Você está na página 1de 41
VUADIMIR SSAPATLE te aed 978-85-7559-118-5 - MOI 9 788575 591185 moanc'f{ ae SiTIO Copyright desta edisio © Boitempo Editorial, 2008 Coordenagéo editorial — Wana Jinkings Editores Ana Paula Castellani Joao Alexandre Peschanski Assistentes editoriais Mariana Tavares Guilherme Kroll Preparacéo de texto. Mariana Echalar Reviséo Vivian Miwa Matsushita Capa e editoragao eletrénica Silvana de Barros Panzoldo (capa sobre projeto grifico de Andrei Polessis foro: Stockxper) Produgéo Marcel Tha CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. $134¢ Safacle, Vladimir Cinismo ¢ faléncia da critica / Vladimir Safatle. - $0 Paulo : Boitempo, 2008. 216p. (Estado de sitio) Inclui bibliografia ISBN 978-85-7559-118-5 1. Ideologia. 2. Capitalismo. I. Titulo. IL. Série. 08-1805. CDD: 140 CDU: 140 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder4 set utilizada ou reproduzida sem autorizagio da editora. P edigio: agosto de 2008 BOITEMPO EDITORIAL. Jinkings Editores Associados Leda. Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes 05030-030 Sao Paulo SP Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 editor@boitempoeditorial.com.br www. boitempoeditorial.com.br SUMARIO OO PoEL eee ul a Wialética, ironia, cinismO.....,....se1seeeeersens 37 Betis t)2: yo StTMLIS? <1" a 204, . Por tras dessa nogéo de “formalismo” estava a crenga de que a arte deve saber afirmar 0 primado da autonomia de seus processos construtivos a despeito de toda e qualquer afinidade mimética que a realidade social oferece como aparéncia. Clement Greenberg, “A necessidade do formalismo”, em Gléria Ferreira ¢ Cecilia Cotrim (org.), Clement Greenberg ¢ 0 debate critico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997), p. 127. O esgotamento da forma critica como valor estético ‘Tal afirmagao do primado da autonomia da forma poderia ganhar a figura de obras capazes de tematizar seus préptios modos de producao, seus préprios processos construtivos. Lembremo-nos novamente de Greenberg, quando este afirma: O nio-figurativo ou 0 “abstrato”, se deve ter validade estética, nao pode ser arbitrario e acidental, mas deve derivar da obediéncia a algu- ma injungao ou principio de valor, Essa injungao, uma vez que se re- nunciou ao mundo da experiéncia comum, extrovertida, s6 pode ser encontrada nos préprios processos ou disciplinas pelos quais a arte ea literatura ja haviam imitado a natureza. Esses meios tornam-se, eles proprios, o tema da arte e da literatura.’ Dessa maneira, a forma critica deveria ser forma que expée, em uma “distancia correta”, seus proprios processos construtivos, forma que ja traz em si a negacao da naturalizagao de sua aparéncia como to- talidade funcional. Esta idéia é central: as obras figis & forma critica se- riam capazes de organizar-se a partir de protocolos de desvelamento de seu processo de produgao. As obras que se organizam a partir desse impul- so critico tém, como dizia Hegel, os intestinos fora do corpo. Notemos, no entanto, que a racionalidade dessa nogao de forma de- pende de um conceito de critica como passagem da aparéncia para a essén- cia, como movimento de desvelamento. Trata-se de expor, através de uma passagem para a esséncia, os modos de produgdo que determinam a confi- guracio da aparéncia, Na verdade, tudo funciona como se a estruturagao da forma critica seguisse os moldes “cléssicos” de uma certa critica marxi ta do fetichismo e uma arqueologia psicanalitica do sentido latent Sabemos que um dos processos fundamentais presentes no fetichis- mo da mercadoria diz. respeito & impossibilidade do sujeito de apreen- der a estrutura social de determinacao do valor dos objetos em virtude de um regime de fascinacao pela “objetividade fantasmatica” (gespenstige Gegenstiindlichkeit) daquilo que aparece — fascinagao vinculada 4 natu- ralizagao de significagées socialmente determinadas. Uma certa critica «Idem, “Vanguarda e kitsch”, em Gloria Ferreira ¢ Cecilia Cotrim (org), Clement Green- berge 0 debate critico, cit., p. 30. Ver a respeito desta tltima, por exemplo, Jacques Ranciére, Linconscient esthérique (Pa- tis, Galilée, 2001). * 181 182 * Cinismo e faléncia da critica do fetichismo se organizaria a partir dai através da tematica da alienagao da consciéncia no dominio da falsa objetividade da aparéncia e das rela- c6es reificadas. Alienacdo que indicaria a incapacidade de compreensio da totalidade das relag6es estruturalmente determinantes do sentido. Vimos no segundo capitulo como a tomada de consciéncia resul- tante do trabalho da critica pressuporia a possibilidade, mesmo que utépica, de processos de interpretagao capazes de instaurar um regime de relacées nao reificadas que garantam a transparéncia da totalidade dos mecanismos de produgao do sentido. O que vale para a critica social vale também para a arte. Pois, da mesma maneira, haveria uma totalidade de relagGes que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura através das obras de arte. As obras apareceriam como /ocus de manifestac4o de uma verdade que € clarificacéo progressiva do material em razao da possibi- lidade de posi¢ao integral de processos construtivos. Processos muitas vezes recalcados, marcados pelo véu do esquecimento, mas que pode- riam vir a luz através de mecanismos de interpretagio e rememoracio inscritos no préprio cerne da obra. Lembremos ainda que o impulso em direcao ao que esté fora da cena da aparéncia pode também transfor- mar-se em exposicao do que é ob-sceno, do que estaria por baixo da cena enquanto arcaico ou informe. Por mais que isso possa parecer es- tranho, os programas de retorno ao arcaico e de desvelamento estrutural mostram-se unificados em certas estratégias comuns de critica. Michael Fried é um caso exemplar de como tal regime de reflexio sobre a forma estética pode funcionar. Para ele, 0 valor estético na mo- dernidade é fundamentalmente vinculado & possibilidade da obra de servir de palco para a posicao do processo de clarificagao progressiva dos mecanismos de produgao do sentido. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmagao de que “o teatro é a negagao da arte”’. O teatro aqui nao é 0 teatro brechtiano, que transforma a cena em /ocus de ma- nifestagao de operagées de distanciamento capazes de desvelar os modos de producao da aparéncia. Teatro é, para Fried, o nome de uma ima- néncia com a literalidade que impede o sujeito de transcender a coisi- dade (objecthood) em diregdo a uma Outra cena, na qual os processos construtivos poderiam ser revelados. Dai Fried poder afirmar que “a 6 Michael Fried, “Art and objecthood”, em Gregory Battcock, Minimal art: a critical an- shology (Berkeley, University of California Press, 1968), p. 125. O esgotamento da forma critica como valor estético * 183 pintura modernista chegou a perceber como imperativa a suspensao de sua propria coisidade””. Racionalizacao serial Nao deixa de ser sintomético encontrar, na muisica, 0 espaco origi- nario para o desenvolvimento das potencialidades dessa forma critica hegeménica no modernismo. Colocagéo menos insuspeita por vir de um critico das artes visuais, no caso, o proprio Clement Greenberg: Em razfo de sua natureza “absoluta”, da distancia que a separa da imitagao, de sua absorgo quase completa na propria qualidade fisica de seu meio, bem como em razao de seus recursos de sugestao, a mtisica passou a substituir a poesia como arte-modelo [...]. Nortean- do-se, quer conscientemente, quer inconscientemente, por uma no- gao de pureza derivada do exemplo da mtsica, as artes de vanguarda nos tiltimos cingiienta anos alcangaram uma pureza e uma delimita- g40 radical de seus campos de atividade sem exemplo anterior na histéria da cultura.’ A afirmacao nio poderia ser mais clara: a miisica teria imposto, 3s outras artes, uma nogao de modernidade e de racionalizacao do material vinculada & autonomizagao da forma ¢ de suas expectativas construti- vas. Autonomia que teria se afirmado contra qualquer afinidade mimé- tica com processos e elementos extramusicais?. O que Greenberg tem em mente é um longo e heterdclito movi- mento de constituicao da racionalidade da forma musical, movimento fundamental para a definigao das expectativas criticas da forma musical, a partir principalmente de Arnold Schoenberg, e que herda motivos préprios ao debate em torno da “musica absoluta” no romantismo ale- Ibidem, p. 119. Clement Greenberg, “Rumo a um mais novo Locoonte”, em Gléria Ferreira e Cecilia Cotrim (org.), Clement Greenberg ¢ 0 debate critico, cit., p. 52-3. Na verdade, Max Weber foi o primeiro a perceber que a miisica fornecia 0 padréo de racionalizagio que deveria vigorar no campo das artes. A respeito desse processo de constituigo da legalidade propria da esfera musical, ver, por exemplo, Max Weber, Fundamentos racionais e sociolégicos da mmiisica (Séo Paulo, Edusp, 1996). 184 * Cinismo e faléncia da critica mao. E a isso que Greenberg alude ao falar da “natureza absoluta” da miisica em sua “pureza”. Grosso modo, podemos chamar de “musica absoluta” certa nogao que via na mtisica instrumental, desligada de textos, de programas, de fungdes rituais e “pedagdgicas” especificas, o veiculo privilegiado para a expressio ou pressentimento do “absoluto” em sua sublimidade ¢ 0 es- tdgio de realizacao natural da racionalidade musical. E a proximidade com tal temdtica que permitird a Schopenhauer, cuja filosofia da miisi- ca influenciou bastante Schoenberg, afirmar: “Nao podemos encontrar na mtisica a cépia, a reprodugao da idéia do ser tal como se manifesta no mundo”; ela é “cépia de um modelo que nao pode, ele mesmo, ser representado diretamente”, pois “a musica, que vai para além das idéias, é completamente independente do mundo fenomenal”"”. Esse impulso de autonomizagao da forma musical sera fundamen- tal para que teéricos posteriores, como Eduard Hanslick, insistam em levar tal processo ao extremo. Ao afirmar que a miisica nada mais era do que “formas sonoras em movimento”, Hanslick demonstrava plena consciéncia de.estar adentrando em um estagio histérico de racionali- za¢do do material musical que permitia a consolidagéo da esfera musical em sua legalidade propria. Legalidade prépria que o leva a afirmar: Se se perguntar 0 que se hé de expressar com esse material sonoro, a resposta reza assim: idéias musicais. Mas uma idéia musical trazida in- teiramente & manifestacao € j4 um belo auténomo, é fim em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representagao de sentimento e pensamentos."! O impulso de Schoenberg na constituic4o de uma forma critica per- de muito de seu solo natural se nao tivermos tais balizas em vista’. Quan- do Schoenberg afirma: “Faz-se mtisica a partir de conceitos”, a fim de Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representagéo (Sto Paulo, Unesp, 2005), par. 59. 1) Eduard Hanslick, Do belo musical (Lisboa, Dom Quixote, 1986), p. 42. Nao é por outra razao que Dahlhaus nos lembra: “Os trabalhos pelos quais Schoenberg se aproxi a sinfonia, o quarteto de cordas ¢ as pegas liricas de piano, ou seja, géneros tipicos da maisica absoluta” (Carl Dahlhaus, Schoenberg and the new music, Cambridge, Cambridge University Press, 1987, p. 99). a e finalmente atravessa a fronteira da tonalidade pertencem a géneros como O esgotamento da forma critica como valor estético * 185 lembrar que 0 objetivo maior da forma é a inteligibilidade de “idéias musicais” compostas pela unidade funcional e expressiva de ritmo, melo- dia e harmonia, sabemos claramente que é Hanslick e sua no¢’o de auto- nomia da forma que serve aqui de guia, Essa exigéncia de visibilidade da idéia ordenadora das disposig6es formais do material leva Schoenberg a pensar a verdade na miisica como uma questéo de possibilidade de posigo dos procedimentos de construcao responsaveis pela determinagéo de relagées racionais entre elementos musicais. Ha, assim, uma exigéncia fundamental de transparéncia das obras. Visibilidade que leva 0 com- Positor & procura da “clarificacao progressiva do material natural da misica’™, através, por exemplo, de um conhecido combate contra tudo que é ornamento. Combate este que € figura da recusa a estabelecer dis- tingdes hierdrquicas entre notas ornamentais “néo harménicas” e notas essenciais, j4 que a forma musical s6 deve dar lugar aquilo que contribui para a visibilidade integral da idéia musical. A esse respeito, muito ja se disse sobre o sentido das similitudes estratégicas entre as “construgdes racionais” de Schoenberg ¢ de arquitetos como Adolf Loos. Mas essa nogao schoenberguiana de idéia musical se torna incom- preensivel se partirmos de uma perspectiva meramente “formalista’, no sentido mais restritivo do termo. Essa é uma questao importante, j4 que © projeto musical de Schoenberg nos lembra que “formalismo” nao é a marca de alguma forma de abandono de expectativas expressivas. Tal como jé em Hanslick, a idéia musical é 0 que permite a realizagido cons- trutiva de exigéncias expressivas, ou seja, ela é 0 que deve unificar constru- ‘ao racional e expresso subjetiva. E a fidelidade a exigéncias expressivas que leva Schoenberg a afirmar, de maneira surpreendente, que “a arte é, em seu estdgio mais elementar, uma simples imitag4o da natureza. Mas logo se torna imitac4o em um sentido mais amplo do conceito, isto é, nao mera imitagao da natureza exterior, mas também da interior”!>, O recurso ao vocabulério da imitago poderia parecer nos recolocar nas vias de uma racionalidade mimética como protocolo de constituicao Ver, por exemplo, Arnold Schoenberg, Sijle and Idea (Berkeley, University of California Press, 1984), p. 121. “Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, em Gesammelte Schriften XH (Digitale Bibliothek Band, 1999), p. 69. Arnold Schoenberg, Tratado de harmonia (Sio Paulo, Unesp, 2000), p. 55. 186 ° Cinismo e faléncia da critica da aparéncia estética. No entanto, ao contririo, a expressio dessa “natu- reza interior” sé poderd ser posta através da critica 4 aparéncia funcional das obras. A natureza dessa critica 4 aparéncia como motor da racio- nalidade de obras que aspitam & modernidade foi claramente identifi- cada por Adorno ao afirmar que “nele [em Schoenberg] 0 momento realmente revoluciondrio 6a mudanga de fungio da expresso musical”'*. Essa frase ¢ mais decisiva do que parece, j4 que normalmente aceitamos que © aspecto realmente novo da experiéncia musical de Schoenberg estaria presente em sua maneira de criar cotalidades funcionais sem re- correr ao sistema tonal. A mudanga de fungao a que alude Adorno consiste em romper com © fato de que “desde Monteverdi e até Verdi, a musica dramatica, como verdadeira musica ficta, apresentava a expressao como expressao estilizada, mediada, ou seja, como aparéncia de paixGes””. Segundo essa leitura, a expresso esteve paulatinamente subordinada a uma gramética das pai- xes ¢ dos afetos, gramatica que faria com que a particularidade dos mo- mentos expressivos fosse sempre fetichizada e submetida a generalidade conciliadora, que constitui o primeiro principio da aparéncia estética. O esgotamento do sistema tonal ¢ também esgotamento de uma gramitica de expresses que se naturaliza no uso reiterado de cadéncias e elementos que desempenham sempre a fungio de um “sistema de representacoes”. ‘A “emancipacio da dissonancia” em relagdo ao esquema antecipacao—teso- lucdo, emancipagao a respeito da qual fala constantemente Schoenberg, nao seria outra coisa que a possibilidade de construir idéias musicais ca- pazes de desvelar uma expressio recalcada pela gramitica do sistema to- nal, Recalque produzido por uma aparéncia que submete a expressio singular aos ditames de uma linguagem sedimentada. Nesse sentido, nao deixa de ser ilustrativo que Schoenberg se inte- resse por Freud ¢ por sua nogo de interpretacao das formagées do in- consciente como revelagao do que se aloja em uma Outra cena'*. Ao © Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit, p. 44 v Idem. Lembremos, nesse sentido, o que Schoenberg diz a respeito de Enwartung: “E impossivel a0 homem sentir apenas uma coisa por vez. Sentimos milhares de coisas ao mesmo tempo. E essas milhares de coisas nao se adicionam, da mesma maneira como uma maci ¢ uma péra nio se adicionam. Elas divergem. E essa multiplicidade de cores, de formas, esse alogicismo proprio a nossas sensacoes, alogicismo inerente as associagoes de idéias, a O esgotamento da forma critica como valor estético * 187 interpretar obras estéticas, Freud parte do principio de que a verdade da obra nao coincide com sua letra, j4 que a aparéncia estética oblitera uma dinamica pulsional que sé pode aparecer a partir de operagées arqueolé- gicas de procura do sentido. “Eu percebi constantemente”, dir4 Freud, “que o contetido [halt] de uma obra de arte me apreende mais que suas qualidades formais e técnicas.'”” Esse comentario inocente é, na verdade, a exposigo de todo um programa estético. Trata-se de revelar 0 pensa- mento presente na forma estética (pensamento cuja fonte, segundo Freud, é a “intengao do artista” [Absicht des Kiinstlers), ou seja, seus desejos inconscientes e suas mog6es pulsionais) através do ato de “descobrir (herausfinden) 0 sentido e 0 contetido do que é representado [Dargestellten] na obra de arte”””. Dessa maneira, 0 entrelacamento entre estética e pulsional serve para Freud desdobrar um horizonte de visibilidade integral das obras. Por outro lado, com sua teoria das pulses, Freud permitiu a reconfigura- ao de uma categoria estética fundamental como a expressio. Para Schoenberg, tal exigéncia de visibilidade afirma-se como res- gate do que nao se apresenta através da linguagem reificada de um tonalismo que aparece como bloqueio as aspiracées da “pressio pela verdade por tras das mediagdes e das méscaras burguesas da violéncia’®!. Tal aspiracao 4 plena visibilidade chega a fazer com que Schoenberg afirme, a respeito de Pierrot lunaire: “A expressao sonora dos movi- mentos dos sentidos e da alma sio de uma imediatez quase animal. Como se tudo fosse diretamente transposto [Fast als ob alles direkt iibertragen wiire|”, Procurar uma forma capaz de ser a transposicéo direta da idéia musical na dimensao do que aparece, idéia que procura realizar exigén- cias expressivas que nao se reconhecem na gramatica dos sentimentos reificada pelo tonalismo, € 0 que leva Schoenberg ao dodecafonismo. Aqui, vemos como ele realiza, enfim, um impulso partilhado pelo mo- no importa qual reagio dos sentidos e dos nervos que quero em minha miisica” (Ar- nold Schoenberg, Carta a Ferrucio Busoni, agosto de 1909). Sigmund Freud, “Der Moses des Michelangelo”, em Gesammelte Werke (Frankfurt, Fis- cher, 1999), v. X, p. 172. % Ibidem, p. 173. 21 "Theodor Adorno, Philosophie der newen Musik, cit., p. 137. Arnold Schoenberg, Berliner Tagebuch (Frankfurt, Propylien, 1984), p. 34. 188 * Cinismo e faléncia da critica dernismo de “critica da reificagao e do fetichismo através da reconstru- 40 de um pensamento estructural”. ‘Adorno sempre insistiu no fato do uso schoenberguiano da série procurar convergir a tentativa de conservar exigéncias de expressio do que nao se reconhece na imagem naturalizada do mundo e um princi- pio construtivo € transparente de relagao. A esse respeito, Schoenberg nao cansava de afirmar, com uma ponta de orgulho: “Ainda posso asse- gurar coeréncia e unidade, mesmo que existam varios elementos constru- tivos da forma importantes, assim como auxilios 4 compreensibilidade, que nao uso”. Orgulho de quem podia, a0 mesmo tempo, oferecer um protocolo de critica & aparéncia reificada e assegurar um princfpio au- tonomo de racionalizagao ¢ legibilidade das obras. De fato, ao racionalizar todas as incidéncias do material musical através do primado da série, primado que faz com que cada evento seja automaticamente reportado a esse padrdo transcendental de justificagdo que € a série, a musica poderia liberar-se da aparéncia costurada pela naturalizacao do sistema tonal. Ao mesmo tempo, gracas 4 onipresenga da série, seu tema é seu préprio proceso de construgao. Ela € 0 que realiza exigéncias de “obediéncia a alguma injungéo ou principio de valor” a respeito das quais falava Greenberg. Dessa forma, Schoenberg mostrava como a forma critica deveria ser forma que expe, em uma “distancia correta”, seu proprio processo de construgao (a série), forma que ja traz em sia negacao da naturalizacao de sua aparéncia como totalidade fun- cional. Lembremos, por exemplo, este momento em que afirma: “Mi- nha miisica nao parte da visio de um todo, mas é construida de cima para baixo de acordo com um plano e esquema preconcebido, mas sem uma verdadeira idéia visualizada do todo””’. Trata-se de insistir que sua misica nao naturaliza totalidades funcionais (como no caso da mtisica tonal), mas expoe claramente seu processo de construcao através da posi- a0 do plano e do esquema. Tal afirmagao é¢ feita na expectativa de levar © sujeito & necessidade de ouvir a estrutura e 0 plano construtivo. Esse é 0 sentido fundamental da “audigao estrutural” exigida por Schoenberg. % — Amold Schoenberg, Style and Idea, cit. p. 107, Clement Greenberg, “Vanguarda e kitsch”, em Gloria Ferreira e Cecilia Cotrim (org.), Clement Greenberg e 0 debate critico, cit. % Tbidem, p. 107. O esgotamento da forma critica como valor estético * 189 Pois, para Schoenberg do perfodo dodecafinico, a verdade ena uma questio de construgao formal coerente, e nao de adequagao a regras natu- ralizadas de disposicao do sonoro. Nesse sentido, podemos seguir a afir- magio feliz de Antonia Soulez: “Segundo Schoenberg, que toma do légico esse ideal sintatico do verdadeiro, a meisica pensa na mesma me- dida em que, por e através dela, articulam-se leis do verdadeiro segundo uma certa gramatica”*6, A racionalizacio € seu extremo Sabemos como algo dessa nogao de forma critica capaz de desvelar a aparéncia estética servird de guia para boa parte da vanguarda musical da Ultima metade do século XX. E pensando no advento de tal forma que Pierre Boulez, por exemplo, falar de uma “necessidade incontor- navel da linguagem musical”, que deve obedecer a “leis absolutas da histéria”. Boulez quer, com isso, levar ao extremo a “desnaturalizacio” da racionalidade musical do tonalismo. “A era de Rameau e seus prin- cipios naturais est definitivamente abolida”, diz Boulez, a fim de insis- tir que nenhum resquicio da linguagem musical deve ficar imune a uma critica da reificago. “Aqueles que irio me objetar que, partindo do fe- némeno concreto, obedecem A natureza, as leis da natureza, eu respon- derei, sempre segundo Rougier: ‘damos o nome de leis da natureza a formulas que simbolizam a rotina da experiéncia’.2” Tal critica & reificacao da linguagem musical nao iré poupar nem sequer Schoenberg, Ao contrério, o dodecafonismo de Schoenberg aparece para Boulez como um fracasso histérico, como um “roman. tismo-classicismo deformado”. Para Boulez, se a miisica serial de Schoenberg estava destinada ao fracasso, era porque “a exploracao do dominio serial foi feito de maneira unilateral; falta o plano ritmico, e mesmo o plano sonoro propriamente dito, as intensidades e os ata- ques”, Ou seja, “a série intervém, em Schoenberg, como um minimo denominador comum para assegurar a unidade semantica da obra; - iseur de la forme”, em Makis Solomos, Antonia Soulez © Horacio Vaggione, Formel/informel (Paris, LHarmattan, 2003), p. 120. , Gallimard, 1975), p. 31. Antonia Souler, “Schénberg: p 7 Pierre Boulez, Penser la musique aujourd'hui (Pat 190 * Cinismo e faléncia da critica mas os elementos da linguagem assim obtidos séo organizados por uma ret6rica preexistente”®. O que Boulez afirma é: 0 dodecafonismo nao realizou seu proprio programa critico de nos liberar de toda aderéncia natural aos materiais através da posi¢ao de um contetido de verdade construtivo. Isso, s6 um serialismo integral, procedimento que submeta todos os parimetros sonoros (intensidade, duracio, altura e timbre) a um pensamento serial, poderé realizar. Assim, Boulez afirmara: “As fungoes harménicas, por exemplo, nao saberiam colocar-se agora como fungées permanentes; os fendmenos de tensio-distensio nao se colocam em absoluto nos mes- mos termos que outrora e, sobretudo, ndo mais de maneira fixa e pe- remptéria””. O que esté em jogo, pois, é 0 aprofundamento de um mesmo programa de constituigao da forma critica através da autonomi- zacao absoluta de seus processos construtivos. Boulez leva assim o ideal construtivo do pensamento serial dodeca- fonico ao extremo. Esse ideal enquanto verdade da forma musical nao teme seguir uma tendéncia varias vezes presente no modernismo: a re- construgao da racionalidade da forma musical a partir de parametros fornecidos pela racionalizagio cientifica. “Quando se estuda o pensa- mento dos matematicos ou dos fisicos de nossa época sobre as estrutu- ras (do pensamento légico, das matematicas, da teoria fisica...), perce- be-se, claramente, o imenso caminho que 0s mtisicos ainda devem percorrer antes de chegar 4 coesio de uma sintese geral.*”” A afirmacao nao podia ser mais clara: o ideal da razao musical deve ser procurado no pensamento estrutural que anima as matematicas ¢ a ciéncia. Fato que nao escapou a Adorno: Podemos dizer que os serialistas nao inventaram arbitrariamente a ma- tematizagio da mtsica, mas confirmaram um desenvolvimento que Max Weber, em sua sociologia da musica, identificou como a tendéncia dominante da mais recente histéria musical — a progressiva racionaliza- cao da mtisica. Ela alcanga sua realizacdo na construgio integral.*” Idem, Aponsamentos de aprendiz: (Sao Paulo, Perspectiva, 1983), p. 244. 2% Idem, Penser la musique aujourd'hui, cit., p. 25. % — Tbidem, p. 28. 2 "Theodor Adorno, Swierigheiten, em Gesammelte Schrifien XVII (Digitale Bibliothek, 1999), p. 269. O esgotamento da forma critica como valor estético * 191 Mas sigamos ainda o jovem Boulez. O termo “estructura” néo é aqui aleatério. De fato, ha certo estruturalismo musical em Boulez que é claramente assumido pelo proprio. O material musical vale integral- mente em razao das relagoes que ele estabelece. Boulez, citando Rougier, define seu programa: “O método axiomatic permite construir teorias puramente formais que séo redes de relagoes, dedugoes totalmente prontas, Desde entio, uma mesma forma pode set aplicada a diversas matérias, a conjuntos de objetos de natureza diferente, com a tinica condicao que esses obje- tos respeitem entre eles as mesmas relagGes que aquelas enunciadas entre os simbolos nao definidos da teoria.” Parece-me que tal enuncia- do é fundamental para o pensamento musical atual; notemos princi- palmente a tiltima parte.” Isso apenas mostra claramente como, para Boulez, e agora seguindo textualmente Lévi-Strauss, nao haveria oposi¢ao alguma entre forma e contetido (entendido aqui como 0 material musical), entre estrutura e aparéncia, pois a forma ja organiza previamente as possibilidades de significagao da matéria a ser formada, isso mesmo quando ela admite © acaso*, * Pierre Boulez, Penser la musique aujourd hui, cit., p. 29 % Essa racionalidade musical € capaz até mesmo de englobar a itracionalidade do acaso como elemento estruturador de seus procedimentos, F isso que vemos no texto “Alea” Pensando principalmente na “musica da indeterminagio” propria & John Cage ¢ em seu impulso de “perda total do sentido global da obra’, Boulez procura transformar 0 acaso em elemento construtivo previamente codificado. “Busca-se desesperadamente dominar um material por meio de esforgo rduo, tenso, vigilante e por desespero 0 acaso subsiste € se introduz por mil frestas impossiveis de calafetar... ‘E esta bom assim!’. Nao obstante, 0 ‘iltimo ardil do compositor nao seria absorver esse acaso? Por que no domesticar esse porencial ¢ forgé-lo a dar-se conta ¢ a prestar contas? Introduzir 0 acaso na composigao? Seré loucura ou, ainda, uma tentativa va? Pode ser loucura, mas uma loucura titil. De qualquer modo, adotar o acaso por fraqueza, por facilidade, entregar-se a ele, é uma forma de reméincia que se subscreve sem negar todas as prerrogativas ¢ hierarquias envolvidas na obra criada. Como conciliar entéo composigao e acaso2” (Pierre Boulez, Apontamentos de aprendiz, cit., p. 47). E a respeito dessa luta entre o determinado ¢ 0 indeterminado no interior da forma musical, dessa “organizacao do delirio”, para falar como Boulez, que Foucault dird, sobre 0 compositor francés: “Trata-se de dar a forga de romper as regras no ato mesmo que as implementa” (Michel Foucaule, Dies et écrits Il, Patis, Gallimard, 1998, p. 1040). No limite, isso levaré a forma bouleziana a uma situagao de abercura constituti- va. Lembremos a esse respeito que, a partir dos anos 1970, a maior parte do trabalho composicional de Boulez seré uma recomposigao continua de suas proprias pec 192 * Cinismo e faléncia da critica Ideologia transparente ¢ retorno & mimesis No entanto, sabemos como, principalmente a partir dos anos 1960, aarte abandona progressivamente esse programa de subtragio da fascina- cho fetichista pela aparéncia através da posicao de uma forma capaz de tematizar, de maneira integral, seus préprios processos construtivos. Ao contrario, as obras foram pensadas cada vez mais como espagos de repe- tigéo mimética da realidade social fetichizada. ‘Tendéncia que pode ser encontrada através de um longo movimento de retorno ao tonalismo, ela nos forneceu, em seus melhores momentos, 0 padrao de uma critica da critica. Adorno, por exemplo, percebeu claramente que recorrer nova- mente a mimesis com a realidade social mutilada, realidade cuja represen- tacdo musical mais bem acabada seria o tonalismo, era 0 unico modo de impedir que o formalismo serial de um programa estético de tematizagio auto-reflexiva dos processos construtivos das obras nao se transformasse em hipéstase de totalidades funcionais que nao sao mais capazes de levar em conta a resisténcia dos materiais as operagdes de sentido. Uma das fung6es maiores de sua Filosofia da nova musica consistia exatamente em fornecer os protocolos de inversio da racionalidade dodecafénica em modo puro e simples de dominagao do material, ¢ isso a fim de compreen- der tal inversao no interior da critica & racionalidade instrumental com seus mtiltiplos processos de dominagao da natureza. Por essa razio, Adorno est disposto até mesmo a insistit que a arte no deveria mais procurar o absoluto de sua subtracao integral ao fetiche através da autonomizacao integral de sua esfera e da consolidac4o de um sistema estrutural fechado de producao de significagées. Na verdade, ela deveria repetir mimeticamente a realidade fetichizada, j4 que “a arte é obrigada [a confrontar-se com o fetiche] em virtude da realidade social. Ao mesmo tempo em que se opée a sociedade, ela nao é, no entanto, capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior & sociedade”™. No entanto, essa exigéncia de retorno a realidade social fetichizada foi muitas vezes compreendida no interior de um quadro de deposicio da forma critica. Se voltarmos nossos olhos para as artes visuais, veremos criticos como Pierre Restany (que escteve na mesma época em que Adorno pensava uma Teoria estética baseada no resgate da mimesis) “Theodor Adorno, Asthetische Theorie (Frankfurt, Suhrkamp, 1973), p. 201. O esgotamento da forma critica como valor estético * 193 chegar a afirmar que “a arte abstrata recusava por definicao todo apelo da realidade exterior: arte de evasio e de recusa do mundo, correspondeu & manifestagio extrema de uma visio pessimista da condigao humana”, mas as vanguardas pdés-1960 seriam realistas por terem superado esse “mito negativo”. Daf esta definicio peculiar de realismo: “O realismo nao discute nem o contexto nem o cendrio de sua vida: identifica-se com o real [que, em uma situacao social de integracao de todas as esfe- ras de valores & dinmica do fetichismo da mercadoria, s6 pode signifi- car teal da forma-mercadoria, ow seja, posicao da forma-mercadoria como dispositivo fundamental de constituicao de nossa experiéncia da realidade — 0 que a pop art compreendeu de maneira absolutamente clara], nele se insere, se integra”’. Ao tematizar essa adesao da arte & realidade social, Restany chega mesmo a prever uma mudanga radical da fungao social da arte que s6 ser4 sentida de maneira decisiva a partir dos anos 1980: a transformacao do potencial disruptivo da arte de van- guarda em glamour disponibilizado para os setores de consumo conspi- cuo, como a moda e o design. No mundo automatizado de amanha, 0 problema capital serd a utili- zacao do tempo livre. O artista aparecerd ento, ndéo mais como um paria ou um revoltado, mas como o engenheiro e 0 poeta de nossos lazetes. Seu papel na sociedade ser4 central e determinante, cle se ver promovido aos mais altos nfveis da hierarquia tecnocrata.*” Podemos tentar entender tal esgotamento da forma critica levando em conta problemas internos a racionalidade da forma estética no sécu- lo XX. Mas devemos também estar atentos para uma dimensio “exte- rior” do problema que é normalmente negligenciada. Grosso modo, é possivel afirmar que a concepgao de forma critica que vigorou de maneira hegeménica no modernismo tem forca em si- tuagées hist6ricas nas quais a ideologia pode ser pensada como recalca- mento de seus pressupostos, como bloqueio da passagem da aparéncia Pierre Restany, Os novos realistas (Sao Paulo, Perspectiva, 1979), p. 111 % — Tbidem, p. 140. ¥ Tbidem, p. 150. Tomo a liberdade de remeter a0 meu artigo “Fetichismo mimesis na filosofia adornia- na da musica”, Revista Discurso, Sao Paulo, Alameda, n. 37, no prelo 194 * Cinismo e faléncia da critica para a esséncia. A obra de arte se estrutura a partir da dinamica dispo- nivel & critica social com suas teméticas da alienagio da consciéncia no A idéia benjaminiana de critica dominio da reificagao da aparéncia. como “distancia correta” sé pode ser operativa diante de mecanismos ideolégicos dessa natureza. No entanto, ela serd marcada com 0 selo da obsolescéncia ao deparar-se com uma realidade social na qual a ideolo- gia nao responde a tais coordenadas. Nesse sentido, devemos insistir neste diagnéstico, j4 comentado em capitulos anteriores, sobre a ideologia ser, atualmente, auto-irbnica. Des- sa forma, a critica como “correta distancia” seria imposstvel porque a ideologia j4 opera, a todo momento, uma distancia reflexiva em relacao aquilo que ela propria enuncia. Ou seja, a forma critica esgotou-se por- que a realidade internalizou as estratégias da critica. De Stravinsky ao novo tonalismo: uma arqueologia da forma cinica Esse € 0 quadro social de andlise do que poderfamos chamar de “novo tonalismo”, ou seja, dessa tendéncia cada vez mais hegeménica na contemporaneidade de retornar & nogées como centro tonal ¢ pul- sacao regular. Tendéncia maior no contexto musical anglo-saxo (Steve Reich, John Adams, Terry Riley, Phillip Glass, Thomas Adés, Howard Skeptom, entre outros) ¢ eslavo (Arvo Part, Schnittke, Penderecki). Primeiro, devemos salientar que 0 retorno ao uso de materiais tonais na composi¢4o musical traz problemas simétricos aqueles pos- tos pelo retorno a mimesis nas artes visuais da segunda metade do sé- culo XX. Nos dois casos, materiais ¢ procedimentos alvos de criticas estéticas virulentas retornam, mas normalmente sem for¢a para preen- cher as fungdes outrora desempenhadas e sem a capacidade de operar no interior de uma légica da naturalizagao. Depois da emancipacio da dissondncia, nao ha como se servir do sistema tonal enquanto principio organizador de totalidades funcionais e de progressio harménica fun- damentado de maneira segura. O que nos deixa com a questao de saber o que pode significar retornar a um material que traz as marcas de sua impoténcia e de seu esgotamento sécio-histérico, material em crise de legitimidade. Posicéo de esgotamento e crise nem sempre partilhada. Basta lembrarmos aqui o que afirma Steve Reich: “Para mim, principios O esgotamento da forma critica como valor estético * 195 naturais de ressonancia e da percepgao musical humana nao sao limita- bes; so fatos da vida”, ¢ isso a fim de insistir que a realidade de um centro modal é realidade tanto em misicas ocidentais como néo oci- dentais. No entanto, mesmo no caso de Reich nao ha exatamente um uso do tonalismo enquanto sistema funcional de progresséo, mas como principio de encadeamento de repeticdes e de gravitagao unificadora dos momentos. Mas da mesma forma que a mtisica forneceu as artes do século XX um padrao de racionalidade da forma critica através dos protocolos de autonomizacao reflexiva da forma, ela talvez tenha sido a primeira arte a fornecer uma figura de esgotamento de tal racionalidade através de um tratamento parddico do que se coloca como aparéncia estética. For- ma parddica que ganha paulatinamente centralidade 4 medida que a ideologia vai se revelando como ideologia da ironizagao. Essa forma, ao invés de organizar-se como uma critica da aparéncia por meio da visi- bilidade integral da estrutura, organiza-se como a submisso integral do material a um “principio de estilizacao”. O material aparece normal- mente como 0 representante de um estilo codificado, elemento congelado como uma imagem-cliché. A obra torna-se “jogo” com materiais feti- chizados. Caminho que poderia nos levar, simplesmente, 4 composigao de obras “regressivas”, se tais materiais fetichizados nao fossem tratados como aparéncias postas como aparéncia. Dessa maneira, a forma parédica realiza cinicamente 0 programa que a forma critica, na modernidade, colocou para si: portar em si mesma sua propria negacdo, jd ser, em si mesma, a performance de uma distancia correta em relac4o a sistemas naturalizados de representagdes (como € 0 caso do sistema tonal). Novamente, é Adorno quem compreendeu essa estranha comple- mentaridade entre critica e parddia ou, ainda, entre critica e cinismo. Nesse quadro, sua confrontagao entre Schoenberg ¢ Stravinsky tende a ganhar outro contorno. Essa discussio me parece atual, ja que Stravinsky, de maneira sintomatica, pode nos oferecer 0 quadro de compreensao para a racionalidade dos dispositivos formais que estruturam varios pro- gramas-chave no interior do novo tonalismo. Ha, por exemplo, uma li- nha reta que vai de Stravinsky até John Adams e Thomas Adés. % Steve Reich, Writings about music (Oxford, Oxford University Press, 2002), p. 159. 196 * Cinismo e faléncia da critica Da multitude de questées que Adorno endereca & obra de Stra- vinsky, guardemos principalmente sua maneira de vé-la como um jogo infinito de mAscaras. Jogo que se torna mais visivel através da passagem de Stravinsky em diregao ao neoclacissismo. Normalmente, a critica indica o neoclassicismo do balé Pulcinella, de 1920, como o momento de uma virada nos procedimentos composicionais de Stravinsky, mas Adorno insiste que A histéria do soldado, de 1918, jé é composta a partir de procedimentos que determinaréo a forma musical, em Stravinsky, de maneira cada vez mais hegemdnica. Isso porque, a partir de A histéria do soldado, 0 tinico material de composi¢ao sera o material mutilado vindo de formas gastas do sistema tonal, materiais po- bres, conveng6es deterioradas que se mostram enquanto tais. Adorno ja indicara algo dessa tendéncia ao perceber que, em virtude do principio artistico da recusa e de certo anti-humanismo, os momentos de inflex6es expressivas em Stravinsky eram, normalmente, sucessées sonoras elemen- tares, Desde Petrushka, a expressio torna-se grotesca, tisivel e conjugada apenas a uma gramatica claramente posta como ultrapassada, como se “a imago do deteriorado e decrépito devesse transformar-se no remédio con- tra a desintegracao [Zerfalls]”"°. Esse remédio contra a decadéncia do to- nalismo sintetizado com imagens de elementos deteriorados do préprio sistema ser, nao apenas o motor da fase neocléssica de Stravinsky, mas também procedimento composicional maior para a compreensao do que estd em jogo no resgate contemporaneo do tonalismo. Acesse respeito, devemos levar a sério a afirmagao adorniana de que © compositor que segue a légica em operagio nas obras de Stravinsky compée com “ruinas de mercadorias [ Warentriimmern]”, no sentido de assumir formas ¢ elementos fetichizados que se afirmam enquanto tal, como se esse material jé estivesse previamente criticado, como se trouxes- se em si sua prépria negaco e afirmasse sua propria impossibilidade de desempenhar suas “fung6es naturais”. E isso que Adorno tem em mente ao dizer que Stravinsky compée como quem “ritualiza a liquidagio”# (Ausverkauf, “liquidacio”, no sentido de proposigées como “uma loja em liquidac4o”). Daf a idéia adorniana de afirmar que isso nada mais é do que uma forma musical parédica, forma que apresenta todos os seus “© Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik, cit.. p. 135 * Ibidem, p. 166. O esgotamento da forma critica como valor estético * 197 materiais entre parénteses, como se estivéssemos diante de uma “musica feita a partir da musica”, ou de uma montagem de misicas mortas, musica feita contra a musica. Tudo se passa como se o fazer tomasse consciéncia de si através da ironia e se afirmasse abertamente enquanto tal. Mtisica que, de maneira cinica, zomba da norma com o mesmo folego que a afirma, ou seja, forma estética capaz de suspender a norma exatamente ao segui-la. Maneira astuta de conservar e repetir materiais esgotados do ponto de vista de situa¢ao sécio-histérica. E por causa desse ponto que Adorno péde afirmar, em 1962: Stravinsky continua sendo um escindalo porque, prestidigitador du- rante toda a vida, ele fez aparecer (Erseheinung) a inautenticidade da objetividade através de uma feigao caricata. O que afastou suia mtisica de todo provincianismo é que ela nunca deixou de mostrar seus tru- ques, como apenas os mégicos inimitdveis podem se permitir.*? Sua consciéncia de que apenas uma “linguagem orginica em de- composi¢ao” era possfvel & mtisica que aspira a afirmar-se como forma ctitica nos leva a indicé-lo como exemplo privilegiado de alguém que procura expor o colapso da distingao entre arte e fetichismo, mas no interior de estruturas claramente fetichizadas. E claro que sempre se pode dizer que “a mtisica de Stravinsky é mais do que meramente idéntica & consciéncia reificada. Ela a ultrapassa (binausreiche) na medida em que a contempla em siléncio ¢ silenciosa- mente a deixa falar”. No entanto, ela é a forma do paradoxo de uma consciéncia reificada auto-reflexiva ou de uma falsa consciéncia esclareci- da. Forma de uma consciéncia cinica que repete os gestos musicais de uma consciéncia reificada, mas que demonstra a todo momento, seja pela excessiva forga, seja pelos cortes e pelas justaposigGes, tomar distin- cia de seu préprio gestual. Se pensarmos em compositores contemporaneos como John Adams (“o maior compositor da América”) ¢ Thomas Adés, veremos que tais processos composicionais continuaram, mas levados ao paroxismo. 2 Idem, Quasi una fantasia, em Gesammelte Schrifien XVI (Digitale Bibliothek Band, 1999), p. 383. Ibidem, p. 385.

Você também pode gostar