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On dizendo que havia tomado outras providéncias, Vocé me encontrara sempre aqui, disse ele, se um dia precisar de rim, Ab as pessoas. Deu-me sua faa (© que ele chamava de sua cabana era uma espécie de barraco de madeira. A porta havia sido tirada, para fazer {fogo, ou com outto intuito. A janela j nao tinha vidro, O telhado desmoronara em virios lugares. O interior era di- vidio, por restos de um tabique, ems duas partes desigaas Se tivera méveis, nio os tinha mais. Os atos mais vis ha- viam sido cometidos ali, no chao e junto is paredes, 0 chio estava coberto de excrementos, de homem, de vaca, de ca- chorro, assim como de preservatives € vomitos, Num monte de‘esterco desenharam um coragio, eravado por uma flecha. Nao era entretanto um lugar concorrido, Notei vestigios cle bugués abandonados. Vorazmente colbi- dos, carregados durante horasa fio, acabaram jogados fora, por pesarem demais ou ji estarem murchos. Era dessa mo- radia que tinham me oferecido as chaves. Ao redor a cena era aquelajé familiar de grandezae de- solagio, Ainda assim esa uma moradia, Eu descansava sobre “Um leito de filifothas quea muito custo eu mesmo colhera, Um dia nao puide me levantar. A vaca me salvou, Fustigada pelo nevoeito glatial veio se abrigar. Provavelmente nao cra primeira vez. Nao parecia me ver. Tentei mamar nel, som muito &xito, Sua teta estava coberta de estrume. Titel ‘meu chapéu e comecei a ordenbi-la ali dentro, apelando Novis para minhas diltimas forsas. O leite se derramava pelo chao, mas disse ca comigo, Nao faz: mal, é de graca, Ela me arrastou pelo solo, parando s6 de vez em quando para me dar um coice. Eu nao sabia que até nossas vacas podiam ser malvadas, Devia ter sido ordenhada recentemente. Agar- rando-me com uma das maos a teta, com a outra manti- nha o chapéu no lugar. Mas ela acabou levando a melhor Pois me arrastou porta afora c até as fiifolhas gigantes © or- valhadas, onde fui foryado a largé-la Bebendo o leite me repreendi pelo que acabara de fazer. Nao podia mais contar com a vaca ¢ ela avisaria as ou- tras, Mais senhor de mim, poderia ter feito dela uma amiga. Ela teria vindo todos os dias, seguida talvez por ou- tras vacas. Fu teria aprendido a fazer manteiga, queijo, Mas disse comigo, Nao, tudo é para o melhor. Uma vez na estrada, tinha apenas de descer a ladeira. Logo apareceram charretes, mas todas me recusaram, Se usasse outras roupas,tivesse outro rosto, teriam me aceita- do, talvez. Eu devia estar mudado desde que fora expulso ddo pordo. O rosto especialmente devia ter atingido seu cli- ‘matério, O sorriso humilde ¢ ingénuo ja nao vinha, nem a expressio de miséria cindida, contendo as estrelas e os fusos: Eu os chamava, mas nao vinham. Mascara de velho, ccouro sujo e peludo, jé nao queria fazer por favor e obriga- ddo-e desculpe. Era desastroso, Com 0 que rastejaria, no fa- turo? Deitado a beira da estrada, comecava a me contorcer cada ver que ouvia vir uma charrete. Fra para que no pen- Noveas se abaixou e me interpelou, Eu havia aperfeigoado meu ta- buleito. Ele consistia agora em dois pedagos ligados por do- bradigas, © que me permitia, uma vez terminado o traba- Iho, dobri-lo e carregi-lo debaixo do braso, eu adorava fazer essas engenhocas. Tireientao 0 trapo, pus no bolso as ppoucas moedas que ganhara, desamarrei o tabuleiro, o do- brei e.0 meti debaixo do brago. Mas diga alguma coisa, seu imolado! berrou o orador, E entio fui embora, apesar de ser ainda dia, Mas de modo geral a esquina era tranqtila, animada sem ser agitada, prospera e decente. Devia ser um, fanstico religioso, nao achava outra explicasio. Talvex ti- vesse escapulido do manicémio. Tinha uma cara boa, wm tanto corada. Eu no trabathava todos os dias. Quase nao tinha des- pesas. Conseguia até economiza, para os dias dertadeiros Os dias em que ao trabalhava cu ficava deitado na coche + Ela ficava a beira do rio, numa propriedade privada, ou que o havia sido, Fssa propriedade, cuja entrada principal dlava para uma rua escura, estrcitae silencio, era cercada Por um muro, exceto, naturalmente, do lado do rio, que marcava o limite setentrional, num comprimento de uns trinta pasos. Fm frente, na outra margem, estavam 0s cas, © um emaranhado de casa baxas,terrenos bldios,cercase chaminés, fechas e torres. Viase também uma espécie de csplanada onde soldados jogavam futebol, o ano todo. Apenas as janelis ~ no. A propriedade parecia abandona- da, A grade estava fechada. O capim invadia a alas. Ape On nas as janclas do térreo tinham venezianas. As outras se iluminavam as vezes & noite, tenemente, ora uma, ora Sutra, era a impressdo que eu tinha, Podia ser um reflexo qualquer. No dia em que adotei essa cocheira, encontrei ali ‘um bote, com a quilha para cima. Vire-o, calcei-o com pe- ddras e pedagos de madeira, tirei os bancos e fiz dele minha cama. Os rats tinham dificuldade de chegar até mim, de- vido a inclinagao do casco. No entanto tinham muita von- tade. Pensem s6, carne viva, pois apesar de tudo eu ainda 1a carne viva, Havia muito tempo que vivia no meio dos ratos, em minhas moradias casuais, para que tivese a fobia habitual. Tinha até mesmo uma espécie de simpatia por cles. Vinham com tanta confianga em minha diregao, pelo icito sem a menor repugnancia.Limpavam-se com gestos dle gato. Os sapos, esses, noite, iméveis durante horas, en- zolem as moscas. Ficam em lugares em que 0 coberto se torna descoberto, gostam das soleiras, Mas se tratava de ratos d°igua, de uma magreza e uma ferecidade excepcio- nas. Construf, portanto, com tabuas diversas, uma tampa. F incrivel 0 mimero de tébuas que pude encontrar em minha vida, cada vez que precisava de uma tabu ela estava ali tinha apenas de me abaivar.Gostava de fazer eses tra- bathinhos, no, ngin tanto, assim, assim, Ela cobria com- pletamente o ote, falo agora novamente da tampa. Em- purrava-a um pouco para tris, entrava no bote pela proa, ‘rstejava até a popa,levantava os pése tornava aempurrar «tampa para a frente até que me cobrisse completamente Novesas O empurrio se exercia contra uma travessa saliente que eu tinha fixado na parte de tras da tampa para esse fim, gosta- vva muito desses trabalhinhos. Mas era melhor entrar no bote por tr, pusar a tampa com as duas maos até que ela me cobrisse completamente ¢ empurré-la do mesmo ‘modo quando quisesse sair. Como alga para as mos, pre- uci dois grandes pregos, onde era preciso. Esses trabalhi- inhos de carpintaria, se ouso dizer, executados com instru- -mentos © materiais casuais, nao me desagradavam, Eu sabia «que logo estaria acabado, entao cu fazia o papel, voc® sabe, fazia 0 papel de — como dizer, nao sei. Eu estava bem no bote, devo dizer. Minha tampa se ajustava to bem que tive de furi-la. Nao se deve fechar os olhos, deve-se deixé-los abertos no escuro, é minha opinio. Nao falo do sono, falo do que se chama, creio, vigilia. Alids, eu dormia muito pouco nessa época, nao tinha vontade, ou tinha vontade ddemais, nao sei ou tinha medo, nao sel Deltado de costa, ‘no via nada, sendo vagamente, bem acima de minha cabe- sa, através de miniisculas frestas, a luz einza da cocheita Nio ver absolutamente nada, nao, é demais. Ouvia abala- «dos os gritos das gaivotas rapinanclo bem perto em volta da boca dos esgotos, Numa efervescéncia amarelada, se nio ime falha a meméria, as imundicies se uniam a0 rio, pssa- tos rodopiavam acima, gralhando de fome ¢ de raiva. Eu ouvia a agua batendo contra 0 cais, contra & margem, € 0 outro ruido, tio diferente, de marulho, também 0 ouvia, Eu mesmo, quando me deslocava, era menos barco do que * Orn onda, ao que me parecia, e minha quietude era a quietude dos redemoinhos. Isso pode parecer impossivel. A chuva também, eu a ouvia freqiientemente, chovia freqiiente- mente, As vezes uma gota, atravessando 0 telhado da co- cheira, vinha estourar em mim. Tudo isso era mais liquido que qualquer outea coisa. A tudo isso se juntava a voz. do vento, é claro, ou melhor, as vozes tio variadas de suas brrincadeiras. Mas o que é iso? Murmiirios, uivos, gemidos « suspiros. Eu teria preferido marteladas, pam, pam, pam, dadas no deserto. Eu peidava, é 6bvio, mas ificilmente um peido seco, aquilo saia com um barulho de bomba de éguua fundindo-se no imenso nunca, Nao sei quanto tempo f- quel ali, Eu estava bem em minha caixa, devo dizer. Pare- ciacme que tinha adquirido independéncis nos dltimos anos. Que ndo viessem mais, que no pudesser mais vir, perguntar-me se eu ia bem e se nio preciswva de nada, jt ndo me fazia mal. Eu estava bem, sim, perfeitamente, ¢ 0 ‘medo de ficar mal ja nao se fazia sentir. Quanto as minhas necessidades, elas sg.reduziram praticamente as minhas di- mensbes e, sob o angulo da qualidade, to requintadas que qualquer socorro estava excluido, desse ponto de vista. Saber que cu tinha um ser, por mais fraco e falso que fosse, fora de mim, tinha tido outrora o dom de me comover. A jgonte se torna selvagem, é inevitével. E as vezes nos per- _guntamos se estamos no planeta certo. Até mesmo as pala- vras nos abandonam, ndo é preciso dizer mais nada. Talvez scja 0 momento em que os vasos param de comunicar,

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