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138 KARL JASPERS res concede a verdade absoluta, Por isso amamos os textos antigos como antigas obras de arte, imbui- mo-nos na verdade de uns e de outros, recorremos a eles, mas h4 sempre uma distancia, algo de ina- tingivel e inesgotavel, e, por fim, algo que nos per mite tomar balango para o actual filosofar. Porque o sentido da filosofia esti no presente. ‘Temos somente uma realidade, a do , ‘$6 alcangamos a verdade do nosso pensamento quando incansavelmente nos esforgamos por pensar colocando-nos no lugar de qualquer outro. 1 preciso conhecer 0 que 6 possivel ao homem, Se tentamos pensar seriamente aquilo que outrem pensou aumen- tamos as possibilidades da nossa propria. verdade, mesmo que nos recusemos a esse outro pensamento. 86 ousendo integrar-nos totalmente nele o podemos conhecer. O mais remoto e estranho, o mais excessivo © excepcional, mesmo o aberrativo, incitam-nos a néio passar ao largo da verdade por omissio de algo de original, por cegueira ou por lapso. Por esse mo- tivo o homem filosofante nfo se dedica apenas 20 estudo aprofundado e exaustivo do filésofo de entre todos dilecto, mas também a historia da filosofia universal para aprender o que houve e foi pensado. Porém, o estudo da hist6ria implica dispersio ho miiltiplo e desconexo. O imperativo de pensar Sempre em unissono connosco obvia & tentagéo de nos abandonarmos por demais A curiosidade e 20 prazer da contemplacéo da variedade dos pa- Noramas que se nos oferecem. O que se adquire na histéria age como estimulo; deveré chamar-nos a atengio e despertar-nos ou suscitar interrogacio ¢ diivida; mas nunca deveré ser indiferentemente Acumulado. Aquilo que no foi j4 de facto relacio- nado ¢ confrontado na historia deverd entrar em 144 KARL JASPERS contacto e reagir entre si, Procurar-se-4 relacionar e compreender o mais dispar e estranho, Tudo entra em ligagéo sendo assimilado pelo sujeito uno que o compreende. Estar em unissono connosco significa corroborar o pensamento proprio, referindo a uma unidade as disparidades, as oposi- ges © as desconexces. A hist6ria universal, assimi- Jada devidamente, converte-se numa unidade todavia aberta, A nogio da unidade da histéria da filosofia, constantemente malograda na realidade, 6, contudo, © impulso que instiga & sua assimilagio. 3. OBRAS SOBRE A HISTORIA DA FILOSOFIA HE colectfineas de muitos documentos hist6ricos, simples indicagdes dos textos conhecidos, dados bio- grificos dos filésofos, dados acerca das realidades sociolégicas, das condig6es reais do autoconheci- mento, da polémica, dos desenvolvimentos ou evo- lug6es provaveis cujos passos so apreensiveis, Alem destes designios podem também dedicar-se a expor e reproduzir o contetido das obras, ¢ 2 andlise e re- constituicio dos motivos, sistemas e métodos que presidiram A sua génese. Podem também referir-se a caracterizacio do espirito ou dos prinefpios de determinadas filésofos on de toda uma época. Podem, por fim, apresentar uma, interpretagio de um periodo histérico ou até mesmo da histéria universal da filosofia na sua totalidade. ‘A exposic&o da hist6ria da filosofia requer no 86 intuigéo filolégica mas também a colaboragio filosofante do proprio autor. A mais verdadeira in- terpretagio historica 6 necessiria e simultaneamente uma filosofia propria. Foi Hegel primeiro que apreendeu consciente- mente em vasto Ambito toda a hist6ria da filoso- fia de um modo filos6fico. A sua histéria da filo- INICIAGAO FILOSOFICA. 145 sofia, mercé do sentido que Ihe imprimiu, g, até hoje, a obra mais notAvel no género. Mas, devido aos principios hegelianos, a compreensio profunda 6 simultaneamente um proceso destrutivo, As filo- Sofias do passado séo iluminadas por instantes com prodigiosa clareza pela luz que sobre elas projecta, mas logo temos de reconhecer que o pensamento hegeliano a todos tira a alma, sepultando os cada- veres que restam no enorme cemitério da histéria. Hegel desembaraca-se do passado julgando que o abarea no seu conjunto. Mas a sua penetracéo com- preensiva nao é auténtico desvendamento, 6 uma Operagéo destruidora, nao é permanente interroga- gio, & conquista avassaladora, niio 6 convivéncia, 6 predominio, # aconselhdvel a leitura paralela de varios com- péndios de hist6ria da filosofia para de antemio evitarmos incorrer no perigo de admitir uma delas como interpretacio supostamente evidente. Se ler- Mos uma apenas, o seu esquema impde-se-nos invo- luntariamente, # além disso aconselhavel que se néo leia nenhu- ma dessas exposicées sem proceder a um confronto com os textos originais a que se referem. Finalmente, as historias da filosofia utilizam-se também como obras de consulta para uma orientagio literdria, em especial a obra de Ueberweg. Para con- sulta, 08 diciondrios sio da maior utilidade. GRANDES DICIONARIOS Ludwig Noack, Historisch-biographisches Handwor- terbuch der Philosophie. Lipsia, 1879, Rudolf Hisler, Handwérterbuch der Philosophie, Ber- tim, 1913, ‘ Werner Ziegenfuss, Philosopheniewikon, Berlim, 1949. André Lalande, Vocabulaire technique et critique de to Philosophie, Paris, 1928, 140 KARL JASPERS PEQUENOS DICIONARIOS Kirchner, Wérterbuch der philosophischen Grund- begriffe, revisto por Michaelis, Lipsia, 1907, (a remodelacao devida a J. Hoffmeister, Lfpsia, 1944, tem a marca do nacional-socialismo, mas também 6 de utilidade). Heinrich Schmidt, Philosophisches Wérterbuch, 9. ed., 1934, Lipsia, Kréner’s Taschenausgabe. Walter Brugger, 8. J. Philosophisches Wérterbuch, Friburgo, 1947. Erwin Metzke, Handlewikon der Philosophie, Heidel- berga, 1948. Dagobert D. Runes, The Dictionary of Philosophy, 4 ed., Nova Iorque, 1942. Seguidamente apresento apenas a indicagio de nomes, tanto no que se refere a textos como no refe- rente a historiadores. Para informagdes acerea de edigdes, tradugdes, comentarios, titulos e contetido de cada obra devera recorrer-se, além dos dicio- nérios, especialmente as obras de consulta hist6rica de Ucherweg e Vorlénder. HISTORIA DA FILOSOFIA OCIDENTAL Ueberweg: obra de consulta indispensivel em todas as circunstancias. Vorlinder: informages para principiantes. J. E, Erdmann: excelentes andlises de pormenor das grandes Jinhas da filosofia hegeliana. Windelband: elegantes conspectos gerais sem apro- fundamento, no estilo do final do século XIX. filosofia_grega; substancial, claro e facil- ite apreensivel, mas nao filosdfico. : eategorizado historiador moderno da filoso- ia medieval. INICIAGAO FILOSOFICA 147 INDIA % : obra de gr copo, com numerosas 'tradugées de textos indianos, trabalho de pio- neiro, enfeudado a filosofia de Schopenhauer. ‘uss; resumido, panoramico, informativo, CHINA obra de largo félego, expositiva, refere-se ‘arios dominios até entio desconhecidos no Ocidente, ean: frieza objectiva, predominio do descri- ivo. Wilhelm: entusiasmo. Genker: sucinta, espirituosa e arguta. 4, TEXTOS __ 'Podos os textos da filosofia ocidental, com a int lio das edigdes, comentarios e tradugées, se enc tatalogados na obra de Ueberweg e, mais ré idamente, em Vorlander que deles faz uma jecgaio. Para estudo pessoal convém organiza uma, restrita aos textos verdadeiramente essenciais. rol dos livros que deveraio constitufta esté sujeito Variagdes conforme os interesses pessoais, Fé, toda- uma base quase igual para todos; depende das eréncias de cada um a selecgfo valida. Convém ese em primeiro lugar, um filésofo wipal. E 6 evidentemente dese; dos maiores. Mas, pode também iniciar-se a jor- a partir de um fildsofo de segunda ou terceira ia, o primeiro que castalmente se encontrou ‘ou marca profunda. Qualquer filésofo que se 148 KARL JASPERS estude em profundidade conduzira gradualmente a toda a filosofia e a toda a hist6ria da filosofia. ‘Uma lista dos textos capitais limita-se, no que respeita A antiguidade, ao que se conservou do pas- sado, particularmente As poucas obras completas pre- servadas até hoje. A abundancia de textos das épo- cas modernas é tal que, pelo contrario, a dificuldade reside na escolha do pouco que é imprescindivel, 1* LISTA DE NOMES FILOSOFIA OCIDENTAL Filosofia. Antiga Fragmentos dos Pré-socraticos (600-400). Platéo (428-348). Aristételes (348-322). Easement dos antigos Hstéicos (300-200). Além mentos de Hpicuro (342-271), Ainda: Lucré- cio (96-55) ; Sexto Empirico (cerca de 150 d. C.); Cicero (106-43) ; Plutarco (cerca de 45-125). Plotino (203-270). Boécio (480-525). Filosofia Crista Patristica: Agostinho (354-430). Tdade Média: Scoto Eriugena (séc. IX); Anselmo (1033-1109) ; Abelardo (1079-1142) ; Tomas (1225- 1274); Duns Scoto (fal. 1308); Mestre Eckart (1260-1327) ; Occam (cerca de 1300-1350) ; Nico- lau de Cusa (1401-1464); Lutero (1483-1586) ; Calvino (1509-1564). INICIAGAO, FILOSOFICA | 149 Filosofia Moderna 8éc. XVI: Maquiavel, Morus, Paracelsus, Mon- igne, Bruno, Bohme, Bacon. séc, XVII: Descartes, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Pascal. séc. XVIII: Tuminismo Inglés: Locke, Hume Moralistas Franceses ¢ Ingleses séc, XVIII: La Rochefoucauld, La Bruyére. 9 sce. XVII: Shaftesbury, Vauvenargues, Cham- 4 Filosofia Alemé i, Pichte, Hegel, Schelling. séc. XIX: Filosofia universitéria alema do século XIX; por exemplo: I. H. Fichte, Lotze. | Ciéncias Modernas da Filosofia losofia social e econémica: Tocqueville, Lorenz, Stein, Marz. losofia da hist6ria: Ranke, Burckhardt, Max ria da natureza: K. B. v, Baer, Darwin. jofia. psicoldgica: Fechner, Freud. Para uma primeira caracterizagio tentarei apre- ar seguidamente uma série de anotagdes sucin- encontrar porventure. um fio condutor a par- suas preferéncias, 150 KARL JASPERS FILOSOFIA ANTIGA Os Pré-Socraticos tém a aura tinica que 6 propria dos calvores», So imensamente dificeis de compreen- der adequadamente. Temos de tentar despojar-nos da . A sua experiéneia da vida pre- tende inculear uma formagao filos6fica por via psi- colégica. La Rochefoucauld e La Bruyére escrevem ainda no ambiente do grande mundo absolutista do séc, XVII, Vauvenargues e Chamfort situam-se ja no séc, XVIII. Shaftesbury é o fil6sofo da disciplina estética da. vida, ‘A grande filosofia alema, a par da energia siste- métiea e da disponibilidade para o mais profundo ¢ mais remoto, caracteriza-se por uma elaboragdo men- tal abundincia de contetidos de tal ordem que i até hoje o fundamento imprescindivel ¢ ne- cessério para a formagdo de qualquer pensamento filos6fico sério; os seus expoentes sio os filésofos Kant, Fichte, Hegel, Schelling. ‘Kant: representa 0 passo decisivo na via de cons- ciencializagéo do ser, no rigor da consumagio inte- de vasto e humano aleance; possui em comum com Lessing a clareza que 6 a propria da razio. B, em suma, uma figura de grande nobreza. Fichte: especulagio exacerbada até ao fanatismo, as de realizacio do impossivel, sistemético lerancia, tornam nefasta a sua accdo. Hegel: dominio e reelaboragio omnimoda das for- mas do pensamento dialéctico; consciéncia intelectiva de contetidos de toda a ordem, cabal realizagao da mais vasta recapitulagio da histéria do Ocidente. Schelling: infatigavel demanda das iltimas ins- 160 KARL JASPERS tancias, desvendamento de arrepiantes segredos, sis- tematizacéo gorada, descoberta de novas vias. século XIX 6 um periodo de transigdo, dissolu- go e consciéncia de dissolugio, alargamento de co- nhecimentos materiais e vasta perspectiva cientifica. O magistério dos filésofos dessora, progressivamente as forgas da filosofia, que se converte em palidos sis- temas arbitrarios sem valor e em filosofia da his- toria; abarca-se pela primeira vez o material histd- rico do seu Ambito total. O impulso filos6fico em si mesmo persiste apenas em casos excepcionais, de somenos valor para os contemporaneos, e na ciéncia. A filosofia universitéria alema & erudita e vasta, mas, de facto, j4 nao se alimenta da energia esponta- nea da consciéncia da situago humana: vive da cul- tura burguesa universitéria e dos seus valores for- mativos, da sua seriedade e boa vontade, mas tam- bém das suas limitacdes. Certas figuras mais rele- vantes como I, H. Fichte, Lotze e outros, estudam- -se apenas para informaio, nao pela substancia da sua obra. s filésofos originais dessa época sio Kierkegaard e Nietzsche, Nenhum é sistemitico, ambos so excep- Ges e vitimas: tém consciéneia da catastrofe, dizem inauditas verdades e nenhum indica um caminho. Reflectem a época a que pertencem através da mais implacavel autocritica que jamais se exerceu na his- toria da humanidade, Kierkegaard: Formas de acgio intima, gravidade do pensamento na decisio pessoal, fluidificagio de tudo, em especial da fixidez do pensamento hegeliano. Cristianismo fervoroso, Nietesche: Incessante reflexio e perscrutagéo que tudo pée em diivida; esbraceja sem encontrar solo onde firmar-se a nao ser em novos absurdos. Veemente anti-cristianismo, As ciéncias modernas tornam-se portadoras de uma atitude filos6fica, nfio na generalidade, mas em INICIAGAO FILOSOFICA 161 casos singulares embora numerosos, dos quais ape- nas citaremos alguns, pare exemplo: Filosofia sooial ¢ politiou: Tocqueville concebe 0 transito do mundo moderno para 2 democracia atra- vés do conhecimento sociolégico do

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