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CAPITULO 2 oo a + REALISMO CRISTAO: REINHOLD E H. RICHARD NIEBUHR EMBORA A NEO-ORTODOXIA TENHA SIDO INTRODU- zida no cenério teolégico contemporaneo sobretudo por Karl Barth, ela nao era, conforme ja vimos, obra de um homem sé. Tampouco se restringia 4 Europa. Houve muitos seguidores nos EUA também, onde encontrou uma voz potente em Niebuhr, ou melhor, dois Niebuhrs: 08 irmaos Reinhold e H. Richard. Seu pai, imigrante alemao, era pas- tor da Igreja Evangélica e Reformada Alema. Os irmaos foram cria- dos no Meio-Oeste americano. H. Richard Niebuhr (1892-1962) passou parte significativa de sua carreira de tedlogo e professor na Harvard Divinity School, e Reinhold Niebuhr (1892-1971) no Union Theological Seminary. Reinhold foi, sem chivida alguma, o principal vulto da teologia americana na primeira metade do século Xx. NEO- ORTODOXIA AMERICANA Na verdade, Reinhold resistiu ao rétulo de “neo-ortodoxo”, e pouco se importava também com o titulo de “tedlogo”. Ele se via mais como critico social e moralista. Embora tanto seu posicionamento quanto o de H. Richard constituissem variagées importantes da tematica neo- ortodoxa, a perspectiva teolégica de ambos ficou conhecida como “rea- lismo cristao”, em que havia um forte traco de pragmatismo. Vale a pena examinar mais detidamente os dois termos. A teologia de Niebuhr — TEOLOGIAS CONTEMPORANEAS foi apelidada de realismo cristio porque, em primeiro lugar, nao tinha ilusao alguma acerca da condigio do homem marcada pelo pecado; era realista em relagio & inevitabilidade e & universalidade do pecado, Em segundo lugar, ela encontrou na perspectiva biblica ¢ crista o relato ais adequado do pecado — em sua natureza e origem — e da falén~ cia da humanidade. Foi um esforgo “pragmatico” porque movido pelo interesse por solugdes priticas ou, no minimo, respostas para a situa io de pecaminosidade do ser humano. Mais do que a maior parte das propostas cristis que procuraram ser mais ou menos ortodoxas, 0 rea lismo cristio queria ser levado a sério no debate dos problemas sociais, politicos ¢ econémicos que ultrapassavam os limites de sua comuni= dade levando uma palavra cristi ao piblico em geral ‘A exemplo da neo-ortodoxia europeia, a neo-ortodoxia americana foi uma resposta direta & ingenuidade que se adivinhava no otimismo liberal. Assim como Barth resistiu a Harnack, do mesmo modo os irmaos Niebuhr resistiram a Walter Rauschenbusch (1861-1918) Rauschenbusch, também filho de imigrante alemao, era batista e 0 mais influente representante da teologia liberal nos EUA. Ele iniciou seu mi- nistério na triste célebre favela de “Hell's Kitchen’, em Nova York. Ali Rauschenbusch ficou profundamente perturbado com a dificil situago dos pobres e fez entio a seguinte pergunta: o que o evangelho tem a dizer a esse respeito? Mais tarde, foi professor de histéria da igreja no Seminario de Rochester e um expoente importante, do lado de ci do Avlintico, do movimento do “evangetho social”, Seu livro mais influen- te, Christianity and social crisis [Cristianismo e crise social, & de 1907. Nesse livro e em Christianizing the social order [Cristianizando a andem social), de 1912, Rauschenbusch dizia que a mensagem cristi cou de maneira mais ampla precisava penetrar mais profundamente — do que permitem as questdes morais de foro meramente pessoal como 0 adultério ¢ a embriaguez, por exemplo; é preciso que ela se debruce sobre os males sociais € econémicos responsiveis pela po- breza, desigualdade e a falta de esperanga. Por isso, ele investia contra ire capitalista, a busca do lucro ¢ a gandncia industrial, pregando sobre a importincia dos sindicatos de trabalhadores e a s0- cializagio da grande indistria, Tudo isso, dizia ele é parte fundamen tal do advento do reino de Deus sobre a terra, uma realidade a ser _ REALISMO CRISTAO o39 rmaterializada por meio do esforgo autoconsciente e concentrado impe- lido pelo amor. A proclamagio do reino de Deus por Jesus, dizia Rauschenbusch, é a pedra de toque de toda doutrina crista “O reino de Deus é [...] uma concepsio coletiva que diz. respeito vida social do hhomem em toda a sua extensiio, Nao se trata de salvar o homem ato- ‘mizado, sim a organizagio social. Nao se trata de levar individuos para © céu,e sim de fazer da vida na terra uma harmonia celeste”! Esse interesse de Rauschenbusch pela ordem social parece, de fato, cocrente com 0 que jd dissemos sobre os irmios Niebuhr. Toda- via, embora seja isso o que se perceba numa primeira anilis, ¢ preciso ios Niebubr cles rejeitavam a teologia liberal. Numa anilise mais profunda, por- tanto, as semelhangas desaparecem rapidamente. © evangelho social simplesmente subestimava a realidade e a extensio do pecado humano ¢ era otimista demais em relagio a um reino de Deus erguido pelo lembrar que na apresentagio inicial que fizemos dos in esforgo do homem. Comportava-se também de mancira insensivel reduzindo todos os principios mais importantes do cristianismo bi- blico @ ideia tinica de trabalhar pelo Reino. A acusagio langada pelos irmaos Niebuhr contra o liberalismo, qualificando-o de distorgo insi- pida do cristianismo auténtico, encontra sua expressio por exceléncia na célebre afirmasio que H. Richard fez sobre a teologia liberal: “Um Deus sem ira, que conduziu homens sem pecado para um reino sem julgamento, pela ministragio de um Cristo sem cruz”? Assim como 0 pequeno vilarejo de Safenwil foi importante para Barth, a favelas de Nova York para Rauschenbusch, assim foi a metré- pole de Detroit para Reinhold Niebuhr. Foi lé que ele despertou para as implicagdes sociais do evangelho. Em 1915, Nicbubr foi pastorear @ + Walter Reuschenbusch, Chrianity and the sil crisx. New York, Assocation Press, 1907, p. 65. Richard Niebuhr, The Kingdom of Godin America, Chicago, Wille, Clark & o,, 1937, p 193 oe TEOLOGIAS CONTEMPORANEAS Igreja de Betel, em Detroit, onde permaneceu durante 13 anos. Ali ele se viu confrontado com a exploragio ¢ as dificuldades por que passa- ‘vam os trabalhadores da fibrica de automéveis de Henry Ford. Sua inquictagéo nessa época fica evidente no seguinte texto escrito em 1927: “Que civilizagio essa! Cavalheiros ingénuos com inclinagao para 1 mecanica de sibito se tornam os érbiteos da vida e da sorte de cen- tenas de milhares, Suas pretenses morais sfo aceitas cegamente sem discussio, Nao ocorn tém uma reserva em caixa de um quarto de bithio de délar no deve~ ria ter algum tipo de provisto para seus desempregados”.’ problema, naturalmente, € 0 pecado, tema central da obra mais importante de Niebuhr, em dois volumes, The nature and destiny of ‘man (A naturezae o destino de homer], publicada em 1941.* Nesse liveo, cle rejeita a concepgio racionalista da natureza humana, que eleva a razio a categoria definidora da humanidade, rejeitando a concepsio romantica ou naturalista¢ assim rebaixando a humanidade ao mesmo plano da fisica, da quimica, da psicologia, ete. A primeira concepgio deifica a natureza humana, ea segunda a degrada, Para Niebuhr, rea~ lista e pragmatico, o ser humano é uma sintese entre natureza ¢ espi- rito, entre finito ¢ infinito (para usar uma linguagem que lembra Kierkegaard) ¢ é no limiar de um ¢ de outro que vamos encontri-l. ‘Com um pé em dois mundos, o homem ¢ a experiéncia humana resis tem a qualquer explicagio coerente. Fai que teside a importancia da ninguém perguntarse uma indstria que man- antropologia cristi — a visio cristi da natureza humana. Ela é mais realista no que diz respeito a natureza humana, porque respeita 0 que hi de positivo ¢ de negative nela. “A perspectiva crista da natureza hhumana traz. consigo um paradoxo, porque reivindica uma estatura ‘mais elevada para o homem, porém leva mais a sério o mal que ha nele do que outras antropologias”.’ Para Niebuhr, essa avaliagio dialética * Reinhold Niebuhr, Leases fiom the notebook of a tamed cic, Cleveland, World, 1927, p. 181 0 veo ern a verso impress da palestra que Niebuhe dera em uma das prest ions Gifford Lectures, que 0 te6logo, a exemplo de Barth fora convidado a profe- siren 1939, Rein Nihuhr, Te mata and ding of man, 2. New York, Seribne, 1941p. 18, REALISMO CRISTAO. ou da situagio do homem, ¢ a resposta que da ela, supera a dicotomia idealista-racionalista/romantico-naturalista e nos remete & visio bi- blica da natureza humana ¢ das realidades da vida. Mas de onde procede o mal? De acordo com Niebuhr, a conscién- cia de estarmos radicados tanto na transcendéncia quanto na natureza .gera ansiedade ¢ inseguranga; esta, por sua vez, encontra expressio no pecado, que Niebuhr concebia como rebelido contra Deus alicergada nna vontade; € o pecado, por sua vez, encontra expressio, de um lado, 1a permissividade sensual e, de outro, no orgulho autoconfiante e na autoelevagio resultantes do poder, do conhecimento ou da virtude. Entre os teélogos contemporineos, Niebuhr foi um dos mais ardentes defensores da doutrina do pecado original. Ficou célebre a declaragio que deu ao London Times Literary Supplement em que cendossava a ideia: “A doutrina do pecado original é a vinica doutrina da fé cristd passivel de comprovagio empirica”.* E verdade que poste~ riormente ele se arrependeu de ter usado a expressio “pecado original” devido sua associagdo com a ideia de culpa herdada — como se uma natureza pecadora fosse transmitida pelos genes de nossos primeiros, pais, Adio ¢ Eva. Contudo, seja qual for o nome, trata-se de uma realidade trigica, universal ¢ incvitavel, mas uma realidade pela qual todos somos responsiveis —inevitive, sim, mas nao necessitia. Todos padecemos dela! E de tal modo padecemos, diz Niebuhs, que no po- demos dela nos livrar,e por isso somos conduzidos & graga e ao perdio de Deus. A cruz de Cristo & de fato, sinal tanto do julgamento do pecado humano por Deus quanto do perdio divino, bem como reve- lagio do significado da historia. Segundo Niebuhr, é verdade que a partir de certo horizonte blico e teoldgico essencial todos somos irremedivel e gualmente peca~ dores perante Deus. Todavia, também € verdade que em nossa existéncia pritica ¢ social alguns pecados € situagdes sio nitidamente piores do que outros: “Os homens, que sio igualmente pecadores a vista de Deus, nao devem ser igualmente culpados por uma transgressio * Reinhold Nicbuhs, Mant nature and bis communtitetayt om the dynamics and enigma of man's personal and sca existence. New York, Scribner, 1965, p. 24 _ . EOLOGIAS CONTEMPORANEAS que tenham praticado, E importante notar que a religiao biblica enfa- igualdade no pecado"’ de um tiza essa desigualdade de culpa tanto quanto 2 Nicbuht crticava toda teologia de vies barthiano que, em ra destaque excessivo conferido pecaminosidade humana, se nega a Jevar em conta as contribuigSes relativamente boas ou més dos homens. Com relagao a0 mal, Niebuhr faz eco aos profetas biblicos: Ricose poderosos fortes e nobres, sibs e justo sio castigndos seve samente [.] O insight religioso puro ¢ simples que subjaz as senten- as proféticas é 0 de que os homens que sio tentados por sua Superioridade e pela posse de poder indevido se tornam mais culpados de orgulho e injustiga do que aqueles a quem faltam poder ¢ posiglo.* Embora vivamos na expectativa do eschaton (fim) e do advento do reino de Deus sobre a terra (“Venha o teu Reino”), certamente € res- ponsabilidade nossa, como cristo, fazer 0 que esti a0 nosso aleance aqui € agora: praticar o amor e cultivar justiga AMOR E JUSTICA Amor ¢ justiga so palavras fundamentals para que se entenda a aplicagio niebuhriana dos principios do cristianismo & nossa existén- cia pritica sociale politica. Por “amor”, Niebuhe quer dizer agape, © amor abnegado. Esse amor é nao cauteloso, isto é, ele € movido pela obedigncia absoluta e pela preacupasio com o préximo — eonforme 6 ensinamento de Cristo —, e ndo por alguma recompensa ou cconsequéncia feliz. que possa proporcionar a alguém; o que o move & 0 sacrificio, a abnegagio e a perda pessoal. Nesse sentido, ele € para 0 pecador uma ‘possibilidade impossive!”, ou seja, um ideal pelo qual dlevemos nos empenhas, apesar de totalmente inatingivel. ‘A justiga, por outro lado, é 0 amor que abre caminho no mundo, 6 tentativa de encarar o amor nas situa Nuelaln Tatar and destiny of man, tp 222. ad REALISMO CRISTAO o4 da vida social. Mais especifi umente, isso significaria uma distribu ‘si mais equitativa do poder piblico e mais o que tudo isso implica do ponto de vista social, politico e econdmico. Niebuhr participou ativamente de programas de reforma social, como o “Democratas pela Ago Social”, do qual foi um dos fundadores. (Ele era, portanto, libe: ral na politica e conservador na teologia, uma posicZo que, conforme gostava sempre de dizer, niio era incoerente). Contudo, aqui temos també ‘uma possibilidade impossivel. Niebuhr dizia que nao deve mos ter ilusdes acerca das relatividades ¢ ambiguidades que inevita- vvelmente obscurecem ¢ comprometem a tentativa de introduzir o amor em nossas relagoes sociais, empresas ¢ instituigdes. Em nossa tenta- tiva de praticar o amor e de fazer 0 que é certo, somos constantemente forcados a avangar a recuar em cursos extremos de ago. Um exen- plo desse tipo de tensio e de resposta dialética ocorreu quando Niebuhr decidiu que era necessério deixar de ser pacifista e passou a defender a entrada dos EUA na guerra contra os nazistas. Tampouco devemos nos iludir em relago & forma como o interesse pessoal inevitavelmente obstrui ¢ frustra a justiga. Todavia, até mesmo isso deve ser subver tido, de forma pragmatica, para que dai resulte 0 bem: Saber que a lei do amor é 0 imperativo final, mas descon persisténcia do poder do amor a si mesmo no decorrer da vida toda [..J resulta numa ética idealista sem importincia alguma para as realidudes dificeis da vida [..] Saber que a lei do amor € 0 padrio definitivo e que a lei do amor a si mesmo € uma forga persstente significa dar ao cristio um fundamento para a ética pragmética em {que 0 poder e o interesse pessoal sio manipulados, seduzidos, tolhi- dos e desviados para um fim iltimo: o estabelecimento da mais ele- vada e inclusiva comunidade possivel de justiga e de ordem.? ‘A.luta pela personificagao social do amor nfo tem fim e se caracte- tiza por respostas ¢ contrarrespostas; ela se aproxima do seu objetivo, ” Reinhold Nicbuhe, “Christan faith and social action", em Cdrisian faith and social action ed. J. A. Hutchison, New York, Scribner, 1953, p. 241. ae TEOLOGIAS CONTEMPORANEAS ‘mas jamais o alcanga. Contudo, Niebuhr dizia que nao ha lugar para trégua. E responsabilidade do cristo para com Deus e com o proximo ~ apesar do pecado, da diivida ¢ da confusto — transformar este mundo da melhor maneira que pudermos. [Apesar de toda essa discussio ¢ preocupacio com este mundo, Niebuhr nio ignorava 0 outro, Em outras palavras, niio temos em jebuhr uma preocupacio com esta vida 4 custa da escatologia — doutrina da consumagio de todas as coisas, sobre a vida Futura, o jul- gamento etc. Observamos esse aspecto de sua teologia na convicsio que ele tem sobre o fim ¢ a instauragio do reino de Deus. A perspectiva niebubriana, quando analisada em sua totalidade, apresenta uma inegivel énfase teleolégica — do grego tes, conclusio, ‘cumprimento ou perfeigio. Na visio biblico-crista, deparamos com um fato incontestivel e fundamental: o universo, a histria ea vida humana sio impetidos por um propésito, por um plano e por um “fim” no sentido de um objetivo. Iso tudo diz respeito&liberdade humana, com responsa~ bilidade e autenticidade, porque o ser humano niio pode ser reduzido as forgas cegas obstante, até certo ponto produto da natureza, é igualmente evidente — por mais doloroso que seja — que cada um de nés tem um “fim” em ‘outro sentido também, na morte ou finis. Esse duplo significado de “fim nos da exatamente a dimensiio da existéncia ambigua e dialética aque, 2 esta altura, seria de esperar de Nicbubr: a experiéncia humana do finis confronta constantemente a experiéncia do 4/05 com a ameaga do ‘io ser e da auséncia de significado. “O problema € que o fim do fins é ‘uma ameaga ao fim do feos. A vida correo risco da auséncia de signifi- cado porque o finis parece ser 0 término abrupto ¢ caprichoso do pro ‘gresso da vida impedindo que ela alcance seu verdadeiro fim, ou flo.” Por outro lado, diz Niebuhr, o cristianismo entende esse aspecto da situagao humana e por sso trata da tensio entre tempo ¢ eternidade. irracionais da natureza. Por outro lado, como somos, n30 © Nich, (he mature and detiny of mam, p. 287 REALISMO CRISTAO. 4 Do ponto de vista biblico-crist2o, as ambiguidades, ameagas, dividas a vulnerabilidade da nossa existéncia presente serio sobrepujadas naquele evento futuro representado pela ideia biblica do reino de Deus, para que “Deus seja tudo em todos” (1Co 15.28). Aio significado ¢ 0 propésito de toda a histéria sero também manifestos a todos. Niebuhr vé esse ensinamento bipolar sobre nossa situagio atual nossa esperanga futura expresso vividamente no ensino do Novo ‘Testamento sobre as duas vindas de Cristo. Na primeira, Deus apare~ ceu de forma decisiva na hist6ria, derrotou o inimigo e pelos ensi- rnamentos de Jesus e por milagres, nos deu tum aperitivo do reino futuro, A segunda vinda marcari a consumagao de todas as coisas; ela sera a manifestagao total da realidade e do governo divinos no reino de Deus. Enquanto isso no acontece, vivemos num periodo intermedirio entre 1 primeira e a segunda vindas. Esse é um tempo em que olhamos para tris, para a primeira vinda e sua promessa,e para frente, para 0 futuro €.a perspectiva que ele trav consigo. E inevitavelmente também um lo, veremos que foi Oscar Cullman quem articulou de forma mais enfitica esse aspecto do “i/ nio ainda’ da escatologia neotestamentiria) tempo de ambiguidade."' (No proximo capi Fica claro, portanto, que Niebuhr leva a sério a escatologia bi- blica, Fica claro também que ele nao a interpretava literalmente. Aquele conceito tradicional do retorno do Filho do Homem nas nuvens do c6u, 0 julgamento final e a ressurreigdo dos mortos deve ser interpre~ tado como imagens que requerem uma explicagdo séria pelo que si0 de fato, Na verdade, diz Niebuhr, qualquer teologia que nao trabalhe teriamente com esses simbolos também nao levari a sério a historia, Ele trata, por exemplo, das imagens tradicionais ha pouco menciona- das. O simbolo da segunda vinda triunfante € gloriosa de Cristo, 0 Messias sofredor (frequentemente chamada de parcusia, termo grego que quer dizer “presenga"), expressa a soberania de Deus sobre 0 mundo e a supremacia final do amor sobre as forsas do amor a si mesmo. O julgamento final expressa a realidade de Cristo como juiz de toda a historia, a verdade da distingio entre o bem 0 mal, € a bid, p. 298. » 40 TEOLOGIAS CONTEMPORANEAS verdade de que nao hi como escapar da nossa responsabilidade diante do pecado ¢ da culpa. O simbolo da ressurreigao do corpo mostra que ‘o mistério da vida plena s6 pode ser obra de Deus.” Niebuhr resume de uma forma muito bem articulada sua pers- pectiva tcleolégica ¢ escatolégica, o que nos leva também de volta as observagées ja feitas anteriormente. ‘A csperanga cristi de consumagio da vida e da histéria é menos absurda do que as doutrinas que procuram compreender e levar a cabo a plenitude da vida por meio de algum poder ou capacidade inerentes ao homem ¢ & sua histéria, Trata-se de algo que fiz parte da concepsio bibliea do significado da vida. Tanto o significado {quanto sua ralizagao sao atribuidos a um centro e a uma fonte fora de nés. Podemos participar da realizagao do significado somente se io procurarmos, impelidos por um orgulho excessivo, nos apropriar do significado como propriedade nossa bem guardada, ou produzir a realizagio por forga propria.” A ORACAO DE NIEBUHR Como era de esperar, a teologia de Niebuhr foi interpretada, por veres, como uma preocupagio parcial e negativa com possibilidades impossiveis. Alguns dizem que ela precisa ser complementada com uma énfase crit mais positiva e promissora na ressurreigao de Cristo, na atuagio do Espirito Santo, na comunidade cist € num reino de Deus cuja presenga jé foi sentida no mundo. Por outro lado, a perspec~ tiva tealégico-social de Niebuhr € sem dlivida frustrante e deixa desa- pontados os que tém necessidade de enxergar as coisas com excessiva clareza. Alguém dri que ha muito espago para iterpretagio, como dasio e, por que nao dizer, muita “divagagao” nessa perspectiva para {que 0s principios cristios possam ser aplicados. Mas o objetivo, natu- ralmente, € esse mesmo. Segundo Niebuhr, o mundo real em que Toi, py. 289-298, Td 288 REALISMO CRISTAO oa vivemos € caracterizado precisamente por particularidades, relat: vidades © ambiguidades — a consumasao de todas as coisas ainda nao ‘ocorrcu. Isto nio é nada bom, mas é um fato. Portanto, uma aplicagio dos principios cristios que seja realmente significativa tera de ser necessariamente realista no tocante & nossa situagao e terd de se mos- trar disposta a fazer concessbes miituas, por assim dizer, para que se obrenha o melhor acordo possivel num determinado momento. Seja como for, muitos daqueles que jérefletiram sobre a trajetoria da teologia no século xx dizem que Reinhold Niebuhr era a pessoa certa, no lugar certo ¢ na hora certa, o que explica seus insights e con tribuigdes especificas. Sem diivida todos se lembram da oragao eserita por ele em 1934: Deus, di-nos a graga de aceitar com serenidade as coisas que no podem ser mudadas, coragem para mudar as que devem ser muda~ das, e sabedoria para distinguir uma da outra.!* "A orasio aparece no inicio de Justice and mer, de Reinhold Niebubs, ed, Ursala M. Niebuhr. New York, Harper & Row, 1974.

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