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ANAIS DO IV SPLIT
SEMINÁRIO DE PESQUISA DISCENTE DO PÓS-LIT/UFMG
1ª edição
ISBN: 978-85-7758-258-7
Belo Horizonte
FALE/UFMG
2014
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IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DISCENTE - 2014
Comissão organizadora
Alex Alves Fogal (Doutorando, UFMG)
Flávia Almeida Vieira Resende (Doutoranda, UFMG)
Paulo Roberto Barreto Caetano (Doutorando, UFMG)
Wagner F. Guimarães Júnior (Mestrando, UFMG)
Monitor
Henrique Barros Ferreira (Graduando, UFMG)
Apoio
Diretório Acadêmico Carlos Drummond de Andrade - Faculdade de Letras
- UFMG - Gestão "Travessia" 2014 - http://www.travessialetras.com/
Pós-Lit - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - Faculdade
de Letras da UFMG - http://www.letras.ufmg.br/poslit/
PROEX - Pró-reitoria de Extensão - UFMG - https://www2.ufmg.br/proex/
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
http://www.capes.gov.br/
Faculdade de Letras da UFMG - http://www.letras.ufmg.br/site/
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO................................................................................... 05
COMUNICAÇÕES:
MÉTODO MARXISTA:
MÉTODO SOCIOLÓGICO:
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- Luiz Paixão Lima Borges: Realismo dialético e psicológico na
peça Rasga Coração: uma leitura sociológica e materialista ... 62
MÉTODO PÓS-ESTRUTURALISTA:
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Apresentação
A quarta edição do Seminário Discente do Pós-Lit/UFMG ocorreu entre os
dias 20 e 22 de outubro de 2014 e apresentou como tema “A literatura e os
métodos de pesquisa”, dando continuidade à proposta temática iniciada em
2013 pela Representação Discente do Pós-Lit. Para contemplá-lo, foram
selecionados dois dos métodos absorvidos pelos estudos literários, a saber:
Marxismo e os Estudos Culturais. Contudo, as comunicações realizadas
puderam discorrer sobre métodos discutidos na edição anterior.
Os organizadores
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MÉTODO FILOLÓGICO E MÉTODO ESTRUTURALISTA:
O FANTÁSTICO
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Mestranda em Estudos Literários. Licenciada em Língua Portuguesa e Bacharel em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto.
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Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov, é uma das principais
referências sobre a literatura fantástica. Nela, Todorov (2010, p. 30-31) considera o
fantástico como uma hesitação que um ser experimenta frente a um acontecimento de
aparência sobrenatural. A partir dessa hesitação, esse ser deve optar por um destes
dois caminhos: ou considera que o acontecimento é fruto de sua imaginação e as leis
naturais seguem conforme são percebidas por nós, ou que ele ocorreu de fato e a
realidade deixa de ser a que conhecemos e passa a ser regida por leis desconhecidas.
No primeiro caso passaríamos do fantástico para o estranho, e, no segundo caso, para o
maravilhoso.
A consideração do fantástico como uma hesitação torna-se um conceito
vulnerável, cuja consistência pode ser questionada. Por exemplo, em relação ao conto
“Véra”, de Villiers de l’Isle-Adam, Todorov diz que nele “a hesitação não está
representada no texto”, e por isso só pode partir do leitor, pois “nenhuma personagem
compartilha esta hesitação”. Portanto, a identificação do leitor com o personagem em
relação à hesitação se trata “de uma condição facultativa do fantástico: este pode
existir sem satisfazê-la; mas a maior parte das obras fantásticas submete-se a ela.”
(TODOROV, 2010, p. 37, grifos nossos). Mais adiante Todorov trabalha A metamorfose,
de Kafka, explicando porque esse autor não se inclui no “gênero fantástico”.
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Assim, Ceserani (2006, p. 12) descarta a categorização do fantástico como
gênero para defini-lo como um “modo” literário, com raízes históricas precisas e situadas
historicamente em alguns gêneros e subgêneros, mas utilizado em obras pertencentes
a gêneros muito diversos. Isso porque, como o estranho, o maravilhoso, o realista etc.,
o fantástico não designa um gênero narrativo nem uma classe específica de contos, mas
uma categoria modal de contar. O crítico afirma ainda “que a literatura fantástica não
pode ser reduzida a uma simples operação retórica e lingüística, mas trata-se [...] de
algo que tem suas raízes nas mais profundas camadas de significado e toca a vida dos
instintos, das paixões humanas, dos sonhos, das aspirações.” (CESERANI, 2006, p.
100). Dessa forma, temos, percorrendo toda a crítica de Ceserani, a rejeição
argumentada da classificação do fantástico como um gênero literário e sua redefinição
como uma categoria modal de contar.
Adotando a definição do fantástico como modo, Ceserani apresenta diversos
procedimentos formais e temas recorrentes dos mais diversos gêneros dos quais o
fantástico se alimenta, com combinações e empregos particulares, sem estar confinado
a esses mecanismos. Mas convém ressaltar que
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narrador, seu discurso não é colocado à prova de verdade, o que não aconteceria no
caso de uma personagem. Ceserani (2006) o alarga um pouco mais ao afirmar que o
fantástico contempla, além da narrativa em primeira pessoa tradicional, aquelas onde
há personagens que trocam cartas, onde há destinatários explícitos – como o famoso
Der Sandmann, de E. T. A. Hoffmann.
3) Um forte interesse pela capacidade projetiva e criativa da linguagem. Para
Ceserani (2006, p. 70), entre transitividade e a intransitividade da linguagem, o modo
fantástico escolhe um terceiro caminho, o de suas potencialidades criativas.
4) Envolvimento do leitor: surpresa, terror, humor. O conto fantástico tem a
forte capacidade de envolver o leitor, levando-o para um mundo familiar a ele para,
depois, lançar sobre ele seus mecanismos de surpresa, de desorientação e de medo.
5) Passagem de limite e de fronteira. Esse procedimento, que consiste na
passagem do cotidiano, familiar, para o perturbador, inexplicável, é fundamental nos
contos fantásticos. Podemos encontrá-lo, por exemplo, na passagem de fronteira de
uma dimensão real para uma dimensão do sonho, do pesadelo ou, ainda, da loucura.
6) O objeto mediador. O procedimento do objeto mediador está ligado
diretamente ao procedimento anterior de passagem de limite e de fronteira. Isso por
que o “objeto mediador” refere-se a um objeto que, devido a sua inserção concreta no
texto, torna-se o testemunho efetivo do fato de o personagem inequivocamente ter
estado em outra dimensão da realidade e ter trazido dela o objeto consigo.
7) As elipses. É comum nos depararmos em alguns textos fantásticos com
súbitas aberturas de espaços vazios, ou seja, de elipses na narrativa. Para Ceserani
(2006, p. 74), trata-se da “escritura povoada pelo não dito”.
8) A teatralidade. As técnicas e práticas teatrais (como a fantasmagoria, a
criação de efeitos de “ilusão”) são muito usadas pelo modo fantástico devido a seu
gosto pelo espetáculo como um procedimento.
9) A figuratividade. O modo fantástico procurou “ativar todos os procedimentos
de figuratividade e iconicidade implícitos na prática narrativa” (CESERANI, 2006, p. 76).
10) O detalhe. Os procedimentos de destaque e da função narrativa do
detalhe, que foram procedimentos amplamente utilizados pelo romance policial e
considerados um traço distintivo da literatura moderna, tiveram um papel importante
no modo fantástico.
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Após essa definição dos dez procedimentos formais mais recorrentes no modo
fantástico, Ceserani apresenta alguns dos sistemas temáticos mais difundidos e
praticados por esse modo. Cabe destacar que alguns desses temas estão estreitamente
relacionados com os procedimentos já definidos, sendo que, em alguns casos, ocorre
mesmo uma tematização dos desses procedimentos. Eis os oito sistemas temáticos
enumerados pelo crítico.
1) A noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo. O mundo
noturno é o ambiente preferido pelo modo fantástico. Ceserani aponta a preferência do
modo fantástico “pelos mundos tenebrosos, subterrâneos, do além, ‘subnaturais’ mais do
que ‘sobrenaturais’” (CESERANI, 2006, p. 79).
2) A vida dos mortos. Esse tema constrói-se no fantástico com aspectos
novos, interiorizando-se, ligando-se a novas explorações filosóficas e experimentações
pseudocientíficas. Em Todorov ele vem acompanhado do tema do amor: o amor pela
morte ou por algo (alguém) morto, ou seja: necrofilia. A necrofilia, na literatura
fantástica, “assume habitualmente a forma de um amor com vampiros ou com mortos
que voltaram ao meio dos vivos” e pode ser “apresentada como a punição a um desejo
sexual excessivo”, embora não precise receber nenhuma valorização negativa.”
(TODOROV, 2010, p. 145-146).
3) O indivíduo, sujeito forte da modernidade. A individualidade burguesa
colocada no centro da vida social e biológica, tema característico da modernidade.
Tem-se, de um lado, de acordo com Ceserani (2006, p. 82), o eu que planeja a própria
história e evolução de uma forma linear e unitária; de outro, o eu que representa-se
“nas hesitações e nas dúvidas que acompanham inevitavelmente a afirmação do modelo
forte da individualidade auto-afirmada”. É desse último, segundo Ceserani, que nascem
várias obras literárias do século XIX, em especial as do modo fantástico.
4) A loucura. Sabe-se que a loucura é tema literário de grande tradição,
porém, no modo fantástico ela se liga aos problemas mentais da percepção. “Não há
um salto entre o louco e o homem normal. Os limites entre o louco e o homem de
gênio [...] tornam-se muito flexíveis” (CESERANI, 2006, p. 83).
5) O duplo. Na narração fantástica há uma descentralização do sujeito, uma
agressão em sua unidade subjetiva e em sua personalidade humana que levam a uma
tentativa de colocá-las em crise.
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6) A aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível. De acordo com
Ceserani (2006, p. 84), a presença de um “estranho” ou “estrangeiro” num ambiente
familiar, dá-se de forma repleta de aspectos inquietantes, que suscita “reações de
profunda perturbação psicológica e não tem como conseqüência apenas a simples
exclusão do elemento estranho”.
7) O Eros e as frustrações do amor romântico. O modo fantástico aborda esse
tema de forma tal que em seus textos “todos os limites e todas as aberrações do amor
romântico” (CESERANI, 2006, p.88) se unem.
8) O nada. Esse tema se relaciona tanto com a filosofia materialista do século
XVIII quanto com o idealismo e o espiritualismo de cunho pessimista.
Finalizando com o nada essa parte em que salientamos as teorizações de
Todorov e Ceserani a respeito do fantástico, assim como a crítica de Ceserani a
Todorov, convém considerar o seguinte: é sabido, é claro, a importância de Introdução
à literatura fantástica para os estudos da área, por isso não a abandonamos. Por
exemplo, vimos que parte dos procedimentos e temas trabalhos por Ceserani já
estavam em Todorov, sendo que alguns foram trabalhados de forma mais específica e
outros tiveram maior amplitude em O fantástico. Mas consideramos que o trabalho de
Ceserani é, em primeiro lugar, mais abrangente e ao mesmo tempo mais específico que
o de Todorov; em segundo lugar, que a consideração do fantástico como um modo é
mais cabível e melhor argumentada, tendo em vista o caráter dependente do
fantástico enquanto gênero em Todorov.
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Para analisar o discurso da narrativa propriamente dita – a única à disposição
dos estudos ficcionais –, Genette divide seu trabalho em três classes principais: Tempo
(subdividida em Ordem, Duração e Frequência), em que ele explora os problemas da
análise do discurso narrativo concernente às relações temporais entre narrativa e
diegese. Modo, relacionada “às modalidades (formas e graus) da ‘representação’
narrativa”. E, por fim, Voz, relativa à “forma pela qual se encontra implicada na
narrativa a própria narração”, ou situação ou instância narrativa. (GENETTE, 1979, p.
29). Essas três classes propostas por Genette recobrem as três categorias definidas por
ele, de forma que “o tempo e o modo funcionam ambos ao nível das relações entre
história e narrativa, enquanto que a voz designa ao mesmo tempo as relações entre
narração e narrativa e entre narração e história.” (GENETTE, 1979, p. 30).
Nessa obra Genette faz, por um lado, um estudo sobre À la recherche du
temps perdu, de Marcel Proust, e, por outro, uma análise cuidadosa das inúmeras
possibilidades de organização de uma narrativa. Nesse sentido, crítica e teoria literária
são relacionadas aqui em termos de uma análise sistemática da arte de contar em suas
várias possibilidades de realização. Conforme sublinha Jonathan Culler (1980), no
prefácio à edição inglesa da obra,
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Discurso da Narrativa de Gérard Genette é de valor inestimável porque preenche a
necessidade de uma teoria sistemática da narrativa. Como a tentativa mais completa que temos
para identificar, nomear, e ilustrar os componentes básicos e as técnicas da narrativa, a obra
irá provar-se indispensável para o estudante da ficção, não somente na procura de termos para
descrever aquilo que perceberam nos romances, mas também porque serão alertados para a
existência de dispositivos ficcionais que antes tinham falhado em observar e cujas implicações
não tinham sido capazes de considerar. Cada leitor de Genette descobrirá que vai se tornar um
analista de ficção mais agudo e mais perceptivo do que fora até então. (CULLER, 1980, p. 7,
tradução nossa).
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estudo não se mantém confinado a ela. Como assinala Maria Alzira Seixas, em Genette
“todas as hipóteses discursivas que a narrativa de À la Recherche não concretiza são
também convenientemente estudadas, embora numa dimensão menos ampliada”
(SEIXAS, 1979, p. 11).
Nosso interesse em Discurso da Narrativa está pautado em sua efetiva
capacidade de sistematização e conceituação de técnicas narrativas que podem ser
encontradas em textos dos mais diversos gêneros. Por isso encontramos referidas nela
desde uma obra como a Recherche, dita realista, como outras bem diversas, como La
peu de Chagrin, de Balzac, La forma de la espada, de Borges, Sei personaggi in cerca
d'autore, de Pirandello, e, ainda, Continuidad de los parques, de Julio Cortázar.
Nomeamos os enfoques dessas narrativas para reforçar ainda mais que, apesar de ser
a Recherche a narrativa principal de seu trabalho, Genette estabelece uma
investigação de caráter o mais amplo possível, buscando, quando necessário, a análise
e exemplificação de procedimentos que sejam capazes de cobrir o máximo de
possibilidades de construções narrativas específicas. Dessa forma, ele realiza um
exemplo raro e excepcional tanto de crítica quanto de teoria literária.
No entanto, como salienta Culler, o estudo de Genette não se mantém no limite
de um modelo canônico de descrição das categorias e técnicas. Discurso da Narrativa
abre-se para o espaço de violações do modelo proposto, produzindo textos que
envolvem combinações que parecem ser impossíveis. Culler afirma, ainda, que Genette
lida, nesse trabalho, com as manifestações do poder do marginal, do suplementar, da
exceção (“the power of the marginal, the supplementary, the exception”), relacionando-
se assim com as investigações de Jacques Derrida sobre a lógica da marginalidade ou da
suplementaridade que está sempre em ação em nossos esquemas interpretativos (“the
logic of marginality or supplementarity that is always at word in our interpretive
schemes”) (CULLER, 1980, p. 13).
É assim que a obra de Genette se liga ao nosso estudo. Se retomarmos a
consideração de Ceserani a respeito dos procedimentos narrativos utilizados pelo modo
fantástico, vemos que
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ou motivo, pode ser utilizado em textos pertencentes às mais diversas
modalidades literárias. (CESERANI, 2006, p. 67)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
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MÉTODO MARXISTA
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Doutorando em Estudos Literários (POS-LIT/FALE) pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Esta comunicação é um derivado do artigo “A Paris material de Walter Benjamin”
publicado na Revista GEWEBE. Disponível em: <http://gewebe.com.br/cadernos_vol11.htm>.
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INTRODUÇÃO
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novo, está paradoxalmente ligada à morte, à destruição no tempo. A cidade grande é o
cenário desta morte.” (MURICY, 1995, p. 40) Tal movimento de reurbanização revela,
também, a exclusão inerente ao embelezamento e a modernização da metrópole, pois
os operários que durante o dia reformam a cidade são à noite expulsos para os
subúrbios. Exclusão que é representada com maestria pelo poema “O cisne” (Le
cygne), de Baudelaire.
A PARIS MATERIAL
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jogo alegórico de significação. Já a noção de progresso pode ser ilustrada com o
avanço das tecnologias de reprodução imagética. Esse movimento pode ser
exemplificado com o desenvolvimento dos panoramas, técnica de reprodução
imagética que, segundo Benjamin (2009, p. 45), anunciava “uma revolução nas
relações da arte com a técnica”. Tal técnica não figurou por muito tempo como a
última novidade no cenário da reprodução imagética e foi rapidamente substituída pela
fotografia. Já a técnica fotográfica, por sua vez, perdeu o seu posto e foi substituída,
como última moda na reprodução e captação de imagens, pelo cinema, primeiramente
o mudo e posteriormente o falado. A transitoriedade, por sua vez, inerente ao conceito
de fetiche, pode ser exemplificada pela moda. É fato que, nesse movimento transitório,
a moda mais recente – a última novidade – exerce uma potência enfeitiçadora mais
forte do que a anterior e acaba por tomar-lhe o lugar. Assim, a “fantasia impulsionada
pelo novo” (BENJAMIN, 2009, p. 41) torna-se capaz de renovar a força do fascínio que
a mercadoria exerce sobre os sujeitos e, devido ao seu caráter de última novidade no
mercado, o movimento transitório da moda apresenta renovada a fantasia da
mercadoria de colocar-se como a capacidade de realização imediata das promessas. A
relação de transitoriedade estabelecida no movimento entre a permanência de
elementos antigos e a iminência da novidade na constituição da metrópole parisiense
pode ser entendida através da visão de uma cidade cuja estrutura material é sempre
mutável. Uma cidade constantemente marcada pelas reformulações urbanísticas que
removem do seu cenário as antigas construções para que essas possam ceder o seu
lugar às novas, como foi o caso exemplar de Paris. Porém, as ruínas dessa destruição
permanecem, visto que as “novas” construções estão fadadas ao mesmo destino das
“antigas”, a saber, o deperecimento, a morte. Este movimento de reurbanização que
expõe a fragilidade material da capital francesa revela não apenas a violência exercida
contra os monumentos de uma Paris antiga, como também apresenta a violência
exercida contra o habitante da metrópole – para o qual a cidade torna-se estranha e
desumana.
Para Benjamin, a “cidade de Paris ingressou nesse século sob a forma que lhe foi
dada por Haussmann. Ele realizou sua transformação da cidade com os meios mais
modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas e coisas semelhantes.”
(BENJAMIN, 1989, p. 84) É justamente na modificação do espaço urbano da metrópole
que a marca da transitoriedade de Paris revela-se com maior primazia, fundada
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principalmente pelas reformas urbanísticas do Barão Haussmann, iniciadas em 1859. As
reformas de Haussmann visavam o embelezamento estratégico da metrópole através da
substituição da “verdadeira Paris”, uma cidade naturalmente “escura, lamacenta,
malcheirosa, confinada em suas ruas estreitas” (BENJAMIN, 2009, p. 564. [P 4,1]), por
uma cidade extremamente planejada, com largas e arborizadas avenidas (boulevards),
que tinham como intuito, sobretudo, impedir a insurreição dos populares em barricadas
e propiciar o deslocamento mais efetivo das tropas militares, proporcionando, assim,
uma nova fisionomia para a cidade. De acordo com Benjamin, ao citar um fragmento do
arquivo temático “E - Haussmannização, Lutas de barricadas”, o embelezamento
estratégico consistiria em dois movimentos: na abertura de “Novas artérias” que “fariam
comunicar o coração de Paris com as estações e as descongestionariam” e,
principalmente, na abertura de outras vias que “participariam do combate travado contra
a miséria e a revolução; seriam vias estratégicas, atingindo os núcleos de epidemias, os
centros de rebeldia, permitindo, com a vinda de ar puro, a chegada do exército.”
(BENJAMIN, 2009, p. 169. [E 3a, 3])
A velocidade das demolições de Haussmann transforma Paris em um canteiro
de obras, em um amontoado de ruínas, de modo que a desfiguração do espaço
material da metrópole aflige o seu próprio habitante, ocasiona-lhe o sentimento de ser
um estrangeiro em sua própria cidade. Nesse contexto, temos a seguinte afirmação de
Benjamin (2009, p.49): “Aquilo que sabemos que, em breve, já não teremos diante de
nós torna-se imagem”, isto é, o caráter transitório e mutável da imagem de Paris
provoca em seus habitantes o estranhamento em relação à cidade que habitam. A
fisionomia transitória de Paris, arruinada pelos intentos megalomaníacos de
Haussmann, aponta para o “desprezo da experiência histórica” (BENJAMIN, 2009, p.
172. [E 5, 6]), experiência essa que o parisiense construiu anteriormente com sua
cidade. Aponta também para a desvalorização dos elementos da própria cidade,
incluindo-se aí o próprio habitante. Desse modo, na imagem da Paris moderna, regida
pela transitoriedade e fragilidade das suas construções, a possibilidade do parisiense
construir uma relação experiencial com a metrópole é impossibilitada pela volatização
das construções arquitetônicas da cidade. Por isso a experiência que a Paris de
Haussmann possibilita ao seu habitante é a do estranhamento frente às constantes
mudanças em sua estrutura, ou seja, não é, de modo algum, uma experiência
enraizada no sujeito (Erfahrung), mas, sim, uma vivência (Erlebnis) que se choca com
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o estranhamento produzido pela transitoriedade da metrópole familiar arruinada.
Benjamin evidencia o caráter destrutivo e a sensação de estranhamento da
haussmannização de Paris com uma citação de Dubech e D’Espezel em Historie de
Paris, como pode ser visto no seguinte fragmento:
Versos nos quais, de acordo com Gagnebin (1997, p. 151) está tematizado o
“processo de corrosão do tempo que caracteriza a consciência da modernidade”,
consciência determinada pela constatação do signo da transitoriedade que transforma
o novo em ruína e decreta – como visto anteriormente – o destino comum às
estruturas inorgânicas ou orgânicas da metrópole: o deperecimento. Nesse sentido,
tanto a imagem da cidade que muda em uma velocidade assustadora, quanto as
alegorias dos exilados presentes no poema - depositadas, sobretudo, nas imagens do
cisne, de Andrômaca e da negra, entendidos como imagens de uma Paris fragilizada –
têm a sua estrutura moldada como “símbolos de fragilidade”. Enquanto estruturas
orgânicas, esses exilados são entendidos em duas vertentes: a) como “símbolos de
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criaturas vivas (a negra e o cisne)” e b) como “símbolos históricos (Andrômaca, ‘viúva
de Heitor e... mulher de Heleno’)” (BENJAMIN, 1989, p. 181). Entretanto, em ambos os
símbolos o entendimento comum é que eles simbolizam uma relação com a tradição
que já não possui mais local na sociedade moderna – em suma, representam a
exclusão de uma tradição no seio da modernidade. Nesse sentido, o traço comum a
esses símbolos – orgânicos ou históricos –, “é a desolação e desesperança pelo que
virá”. (BENJAMIN, 1989, p. 81).
Os símbolos da fragilidade da metrópole – fragilidade orgânica (o cisne e a
negra) e histórica (Andrômaca) – significam, para Luciano Gatti, no artigo “Experiência
da Transitoriedade: Walter Benjamin e a modernidade de Baudelaire”, “a expulsão da
vida orgânica pelo processo de urbanização e transformação em concerto de todo o
ambiente” (GATTI, 2009, p. 168) e a consolidação do “exílio de uma tradição histórica
e literária”. Desse modo, a estruturação transitória da Paris do século XIX determina
que qualquer perspectiva de futuro para os exilados está, de antemão, fadada a
tornar-se um amontoado de ruínas.
No poema “O cisne”, “Baudelaire faz o registro do exílio no interior de uma
Paris em reconstrução sob os auspícios do projeto de reurbanização efetuado pelo
Barão Haussmann”, afirma Gatti (2009, p. 165-166). Nesse sentido, o sentimento de
exílio se faz presente na imagem do poeta que lamenta perante a violência da
destruição e o não reconhecimento de sua antiga cidade. Baudelaire é um exilado – tal
como o cisne e Andrômaca – e que está inserido no jogo de transitoriedade dos
símbolos da cidade parisiense. Todavia, sua situação é ainda mais desesperadora, pois
ele tem ciência que na força desse processo de reurbanização, capaz de revelar a
fragilidade material e imaterial da metrópole parisiense, repousa a possibilidade –
fundada, sobretudo, na crença de um progresso infinito da técnica e da ciência – de
que, com apenas um golpe, a cidade é feita em ruínas. É nesse sentido que Gatti
afirma que
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Nesse conjunto de testemunhos destaca-se a visão “de que, juntamente com as
grandes cidades, cresciam os meios que permitem arrasá-las” (GEOFREY, apud,
BENJAMIN, 2009, p. 135-136. [C 7a,1]). Entre esses testemunhos, Benjamin destaca
as colocações do escritor Maxime du Camp e as representações do gravurista francês
Charles Meryon, o primeiro acreditando que a cidade está fadada à “lei inevitável da
caducidade de todas as coisas humanas” e o segundo representando a cidade de Paris
como “um campo de ruínas” (BENJAMIN, 1989, p. 84-86). Meryon, definido por
Benjamin como um pintor alegórico, apresenta em suas gravuras sobre Paris,
uma aparência de vida passada, que está morta ou que vai morrer...
[...] ele certamente advinha que essas formas tão rígidas eram
efêmeras, que essas curiosas belezas pereceriam como tudo o mais.
Ele escutava a linguagem que falam as ruas e as vielas
incessantemente atravancadas, destruídas e refeitas, desde os
primeiros dias da cidade, e por isso sua poesia evocadora se encontra
com a Idade Média através da cidade do século XIX; através da visão
das aparências imediatas ele identifica a melancolia de sempre.
(GEOFREY, apud, BENJAMIN, 2009, p. 135-136. [C 7a,1])
São esses os sentidos que Meryon coloca em sua obra que o faz ser tão
admirado por Baudelaire. O gravurista, em suas representações de Paris, condensa
aquilo que o poeta, ciente da constituição transitória de Paris, quis inserir em sua obra.
Pode-se dizer, nesse sentido, que a poesia urbana de Baudelaire inunda-se dos
elementos que Meryon trouxe à tona ao apresentar as coisas em seu destino natural de
perecimento, em sua estrutura efêmera e, especialmente, na representação da cidade
moderna em sua conexão com elementos da cidade antiga – as ruínas. Se na
modernidade, “Meryon fez brotar a imagem antiga da cidade sem desprezar um
paralelepípedo” (BENJAMIN, 1989, p. 85), Baudelaire, continuamente em sua poesia,
procurou se entregar a essa mesma ideia. Ademais, em ambos “se manifesta
continuamente a forma dessa superposição, que é a alegoria” (BENJAMIN, 2009, p.86).
Por isso é evidente que em Baudelaire e em Meryon a única possibilidade de pôr-se de
frente à transitoriedade estrutural da metrópole, seja ela ocasionada pelas
reurbanizações promovidas por Haussmann, pelo efeito de estranhamento que provoca
no habitante da metrópole ou pela visão de um declínio imediato da cidade, é por meio
da inserção no jogo de significação alegórico, buscando, por fim, compreender que as
antigas construções conceituais passíveis de imputar um significado único e imutável às
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relações construídas, não somente entre os sujeitos, mas também, entre os sujeitos e os
objetos, perdem a sua validade na transitoriedade da vida moderna.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUDELAIRE, Charles. O cisne. In: As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro. Nova Fronteira, 2006.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
CHAVES, Ernani. Der zweite Versuch der Knust, sich mit der Techink
auseinanderzusetzen: Walter Benjamin e o Jugendstil”. In: Revista Artefilosofia, vol.
06, p. 56-62. Ouro Preto: ED. UFOP, 1° semestre de 2009.
FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do
princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2010.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1997.
MURICY, Katia. O heroísmo do presente. In: Tempo Social. Revista de Sociologia USP.
São Paulo: vol. 07, p. 31-44.
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COMPANHIA DO LATÃO E O MÉTODO BRECHT: UMA ANÁLISE DA PEÇA
“O MERCADO DO GOZO”
Flávia Almeida V. Resende1
(PÓS-LIT/UFMG)
1
Mestre em Teoria da Literatura pelo Pós-Lit (Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários) da Faculdade de Letras da UFMG. Doutoranda em Literaturas Modernas e
Contemporâneas pela mesma instituição.
2
Brecht denomina seu teatro primeiramente como “teatro épico”, mas depois reconsidera o
termo, afirmando ser este demasiadamente formal e não compreender todo o projeto de
transformação social trazido por esse tipo de teatro. Cf. Brecht, 2005, p. 167.
27
Dito isso, podemos afirmar que o teatro épico-dialético formulado
por Brecht, no qual a Companhia do Latão se baseia, é uma pesquisa que
conjuga um apurado trabalho formal com um objetivo social: tornar a
representação teatral um evento mais crítico e de caráter didático3 evidente,
possibilitar a crítica das imagens e das formas ideológicas dominantes,
fornecendo ao espectador uma visão de um mundo modificável. Para tanto, o
teatro deveria estabelecer uma relação histórica clara – aquilo que é visto em
cena está ligado a um período histórico determinado e é, portanto, passível de
modificação.
Inúmeros são os elementos que envolvem o teatro épico-dialético de
Brecht, que corroboram para o distanciamento e para uma atitude crítica do
espectador, tais como: o uso da narração, que permite que os acontecimentos
sucedam de forma não linear e com saltos; das canções, que, de acordo com
Brecht, não devem nunca ser colocadas como uma continuidade natural da fala,
como nos musicais, mas sempre como rupturas; de títulos de cenas e
projeções, que rompem com o fluxo da ação e provocam um estranhamento4.
Tais elementos se configuram como oposição ao modelo do drama, que investe
no envolvimento emocional do espectador com a trajetória do herói dramático.
Uma vez que não há uma trajetória linear que caminha para um ponto de maior
interesse, todas as cenas ganham um interesse especial e importante para a
análise e não para o “gráfico emocional”. Além disso, como observa Benjamin
em seus estudos sobre Brecht5, “o teatro épico não reproduz condições, mas as
descobre. A descoberta das situações se processa pela interrupção dos
3
Frederic Jameson, em O método Brecht, a respeito desse caráter didático da obra de Brecht,
afirma: “Ainda que didático, é preciso acrescentar que Brecht, a rigor, nunca teve uma doutrina
a ensinar” (JAMESON, 1999, p. 14). Entendemos que Brecht, em suas propostas cênicas e
teóricas, buscava não apenas transmitir um conteúdo (que não corresponde a transmitir uma
cartilha, um programa marxista), mas, principalmente, reformular uma linguagem cênica para
apresentar os conflitos de maneira dialética. Trata-se, portanto, de um trabalho de apuro
formal, de linguagem, em função de objetivos didáticos e críticos.
4
O “estranhamento” a que Brecht se refere é uma espécie de reação provocada no espectador
quando vê algo que poderia passar por natural como algo não natural, ou um acontecimento a
princípio cotidiano que ganha um aspecto “chamativo”, “incrível”, para que possa ser
“estranhado” em sua cotidianidade e, então, transformado.
5
Cf. “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht” (BENJAMIN, 1994, p. 78-90).
28
acontecimentos” (BENJAMIN, 1994, p. 81). É na interrupção desses
acontecimentos encenados que Brecht potencializa a análise intelectual
desejável dos espectadores sobre as condições sociais. Isso se dá precisamente
porque a interrupção propicia o aparecimento dos Gestus6, que são os gestos
que revelam as relações sociais de determinada personagem – daí a famosa
afirmação categórica de Benjamin, de que “o teatro épico é gestual”
(BENJAMIN, 1994, p. 80), em oposição a um teatro prioritariamente textual.
Segundo Frederic Jameson (2009), a estética de Brecht está ligada à
sua concepção de ciência, que seria menos uma questão de conhecimento do
que de puro experimento: “a visão particular da ciência de Brecht foi seu meio
de anular a separação entre a atividade física e mental e a divisão do trabalho
(...) que procedia dela: volta a unir o conhecer o mundo e o transformá-lo”7
(JAMESON, 2009, p. 195). Há aqui dois pontos fundamentais do pensamento
brechtiano que serão apropriados pela Companhia do Latão. O primeiro deles
diz respeito à forma de produção, à divisão do trabalho: o Latão adota o que
hoje no teatro se convencionou chamar de processo colaborativo, uma forma
menos hierárquica, em que todos os componentes do grupo têm (ou devem
ter) consciência crítica de todo o processo (eliminando a separação entre
atividade física e mental). O segundo diz respeito à ênfase no transformável,
ligada à noção de historização e distanciamento.
A respeito dessa historização, Brecht afirma que
6
Basicamente, os Gestus são atitudes concretas de determinado personagem que permitem
analisá-lo em sua relação social. A interrupção aqui é fundamental para que fique evidente o
gestus, pois ele pode traduzir um “hábito” social já incorporado, como a forma de manipular
determinado instrumento de trabalho, ou a maneira de um patrão tratar seu empregado. A
simples representação desse hábito seria como reforçá-lo. A interrupção permite a leitura e a
análise desse gestus que carrega consigo as relações sociais.
7
“La particular visión de la ciencia de Brecht fue su medio de anular la separación entre la
actividad física y mental y la división del trabajo (…) que precedía de ella: vuelve a poner juntos
el conocer el mundo y el cambiarlo”. Tradução própria.
29
superáveis e estar submetido à crítica a partir do ponto de vista das
épocas seguintes. (...) Os processos e pessoas da vida cotidiana são
para nós algo natural por estarmos acostumados. Seu distanciamento
serve para que nos chame a atenção. A técnica de sentir-se intrigado
por acontecimentos correntes, “naturais”, nunca postos em dúvida, foi
cuidadosamente criada pela ciência, e não há razão alguma para que
a arte não aproveite essa atitude tão infinitamente útil. 8 (BRECHT,
2004, p. 137-138)
8
“Los procesos históricos son procesos únicos, efímeros y relacionados con determinadas
épocas. El comportamiento de las personas en ellos no es simplemente humano, monolítico,
sino que posee determinadas características, debido al paso de la historia tiene aspectos
superados e superables y está sometido a la crítica desde el punto de vista de las épocas
siguientes. (…) Los procesos y personas de la vida cotidiana, del entorno inmediato, son para
nosotros algo natural por acostumbrado. Su distanciamiento sirve para que nos llame la
atención. La técnica de sentirse intrigado por procesos corrientes, ‘naturales’, nunca puestos en
duda, ha sido cuidadosamente criado por la ciencia, y no hay razón alguna para que el arte no
aproveche esta actitud tan infinitamente útil.” Tradução própria.
9
Bóris Fausto (1977, p. 192) afirma que “julho de 1917 assumiu na memória social o sentido
de um ato simbólico e único. Símbolo de uma mobilização de massas impetuosa, das
virtualidades revolucionárias da classe operária, de organizações sociais representativas, não
contaminadas pela infecção burocrática”. A greve geral de 1917, deflagrada sobretudo no setor
têxtil em São Paulo, contou com a paralisação do operariado de diversas fábricas e setores.
Essa greve, fortemente influenciada pelo ideário anarquista e anarco-sindicalista, que primava
pela ação espontânea dos trabalhadores, foi duramente reprimida pelo estado oligárquico, a
começar pelo assassinato do anarquista José Martinez, que protestava na porta da fábrica
Mariângela. Seu enterro levou milhares de operários às ruas, e deu ainda mais fôlego para a
deflagração da greve geral.
30
consequente mercantilização da imagem, que é ainda mais clara e esmagadora
nos dias atuais.
Podemos pensar que essa distância histórica – o fato de a peça se
passar em 1917 – já é um mecanismo de distanciamento e de historização dos
acontecimentos. Uma vez que eles já parecem distantes no tempo, é possível
lançar um outro olhar e uma nova leitura sobre eles, compará-los com a
realidade atual, e, além disso, percebê-los como modificáveis ao longo da
história (se algo que acontecia de tal forma naquela época e parecia insolúvel
hoje já é diferente, o que está dado hoje também pode ser modificado).
Na peça “O Mercado do Gozo”, esse distanciamento temporal está
presente sobretudo nos “intermezzos de agit prop”, que são, aliás, o que há de
mais claramente “político” na peça, no sentido tradicional do termo. O primeiro
intermezzo acontece na cena 6, “Intermezzo de agit prop: declaração de greve
geral”, e traz a seguinte rubrica: “Um coro de atores assiste à projeção de
imagens históricas da greve de 1917 em São Paulo. A cena é um corpo
estranho na narrativa. Não deve ser harmonizada ao conjunto. É como se
fizesse parte de um estudo preparatório que foi banido do roteiro do filme” (p.
220)10. São, portanto, imagens – reais, é válido lembrar – do passado, que
irrompem no presente da cena e estabelecem uma relação de tensão com o
plano narrativo ficcional.
Aqui podemos pensar nas ideias de Benjamin apresentadas no
famoso ensaio “Sobre o conceito da história” (1994):
10
As citações da peça serão apresentadas apenas com o número de página. A referência é
sempre ALBERGARIA, Helena; CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. “Mercado do Gozo”.
In CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. Companhia do Latão – 7 peças. São Paulo:
Cosac&Naify, 2008.
31
Benjamin afirma essa possibilidade de lampejos e irrupções do
passado no presente, em detrimento de uma falsa ideia de um “continuum da
história” (BENJAMIN, 1994, p. 230) rumo ao progresso. E seria justamente essa
possibilidade que permitiria uma esperança em relação ao presente, já que o
materialista histórico seria capaz de fixar – pelo trabalho da memória – um
momento decisivo na história, em que ela poderia – e pode, enquanto
esperança do presente – tomar novos rumos. Benjamin, quando escreve sobre
Brecht, aponta para uma proximidade entre o teatro do dramaturgo alemão e
sua noção crítica da história, por exemplo ao afirmar: “Quando o fluxo real da
vida é represado, imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um
refluxo: o assombro é esse refluxo. O objeto mais autêntico desse assombro é
a dialética em estado de repouso. O assombro é o rochedo do qual
contemplamos a torrente das coisas (...).” (BENJAMIN, 1994, p. 89-90). Essa
“dialética em estado de repouso” é que nos permitiria vislumbrar as forças
contraditórias.
Trata-se, pois, no caso de Brecht e da Companhia do Latão, de uma
visão dramatúrgica que rompe com o fluxo contínuo da narrativa, e permite
irrupções, citações e mesclas temporais, de forma a possibilitar um olhar crítico
sobre a história e um olhar historizado sobre os fatos presentes. Os intermezzos
de cunho histórico aparecem em “Mercado do Gozo” como “um corpo estranho
na narrativa”, e criam uma tensão em relação às demais cenas. As declarações
dos grevistas servirão para ressignificar as relações entre Burgó, Bubu e as
prostitutas, por exemplo, que são também relações de trabalho e pautadas pelo
capital, e para evidenciar a força do coletivo, presente nas falas dos coros de
grevistas. Além disso, embora o caráter histórico dessa cena seja bem marcado,
e termos como “anarquistas” ou “operários” nos pareçam datados, há
declarações que podem muito bem servir para a atualidade, como o seguinte
trecho, quando já está finalizada a greve e as reivindicações dos trabalhadores
são – ao menos parcialmente – atendidas (condições que vigoram ainda hoje):
“CAFIFA [cita] ‘Salários em dia, as criancinhas longe dos teares, jornada inglesa
de oito horas... sadias.’ / VOZ OPERÁRIA Para que a riqueza não seja jamais
32
compartilhada. Para que os interesses de classe nunca se organizem. Para que
continue morto o direito ao confronto.” (p. 254). Essas falas, durante a
comemoração do fim da greve, podem muito bem se referir ao estado de
conformismo que impera atualmente, em que as formas de trabalho parecem
“mais justas”.
A historização, portanto, é um elemento de distanciamento para que,
a partir daquele contexto histórico – e da irrupção de fotos de um contexto
real, na peça –, sejam pensadas as relações estabelecidas pela ficção, e estas
em relação ao tempo presente e ao contexto não ficcional. E, se algumas
questões relativas ao anarquismo, à classe operária e à ambientação parecem
ser datadas – embora possam estabelecer uma relação com a atualidade –,
outras nos parecem extremamente atuais, como a ideia da mercantilização da
imagem, que tomará corpo ao longo da peça.
A primeira cena de “Mercado do Gozo” apresenta o seguinte título:
“Prólogo na porta do teatro. Julho de 1917. Em frente à Fábrica de Tecidos
Burgó, o jovem herdeiro contempla gente de aparência ordeira.”11 (p.208). Essa
cena traz uma dupla ambientação que perpassará toda a peça: há o cenário
pelo qual as personagens transitarão (a fábrica, o Opiário, etc); e há, para além
disso, uma ambientação cinematográfica, como se tudo aquilo que as
personagens e o público vivessem fosse uma filmagem para o cinema12. Nesse
contexto, o público é tratado tanto como essa “gente de aparência ordeira” que
aparece no título da cena, que está entrando na fábrica do jovem herdeiro
Burgó, quanto como figuração do filme. Em ambos os casos, lhe é subtraído o
papel de sujeito da história, ou seja, ele é incluído na ficção, mas não pode ter
participação direta nela. Poderíamos nos perguntar em que isso diferenciaria,
então, de qualquer peça com “quarta parede” que trata o espectador como
mero contemplador do drama. A diferença está na crítica que é explicitada na
11
Todas as cenas da peça recebem títulos mais ou menos explicativos ou sintéticos da ideia da
cena. Falaremos mais desse recurso adiante.
12
A maior parte das cenas da peça se passará nos cenários da ficção das personagens; em
alguns momentos pontuais, a estrutura cinematográfica reaparecerá e lembrará o espectador
dessa dupla ficção, impedindo que ele se envolva completamente e inconscientemente com o
que está sendo representado.
33
peça do Latão. Ainda na primeira cena, o personagem do Ensaiador tem a
seguinte fala, direcionada à plateia:
13
Aqui, o estranhamento pode ser entendido pelo fato de uma situação aparentemente
“natural”, em que a figuração recebe instruções, ser dirigida para o espectador e de forma
agressiva, o que provoca um distanciamento (o espectador no teatro normalmente não é
tratado dessa maneira) e uma possibilidade de questionamento daquela situação, que passa a
soar “estranha”.
34
efeito de distanciamento, além de não permitir uma identificação total do
espectador com as personagens, permite mostrar as contradições destes.
É desse lugar de passividade, tanto frente ao drama quanto frente
ao sistema capitalista, que a Companhia do Latão busca tirar o espectador, pois
o grupo acredita que a arte tem um papel fundamental frente a esse sistema
que coíbe as possibilidades da utopia, de um outro sistema possível, e que
mantém o conformismo justamente a partir da ideia de que há um mecanismo
maior em funcionamento e que o sujeito individual é impotente frente a ele
(como a ideia do caramujo presente na fala).
A linguagem cinematográfica é um elemento fundamental da peça
“O Mercado do Gozo”. Como já dissemos, há o tempo todo uma espécie de
“segunda camada ficcional”, em que, para além do espaço de encenação
teatral, há uma ambientação cinematográfica. Os efeitos dessa ambientação
para a dramaturgia da peça são diversos. A cena 4, por exemplo, já inicia com
uma estrutura cinematográfica, pois um narrador anuncia o título da seguinte
forma, semelhante a um roteiro de filmagem: “Cena 4, cemitério, noite. A
prostituta ocasional Getúlia comercia seu talento”14. Na primeira versão da
cena, Getúlia leva um cliente ao cemitério, oferece para se deitarem sobre uma
tumba, o cliente lê o nome dela escrito na lápide e recusa-se a dar continuidade
ao programa. Na segunda versão, após os atores se reposicionarem “como se
atendessem a um comando externo” (p. 216), a relação se inverte, e é Getúlia
que está temerária de fazer o programa naquele local. Entre as duas versões,
não há uma “mais verdadeira”, ambas fazem parte de uma construção ficcional,
embora a segunda apresente uma dramaticidade intensificada pela trilha
sonora, pela iluminação mais baixa, e pela vitimização de Getúlia. Essa tensão
dialética entre duas versões opostas não se resolve em cena. Ela é colocada
diante do espectador para que ele possa analisar o caráter relativo e
manipulável dos acontecimentos e, principalmente, da ficção. Não há,
14
O anúncio do título também é um recurso utilizado em outras cenas. Cf. cenas 8 e 12. Sobre
esse recurso de anunciar ou projetar o título em cena, Brecht (2005, p. 40) afirma que “são um
impulso inicial para conferir ao teatro uma feição literária”, que por sua vez “possibilita ao
teatro aproximar-se das outras instituições da atividade intelectual”.
35
tampouco, uma projeção de resolução para fora da cena, como propõe uma
dialética brechtiana. Nas duas versões, o que há é uma relação comercial, em
que o que está em jogo é o corpo de Getúlia, uma prostituta “ocasional”, e não
“profissional” como as outras da peça, alguém que, nesse ponto, ainda não
está totalmente transformada em mercadoria. A escolha por uma cena ou por
outra, pela Getúlia que se comercializa a despeito do lugar macabro e das
apelações sentimentais, ou que cede a esses apelos e se humaniza, não é feita
pelo texto do Latão. Aqui está colocada apenas a tensão.
O que há, na verdade, é uma politização do olhar sobre a atualidade,
pelo tratamento historizado de questões atuais – a indústria cultural, mais
especificamente –, uma relativização de pontos de vista, na medida em que não
há verdades absolutas sendo transmitidas, mas cenas que se confrontam, na
tentativa de desnaturalizar a visão do espectador e colocá-lo em movimento e
em constante questionamento da realidade. Uma vez que o espectador é
confrontado com o debate que se instaura em cena (o debate de pontos de
vista: das personagens, da companhia), que não se resolve nem aponta uma
saída clara, ele é levado a construir seu próprio ponto de vista e emitir também
sua posição sobre a realidade. É sobre isso que falava Benjamin no ensaio “O
autor como produtor” (1994), quando afirmava que o teatro épico de Brecht
possibilitava que o espectador e o autor também se tornassem colaboradores
no processo de produção: por meio da tomada de posição. É a esse tipo debate
e raciocínio crítico que Brecht quer levar o seu espectador. E é esse debate que
a Companhia do Latão radicaliza ao buscar atualizar o método brechtiano e
evidenciar contradições de nossa própria época e país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e
historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. Trad. Sergio Paulo Rouanet.
256p.
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro. Barcelona: Alba Editorial, 2004. 345p.
____. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005. 210p.
36
CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio; ALBERGARIA, Helena. “O mercado
do Gozo”. In: Companhia do Latão 7 peças. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p.
207-233.
37
MÉTODO SOCIOLÓGICO
1
Doutoranda em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em estudos literários da
UFMG. Professora efetiva do CEFET/MG.
38
inessencial, atribuindo sentido à tudo e, portanto, à nada”. Intrigado com a
composição de algumas obras, o crítico questiona como a representação de um
fato singular pode aludir a uma situação geral, comentando: “o autor dessas
narrativas escolhe um determinado caso típico, dentro da situação da realidade
brasileira, e tenta aludir com isso a uma totalidade de coisas que não aquele
fato específico. Então, é um romance alegórico, baseado na reportagem”.
(ARRIGUCCI, 1999, p.78)
Wilson Martins, no texto “A situação do romance”, já alertava para a
redução da qualidade das obras produzidas durante o regime militar. Segundo
o crítico,foi frustrada a expectativa de que havia muita coisa inovadora
escondida em meio à repressão. O que se notou foi a produção romanesca
“incerta entre o realismo e a fuga alegórica, entre a observação jornalística e os
exercícios de estilo, entre a tentação da gratuidade estética e a febre
devoradora da participação política”. (MARTINS, 1995, p.239)
Diante dessa perspectiva, a obra Cabeça de Papel é analisada como uma
narrativa que se constrói de maneira complexa que engendra um projeto
confessional ao mesmo tempo em que embarca na descrição da anatomia
social. Utilizando a imitação da montagem jornalística e uma linguagem
imediata e bárbara, que imita uma escrita à jato, aparentemente mal
construída, a obra é percebida como agregadora de um conteúdo reflexivo
muito forte:
39
No Paulo Francis há a mesma fragmentação (...) Ele acumula coisas e
pretende representar uma totalidade através de uma fragmentação.
Só que o que ele pega como abertura para o sentido geral são os 0,3
por cento da classe dominante, e como ele acha que isso é que
decide, que decidiu tudo aqui, certamente é isso que dá história. E
quando vai ver não é. (ARRIGUCCI, 1999, p.81)
No caso de Hugo Mann é muito visível: a ideia que ele tem do povo é
uma ideia inteiramente sem contradição. (...) Aparentemente é uma
neutralidade, é uma passividade completa. (...) A visão que ele tem é
uma visão sem contradições. E, portanto, a-histórica. (ARRIGUCCI,
1999, p.87)
40
acreditamos ser possível entender como a fatura assenta a condição histórica
na obra Cabeça de Papel, de Paulo Francis.
42
Chegou de maiô e toalha enrolada e chaves do VW na mão, o easy
rider dela e minha tantalizante limousine com chofer, "às ordens do
patrão", depois de quarar na praia depois da Nacional, "eu não me
sentiria bem na PUC". Já que fumigaram as faculdades de sociologia,
aprende a literatura das vacas do Nhonhô ou do cumpadre Ermelindo,
ou a classe sem consciência de si própria de Graciliano; pré-1968;
hoje, Graciliano virou modelo estruturalista; "deixa a desejar". Raquel
estuda sob algum nordestino Casa Tavares Caporal Douradinho que
talvez já tenha atingido o Oliu & filtro, ou sob algum mineiro
maneiroso, Proust de bolso, um ou outro entupidos de Barthes ao
último obscurantista sintético de Paris, ambos ensinando as crianças
que é marca de superioridade negar o real e concreto, o conceituado
e dinâmico, um conselho prudente, se fosse dado honestamente; não
é; pois clareza e movimento não cabem no nosso sarcófago,
inquietam e irritam as múmias locadoras, cuja maldição é
incontrastável. Serão muito diferentes, porém, dos "nossos", que
insistem na existência dessa realidade? Se os modelos divergem, a
obscuridade de linguagem é idêntica. No fundo, se dirigem apenas
iniciados, a eles próprios, aos portadores do anel de doutor, aos
presentes e futuros inquilinos da academia brasileira de túmulo grátis,
na vida e na morte'. (...) "Espectros. Nunca falei a você de um Victor
quando eu era delinqüente juvenil, já? Ele vem daqui a pouco. Você
me espera lá em cima ou tem alguma coisa pra fazer?" (FRANCIS,
1977, p.14-15)
43
Aqui, Mann revela a facilidade que Hesse tem em si imiscuir entre os
diversos setores sociais. Além disso, mostra a fidelização partidária do editor
chefe como amorfa, capaz de estabelecer ligações tanto com os militares
quanto com os revolucionários. O narrador evidencia claramente Hesse
renegando uma postura radical comunista, a qual o projetava em favor de
novas relações, como por exemplo, com o sogro capitalista, que era antes
rejeitada. Essas mudanças de preferências progridem:
44
Sem eximir os problemas narrativos, o que se nota é a busca por mostrar
certa ambivalência e alternância de posições políticas, insistindo, nesse aspecto,
em um jogo de esconder/revelar. Atento a essas mudanças, analisemos mais
de perto o narrador. Ele, assim como Hesse, deixa bem claro a classe social a
que pertence o seu ponto de vista:
45
Meu impasse é claro. Moralmente, rejeito a supremacia de uma classe
montada em sacrifícios humanos que causariam indigestão a Moloch,
o vasto GULAG sem arame farpado (às vezes) que bestializa, exaure,
mata bilhões, relegando-os a frios relatórios da ONU, aqueles que nos
informam que quinhentos milhões de pessoas morrem de fome, a
qualquer hora do dia, trezentos e sessenta e cinco dias ao ano,(...) E,
no entanto, foi nos confortos dessa classe que eu e semelhantes
cultivamos a moralidade antagônica a nossos próprios "interesses".
Moralidade que não conseguimos converter em ação, sequer pelo
devagar e sempre das diversas modalidades de social-democracia.
(FRANCIS, 1977, p.101)
47
significar, r e v e l a , p o r t a n t o , a existência de um outro do que ela diz;
manifesta um enigma, uma figuração a ser decifrada”. (BENJAMIN,2011, p.173)
Assim, percebemos que a alegoria enfatiza o artifício usado, pois através
dele é que veremos, aos poucos e progressivamente, uma série de momentos
importantes para a interpretação. Diferentemente de uma compreensão
instantânea, o véu alegórico aos poucos desvela a unidade, já interrompida e
devassada. Os deslocamentos efetuados pela visão alegórica permitem que o
que foi excluído volte à tona, fazendo emergir o outro da história: “a alegoria
não está livre de uma dialética correspondente, e acalma contemplativa com
que ela mergulha no abismo entre o ser figural e a significação não tem nada
da autosuficiência indiferente” (BENJAMIN, 2011, p.176).
Assim, ainda na esfera particular, sobrepuja a realidade, já que esse
alegórico é também fenômeno da historicidade. Para Benjamin, a alegoria e o
fragmento são a história representada e dramatizada de forma sensível. O
filósofo alemão ainda diz que esse é o modo mais verossímil para expressar o
mundo capitalista, das mercadorias, já que ela oculta o valor de uso no seu
valor. (BENJAMIN, 2011, p. 189). Na mercadoria não se percebe o acesso
imediato aos fenômenos originários, que a compõe, por exemplo, o trabalho.
Nesse sentido, nota-se seu caráter fetichista, que esconde a sua realidade,
adquirindo vida autônoma, independente. Há de se decodificar esse viés
alegórico para entender, então, o processo totalizador, que é ambíguo.
Usando esse mesmo raciocínio é que se pode decodificar a realidade na
obra Cabeça de Papel, onde ela parece de maneira alegórica, centralizada em
um discurso pequeno burguês. Percebe-se que no interior desse discurso
proliferam vozes contrárias, manipuladas pelo narrador. Na consciência de
Mann se impõe uma ambiguidade que é comum a sua própria classe. Pois, se
por um lado, ele precisa ter sobre cada questão particular uma consciência
clara dos seus interesses; por outro, essa consciência clara não pode ser
estendida à totalidade: porque a dominação é exercida por uma minoria e com
o interesse voltado para si. O enfeitiçamento é provocado por uma relação
dialética que, pelo viés alegórico, representa por um lado o que foi alienado, e
48
por outro, o que sobrevive, sobrepondo-se ao que está alienado. O que se
percebe então é que a ambiguidade e a plurivalência de sentidos é o traço
essencial da alegoria (BENJAMIN, 2011, p.188).
O que se vê, portanto, é que a alegoria é uma forma de representação
que, embora partilhe de uma visão una, faz sentir outras tantas. Benjamin, ao
contrário de Lukács, mostrou que a fragmentação alegórica é produto de uma
mediação social e que seu conteúdo é essencialmente histórico, funcionando
como parte da lógica da sociedade burguesa historicamente representada.
(ADORNO, 1998, p. 179).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor. "Anotações sobre Kafka" in: Prismas. São Paulo, Ática,
1998. ARRIGUCCI JR.,Davi. Jornal, realismo, alegoria – O romance brasileiro
recente. In: Outros Achados e Perdidos. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
MARTINS, Wilson. Ponto de Vista. v.11. São Paulo: T.A.Queiroz Editor, 1995.
50
A DECADÊNCIA COMO FORMA ROMANESCA DE O AMANUENSE
BELMIRO
Wagner F. Guimarães Júnior1
(PÓS-LIT/UFMG)
INTRODUÇÃO
1
Mestrando em Literatura Brasileira – Pós-Lit/UFMG.
51
quem deveria ser agrônomo ou agrimensor e permanecer em Vila Caraíbas,
cidade de origem dos Borba.
O livro dramatiza (em seu todo: memórias e presente da narração) o
período situado entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, que
corresponde ao processo de decadência do patriarcado rural brasileiro,
deflagrado pela modernização por que passava o país naquele momento.
Entretanto, seu foco é concentrado no passado-recente e no presente da
narração, que ocorrem entre o natal de 1934 e o pós-carnaval 1936.
Belmiro é um desadaptado aos novos tempos do Brasil. Em Belo
Horizonte, é um medíocre amanuense, na Seção do Fomento Animal, colocação
obtida por meio de um pistolão, vestígio de uma estreita relação entre
oligarquia e Estado, que ainda prevalece no país, apesar do processo de
modernização em curso. Insatisfeito com a mudança radical que representa a
vida na capital mineira decide escrever um livro de memórias, uma espécie de
fuga para o passado. Entretanto, a realidade acaba acentuando suas
contradições, revelando-se no jogo entre passado, presente e sonho;
movimento que leva Belmiro a buscar cada vez mais refúgio na tentativa de
afirmação de um tempo pretérito irrecuperável. Sua desadaptação não implica
no mero saudosismo em relação à sua infância em Vila Caraíbas, sua crise
resulta de um movimento histórico de desagregação de toda uma classe.
Belmiro sente falta daquele mundo inteiriço, em que as posses da família
garantiam sua integridade moral e financeira. Essa inteireza se perdeu em Belo
Horizonte, cidade relativamente moderna e já inserida na ordem capitalista do
início do século XX. Na capital mineira, Belmiro é apenas um burocrata,
arruinado financeiramente, classe média, que vive no bairro Prado, então
periferia da cidade.
Nesse sentido, o motor que estrutura toda a vida do narrador-
protagonista Belmiro Borba é o processo histórico de transição de um Brasil
arcaico e aristocrático para um Brasil capitalista e relativamente moderno;
transição que tem como consequência a decadência das grandes famílias
aristocráticas rurais, possuidoras não só de terras, como também de influência
52
política. Segundo a perspectiva crítica aqui adotada, essa tensão histórica é o
que dá forma e substância ao narrador-personagem e à sua consciência, bem
como a todo o romance.
Partindo desse pressuposto e da ideia da homologia entre forma literária
e processo social, a presente comunicação investiga, por meio da análise da
formalização da consciência de Belmiro Borba, como o processo histórico da
decadência engendra a forma romanesca de O amanuense Belmiro – sendo
“forma” aqui entendida, segundo Roberto Schwarz (1987), “como um princípio
mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e os da realidade,
sendo parte dos dois planos”.
QUESTÕES DE FORMA
Nesta parte, iremos nos utilizar do capítulo “E por que não pode ser
brasileira a forma do Realismo europeu?”, do livro A passagem do três ao um,
de Leopoldo Waizbort, para pontuar brevemente algumas questões relativas à
forma romanesca. O estudo trata especificamente a leitura de Roberto Schwarz
de três romances de Machado de Assis, mas é também um estudo da “forma
romanesca brasileira”, de maneira geral.
Waizbort se apoia em György Lukács para afirmar que “a compreensão
da forma exige a compreensão do processo social” (WAIZBORT, 2007, p. 37).
Dito de outro modo, no romance do século XIX, isso quer dizer
necessariamente a compreensão da relação entre forma romanesca e
desenvolvimento do capitalismo. Isso significa que nossa condição de país
dependente engendra certo romance e certo realismo, sempre, dialeticamente,
inscritos em um nexo global. A partir da ideia trotskiana do “desenvolvimento
desigual e combinado”, retrabalhada por Roberto Schwarz, Waizbort conclui:
(...) pode-se dizer que a forma do romance também passa pelos dois
momentos, da desigualdade – o processo do romance brasileiro não
se confunde com o processo do romance europeu, a forma machadiana
não se confunde, sem mais, com a forma do romance europeu, nem o
processo de formação do romance brasileiro segue o ritmo e as etapas
53
do processo europeu – e da combinação – o desenvolvimento da
forma romance precisa ser considerado em sua totalidade, a forma
machadiana se faz forma em diálogo com a forma da matriz e com a
história das formas na Europa e levando-as em consideração, sendo
nesse processo forma local de um processo global. (WAIZBORT, 2007,
p. 38).
55
Em “Uma data importante”, capítulo em que narra seu aniversário, o
amanuense demonstra, orgulhoso, como, mesmo na cidade grande, a tradição
dos Borba continua viva, mantida por ele e por suas irmãs:
56
uma vida inútil, de vagabundo lírico”. (ANJOS, 2006, p. 73). Essa compreensão
estende-se, ainda, ao entendimento de sua situação de classe em relação a
Carmélia: “Lembra-te, Belmiro, de que essas bodas são impossíveis (...).
Carmélia é fina, jovem e rica. É da alta, como diz Glicério” (ANJOS, 2006, p.
54). Entretanto, mesmo “consciente” da realidade, o amanuense a falsifica ao
relativizar a diferença social que o separa de Carmélia, dando a entender que
são os “costumes” de sua [de Belmiro] tradicional família o problema, quando
na verdade é sua condição de classe o real e determinante empecilho a um
possível casamento com a moça rica:
O sistema Borba não comporta nem prevê senhoras de tão fina estirpe.
Sei que, apesar de minha decadência, em face do sistema, os Borbas
gritam dentro de mim. (...) Ouvi que, na casa da viúva Miranda, se
toma chá às cinco. Bastaria isso para exasperar o velho Borba. Onde já
se viu tal disparate? Às cinco horas, era a janta na fazenda (ANJOS,
2006, p. 116).
57
trajeto imenso. Em cada ramo do caminho ficou um pouco de nossas vestes e é
inútil voltar, porque os bichos comeram os trapos que o vento não levou”
(ANJOS, 2006, p. 55). É importante perceber que para Belmiro o presente
nunca tem o valor positivo do passado, o que está estilizado na disjunção entre
o Belmiro do passado e o do presente:
58
encontrar a alma das épocas idas, não encontrei senão pobres
espectros. (ANJOS, 2006, p. 93).
É importante frisar que, pelo que se lê nas duas últimas passagens, Belmiro já
havia retornado a Vila Caraíbas, em 1924, mas apenas no momento da escrita
do diário (momento de reflexão e balanço), anos depois, percebe que o que ele
fantasiou já não existia. Isso reflete a consciência deformada do narrador-
protagonista, que falseia a realidade, como uma válvula de escape do presente,
já que é incapaz de assimilar a transição (temporal, financeira e até afetiva) por
que passa. Em outra passagem, o amanuense reconhece a deformação que a
fantasia e o delírio provocam em sua compreensão da realidade:
Sei que estou amando a mulher e não o mito. Não me faltam cuidados
na vida, e é ridícula essa trama sentimental em que me envolvi. Lá está
Francisquinha no Instituto [hospício]. Emília se acha de cama, doente.
Desde dois dias, fiquei reduzido a níqueis, embora estejamos a sete do
mês. O ordenado se foi em despesas com a mana, e ainda há contas
por pagar. É ridículo. Amanhã terei de visitar o agiota. Não deveria
preocupar-me, antes, com estas coisas? (ANJOS, 2006, p. 100).
O amanuense continua:
Retorno, agora, à paz desta casa imutável, onde não subsiste nas
coisas o sinal das atribulações. Quero possuir o espírito pacífico destes
velhos móveis, desta Emília velha, que se torna grandiosa à medida
que seus cabelos branqueiam. A quietude suaviza os meus ardores,
mas não me dá o desejado repouso. (ANJOS, 2006, p. 205-206).
CONCLUSÃO
60
resultado formal no engendramento de uma forma romanesca própria já que
criada a partir das nossas relações sociais (forma social). Ao dramatizar a
decadência da aristocracia rural brasileira, o escritor mineiro capta um
importante momento do nosso processo social, que mesmo ressurgindo no
romance enquanto forma literária mantém forte vínculo com a realidade, lendo-
a de forma crítica. Essa decadência é o que dá forma à consciência do
narrador-personagem Belmiro Borba, bem como a todo o romance, uma vez
que seu desacordo entre o passado e o presente (espinha dorsal do livro) é, em
última instância, determinado por tal processo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Globo, 2006. 239 p.
LAFETÁ, João Luiz. À sombra das moças em flor: uma leitura do romance O
amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. In: PRADO, Antonio Arnoni (Org.) A
dimensão da noite. São Paulo: Ed. 34, 2004. p.19-37.
WAIZBORT, Leopoldo. E por que não pode ser brasileira a forma do Realismo
europeu?. In: ________________. A passagem do três ao um: crítica literária,
sociologia, filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. P. 37-84.
61
REALISMO DIALÉTICO E PSICOLÓGICO NA PEÇA RASGA CORAÇÃO:
UMA LEITURA SOCIOLÓGICA E MATERIALISTA
Luiz Paixão1
(PÓS-LIT/UFMG)
1
Mestrando em Literatura Brasileira, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais.
2
LUKÁCS, Marxismo e teoria da literatura, p. 178.
62
O escritor não está alijado desse processo de luta que cada momento histórico
trava dentro de si mesmo. Embora a realidade se manifeste na obra de arte de forma
consciente ou mesmo à margem da consciência do seu autor, consideramos que a
visão de mundo – a ideologia – do criador, pode amplificar as possibilidades de
representação da realidade histórica na construção ficcional. Nesse sentido,
entendemos caber ao escritor engajado3 perceber, compreender e configurar
literariamente essa realidade, utilizando os recursos formais que se encontram à sua
disposição, e que são, eles mesmos, condicionados pela realidade objetiva e subjetiva.
[...] o escritor precisa ter uma concepção do mundo sólida e profunda; precisa
ver o mundo em seu caráter contraditório para ser capaz de selecionar como
protagonista um ser humano em cujo destino se cruzem os contrários. As
concepções de mundo próprias dos grandes escritores se manifestam no plano
da concepção épica. Na verdade, quanto mais uma concepção de mundo é
profunda, diferenciada, alimentada por experiências concretas, tanto mais
variada e multifacetada pode se tornar a sua expressão compositiva. [...] não
há composição sem concepção de mundo.4 (grifo nosso)
3
Utilizamos aqui o verbo engajar no sentido de “pôr-se a serviço de uma causa”, como o define
o Dicionário Aurélio, e que Raymond Willians categoriza como “alinhamento” ou “compromisso”.
No entanto, é preciso não confundir, como ensinaram Marx e Engels, engajamento como
desculpa para baixa qualidade artística: “Torna-se cada vez mais um hábito, particularmente
dos tipos inferiores de literati, compensar a falta de inteligência de suas produções com alusões
políticas que certamente atraem a atenção. Poesia, romances, críticas, drama, toda produção
está cheia do que era chamado de tendência”. Apud: WILLIAMS, Marxismo e literatura, p. 198.
4
LUKÁCS, op. cit., p. 179.
63
(sic), “científicas” ou “universais” doutrinas que um pouco de reflexão nos
mostrará estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de
grupos específicos de pessoas, em momentos específicos.5
[...] o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. [...] quando estamos
no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e
o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de
maneira a construir uma estrutura peculiar. Tomando o fator social,
procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes,
traços grupais, ideias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora
[...] ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de
essencial na obra enquanto obra de arte.6 (grifo do autor)
5
EAGLETON, Teoria da literatura: uma introdução , p.294-295.
6
CANDIDO, Literatura e sociedade, p. 14-15,
7
ADORNO, A vida é alegre?
64
As obras são vivas enquanto falam de uma maneira que é recusada aos
objectos naturais e aos sujeitos que as produzem. Falam em virtude da
comunicação nelas de todo o particular. Entram assim em contraste com a
dispersão do simples ente. Mas precisamente enquanto artefactos, produtos do
trabalho social, comunicam igualmente com a empiria, que renegam e da qual
tiram o seu conteúdo. [...] Embora se oponha à empiria através do momento
da forma – e a mediação da forma e do conteúdo não deve conceber-se sem a
sua distinção – importa, porém, em certa medida e geralmente, buscar a
mediação no facto de a forma estética ser conteúdo sedimentado. 8
[...] o dado ficcional não vem diretamente do dado real, nem é deste que o
sentimento da realidade na ficção depende, embora o pressuponha. Depende
de princípios mediadores, geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças
aos quais se tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia.9 (grifo nosso)
8
ADORNO, Teoria estética, p. 15.
9
SCHWARZ, Que horas são?, p.133 .
65
ressalte o elemento de sua preferência, desde que o utilize como componente
da estruturação da obra.10 (grifo do autor)
10
CANDIDO, op. cit., p. 17.
66
orientam a ação principal da peça e organizam os acontecimentos dramáticos como
frutos da mente conflituosa do personagem central.
No tempo passado, resultante das lembranças de Manguari, a forma realista
dialética, que encontra amparo no pensamento épico brechtiano, nos apresenta os
conflitos em forma de flashes, e estabelecem suas contradições com o presente. Não
há mais a linearidade dos acontecimentos. A ação respeita as necessidades de
revelação das relações sociais predominantes nos diversos momentos históricos que
peça propõe discutir. Verificamos, com isso, a utilização do “efeito de distanciamento”,
proposto por Bertolt Brecht.
Ao confrontar seu personagem com a realidade social, Vianna demonstra que
sua vinculação com as forças materiais condiciona dialeticamente seu desenvolvimento
humano. O autor aplica, assim, na prática dramatúrgica, a teoria marxista que ensina
que
11
MARX, Sobre literatura e arte, p. 13.
67
colocando no epicentro da matéria figurada os processos históricos e as
transformações políticas.12
12
BETTI, Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho, p.36.
13
BRECHT. Estudos sobre teatro, p. 6.
68
que implica, ou possibilita, uma postura crítica em relação às ações do personagem,
utilizando-se, para tal, da historicização da ação.
Seus conflitos se manifestam a partir do conhecimento de uma possível luta do
filho contra a estrutura dominante da escola em que estuda. Ao perceber que este
poderia ser o momento de conscientização social e política de seu filho Luca, Manguari
empresta a ele toda sua experiência e combatividade. Busca orientá-lo e oferece todo
o seu apoio. No entanto, é nesse momento que a relação entre os dois manifesta
contradições que se tornam insuperáveis.
Os conflitos com o filho acentuam o seu próprio conflito, e suas contradições
ganham uma dimensão ainda não vivenciada. Numa tentativa de superação, que
acredita efetivar-se através dos conhecimentos dessas mesmas contradições, o
personagem enfrenta o seu passado. O embate dos fatos históricos com os
acontecimentos atuais opera uma tomada de consciência de sua realidade. Manguari,
consciente de sua função social e histórica, é capaz de, num processo crítico e
autocrítico, voltar atrás ao perceber-se numa postura que não corresponde com os
parâmetros de comportamento exigidos a um comunista.
A partir da revisão do passado tenta compreender as ações do filho, e constatar
uma fissura irremediável em suas relações. Cria-se, então, uma nova história em seu
presente, que aponta para um futuro no qual a coerência de posições se reafirma e se
fortalece. Na dialética da crítica e autocrítica, o personagem se revela em sua inteireza,
pois sujeito a constantes transformações e, até mesmo, reformulação do seu
pensamento, ainda que mantenha firme sua orientação ideológica, da qual não abre
mão. Importante é ressaltar que o seu processo de formação/transformação não está
preso ao seu passado: é um processo dinâmico e complexo, e corrobora o pensamento
marxista de que a prática é o critério da verdade:
14
MARX, A ideologia alemã, p.125-126.
69
realismo dialético, uma vez que, aos moldes propostos por Bertolt Brecht, o confronto
das ideias é colocado a partir de argumentos e não de sugestões, pois tem o homem
como “objeto de análise [...] susceptível de ser modificado e de modificar”15.
Vianna nos apresenta um herói que se constrói em sua prática cotidiana; um
herói que, respondendo às necessidades do seu tempo, sabe enfrentar suas
contradições e não se render às reações adversas. Um herói construído de
contradições e alimentado por essas contradições, por isso, sua configuração realista
não o torna um super-herói: é um homem comum que sabe sua função social é
determinante em sua formação psicológica, e sua práxis é que justifica sua própria
existência. Verificamos, portanto, que o recurso dramatúrgico do flashback visa, além
de configurar o caráter histórico da peça, revelar o processo de transformação dialética
da realidade e do próprio homem, diante de acontecimentos sociais aos quais está
submetido. Manguari forja sua luta e busca entender a realidade que o cerca e os
meios para transformá-la. Para transformá-la é preciso compreendê-la; para
compreendê-la é preciso, antes, enfrentá-la em toda sua complexidade e
segmentação, pois
15
BRECHT, op. cit., p. 16.
16
KONDER, A questão da ideologia na ficção literária.
17
SÓFOCLES, Antígona. In: ______. SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono,
Antígona, p. 215.
70
conquistas sociais e transformação da sociedade. Utiliza-se de uma sofisticada técnica
dramatúrgica, em que seus procedimentos revelam todo esse complexo histórico e
social.
Ao propor um estudo qualificado dessa obra, compreendemos que ele somente
se efetivará a contento se mantivermos nosso compromisso com uma análise que
considere o seu estreito relacionamento com os fatores sociais e de classes, mantendo
seus olhos voltados ao objeto primeiro de sua análise, que são os mecanismos de
formalização e transfiguração do tema em literatura. Dessa dialética forma/conteúdo,
pretendemos extrair a comprovação de que a forma dramatúrgica é uma mediadora
entre o conteúdo social e a obra, essa enquanto expressão estética do movimento
histórico, pois entendemos que
[...] a gravitação cotidiana das ideias e das perspectivas práticas é a matéria
imediata e natural da literatura, desde o momento em que as formas fixas
tenham perdido a sua vigência para as artes. [...] a feição exata com que a
História mundial, na forma estruturada e cifrada de seus resultados locais,
sempre repostos, passa para dentro da escrita, em que agora influi pela vida
interna – o escritor saiba ou não, queira ou não queira. [...] a matéria do artista
mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum
modo o processo social a que deve a sua existência. 18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. A vida é alegre? In: Noten zur Literatur. Trad. Newton Ramos-
de-Oliveira e revisão pela Equipe do Potencial Pedagógico da Teoria Crítica (Antonio
Álvaro Zuin, Bruno Pucci e Newton Ramos-de-Oliveira). Disponível em:
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno6.htm. Acesso em 12/03/2014. Acesso em
12/03/2014.
______. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, nd.
BETTI, Maria Silvia. Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho: perspectivas formais da
representação sócio-histórica. Revista UniABC - v.1, n.1, 2010.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Trad. Matheus Corrêa. São Paulo:
Unesp, 2011.
______. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
18
SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, p.30-31.
71
KONDER, Leandro. A questão da ideologia na ficção literária. Disponível em:
http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/5Sem_10.html. Acesso
em: 28/01/2014.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (I – Feuerbach). Trad. José Carlos
Bruni; Marco Aurélio Nogueira. 2 ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
VIANNA FILHO, Oduvaldo. Rasga coração. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro,
1980.
72
NULIDADE E DIALÉTICA: O PROBLEMA DO MÉTODO EM
BOUVARD E PÉCUCHET, DE FLAUBERT
(PÓS-LIT/UFMG)
1
Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais.
73
nas últimas décadas do século XX, muito tempo depois da publicação do
volume.
As características da enunciação flaubertiana problematizam a
legitimação de uma metalinguagem aparentemente criada pelos discursos dos
saberes, os quais fazem circular a lógica da “enciclopédia crítica em farsa”, tal
como o autor chamava seu romance em andamento. De saída, podemos expor
as considerações de Derrida sobre determinada história da ideia no espaço
flaubertiano, ou seja, sobre a recepção da Ideia dentro de um projeto literário-
filosófico. Diante de uma proposta enciclopédica dos saberes e das linguagens,
a qual se torna estúpida pela necrose das ideias, pela circularidade dos
conceitos e pela incapacidade de julgamento que caracteriza a bêtise bouvard-
pécuchetiana, Derrida polemiza a questão do “rapport au philosophique” em
Flaubert:
74
medida que uma verdade literária se aloja no vácuo deixado pelos erros da
verdade científica.
Subtitulado “Do defeito do método...”, pode-se ler Bouvard como um
anti Discurso do método, ou um Discurso do espírito negativo, ou
ainda como um par à Introdução ao estudo da medicina experimental
(1865). Flaubert escreve nas margens ou no verso dos discursos
fundadores na filosofia e nas ciências. (LECLERC, 1988, p. 79.
Tradução minha)
76
No ponto em que George Sand defendia uma educação das massas,
Flaubert sempre rejeitou a democratização das políticas educativas,
persuadido de que era necessário, antes de tudo, promover o saber
das elites e elevar o nível destas últimas, antes de um dia se
preocupar ̶ mas quando? ̶ com o povo. (POYET, 2012, p. 138.
Tradução minha)
77
dialética que configuraria a poética da obra de Flaubert. Gisèle Séginger chama
atenção para a não dialetização do tempo em Bouvard e Pécuchet, isto é, para
uma temporalidade “jamais acabada e oposta ao pensamento de uma
racionalidade histórica e de um devir representável” (SÉGINGER, 2000, p. 51.
Tradução minha). Norioki Sugana, por sua vez, alega explicitamente que, no
romance enciclopédico de Flaubert, “a dialética não se mostra mais capaz de
deter a verdade como tampouco o fazem os outros sistemas filosóficos. Ela, a
dialética, não consegue se apresentar como a ultrapassagem das contradições”
(SUGANA, 2010, p. 137. Tradução minha).
Em contraste com as interpretações de Séginger e de Sugana, analiso,
no projeto estético flaubertiano, o funcionamento da dialética, por meio da
discriminação dos papéis do autor empírico, do narrador, dos personagens, do
leitor e da crítica. Nessa perspectiva, acompanha-se, em Bouvard e Pécuchet,
aquilo que Derrida chamou de “simulacro da dialética e da ideia (platônica e
hegeliana)” (DERRIDA, 1981, p. 671. Tradução minha. Grifo do autor) que
parasita o conteúdo metafísico da história da ideia de Platão a Hegel. Ao
comparar as particularidades dos programas de Flaubert e de Mallarmé no que
concerne às virtuosidades da prosa ou do verso e à (in)sustentabilidade da
noção de Livro no contexto flaubertiano e malarmaico, Derrida aponta, em tais
programas, à revelia da incompletude de um sistema filosófico, algo parecido
ao mimetismo de uma lógica dialética.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSOUN, Paul-Laurent. L’ignorance passionnée. Bouvard et Pécuchet saisis par
la psychanalyse. In: ASSOUN, Paul-Laurent et al. Analyses et réflexions sur
Gustave Flaubert: Bouvard et Pécuchet. Paris: Ellipses, 1999. p. 104-115.
79
SÉGINGER, Gisèle. Flaubert: une poétique de l’histoire. Strasbourg: Presses
Universitaires de Strasbourg, 2000.
80
POESIA E NEGATIVIDADE: ESBOÇO PARA UMA TANATOCRÍTICA EM
GIORGIO AGAMBEN
Herberto Helder
1
Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Doutorando em Literaturas Modernas e
Contemporâneas.
81
INTRODUÇÃO
2
AGAMBEN, 2007, p.13.
82
deve testemunhar o Mal de sua própria crise, mas assiduamente urge em
aprender a ler pelo Mal da poesia o que ele mesmo – o Mal – habituou a tornar
ilegível. Não se trata, portanto, da apropriação de um território, mas de uma
lógica que consiste em um apropriar-se do Mal da desapropriação como forma
de destruição do território regido por um poder tirano capaz de tornar o
presente ilegível.
Questionar, portanto, acerca da inserção da poesia no estatuto da crítica
não implica empreender uma noção de crítica de caráter pessimista ou
paranoico que defende o esgotamento ou se espanta diante do esvaziamento
ou mesmo o fim da crítica. Trata-se, antes, do investimento no que se trata de
enfrentar todo discurso travestido de uma autonomia que se coloca em jogo
quando o seu próprio objeto já se tornou, de certo, questionável. De qualquer
modo, a inscrição da poesia no discurso crítico pode bem ainda – por meio de
uma de uma voz que se silencia em qualquer discurso que tem a intenção de
dizer – narrar sobre um novo modo de práxis capaz de orientar (ou, ainda, de
ler) as práticas discursivas num terreno em que está em questão não o objeto
em si, mas o que dele se tornou resto. Como o material que o poeta português
Herberto Helder invocou como uma espécie de “voz silenciosa” a sonhar a sua
possibilidade de cantar - ou mesmo de ler - no horizonte do corpo poético,
fala-se das “palavras, frases, fragmentos, metáforas”, cuja regra cardeal pode
ser descrita pela prática da “liberdade, liberdade”3.
Colocam-se, a partir daqui, alguns dos problemas que Giorgio Agamben
empreende em seu projeto sobre o fim da crítica (que indaga sobre a sua
finalidade e o seu destino) e da morte da e na crítica (a saber, o problema da
polarização que envolve a sua autonomia e, ao mesmo tempo, a dissolução de
um pressuposto território, aliado ainda ao fato de ter que aprender a lidar com
a possibilidade de uma língua morta; a poesia tida pelo lugar que coincide com
a língua que deve falar pelos mortos). Vislumbra-se, assim, no horizonte da
crítica, um nó que já não pode deixar de atravessar – como também fazer
3
HELDER, 2006, p.222.
83
conciliar – as esferas da poética e da política, de modo que assim é suposto
que se toda a crítica reivindica uma politização do discurso é porque também
poesia e arte, no tangente ao poder dizer e aos sentidos, são
fundamentalmente políticas. Por outro lado, é também da força advinda da
relação ontológica que se estabelece entre morte e linguagem que parece
nascer o momento crítico que enreda o fundamento de uma crítica e de uma
política. Essa, ao ser compreendida pelas aporias que resultam na produção de
vida que descreve a política contemporânea em detrimento da morte e os
rituais que a envolve; aquela, pelo privilégio de uma negatividade que deve
sempre assegurar o desaparecimento da relação com a verdade de uma língua
morta.
Também a noção de negatividade, como a forma de lidar com a
ilegibilidade, fundamenta o discurso crítico que aqui decide o recorte que nos
interessa em Agamben. De tal concepção, o elemento morte, enquanto
abertura própria do homem ao mundo, não cessa de aparecer como o
problema que incessantemente obscurece os universos ontológico, crítico,
político e poético. Daí decorre que a relação entre crítica e morte encontra no
pensamento agambeniano a possibilidade que fundamenta uma leitura do
presente que se formula no que resta de fundamento nos campos do saber; no
que da linguagem é excluído sempre quando nela se inscreve; na morte, que
toda experiência suspende ao torná-la apenas aparência.
Frente a essas considerações, pudemos ler em Agamben uma primeira
possibilidade de crítica cujo fundamento é tanatológico, porque, ao definir a
negatividade enquanto categoria ontológica, não pode deixar de invocar a
relação essencial entre morte e linguagem. De outro lado, ao colocar em cena o
gesto de escritura que se experimenta no caso particular de uma práxis
discursiva, abre-se também uma possibilidade de leitura que empreende, nos
horizontes do pensamento, uma potência crítica tanatográfica, uma vez que a
poesia ocupa um lugar capital definido – como já colocado – pela sua relação
com a crítica.
84
Na tentativa de lidar com tais questões, propõe-se, a partir desse ponto,
algumas brevíssimas considerações e possibilidades de formulação de um
operador de leitura que aqui se define pelo termo tanatocrítica. Tal noção
pretende-se como uma categoria analógica que segue a metodologia do
paradigma do pensador italiano, uma vez que elegendo a categoria morte,
possui como fundamento a polarização – então, a formatação de um campo –
entre uma tanatologia e uma tanatografia, ou seja, trata-se de problematizar
um discurso cuja origem se planeia na morte e que, então, deve se decidir nos
limiares de uma filosofia sem linguagem própria e uma poesia sem consciência
de si.4
QUESTÕES TANATOLÓGICAS
4
AGAMBEN, 2007, p.12.
5
AGAMBEN, 2006, p.10.
85
O problema da Voz6 – que se conjuga nas faculdades humanas de falar e
de ser mortal – se abre para a investigação metafísica original no concernente à
inclusão do que permanentemente se exclui quando da inscrição do sujeito na
linguagem; trata-se da passagem que comina a voz da morte e inevitavelmente
a faz calar na voz da consciência humana. Aqui, o lugar que pressupõe a
experiência de linguagem não é nem o da morte que o homem experimenta em
seu puro estado biológico, nem o que está inscrito no campo do que o torna
falante. Está em jogo a morte da voz animal que só pode ser possível a partir
do silêncio de uma Voz, ou como defenderá Agamben: a partir da experiência
da Voz enquanto o lugar negatividade. Assim, se de um lado, Agamben lê em
Hegel a discussão acerca do modo como o sujeito poderá ter uma experiência
da Voz que, de maneira análoga, corresponda ao mesmo som que todo animal
emite na ameaça ou na efetivação de sua morte, de outro vislumbra no Dasein
heideggeriano a asserção que pontua que o homem se inscreve na linguagem
sem ter voz, ou seja, o homem tem, na linguagem, o não-lugar da voz da
morte, já que sua Voz não pode lhe dizer senão o nada.
Mas se a negatividade até aqui se define por meio de uma Voz que
guarda a voz da morte animal, de que maneira isso pode ser articulado como
método no pensamento crítico de Giorgio Agamben? Se a passagem da voz da
morte à voz da consciência cria um campo de tensão que implica a
possibilidade da Voz, como se é possível estender tal concepção a um método
capaz de fundar uma práxis contemporânea? O que é possível depreender de
uma voz que diz nada?
Se em A linguagem e a morte, vemos o deflagrar de um método de
análise fundamentado sob um prisma fenomenológico do ser que nunca pode
se decidir entre uma voz da morte e uma linguagem que significa, também na
exposição restrita ao método em seu pensamento, Agamben defenderá, ao
reler a proposta de uma arqueologia em Michel Foucault, as insurgências de
6
Agamben pontua com letra maiúscula para distinguir “a Voz” da voz como mero som, a voz
animal desprovida de significado. No entanto, a Voz, que suprime a voz animal, deve ser
compreendida enquanto um campo de tensão, na medida em que não é mais um mero som
nem ainda um discurso significante.
86
certos fenômenos positivos que, mantendo uma heterogeneidade com os
modelos substanciais estabelecidos pelo presente, cria um campo atravessado
por tensões polares que tendem ao abandono de uma inferência lógica. Talvez
nesse sentido torna-se mais evidente a proximidade do pensamento
agambeniano com aquele que Walter Benjamin pôde pensar por meio da
alegoria que, diferentemente da lógica metafórica foucaultiana (que estabelece
uma relação de campo de ordem semântica), descarta qualquer possibilidade
de formulação a priori. O campo criado no enfretamento de tensões é, assim,
incluído em uma lógica substancial como forma não de superá-la, mas de criar
meios de infindas possibilidades de um terceiro analógico que, não coincidindo
com os dois primeiros, os torna indistintos. O método aqui se faz, portanto, na
oposição entre o dialético e o analógico. Tal como a Voz, que tem lugar no
ponto de sutura entre o phoné (a voz da morte animal) e o logos (a palavra
humana) que definem a linguagem humana, o tópos (ao molde do que Platão
definiu como “terceiro gênero”) que determina o método em Agamben é
sempre um tópos outopos (lugar não-lugar).
O campo de tensões polares produzido pela operação arqueológica – em
detrimento das dicotomias substanciais – reivindica um terceiro elemento
heterogêneo àqueles que tornaram possível o campo. Assim, através da
neutralização das falsas dicotomias dadas pelas exceções produzidas
permanentemente em nossa cultura chega-se ao segundo constituinte
metodológico em Agamben: o paradigma.
Como fenômenos históricos positivos particulares, os paradigmas (para –
deigma = o que se mostra ao lado) se propõem em Agamben por meio de um
método analógico que opera somente a partir de seu não funcionamento e da
suspensão de uso normal, ou seja, somente se retirados de um uso habitual –
ou impondo a impossibilidade de uma regra – que os paradigmas podem servir
enquanto forma de conhecimento. O que não significa, em todo caso, que o
paradigma, ao se excluir da regra, esteja fora da norma. Antes, se trata de
compreender que uma vez retirado de um uso que o inscreve em qualquer
possibilidade contextual, o paradigma deve constituir e, ao mesmo tempo,
87
exibir um pertencimento ao caso normal. Desse modo, o método paradigmático
em Agamben opera como forma de compreender a totalidade dos fenômenos
por meio da exposição de suas singularidades (ou, se for o caso, das regras
gerais que nunca podem se constituir a partir de um a priori).
Sabemos por Agamben que o método arqueológico e paradigmático
atuam como contraponto simétrico da exceção e, por isso, se propõem
enquanto um projeto cuja lógica resulta no enfretamento entre uma força
substancial e outra que compreende a lógica do campo. Assim, enquanto a
exceção busca enredar o fluxo histórico por meio de uma ação que inclui
através de uma exclusão, o paradigma exclui através da exibição de sua
inclusão, ou seja, ele mostra “ao lado” de si a inteligibilidade e a classe a qual
constitui.
Ao seguir o método em Agamben, tomando a morte pelo paradigma
absoluto em seu pensamento, o que aqui se propõe parte da ideia de uma
crítica – enquanto uma tanatocrítica, ou seja, enquanto paradigma da crítica do
projeto agambeniano – poderia ter lugar no campo de tensão criado entre uma
tanatologia, que (como já exposto) busca propor por meio da relação entre
linguagem e morte uma indagação acerca do lugar em que o homem ocidental
pensa a própria relação fundamental com a linguagem; e uma tanatografia:
aquela experiência de escritura que guarda e celebra – no segredo de sua
relação com a poesia – o lugar que fala para e pelos mortos.
TANATOGRAFIA
88
A experiência de uma crítica que pressupõe a flutuação entre prosa e
poesia7 em Agamben se experimenta quando a poesia deixa de ser o algo
sagrado no último verso (quando a estrutura soberana do enjambement já não
é mais possível) transformando-se, assim, em prosa. Ou seja: a prosa – a ideia
da prosa – resulta da profanação da poesia em discurso prosaico 8. Essa
experiência, que se dá por meio da escritura, só aprofunda o sentido da prosa
diante de sua natureza herética. O que não quer dizer, para todo o caso, que a
prosa pressuponha uma forma vulgar. Pelo contrário, a heresia, como a
presença incorporada do Mal, se configura como forma única de aproximação e
desmistificação da substância, da matéria, da mercadoria, para que assim seja
possível se propor uma nova forma de uso.
Se assim se coloca um problema que acaba por definir a prosa enquanto
potência, quer dizer, enquanto elevada ao limite pelas tensões que a
atravessam – a saber, aquela de uma violência que transborda a vida, de um
lado, e aquela que incessantemente questiona e decide por meio da palavra, de
outro – pode-se compreender que aqui a “ideia de uma ideia” também resulta
em uma utopia da linguagem; como um tópos outopos que se destina a uma
“ideia da prosa”. É notável, contudo, que tal experiência – pelo menos ao
primeiro olhar – não parece ser uma constante no pensamento agambeniano.
Isso, porque a reflexão acerca da poesia, conjugada com a experimentação das
formas (mais evidente em obras como Ideia da prosa e A comunidade que
vem, cuja fórmula cardeal também pode ser descrita por meio da “definição do
pensamento enquanto ato particular da escrita”9), está manifesta de forma
pontual em precisos textos do pensador. Por outro lado, se leva-se em conta o
fato de que o trabalho de Agamben não deixa, em todos os casos, de se
configurar na lógica de um campo – dessa vez, entre prosa e poesia, entre a
7
Vale lembrar que, no caso da prosa e da poesia, trata-se também da formatação de um
campo, a saber, o campo crítico – ou momento crítico. Se em primeiro lugar buscamos colocar
a questão do pensamento enquanto o que deve, em consciência, saber lidar com a com o
silêncio de uma Voz, aqui é posto o problema da inclusão da poesia enquanto a linguagem que
deixa desvanecer toda possibilidade de consciência.
8
Cf. SCRAMIM, 2005, p. 176.
9
SEDLMAYER in PUCHEU, 2008, p.143
89
palavra que pensa e a palavra que goza – , seria no mínimo prudente concordar
que se trata apenas de formas diferentes – ainda que inelutáveis – de exigir o
que, ao fim é o mesmo, ou seja trata-se “[da] implacável reivindicação [do]
nada como pura, absoluta potência”10.
Se a prosa – como discurso crítico – nasce da impossibilidade da poesia,
uma “ideia da prosa” – a ideia de uma crítica – advém de sua possibilidade e
impossibilidade. O que resta dessa tensão: isso é uma “ideia da prosa”. À
linguagem humana destina-se o saber aprender a colher esse gesto. Caberia
pontuar, nesse sentido, que uma “ideia da prosa” só pode resultar na prosa e
que, assim sendo, a prosa deve guardar a negatividade da ideia como seu bem
mais precioso. Partindo da experiência de escritura fundada em tal proposição é
que a crítica em Agamben também se abre a uma possibilidade de
experimentar uma tanatografia.
Em um de seus textos, o pensador italiano citará Hölderlin quando esse
define a palavra poética/trágica como aquela “que dá a morte, porque o corpo
que ela aferra realmente mata”11. O anúncio de Hölderlin não só coloca o
problema da poesia enquanto aquele que guarda uma persuasão que se efetiva
no corpo de forma violenta e passional, mas também aquele que se direciona à
própria palavra poética, cujo destino, dando a morte, só pode coincidir com ela.
Disso decorre que a poesia, violentamente e passionalmente, só diz da morte
porque é o que, de fato, ela tem a dar. Por outro lado, o que ela oferece ao
doar é simplesmente a impossibilidade de dizer que só se torna possível
dizendo. A tanatografia, como a experiência que exige uma postura de
alteridade diante daquilo que está constantemente a negar o idêntico, inscreve-
se justamente nesse gesto de abrir-se à morte, não para morrer, mas para,
diante da impossibilidade de falar dela – diante da potência e da impotência da
força da palavra jogada a seu próprio silêncio –, arriscar-se naquilo que da
palavra ficou por exprimir e, só desse modo, aprender a morrer. “O anjo da
morte – escreve Agamben – [...] é a linguagem. O anjo anuncia-nos a morte –
10
AGAMBEN, 2007b, p.25
11
AGAMBEN, 2012b
90
e que outra coisa faz a linguagem? – mas é precisamente este anúncio que
torna a morte tão difícil para nós”12.
Dadas tais considerações torna-se possível um questionamento sobre o
mistério que se guarda nos abismos entre as línguas vivas e as línguas mortas;
no segredo que o anjo da linguagem, ao anunciar, ocultou em seu próprio
gesto; naquela língua que o muçulmano – a figura-limite que se afogou no
holocausto - pôde experimentar ao “fitar a medusa” no Lager, ou aquela
mesma que percorre os últimos sinais de vida indecifráveis do comatoso, do
néomort e do faux vivant. Se tal relação de fato é possível, assim como as
formas de vida levadas ao limite pelo estado de exceção contemporâneo
produzem uma espécie de Voz política, também da poesia é possível falar de
uma Voz poética. Com efeito, corpo poético e corpo político abrem-se também
a outra possibilidade analógica entre crítica e biopolítica, como categorias que
são dadas à contemporaneidade pelo campo indiferente que se funda por entre
a poesia e os elementos que constituem uma tanatopolítica. Dessa tensão, que
resulta numa espécie de resto discursivo, nasce a possibilidade de uma
tanatocrítica: o discurso crítico que guarda no “silêncio do rosto (...) a
verdadeira morada do homem”13.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
12
AGAMBEN, 1999, p.126.
13
Ibid., p.112.
91
_________________ . Sobre os limites da violência. Tradução de Diego
Cervelin. Revista Sopro, v.79, setembro, 2012b. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro.
92
TEORIA COMO TRADUÇÃO: DELEUZE & GUATTARI, DERRIDA E
SPIVAK
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad1
(UFG/CAC)
RESUMO: Pretende-se, a partir das obras de Jacques Derrida, Gayatri
Chakravorty Spivak e de Gilles Deleuze & Felix Guattari, pensar na própria
teoria da literatura como uma tradução. Aqui, não é um estudo sobre a
tradução, sobre como funciona a tradução, sobre os processos tradutórios, ou
algo desse viés, mas uma forma de pensar como a própria teoria da literatura é
uma espécie de tradução. Nesse sentido, é importante apontar as reflexões
desses teóricos supracitados que, com maior ou menor ênfase, pensaram sobre
o que é uma tradução para que esse próprio pensamento seja incorporado para
dentro da teoria, isto é, contemplar os sentidos e as diferenças da resposta e
da ideia de fantasma, tal como pensado por Derrida; entre o original e a
sombra; entre lógica, retórica e gramática; sobre os silêncios retóricos, como
argumentado por Spivak; sobre propagação, extensão, refração, renovação e
impulso, que Deleuze & Guattari apontam como intrínsecos ao processo de
traduzir.
viver de outro modo, e melhor. Não melhor, mas justamente. Mas com eles.
Não há estar-com o outro, não há socius sem este com que, para nós, torna
o estar-com em geral mais enigmático do que nunca. E este estar-com os
espectros seria também, não somente, mas também, uma política da
memória, da herança e das gerações (DERRIDA, 1994, p. 11).
95
espaço da política, dessa política da memória, da política do estar-com ou do
falar-com.
Porque é da política que chego à tradução, ou como bem definiu Spivak,
às políticas da tradução. Em texto com este título, a teórica indiana aponta que
existiria sempre em um texto o que ela denomina de “silêncio retórico”. Não é
mais aquilo que é dito, mas aquilo que intencionalmente não é colocado nos
textos originais e que, nem sempre, os tradutores estão atentos. Essas posições
extraliterárias são, muitas vezes, esses silêncios retóricos que, na tradução são
silenciados, mas que, doravante, se tornam ainda mais presentes.
Volto a Beckett, volto ao texto que discutia acima. Volto, ou revolto,
porque aqui é apenas uma pausa no texto de Spivak. Quando traduzo, ou
quando tento traduzir e me questiono as possibilidades de tradução para os
trechos supracitados, eu acabo por evidenciar que uma escolha irá impedir
outras escolhas possíveis. Ou seria possível uma tradução que incluísse aí todas
as possibilidades? Enfim, se traduzisse o “ever treid” não por uma dessas
escolhas, mas traduzisse assim: “já sempre nunca tentei”? Mesmo assim, eu
estaria ali tolhendo outras possibilidades, como ao trocar a ordem dos termos,
como em “sempre nunca já tentei” ou “nunca já sempre tentei”. Aqui, claro,
nesse processo de tradução, seja escolhendo um termo ou escolhendo o
encadeamento de sentidos possíveis numa mesma sentença, se revela que por
trás da escolha o silêncio, o silêncio retórico, e se descortina o que estava
silenciosamente inscrito no texto beckettiano, uma pluralidade de sentidos
possíveis e de possibilidades de tradução que uma sentença tão curta como
“ever tried” pode conter. Traduzir aqui, seguindo Spivak, seguindo Derrida,
expandindo Beckett, é uma forma de redimensionar uma mesma fala, empregar
um primeiro sentido, depois negá-lo, escolher outro e daí negá-lo novamente,
então todos os sentidos juntos, depois nenhum e daí o outro.
Tradução, nesse sentido, pode ser entendida como um
redimensionamento, como uma espécie de expansão. É aqui que trago os
últimos convidados anunciados, Deleuze e Guattari, talvez os convidados mais
surpreendentes. Surpreendentes porque, diferente de Spivak e Derrida, não
96
constituíram volumes em que se discute incisivamente a tradução. Mas no
círculo expansivo e irradiante de seus Mil Platôs, entre parágrafos de seu último
capítulo, O Liso e o Estriado, encontramos a seguinte afirmação:
BECKETT, Samuel. Worstward Ho. In: ________. The Groove Centenary Edition
IV: Poems, Short Fiction, Criticism. Nova Iorque: Grove Press, 2006.
DELEUZE, Gilles & GUATARI, Felix. O Liso e o Estriado. In: DELEUZE, Gilles &
GUATARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. V. 5. Trad. Peter Pál
Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008.
DERRIDA, Jacques. O Animal que Logo Sou. Trad. Fábio Landa. São Paulo:
Unesp, 2002.
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