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Hubert L. Dreyfus ¢ Paul Rabinow MICHEL FOUCAULT Uma Trajetoria Filosofica Para além do estruturalismo eda hermenéutica Tradu¢ao: Vera Porta Carrera Introdugéo; Traduzida por Antonio Carlos Maia FORENSE UNIVERSITARIA O Sujeito e o Poder Miche! Foucault I Por que estudar 0 poder: & questiio do sujeito” As idéias que eu gostaria de discutic aqui nao representam nem uma teoria nem uma metodologia. Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi 0 objetivo do meu tabalho nos Ultimes vinte anos. Nao foi analisar o fendmeno do poder nem elabotar 05 fundamentos de tal anilise. Meu objetivo, a0 contrdrio, foi criar uma hist6ria dos diferentes modes pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se¢ sujeitos. Meu trabalho lidou com trés imodos de objetivagio que tennsfortaacs os seres: humanos em sujeitos. © primeiro ¢ 0 modo da investigago, que tenta atingir 0 estatuto de ciéncia, coma, por exemplo, a objetivagdo de sujeito do discurso na gram- maire générale,’ na filologia ¢ na lingdistica. Ou, ainda, a objetivagio do Stjeito produtivo, do sujcito que trabalha, na analise das riquezas ¢ na economia. Qu, um terceiro exemplo, a objetivagio do simples fatc de estar vivo na historia nanural ou na biologia. Na segunda parte do meu crabalho, estudei a abjetivagio do sujeito saaquilo que eu chamarei de “*préticas divisoras”’. O sujeito é dividido no seu interior ¢ ¢m relagde aos outros, Este processo 0 abjetiva. Exemplos: 0 louco € oso, 0 deente eo sadio, os criminosos e 08 “bons meninos’*. 1 Em francés, no original (N. do T.). * Este texte fol escritoem inglés por Michel Fouesud, 21 Finalmente, tentei estudar — meu trabalho atual — o modo peloqual um ser humano tottia-se um sujeite. Por exemplo, eu escothi o dominio da sexuslidade — como os homens aprenderam a se reconhecer como sujcitos de *‘sexualidade*’. Assim, nio & 0 poder, mas 0 sujeito, que constitui o tema geral de minha pesquisa. E verdade que me envolvi bastante com a questo do poder. Pateceu- me que, enquanto 0 sujcito-humano é colecado cm relages de produgio e de significag&o, é igualmente colocado em relagies de poder muito complexas. Ora, pareceu-me que a hjstjria ¢ 9 teoria econGmica forneciam um bom instrumento pata as relagdes de produgdo ¢ que a lingilistica ¢ a semidtica ofereciam instrumentos para estudar as relaghes de significagao; porém, para as relagdes de poder, no temos instrumentos de trabalho. © tinico recurso quc temos sdo os modos de pensar o poder com base nos modelos legais, isto 0 gue legitima © poder? Ou chiao, modos de pensar o poder de acorde com um modelo institucional, isto é: o que é o Estado? Era, portanto, necessitio estender as dimensdes de uma definigéo de poder se quiséssemos usd-la ao estudar a objetivagao do sujeito. Serd preciso uma teoria do poder? Uma vez que uma teoria assume uma objetivagao prévia, cla no pode ser afirmada como uma base para um trabalho analitico. Porém, este trabalho analitice naio pode proceder sem uma conceitiagio dos problemas tratadas, conceituagio esta que implica um Pensatiento critico — uma verificagdo constante. A primeira coisa a verificar 9 que cu deveria chamar de. **necessi- dades conceituais’*. Eu compreendo que a conceituagio nio deveria estar Tundada numa teotia do objeto — 0 objeto canceituads ndo ¢ 0 tinice critétio de uma boa conceituagdo. Temos que conhecer as condi¢des historicas que motivam nossa conccituag&o. Necessitamos de uma consciéncia historica da situagdo presente. A. segunde coisa a ser verilieada ¢ 0 tipo de realidade com a qual estamos lidando. Certa vez, um escritor expressou, num jornal francés bem conhecido, sua surpresa: “Por que a nooo de poder é discutida por tantas pessoas hoje em dia? Trata-se de um tema to importante? E ela tio independente que pode ser discutida sem se levat em considetagiio outros problemas?” A surpresa deste escritor me surpreende. Nao acredito que esta questao tenha sido levantada pela primeira vez no século XX. De qualquer maneira, nio se trata, para nds, apenas de uma questéo tedrica, mas de uma parte de nossa experiéneia. Gostaria de mencionar duas ““formas patolégi- cas” — aquelas duas ‘‘decngas do poder'* — o fascismo ¢ o estalinisino, Uma das numerosas razées pelas quais elas so, para nds, 40 perturbadoras é qe, apesar de sua singularidade histérica, elas nao sic originais. Blas 232 utilizam ¢ expandem mecanismos j4 presentes na maioria das sociedades. Mais do que isto: apesar de sua propria loncura interna, utilizaram ampla- mente as idéias ¢ 0s artificios de nossa racionalidade politica, O que necessitamos € de uma nova economia das relagdes de poder — entendendo-se economia mum sentido tedrico ¢ pratico. Em outras palavras: desde Kant, o papel da fUlosofia ¢ prevenit a tazio de ultrapassat ‘0s limites daquilo que é dado na experiéncia; porém, 20 mesmo tempo — isto é, desde © desenvolvimento do Estado moderno ¢ da gestio politica da socicdade —, 0 papel da filosofia é também vigiar os excessives poderes da racionalidade politica, O que é, alids, uma expectativa muito grande . ‘Todos tém consciéncia de tais falas téo banais. Porétn, o fato de serem. banais nfo significa que nio cxistam. O que temos que fazer com eles é descobrit — ou tentar descobrir — que problema especifico ¢ talvez original a eles se relaciona. ‘A relagdo entce a tuclonalizagéo © os excesses do poder politico ¢ evidente. E nao deveciamos precisar esperar pela burocracia ou pelos campos de concentragao para reconhecer a existéncia de tais relagces. Mas o problema é: o que fazer com um fato tio evidente? Devemos julgar a razdo? Em minha opiniao, nada seria mais estéril. Primeiro, porque o campo a ser trabalhado ado tem nada a ver com a culpa ‘outa inocéncia. Segundo, porque no tem sentido refetir-se a raza como uma entidade contréria 4 ndo-rezao, Por ultimo, porque tal julgamento nas con- denaria a representar o papel arhitririo ¢ enfadonho do racionalista ou do irracionalista. Devemos investigar este tipo de racionalisme que parece especifico da culmira moderna e que se origina na Aufkidrung?’ Acredito que esta foi a abordagem de alguns membros da Escola de Frankfurt. Mcu objetivo, con- tudo, no é iniciar uma diseusséo em seus trabalbos, apesat de serem, na amnior parte, importantes ¢ valioses. Ao contrario, eu sugeriria uma outa forma de investigagdo das relagdes entre a racionalizagdo € 0 poder. Seria mais sibio no considerarmos como um todo a racionalizagéo da sociedade ov da cultura, mas analisé-la como um processo em varios campos, cada um dos quais com uma referéncia a uma experiéncia funda- mental: loucura, doenga, morte, crime, sexualidade ete, Considero a palavra racionatizacdo perigosa.O que devemos fazer é analisar racionalidades especificas mais do que evocar constantemente o progresso da racionalizagio em geral. A despcito da Aufkidrung ter sido uma fase muito importante da nossa histris e do desenvolvimento da tecnologia politiea, acredita termos que nos 2 Em alemiono original (N. doT.). 233 seferir a processes muito mais remotos se quisermos compreender como fomos captrados em nossé propria histéria. Gosteria de sugerit uma outra forma de prosseguir em diregio a uma nova economia das relagdes de poder, que é mais empitica, mais ditetamente #elacionada 4 nossa situag@o presente, e que implica relagdes mais estreitas entre a teoria c a pratica. Ela consiste em usar as formas de resisténcia contra as diferentes formas de poder como um ponto de partida. Para usat uma outra metéfora, cla consiste cm usar esta resisténcia como um catalisador quimico de modo a esclarecer as relagdes de poder, localizar sua posigao, descobrir seu ponto de aplicagao ¢ os métodos ntilizados. Mais do que analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, ela consiste ¢m analisar as relagdes de poder através do antagonismo das estratégias. Pot cxemplo, para descabrit o que significa, na nossa sociedade, a sanidade, talvezdevéssemos investigar o que ocorre no campo da insanidades e 0 que se compreende por legalidade, no campo da ilegalidade, E, para compreender o que sao as relagdes de poder, talvez devéssemos investigaras formas de resisténcia ¢ as tentativas de dissociar estas relagdes. Para comegar, tomemos uma série de oposigdes que se desenvolveram nos Ultimos anos: oposi¢o.ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais sobre os filhos, do psiquiatrs sobre o doente mental, da medicina sobre a popnlacao, da administragao sobre os modos de vida das pessoas. Nao basta afitmar que estas sic lutas antiautoritarias; devernos tentar definir mais precisamente o que elas tém em comum. 1) Sao lutas “‘transversais"; iste ¢, ndo sde limitadas a um pais. Sem diivida, desenvolvem-se mais facitmente ¢ de forma mais abrangente em cerlas paises, potém nao estZo confinadas a unia forma politica s econémica particular de governo. 2) O objetivo destas hitas so 0s efeitos de poder enquanto tal. Por exemplo, a profissiéo médica ndo é criticada essencialmente por ser um empreendimento lucrativo, porém, porque ¢xerce, um poder sem controtc, sobte os corpos das pessoas, sua saude, sua vida ¢ morte. 3) Sao lutas **imediatas™* por duas zazSes. Em tais Jutas, criticam-se as insliincias de: poder que lhes so mais proximas, aquelas que exercem sua agio sobre os individuos, Elas no objetivam o “inimigo mor’, mas o inimigo imediato. Nem esperam encontrar uma solugio para seus problemas ho futuro {isto é, liberagdes, revolugies, fim da luta de classe). Em relagdo a uma escala tedrica de explicagéio ov uma ordem revoluciondris que polariza © historlador, so lutas anirguicas. Porém, estes ndo sdo seus aspectos mais originals; os que se seguem me parecem mais especificos: 4) So liitas que questionam o estatto do individuo: pot unt lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que toma os individues verdadeitamente individoais. Por outro lado, atacam tudo aquilo 234 que separa o individuo, que quebra sua relagdo com os outros, fragnenta's vida comunitiria, forga o individuo a se volear para si mesmo ¢ o liga a sua propria identidade de um modo coercitivo. Estas lutas offo séo ¢xatamente nem a favor nem contra 0 “‘i dividuo"*; mais que isto, sio batalhas contra o “governo da individuali- 5) Siio uma oposigia aes efeitos de poder relacionados ao saber, i competéncia ¢ 4 qualificagio: lutas contra. os privilégios do saber. Porém, sio também uma aposi¢fic ao segredo, a deformagio ¢ is representagdes mistifi- cadoras impostas 4s pessoas. Nao hé nada de “‘cientificista™ nisto (ou seja, uinia crenga dogmiitica no valor do saber cientifico), nem é uma recusa cética on relativista de toda verdade verificada, O que ¢ questionado € a maneira pela qual o saber circula ¢ funciona, suas relagdes com o poder, Em resumd, 0 régime du savoir? 6) Finalmente, todas estas lutas contemporaness giram em torno da questio: quem somos nds? Elas so uma recusa a estas absiragbes, do estado de violéncia econdmico ¢ ideolégico, que ignora quem somos individual- mente, ¢ também uma recusa de uma investigagao cientifica ou administra- tiva que determina quem somos. ‘Em sums, o principal objetivo destas lutas ¢ atacar, no tanto “tal ow tal” instituig¢do de pader ou grape ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder. ‘Esta forma de poderaplica-se a vida cotidiana imediata que categoriza © individue, marca-o com sua prdptia individualjdade, liga-o a sua propria identidade, impée-the uma lei de verdade, que devemos reconhecer ¢ que os outros tém que reconhecer nele. E uma forma de poder que faz dosindividuos sujeitos. Hii dois significados para a palavra sujeito: sujcito a alguém pelo controle ¢ dependéncia, ¢ preso d sua proprin identidade por uma consciéncia on antoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga ¢ tora sujeito a. ‘Geralmente, pode-se dizer que existem trés tipos de lutas: contra as formas de dominagéo (étnica, social e religiosa); contra as formas de ex- ploragéo que separam os ihdividuos daquilo.que eles ptoduzem; ou contta aquilo que liga o individuo a si mesmo e o submete, deste mado, a0s outros (Iutas contra a sujeicao, contra as formas de subjetivacao e sub- missio). Actedito que na histéria podemos encontrar muitos ¢xemplos destes trés tipos de lutas socinis, isoladas umas das outras ou misturadas entre si. Poem, mesmo quando estac misturadas, ume delas, na maior parte do tempo, prevalece. Por exemplo, nas sociedades fendais, as lutas 3 Em frincés ne original (N. do T.). 235 contra as formas de dominagdo ética on social prevaleciam, mesmo que a exploragéo econémica possa tersido muito importante come uma das causas de revolta. No séenlo XIX, a luta contra a exploragéo surgiu em primeiro plano. FE, atualmente, a futa contra as formas de sujeigio — contra a sub- missdo da subjetividade — esti se tornando cada vez mais. importante, a despeito de as lutas contra as formas de dominagao ¢ exploracio ado terem desapatecido. Muito pelo contrario. Bu suponho que no ¢ a primeira vex que a nossa socicdade se confrontou com ¢st¢ tipo de luta. Todos aqueles movimentos dos séculos XV ¢ XVI, e que tiveram a Reforma como expressio e resultado maximes, poderiam ser analisados como uma grande crise da experiéncia ocidental da ‘subjetividade, e como uma revolta contra 0 tipo de poder religioso ¢ moral que deu fc na Idade Média, a esta subjetividade. A necessidade de ter uma participagio ditela na vide expititual, no trabalho de salvagdo, na verdade que repousa nas Escrituras ~~ tudo isto foi uma Juta por wma nova subjetividade. Eu sei que objecdes podem set feitas. Podemos dizer que todos os tipos de sujeicao séo fenémenos derivados, que'sdo meras consegiiéncias de outros processes ecomémicos ¢ socisis: forgas de produgiio, Inta de classe ¢ estruturas ideoldgicas que determinam a forma de subjetividade. Sem divida, os mecanismes desujcigao nda podem ser estudados fora de sua relagSo com os mecanismos de exploragao ¢ dominagic. Porém, no constitucm apenas 0 ‘terminal’? de raccanismos mais fundamentais. Eles mantém relagGes complexas ¢ circulares com outras formas. A razio pela qual este tipa de luta tende a prevalecer em nossa soviedade deve-se ao fato de que, desde o século XVI, uma nova forma politica de poder se desenvotveu de modo continuo. Esta nova estrutura politica, como todos sabem, ¢ o Estado, Porém, a maior parte do tempo, 0 Estado & cousiderade um tipo de poder politics que ignors os individues, ‘ecupando-se apenas com os interesses da totatidade ou, eu diris, de uma ¢lasse ou tim grupo dentte as cidadaas. Bisto é verdade. Mes eu gosteria de enfatizar o fato de que 0 poder do Estado (e esta é uma des razdes da sua fora) ¢ uma forma de poder tanto individualizente quanto totalizadora. Acho que nunca, pa bistérin das so- ciedades humanas — mesino na antiga sociedade chinesa —, houve, no interior das mesmas estruturas politicas, uma combinagdo tio astuciosa das técnicas de individualizagao ¢ dos procedimentos de totalizagio. Isto se deve ao fato de que o Estado moderno ocidental integrou, numa nova forma politica, uma antiga tecnologia de poder, originada nas insti- tuigées cristiis. Podemos chamar esta tecnologia de poder pastoral. Antes de mais nada, algumas palavras sobre este poder pastoral. 236 Dizia-se que > cristianismo havia gerado um cédigo de ética funda- mentalmente diferente daquete do mundo antigo. Em geral, enfatiza-se menos 0 fato de que ele propds ¢ ampliou as novas relagdes de poder no mundo antigo. O ctistianisme é a tinica religido a se organizar como uma Igscja. E como tal, postula © principio de que certos individues podem, por sua qualidade religiosa, servir a outros nfo como principes, magistrados, pro- fetas, adivinhos, benfeitores ¢ educadores, mas como pastotes. Contudo, esta palavra designe uma forma muito especifica de poder. 1) E uta fortta de poder cujo objetive final é assegurar a salvagio individual no outro mundo. 2) © poder pastoral ndo ¢ apenas uma forma de poder que comanda; deve também estar preparado para se sactificar pela vida e pela salvagio do rebanho. Portanto, € diferente do poder real que exige um sacrificio de seus stiditos para salvar trono. 3) Euma forma de poder que nao cuida apenas da comunidade como un todo, mas de cada individue em particular, durante toda a sua vida. 4) Finalmemte, esta forma de poder nado pode ser exercida sem 0 conhecimento-da mente das pessoas, sem explozar suas almas, sem fazer-lhes revelar os seus segredos mais (ntimos. Implica um saber da consciéncia ¢ a capacidade de dirigi-la. Esta forma de poder ¢ orjentada para 4 salvagdo (por oposigio ao poder politico). E oblativa (por oposigao a0 principio da soberania); & individualizante (por oposigao ao poder juridico); ¢ co-extensiva 4 vida ¢ constitu! seu prolongamento; ests ligada a produgaoda verdade — a verdade do proprio individuo. ‘Mas podemos dizer que tudo isto faz parte da historia; a pastoral, se no desapareceu, pelo menos perdeu a parte principal de sua eficécia. Isto é vetdade, mas suponho que deveriamos distinguir dois aspec- tos do peder pastoral — por um lado, a institucionalizagio cclasidstica, que desapareceu ou pelo menes perdeu sua forga desde osécule XVILL, ¢, por outro, sua fungao, que se ampliou ¢ se multiplicou fora da instituigio eclesiastica. Um fendmene importante ocorren ne século XVIII — uma nova distribuicdo, uma nowa organizagdo deste tipo de poder individuaiizante. Nao acredito que devéssemos considerar o *‘Estado moderno"’ como uma enlidade que se desenvolveu acima dos individues, ignorando 0 que eles siio ¢ até mesmo sua propria existéncia, mas, ao commnario, como uma esirutura muito sofisticada, na qual os individues podem ser integrados sob uma condigao: que a esta individualidade se atribuisse uma nova forma, submetendo-a a um conjunto de modelos muito ¢specificos. De certa forma, podemos considerar 0 Estado como « matriz moderna do individualizago ou uma nova forma do poder pastoral. 237 Algumas palavras mais sobre este podet pastoral. 1) Podemos observar uma mudanga em seu objetivo. Jd nio se tata mais de uma questo de dirigir o povo para a sua salva¢ao no outro mundo, mas, antes, assegurd-la neste mundo, E, neste contexto, a palavia sdfvacdo tem diversos significadas: saiide, bem-cstar (isto ¢, riqucza suficiente, padriio de vida), seguranga, protegio contra acidentes. Uma série de objectives **qaundanas*” surgiu das objetivos religiosos da pastoral tradicional, e com mais facilidade, porque esta tiltima, por varias razdes, atribuiu-se alguns destes objetivos como acessdrio; (emos apenas que pensar no papel da medicina ¢ sua fungio de bem-cstar asscgurados, por muito tempo, pelas Tgrejas catélica ¢ protestante. 2) Concomitantemente, houve um tefotgo da administragio do poder pastoral. As vezes, csta forma de poder era cxercida pelo aparclho do Estado ou, pelo menos, por uma instituigao publica como a policia, (Nao nes esquegamos de que » forga policial nao foi laventada, no século XVIII, apenas para mantez a lei ¢ a ordem, nem pata assistir os governos em sua luta contra seus inimigos, mas para assegurar a manutengao, a higiene, a satide ¢ os padrées. urbanos, ‘considerados necessaries para o attesanato ¢ 0 comér cio.) Quiras vezes, o pader se exercia através de empreendimentos privados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores ¢, de um modo geral, de filan- tropos. Perém, as institnigSes antigas como a familia eram igualmente mo- bilizadas, nesta ¢poca, para assumir funges pastorais. Tambem era exercido por estruturas complexas como a medicina, que incluiam as iniciativas privadas, com venda de servigos com base na cconomia de mercado, mas que incluiam instituigdes piblieas como os hospitais. 3) Finalmente, a multiplicagéio dos objetivos ¢ agentes do poder pastoral enfocava © desenvolvimento do saber sobre o homem: em toro de dois pélos: um, globalizador e quantitative, concemente & populagdo; 0 ‘outro, analitico, concernente ao individuo. E ists implica que o poder do tipo pastoral, que durante séculos — por mais de um milénio — foi associado a uma instituigae religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo © corpo social; encontcou apoio numa multiplicidade de instituigdes. E, em vez de um poder pastoral ¢de um poder politico, mais ou menos ligados um ao outro, mais ou menos Tivais, havia uma “titica™ individualizante que caracterizava uma série de poderts da familia, da medicina, da psiquiatria; da educagdo ¢ dos empre- gadores. No final do sécnle XVIII, Kant escteveu, num jornal aleméo — 0 Berliner Monatschrift —, um pequeno texto. O titulo era Was heisst Aufh- ddrung? que foi por muitot tempo, cainds é, consideradoum trabalho de pouca ‘importineia. Porém, hfio posso deixar de aché-lo muito interessante € perturbador, visto que foi a primeita vez que um fildsofo propdés, como uma tarefa 238 filoséfica, a investig agéo nao apenas do sistema metafisico ou dos fundamen- tos do conhecimento cientifico, mas um acontecimento histérice — uba aconiecimento recente ¢ alé mesmo contemporinco. Quando, em 1784, Kant perguntou: Was heise Anfilarung?, ole queria dizet: o que esté acontecendo neste momento? O que esti acontecende conosco? ‘Oque € este mundo, esta época, este momento preciso em que vivemos? Em outras palavras: o que somos, enquanto Aukidrer, enquanto parte do Tuminismo? Fagamos uma comparacio com a questo enrtesiana: quem sou cu? En, enquante sujeito Gnico, mas universal ¢ a-histérico — eu para Descartes é todo mundo, em tode lugar ¢ a todo momento? Kant, porém, pergunta algo mais: o que somos nés? num momento muito preciso da historia. A questic de Kant aparece como uma andlise de quem somas nds ¢ do nosso presente. Creio que este aspecto da filosofia adquiriu cada vez maiot importin- cin. Hegel, Nietzsche ... © omtro aspecto da ““filosofia universal” nic desapareceu. Mas a tarefa da filosofia como uma anilise critica de nosso mundo tomou-se algo cada Vez mais importante. Talvez, o mais evidente dos problemas filossficos scja a questo do tempo presente ¢ daquilo que somos neste exato momeato. Talvez, o objetivo hoje em dia nao seja descobrir 0 que somos, mas recusaro.quesomis. Temos que imaginar e constmir o que poderiamos set para nos livrarmos deste “duplo constrangimento”’ politico, que € a simultanca individualizagio e totalizagdo propria ds estrumuras do pader modemo. ‘A conclusio seria que o problema politico, ético, social filoséfico de nossos dias ndo consiste em tentar liberar o individuo do Estado nem das instituigdes do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualizagéo que a ele se lign. Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto h4 varios séculos. ‘Como se exerce 0 poder?” Para certas pessoas, interrogar-se sobre 0 ‘*como” do poder seria limitar-se a descrever seus efeitos, sem nunca telaciond-los nem a causas nem. # uma natureza. Seria fazer deste poder uma substincia misteriosa que, sem divida, se cvita interrogar em si mesina, por preferir ndo “colocd-la em questio”’, Neste mecanismo, que nao se explicita racionalmente, suspeita-se de um fatalismo. Mas sua desconfianga nic nos mostra que elas supdem que © poder ¢ algo que existe com sua origem, sua natureza c suas manifestag3es? * Este testo foi uaduzide do original em francés. (N. do T.} 239 Se provisorlamente atribue um certo privilégioa questo do “como”, niio é que eu deseje eliminar a questio do qué ¢ do porqué. E para colocd-las de outro modo; ow melhor: para saber se ¢ legitimo itmaginar um “poder que reane am qué, um porqué, e um como. Grosso modo, eu diria que gomegar a analise pelo “como” é introduzir a suspeita de que o “poder”? nao existe; é perguntar-s¢, em todo caso, a que contetidos significativos podemas Visar quando usamos este termo mnjestoso, globalizante e substan- lifieador, é desconfiar que deixamos escapar um conjunto de realidades bastante complexo, quando engatinhamos indefinidamente diante da dupla interrogagio: *“O que é o poder? De onde vern 9 poder?"” A pequena questa, direta e empirica: “‘Como isto acontece?™, no tem por fungio denunciar come fraude uma. ‘*metafisica’’ ou uma “‘ontologia’* do poder; mas tentar uma investigagao critica sobre a tennitice do poder. 4. Como” ndo no sentido de '“Come se manifesta?”’, mas ‘‘Como se exerce?™, “Como acontece quando os individuos exercem, come se diz, seu poder sobre os outros?" Deste ‘poder’ € necessério distinguir, primeiramente, aquele que ‘exercemos sobre as coisas ¢ quc da.a capacidade de modificé-las, utiliza-las, eonsumi-las ou destruiias — um poder que remete a aptiddes diretamente inscritas a0 corpo ou mediatizadas por dispositivas instrumentais, Digamos ue, neste caso, trata-se de ‘‘capacidade™”, O que caracteriza, por outro lado, © “poder” que analisamos aqui, que ele coloea em jogo relagdes entre individuos (ou entre grupos). Pois nao devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituigdes ou das ideologias, se falamos de estrtturas ou de mecanismos de poder, é apenas na medida em que supomos que “‘alguns”” exercem um poder sobre os outros. O termo “*poder"* designe relagdes cnire “*patceitos"* (entendende-s¢ por iste nao ut sisteina de jogo, thas apehas — e permanecendo, por enquanto, aa mejor genetalidade — um conjunio de ages que se induzem ¢ se respondem umas as outras). E necessario distinguir também as telagdes de poder das relagdes de comunicagao que transmitem uma informagio através de uma lingua, de um sistema de signos ou de qualquer outro meio simbélico, Sem diivida, comu- nicar é sempre uma certa forma de agir sebte o outro ou os outros. Porém, a produgito ¢ a circulagiio de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por conseqiténcias efeitos de poder, que nio sao simples- mente um aspecio destas. Passando ou nio por sistemas de comunicacio, as relagdes de poder tém sus especificidade. “Relagdes de poder", “‘relagdes de comunicagio"’, *‘capacidades objetivas’’ néo devem, entdo, set confundidas. O que nao significa que s¢ trata de és dominios separados; ¢ que haveria, de um lado, 0 dominio das 240 coisas, da técnica finalizada, do trabalho ¢ da transformagao do real; ¢, do contro, 0 des signos, da comunicagao, da reciprocidade ¢ da fabticagao do sentido; enfim, 0 da dominacio dos meios de coagia, de desigualdade e de agao dos homens sobre os homens.* Trata-se de trés tipos de relacio que, de fato, estao sempre imbricados uns nos outros, apoiando-se reciprocamente ¢ servindo-se tiutuamente de instrumenta, A aplicagao de capacidade obj nas suas formas mais elementares, implica relagdes de comunicagdo (seja de informagio prévia, ou de trabalho divididoy, liga-se também a relagdes de poder (seja de tarefas obrigatérias, de gestos impostos por uma tradigdo ou um aprendizado, de subdivisdes ou de repartigdo mais ou menas obrigatéria do trabalho). As relagdes de comunicagaio implicam atividades finalizadas c induzem efeitos de poder pelo fato de modificarem o campo de informagiio dos patceiros. Quanto as relagdes de poder propriamente ditas, elas se exetcem por um aspecto extrematnente importante através da produgie e da troca de signos; ¢ também nio sie dissocidveis das atividades finalizadas, seja daquelas que permitem exercer este poder (como as lécnicas de adestra- mento, os procedimentos de dominagio, as maneiras de obter obediéncia), seja daquelas que recorrem, para se desdobrarem, a relagdes de poder (assim na divisdo do trabalho ¢ na hierarquia das tarefas). Sem diivida, a coordenagdo enue estes irés tipos de relagio niio é uniforme nem constante. Nao ha, numa socicdade dada, um tipo geral de equilibrio entre as atividades finalizadas, os sistemas de comunicagdo e as relagSes de poder. Ha, antes, diversas formas, diversos lugares, diversas circunstancias ou ocasides em que estas inter-relagGes se estabelecem sobre um modelo especifico. Porém, hd também “blocos” nos quais o ajuste das capacidades, os feixes de comunicagdo ¢ as relagdes de poder constituem sistemas regulados e concordes. Seja, por exemplo, uma instituigao escolar: sua organizegivo cspacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida inte- rior, as diferentes atividades ai organizadas, os diversos personagens que ai vivem c se ‘encontram, cada um com uma fungdo, um Jugar, um costo bem definido — tudo isto constitui win ‘“‘bloco™* de capacidade-comunicagio- poder. A atividade que assegura o aprendizado a aquisicao de aptidées ou de tipos de comportamento ai se desenvolve através de todo um conjunto de comunicagées. reguladas (ligdes, questdes © respostas, ordens, exortagdes, signos codificados de obediéncia, marcas diferencias do “*valor”* de cada una ¢ dos niveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (enclaustramento, vigilancia, recompensa ¢ punigio, bicrarquia piramidal). 4 Quando Habcrmas distingue dominago. comunicayée ¢ aividade finalizada, clenao v6 ai, acredito, trés dominios diferentes, mas irés "‘transcendentais™. 241 Estes blocos onde a aplicagdo de capacidades téenicas, 0 jogo das comunicagées ¢ as relagdes de poder esido ajnstados uns 20s outros, segunda formulas tefletidas, constituem aquilo que podemos chamar, pouco 0 sentido da palavra, de “di a disciplinas — de sua constiwigao historica — apresenta, por isto mesmo, uM. certa interessc. Primeiramente, porque as disciplinas mostram, segundo esquemas artificialmente claros ¢ decantados, a maneira pela qualos sistemas de finalidade. objetiva, de comunicagics ¢ de poder podem se articular uns sobre os outtes, Porque eles mostragy também diferentes modelos de attion- lagao ora com procminéncia das relagdes de poder ede obediéncia (como nas disciplinas de tipo mondstico oy de tipo penitenclatio), oa com proemingn- cia das atividades finalizadas (como nas disciplinas das oficinas ou dos hospitais); ora com a proeminéncia das relagdes de comunicagao (come nas disciplinas de aprendizagem); como também com uraa saturagio dos tés tipos de relag’o (come talvez. na disciplina militar, onde uma pletora de signos marca, até a redundancia, relagdes de poder fechadas ¢ cui- dadosamente calculadas para proporcionar um certo mimero de efeitos técnicos). E aguilo que se deve compreender por disciplinarizagio das so- ciedades, a partir do século XVIIE na Europa, nao ¢, sem divida, que os individuos que dela fazem patte se tornem cada vez mais obedientes, nem que elas todas comecem a se pafecer com casetnas, escolas om prisGes; mas qué s¢ tentou um ajuste cada vez mais controlado — cada vez mais racional e econémico — entre as atividades produtivas, as redes de comunicagiio eo jogo das relagdes de poder. Abordaro tema do poder através de uma andlise do “*como™ é, entio, operar diversos deslocamentos criticos com relagéo & suposicéo de um “podet”’ fundamental. B tomar por objeto de andlise relagdes de poder e nao um poder; relagGes de poder que séo distintas das capacidades objetivas assim como das relapdes de comunicagao; relagdes de poder, enfim, que podemos perceber na diversidade de sen encadeamento com estas capaci- dades c esias relagées. 2. Em que consiste a especificidade das relacdes de poder? O exetcicio da poder nao é simplesmente una relagao entre “*parcei- tos" individuais ov coletivos; ¢ um modo de agéio de alguns sobre outros. O que quer dizer, certamente, que no hé algo como. “poder”’ ou “‘do poder™” que cxistiria globalmente, macicamente ou em estado difuso, concentrado ou distribuido: 36 hi poder exercido por ‘‘uns"* sobre os “‘outros"*; o poder 56 existe cm ato, mesmo que, € ¢laro, se insereva num eampo de possibilidade esparso que se apdia sobre estruturas permanentes. 242 Isto quer dizer também que o poder nd é da ordem do conscntimento;, ele nao é, em si mesmo, remincia a uma liberdade, transferéncia de direito, poder de todos ¢ de cada um delegado a alguns (0 que nao impede que o consentitnento possa ser uma condigdo para que a relagio de poder cxista © se mantenha); a relagio de poder pode ser o efeite de um consentimento anterior ou permanente; ela nao ¢, em sua propria naureza, a manifestagio de um consenso. Serd que isto quer dizer que ¢ necessirio buscar o carater prdprio is relagées de poder do lado de uni violéncla que seria sua forma primitiva, segredo permanente eo tiltimo recurso — aquilo que aparece em tiltima instincia como sua verdade, quando coagido a fitar a mascara ¢ a se mostrar 1} qual é? De fato, aquilo que define uma relagao de poder é um modo de agdo que nao age direia c imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua propria acdc, Uma agao sobre a agao, sobre agdes eventuais, ou atuais, futuras ou presentes. Uma relagie de violéncia age sobre um corpo, sobre as coisas; ela forga, ela submete, cla quebra, cla destrdi; cla fecha todas as possibilidades; ndo. tem, portanto, junto de si, outro polo seno aquele da passividade; e, se encontra uma resisténcia, a Unice escolha ¢ tentar reduzi-la. ‘Umma relagae de poder, ac contritio, se articula sobte dois elementos que ihe sao indispensiveis por ser exatamente uma relagio de poder: que “o outro’* (aquele sobre o qual cla se excree) seja inteiramente reconhecido ¢ mantido até o fim como o sujeilo de acao, e que se abra, dianty da relagao de poder, todo um campo de respostas, reagdes, efeitos, invengies possiveis. O fincionamento das relagdes de poder, evidentemente, ndo é uma exctusividade do uso da violéncia mais do que da aquisigaio dos consentimen- fos, nenhum exercicio de poder pode, sem diivida, dispensar um ou outro & freqicntemente os dois a0 mesmo tempo. Porém, se eles sic seus instumen- tos 00 efeitos, ndo constituem, contado, seu principio ou sua natureza. O exercicio do poder pode perfeitamente suschar tanta aceitacdo quanto se queira; pode acumular as mores ¢ abrigar-se sob todas as ameacas que ele possa imaginar. Ele ndo é em si mesmo uma viol’ncia que, as vezes, se esconderia, ou um consentimento que, implicitamente, se reconduziria. Ele € um conjunte de agdes sobre agdes possiveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve 0 comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais dificil, amplia ov limita, torna mais ou menos provavel; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas € sempre uma maneira de agir sobre um ou varios sujeitos ativos, ¢ 0 quanto eles aget a0 SA suscetiveis de agit. Uma agao sobre agdes. O termo ““conduta”*, apesar de sua natureza equivoca, talvez seja um dagueles que melhor permite atingir aquilo que ha de especifico nas relagdes de poder. A ‘‘conduta’ €, a0 mesmo tempo, 0 ato de “conduzir"* os outros {segundo mecanismes de coergfio mais ou menos estriles) ¢ a maneiza de se 243, comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. O excreicio do poder consiste em ''conduzir condutas”’ ¢ em ordenar a probabitidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do afrontamento entre dois adversirios, ou do vinculo de um com relagao ao outro, do que da ordem do “'governo'*. Devemos deixar para este termo 4 signifiesgdo bastante ampla que tinhs no sécnlo XVI Ele nio se referia apenas &s cstruturas politicas ¢ @ gestio dos Estados; mas designava a mancira de dirigir a conduta dos individuos ou dos grupos: governo das eriangas, das almas, des comunidades, das familias, dos doentes. Ele ndo recobria apenas formas instituidas ¢ legitimas de sujeigio politica ou econémica; mas modes de agdo mais ou menos refletidos & calculados, porém todos destinados a agi sabre as possibilidades de agdo dos ouires individuos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de agda dos ovtros. O modo de relngio proprio ao poder no deveria, portanto, set buscade do lado da violéncia ¢ da luta, nem do lado de contrat ¢ da allanga vohuntaria (que ndo podem set mais do que jastrumentos); porém, do lado deste modo de agio singular — nem guerreiro nem juridico — que é0 governo. Quando definimos o exercicio do poder caine um modo de agde sobre as agdes dos outros, quando as caracterizamos pelo ““governo’* dos homens, uns pelos outros — no sentido mais extenso da palavra, inclufmos um elemento importante: a Lberdade. O poder sé se exerce sobre “‘sujeitos livres"*, enquanto ‘‘livres*” — entendendo-se por isso sujeitos individuais, ‘ou coletives que tém diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reagSes e diversos modos de com| podem acontecer, Nao hd relagZo de poder onde as determinagdes esto saturadas — a escravidao nao é uma relagéo de poder, pois o homens estd acorrentado (trata-se entdo de uma relacao fisica de coagdo) — mas apenas quando cle pode se deslocar ¢, no limite, escapar. Nao ha, portanto, um confronto entre poder e liberdade, numa relagio de exclusao (onde o poder se exerce, a liberdade desaparecey, mas um jogo muito mais complexe: neste jogo, a liberdade aparecera como condigdo de existéncia de poder (ao mesmo tempo: sua precondi¢do, uma vez que é necessirio que haja liberdade para que o poder se exerga, ¢ também seu suporte permanente, uma vez que sc ela se abstraisse inteiramente do poder que sobre ela se exerce, por isso mesmo desapareceria, ¢ deveria buscar um substitute na cocrgde pura ¢ simples da violéncia); porém, cla aparece também como aguilo que so poderd se opor a um exercicio de poder que tende, enfim, a determind-la inteiramente. A relagao de poder ¢ a insubmissio da liberdade nd podem, entio, ser separadas. O problema central do poder ndo ¢ o da “servidie vohin- téria”* (come poderiamos desejar ser escravos?): no centro da relagao de poder, “‘provocando-a"" incessanlemente, enconira-se a recalcitrancia do querer ¢ a intransigéncia da liberdade. Mais do que um “‘antagonismo™* 244 essencial,seria melhor falat deum *‘agonismo’** — de uma relagdo que 6, ao mesmo tempo, de incitagao reciproca ¢ de uta; ttata-se, portanto, menos de uma oposi¢io de termos quese bloqueiam mutuamente do que de uma provecagao permanente. 3, Como analisar a relagda de poder? Podemos, ou melhor, eu ditia que ¢ perfeitamente legitimo analisd-la em insticuigdes bem determinadas; estas ultimas constituindo um obser- vatorio privilegiado para as atingir — diversificadas, concentradas, orde- nacdas ¢ levadas, parece, ao seu mais alto grau de eficdcia; numa primeira abordagem, é ai que podemos pretender ver aparecer a forma e a Kégica de seus mecanismoes elementares. Conttdo, a analise das relagdes de poder nos espagos instiwcionais fechados apresenta alguns inconvenientes. Primeira- mente, © fato de uma parte importante dos mecanismos operados por uma instituigdo ser destinada a assegurar sua propria conservagdo apresenta 0 tisco de decifrar, sobretudo nas relagdes de poder “intra-mstitucionais’’, fungdes essencialmente reprodutoras. Em segundo lugar, ao analisarmos as telagdes de poder a partir das instituigGes, nos expomos de nelas buscar a explicagao ea origem daquelas; quer dizer, em sums, de explicar o poder pelo poder. Enfim, na medida em que as instituigGes agem essencialmente através da colocacio de dois elementos em jogo: regras (explicitas ou silenciosas) ¢ um aparelho, corremes @ risco de privilegiar exageradamente um ou outro na relagdo de poder e, assim, de ver nestas apenas modulagdes da lei ¢ da coergio. Nao se trata de negar a importancia das insuituigdes na organizagio das relagées de poder. Mas de sugerir que ¢ necossério, antes, analisar as instituig6es a partir das relagdes de poder, e nfo o inverso; e que o ponto de apoio fundamental destas, mesmo que elas se incorporem ¢ se cristalizem numa institnigao, deve ser buseado aquém. Retomemos adefiniggo segunde a qual 0 exerciclo do poder seria uma mancita para alguns de cstruturat o campo de agéo possivel dos outros, Deste modo, o que seria proprio a uma telagdo de poder € que ela seria um modo de agao sobre agdes. O que quer dizer que as relagdes de poder s¢ enraizam profundamente no nexe social; e que elas néo reconstituem acima da ‘‘so- ciedade‘* uma estrutura suplementar com cuja obliteragdo radical pudéssemios talvez sonhar, Viver em sociedade €, de qualquer maneira, viver SO neologismo usado por Foucauh estd bascado na palaves gress ayiborapa que significa “um combate", 0 termo sugeriria, portanto, um eombate fisico no gual os opositores desenvolvem umn estratégia de reagdo ¢ de infrias mtoas, como se estivessem em uma sesaio de luia, 245 de modo que seja possivel a alguns agirem sobre a agio dos outros. Uma sociedade ““sem relagdes de poder" sé pode ser uma absiragio. G que, diga-se de passagem, torna ainda mais necessdria, do pons de vista politico, a andlise daquilo que clas sio numa dada sociedade, de sua formagio historica, daqutilo que as toma sdlidas ow frageis, das condigdes que sio necessdtias para trensformar umas, abolir as outras. Pois, dizer que née pode existir sociedade sem relagio de poder nie quet dizer bem que aquelas que sio dadas sda necessdrias, nem que de qualquer modo o *poder’” constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontomay cl mas que a andlise, a elaborgao, a retomada da questéodas telagGes de poder, edo “agonismo™ entre relagdes de poder intransitiv dade da liberdade, ¢ una tarcfa politdca incessante; que é exatamente esta a tarefa politica inerente a toda existéncia social, Concretamente, a andlise das relagdes de poder exige que esta- belegames alguns pontos: 1, O sistema das diferenciagées que permitem agir sobre a agaa dos outros: diferengas juridicas ou tradicionais de estatuto e de privilégio; diferengas ‘econdmicas na apropriagde das riquezas € dos bens; diferengas de Ingar nos processes de produgio; diferengas lingitisticas ou culturais; diferengas na habilidade e nas competéncias etc. Toda relacdo de poder opera diferen- ciagdes que so, para ela, ao mesmo tempo, condigdes ¢ efeitos. 2. O tipo de objetivos perseguidos por aquetes que agema sobre a agdo dos outros: manutengée de privikigios, acumuto de tictos, operacionalidade da autoridade estatutaria, exercicio de uma fungdo ou de uma profissao. 3. As modatlidades instrumeniais: de acordo com o fato de que o pader se exeree pela amenoa das armas, dos efeitos da palavra, através das dispari- dades econdmicas, por mecanismos mais. ou menos complexes de con- tole, por sistemas de vigilincia, com ou sem arquivos, segundo regres explicitas ou saa, permanentes ou modificaveis, com ou sem dispositivos materiais etc, 4. As formas de institucionatizagdo: estas podem misturar dispositivos tradi- cionais, estruturas juridicas, fendmenos de hébite ou de moda {come vemos nas relagdes de poder que atravessam a instituigdo familiar); elas podem também ter a aparéncia de um dispositive fechado sobre si mesmo com seus lugares especificos, seus regulamentos proprio, suas estruturas hierdrgquicas cuidadosamente tracadas, e uma relativa autonomia funcional (como nas instimiges escolares ou militares); podem também formar sistemas muito complexos, dotados de aparethos miitiplos, como no case do Estado que tem por fungio constituir o invélucro geral, a instincia de controle global, o principio de regulagio e, até certo ponto-inmbém, de disiribuigdo de todas as relagdes de poder num conjunto social dado. 5. Os graus de racionalizagdo: o funcionamento das relagdes de poder como 4gd0 Sobre um campo de possibilidade pode ser mais ou menos claborado em 246 furgio da eficdcia dos instrumentos ¢ da certcza do resultado (maiot ow menor refinamento tecrolégico no ¢xercicio do poder) ou, ainda, em fungic do custo eventual (seja do ““custo’’ ecohdmico dos meios utilizados, ou do custo em termos de reagio constimide pelas resistencias encontradas). O exercicio do poder néo ¢ um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra: ele se clabora, se transforma, se otganiza, se dota de procedimentos mais ou menes ajustados. Eis por que a aniilisc das relagées de poder numa sociedade nao pode se prestar 20 estudo de uma série de institmigdes, nem sequer 20 estudo de todas aquelas que mereceriam o none de *"politien’’, As telagdes de poder s¢ caraizaim no conjunto da rede social. Isto-ndo significa, contudo, que haja um principio de poder, primeiro ¢ fundamental, que domina até o menor elemeato da sociedade; mas que hd, a partir desta possibilidade de aco sobre a agdo dos outros (que ¢ co-extensiva a toda relagio social), wmiitiplas formas de disparidade individual, de objetivos, de determinada aplicaciio do poder sobre nds mesmos € sobre os outros, de institucionalizagéo mais ou menos: setorial ou global, organizacio mais ou menos refletida, que definem formas diferentes de poder. As formas ¢ os lugares de “*governo™” dos homens uns pelos outros sio mniltiplos numa sociedade: superpdem-se, entrecruzata-se, Kimitam-se e anulam-se, em certos casos, ¢ reforgam-se em outros. E certo que o Estado nas sociedades contemporineas nfo é simplesmente uma das formas ou um dos lugares — ainda que seja o mais importante — de exercicio do poder, mias que, de um cero modo, todos os outros tipes de relagio de poder a ele se referem. Porém, ndo porque cada um dele derive, Mas, antes, porque se produziu uma estalizagdo continua das relagdes de poder (apesar de. ndo tes tomado a mesma forma na ordem pedagégica, judicidria, econdmica, familier). Ao nos teferirmos ao sentido restrito da palavra "*gov- etno™, poderiamos dizer que as relagdes de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizedas na forma ov sob a caucéo das instituigées do Estado. 4, Reiacdes de poder ¢ reiagdes estratégicas A palavra cstratégia é cotrentemente empregada em trés sentidos. Primejramente, pata designat a escolha dos meios empregados para se chegar a.um fira; wrata-se da racionalidade enupregeda para atingirmos um objective. Pate designar a maneira pele qual um parceiro, num jogo dado, age em fungao daquilo que ele pensa dever ser a ado dos outros, e daquito que ele acredita que os outros pensario ser a dele; em suma,a mancira pela gia] teitlaies ter uma vantagem sobre © outro. Enfim, para designar 0 conjunto dos procedi- racnitos utilizados num confronto para privar o adversario dos seus meios de combate & reduzi-lo a renupciar d lutas trata-se, entdo, dos meios desti- nados a obter a vitdria. Estas wés significacdes se retnem nas situacdes 2aT de conforto — guerra ou jogo — onde oobjetivo é agit sobre um adversirio de tal modo que a luta the seja impossivel. A estratégiase define entde pela esculha das solugdes **vencedoras’~. Porém, énecesssrio terem mente que se trata. de um tipo bem particular de situagd oz ¢que hd outros em quese deve mantera distingdo entre os diferentes sentidos da palavra estraté gia, ‘Ao nos referirmos ao primeiro sentido indicado, podemos chamar “estratégia de poder” a0 conjunto dos meios operados para fazer funcionar ou para manter um dispositive de poder. Podemos também falar de estratégia propria as relagdes de poder na medida em gue estes constituem modos de gio sobre a agdo possivel, eventual, suposta dos outros. Podemos entio decifrar.em termos de “estratégies" os mecanismos utilizados nas relagSes de poder. Porém, o ponto mais importante é evidentemente a relagdo entre relagdes de poder e estratégias de confronto. Pais, se é verdade que no centro das relagdes de poder ¢ como condigdo permanenic de sua ¢xisténcia, ha uma “‘insubmissdo"* e liberdades essenciaimente renitentes, nao ha relagdo de poder sem resisténcia, sem escapatoria ou fuga, scm inversao eventual; toda relagio de poder implica, entio, pelo menos de modo virtual, uma estratégia de lata, sem que para tanto venham a se superpor, a perder sua especificidade e finalmente a se confundir. Elas constitem reciprocamente uma especie de limite permanente, de ponto de invetsio possivel. Uma relagio de confronto enconka seu terme, seu momento final (¢ a vitoria de um dos dois ad- versarins} quando 0 jogo das reayGes antagénicas € substituido por mecanis- mos estéveis pelos quais um dentre eles pode conduzir de maneira hastanre constante e com suficiente certeza a conduta des outros; para uma relago de confronto, desde que néa se trate de lute de morte, a fixagdo de uma relagio de poder constitui um alve — ao mesmo tempo seu completamento ¢ sua propria suspensio. E, em treca, para uma relagio de poder, a estratégia de uta constitui, ¢la também, uma fronteira: aquela onde a inducdo calculada das condutas dos. outros néio pode mais ultrapassar a réplica de sua propria agdo. Como nao paderia haver relagées de poder sem pontos de insubmissiio que, por definigdo, Ihe escapam, toda intensificagdo ¢ toda extensdio das relagdes de poder para submeté-losconduzem apenas.aos limites do exercicio do poder; este encontra entéo sua finalidade seja num tipo de agdo que reduz © oulre a impoténcia total (uma ‘‘vitéria™” sobre o adversdrio substitui o exercicio do poder), seja numa transformagio daqueles que sio governados em adversdrios. Em suma, toda estrat¢égia de confronic sonha em tornar-se relagdo de pode; e toda relagao de poder inclina-se, tanto ao seguir sna propria linha de desenvolvimento quanto ao se deparar com resisténcias fronitais, a tornar-se estratégia venccdora. De fato, entre relagéo de poder ¢ estratégia de luta, existe atragio teciproca, encadeamento indefinido ¢ inversio perpétua. A cada i instante, a relagio de poder pode tornar-se, ¢ em certos pontos s¢ forma, um confronto enire adversdrios. A cada instante também as relagdes de adversidade, numa 248 sociedade, abrem espaco para © emprego de mecanismos de poder. Instabili- dade, porianto, que faz com que os mesmos processos, 6$ mesmos acon- tecimentos, as mesmas transformagdes possam sor decifrados tanto no into- tior de uma historia das Iutas quanto na histéria das relagies e dos disposi- tives de poder, No serio nem os inesmos ¢lementos significatives, nem os mesmos encadeamentos, nem os mesmos (pos de inteligibilidade que apare- cerdo, apesar de se referirem a um mesmo tecido histérico e apesar de que cada uma das duas anilises deve remeter 4 outra. Eé justamente a interferen- cia das duas leitutas que faz aparecer estes fendmenos fundamentais de ““dominagéo"’ que a historia apresenta en grande parte das sociedades humanas. A dominagio ¢ uma estrutura global de poder cujas ramificagSes @ conseqiiéncias podemos, as vezes, encontrar, alé na trama mais enue da sociedade: porém, ¢ 20 mesmo tempo, é um situagdo estratégica mais ou menos adquitida © solidificada num cenjunto histérice de longa data enire adversarios. Pode perfcitamente acontecer que um fato de dominagao sefa apenas a transerigao de um dos mecanismes de poder de uma relagio de confronto e de suas consegiiéncias (uma estrutura politica derivada de uma invasao}; também pode ocorrer que umarelagao de lutaentredoisadversirios seja o efeito do desenvolvimento das relagdes de poder com os conflitos e as clivagens que ela encadeia. Porém,o que lorna « dominagao de um grupo, de uma asta ou de ums classe, e as resisténciss ou as revoltas as quais ela se opie um fendmeno central na histéria das sociedades ¢ 0 fate de mani- festarem, numa forma global ¢ maci¢a, na escala do corpo social inteiro, a integcagao das relagdes de poder com as relagdes estratégicas ¢ seus efeitos de encadeaments reciproco. 249

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