocinou a coalizéo de poder in- ter-setorial e manteve sob controle os inte- resses populares que poderiam ameagar a alianca das elites. As conexoes entre a cen- tralizagdo do poder e o autoritarismo apa- recem implicitamente nesses dois aspectos. ‘State-building sob a dominacfo oligérqui- co-rural estabeleceu as bases a partir das quais Vargas no Brasil ¢ Bismarck na Ale- manha extra fram recursos para implementar mudangas de cima para baixo, O fato de que em ambos os casos 0 crescimento do Esta- 33 Para uma andlise detalhada da importincia do fator militar na histéria polftica da Alemanha, ve- jase Gordon A. Craig, The Polities of the Prussian Army, 1640-1945, Oxiord, Oxford University Press, 1955, Vejasse, por exemplo, Hans Rosenberg, Bureaucracy, Aristrocacy and Autocracy: The Prussian Experience, 1660-1815, Cambridge, Harvard University Press, 1958, Ou ainda Lysbeth W. Muncy, The Junker in the Prussian Administration under William II, Providence, Brown University Press, 1944. 345 do tenha precedido a incorporagao de in- teresses sociais miiltiplos ao sistema tornou possivel a ago patemalista do Estado en- quanto estratégia de cooptagao politica. Além disso, a propria manutengao da coa- lizdo interelites dependia do autoritarismo do Estado como forma de manter as massas sob controle. —~ Embora as similaridades apontadas per- mitam-nos avangar as proposigées genéricas sugeridas acima, o paralelo no pode ser le- yado longe demais. A modernizagao “pelo alto” que observamos nos dois casos tem lugar em contextos sociais diferentes. Sob a lideranga de Bismarck, a Alemanha unifica- da tinha uma estrutura social consideravel- mente mais complexa que o Brasil dos anos trinta, Apesar da importancia persistente dos junkers, a estrutura agrétia era muito mais diversificada que o mundo rural brasi- leiro. O mesmo argumento se aplica ao ce- nério urbano. A expansdo da industria pe- sada e 0 vulto dos empreendimentos finan- ceiros dao testemunho de uma burguesia muito mais forte na Alemanha. Acrescente- se a isso o fato de que 0 operariado alemao mobilizado constituia uma ameaga as elites estabelecidas que nao encontra paralelo no cendrio brasileiro. Finalmente, é importante Iembsar que a posigfo da Alemanha no mercado internacional nunca se caracteri- zou pelo acentuado grau de dependéncia que marca o proceso histérico brasileiro. A evidenciagfo das diferenas em pau- ta sugere-nos a oportunidade de uma vez mais retornar criticamente 4s proposicées te6ricas de Barrington Moore. Na sua pers- pectiva, a via capitalista autoritdria desem- boca historicamente no fascismo e chega mesmo a se confundir com ele. Tal visio in- troduz um problema, qual seja o de tratar 3 Veja-se Atlio A. Borén, “El Fascismo como Categoria Histéri 0 “fascismo” como um fendmeno de igual status teérico e/ou histérico que a demo- cracialiberal e 0 comunismo, que corres- pondem as demais variantes politicas de modemizagao discutidas pelo autor. Conceitualmente, lembremos aqui que 0s regimes fascistas sao uma das formas pos- siveis de sistemas politicos autoritédrios. Outras modalidades de dominagao autoritd- ria tém existido, como bem ilustram, por exemplo, as ditaduras modemizantes tao populares no terceiro mundo.25 Ao nivel da historia, fazse mister lembrar que o fascis- mo no teve, felizmente, a mesma longevi dade que as demais alternativas exploradas por Moore e nesse sentido nao chega a ca- racterizar uma via politica de modemiza- do enquanto tal. Esses dois tipos de argu- mento sugerem-nos a conveniéncia de re- pensar teoricamente a questo da modemi- zagio conservadora. Tentativamente, suge- timos que o modelo da “revolugao pelo alto” seja desvinculado dessa identificagao “biolégica” com o fascismo, Ao mesmo tempo, sugerimos que as peculiaridades do processo de state-building, no sentido dis- cutido nas paginas anteriores, passem a constituir parte integrante do modelo. Isto &, propomos que o timing do crescimento do Estado relativamente 4 incorporagao de interesses extralatifindio a arena politica seja incorporado como uma varidvel deci- siva do modelo, Tal procedimento nos permitiria ainda, por acréscimo, relativizar sobremodo o peso conferido por Moore as caracteristicas de personalidade da lideran- a autoritéria. E nessa mesma medida, es- tarfamos mais aptos a vincular o problema da responsabilidade hist6rica dos atores politicos ao horizonte das prdticas e ideo- logias de classes. en Tomo al Problema de las Dictaduras en America Latina”, Revista Mexicana de Sociologia, Vol. 2, 1977, pp. 481-528. 346 Acreditamos que as sugest0es tedricas acima ajudam-nos 2 esclarecer as perspecti- vas politicas com que se defrontam nacdes ainda hesitantes entre vias politicas de de- senvolvimento. E nesse sentido, a consta- taco inicial com que nos deparamos ¢, la- mentavelmente, desalentadora: ela nos for- @ teconhecer que provavelmente as “di- taduras modemizantes” do presente 1ém possibilidades de sobrevida histérica que no podem ser subestimadas. Enquanto as experiéncias autoritdrias fascistas do pas- sado constitufram uma ameaga efetiva ao mercado do mundo liberal e provocaram da mesma forma uma rea¢do militar efici- ente para destrui-las, 0 mesmo ndo ocorre em relagdo a outras formas de autoritaris- mo atualmente existentes. Assim, pode-se argumentar que as ditaduras do mundo subdesenvolvido, dado o cardter depen- dente de suas economias, tém condig6es de sobreviver politicamente ao permane- cerem contidas regionalmente. Nao cons- tituindo uma ameaga expansionista, revolu- ¢6es conservadoras poderiam continuar contando com 0 apoio de sociedades pés- industriais, A constatacao acima nao deve, porém, fomentar qualquer espécie de fatalismo, hd bons atgumentos em favor dessa nega- tiva: em primeiro lugar, lembremos que a dindmica intema de uma sociedade tem importancia decisiva e ndo pode ser redu- zida a mero reflexo das determinag6es do mercado internacional. A prépria discus- so empreendida nesse trabalho ilustra a importancia dos fatores intemos a uma sociedade na conformagao de seu perfil po- litico. Finalmente, nfo nos esquegamos que qualquer refinamento teérico que lo- gremos atingir nos toma sempre mais aptos a elaborar estratégias de agao mais efica- zes no combate a todas as forma de autori- tarismo. E esse € um desafio que dé senti- do a pratica da ciéncia social. (Recebido para publicagao em abril de 1982) ABSTRACT Agrarian Elites, State Building, and Authoritarianism The central theme of this paper is the role of landed elites in the historical process of natio- nal state building. The theme is initially approa- ched from a theoretical angle, discussing Barring- ton Moore’s ideas concerning the rural world’s role in the consolidation of a liberal-bourgeois path to modernity. Two new analytic dimensions are presented next in order to make Moore's mo- del more fruitful, The second part of the paper is devoted to a brief reinterpretation of the Brazi- lian historical process from the abolition of sla- very to the 1930 Revolution based on the theo- retical propositions discussed earlier. Finally, the Paper presents a comparative historical analysis indicating parallels and contrasts between the national experiences of Brazil and Germany. Comparative analysis is seen as a necessary means for the theoretical understanding of single natio- nal processes as well as for the development of theory building. RESUME Elites Agraires, State-Building et Autoritarisme Le théme central de cet article est le réle joué par les élites de propriéteires ruraux dans le Processus historique de construction des états na- tionaux. La premiére partie présente la discussion 347 de ce théme au niveau théorique. Pour cela, Vauteur part de l'examen des propositions théo- riques de Berrington Moore concemant les apports du monde rural a la consolidation de la voie libérale-bourgeoise de modernisation. Bile propose ensuite Vintroduction de deux nouvelles dimensions d’analyse qui, selon elle, augmente- raient la fertilité du modéle de Moore, La seconde partie de Particle est consacrée a une bréve ré-in- terprétation, dans optique des propositions théo- riques vues antérieurement, du processus histo- rique brésilien durant Ja période qui va de l'abo- lition du travail esclave jusqu’a 1a réyolution de 1930. A le fin, auteur s'éfforce d’ébaucher une analyse historique comparée qui met en relief les parallales et les contrastes entre l'expérience de l’Allemagne et celle du Brésil. Cette tentative de comparation, selon elle, doit servir, d'une part, a la compréhension théorique de processus singuliers et, autre part, 2 activité d°élabora- tion théorique elle-méme, 348

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