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Organizadores

Alex Alves Fogal


Flávia Almeida Vieira Resende
Paulo Roberto Barreto Caetano
Wagner F. Guimarães Júnior

ANAIS DO IV SPLIT
SEMINÁRIO DE PESQUISA DISCENTE DO PÓS-LIT/UFMG

1ª edição

ISBN: 978-85-7758-258-7

Belo Horizonte
FALE/UFMG
2014
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2
IV SEMINÁRIO DE PESQUISA DISCENTE - 2014

“A LITERATURA E OS MÉTODOS DE PESQUISA”

Comissão organizadora
 Alex Alves Fogal (Doutorando, UFMG)
 Flávia Almeida Vieira Resende (Doutoranda, UFMG)
 Paulo Roberto Barreto Caetano (Doutorando, UFMG)
 Wagner F. Guimarães Júnior (Mestrando, UFMG)

Monitor
 Henrique Barros Ferreira (Graduando, UFMG)

Apoio
 Diretório Acadêmico Carlos Drummond de Andrade - Faculdade de Letras
- UFMG - Gestão "Travessia" 2014 - http://www.travessialetras.com/
 Pós-Lit - Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários - Faculdade
de Letras da UFMG - http://www.letras.ufmg.br/poslit/
 PROEX - Pró-reitoria de Extensão - UFMG - https://www2.ufmg.br/proex/
 CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior -
http://www.capes.gov.br/
 Faculdade de Letras da UFMG - http://www.letras.ufmg.br/site/

*Nota: Todos os textos foram revisados por seus respectivos autores.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO................................................................................... 05

COMUNICAÇÕES:

MÉTODO FILOLÓGICO E MÉTODO ESTRUTURALISTA

- Ana Luíza Duarte de Brito Drummond: Ceserani e Genette: uma


abordagem discursiva do modo fantástico .............................. 06

MÉTODO MARXISTA:

- Jorge Benedito de Freitas Teodoro: Walter Benjamin e a Paris


material .................................................................................... 17

- Flávia Almeida Vieira Resende: Companhia do Latão e o Método


Brecht: uma análise da peça “O Mercado do Gozo” ................. 27

MÉTODO SOCIOLÓGICO:

- Bárbara Del Rio Araújo: Alegoria e Realismo em Cabeça de Papel,


de Paulo Francis ....................................................................... 38

- Wagner F. Guimarães Júnior: A decadência como forma


romanesca de O amanuense Belmiro ....................................... 51

4
- Luiz Paixão Lima Borges: Realismo dialético e psicológico na
peça Rasga Coração: uma leitura sociológica e materialista ... 62

MÉTODO PÓS-ESTRUTURALISTA:

- Maria Elvira Malaquias de Carvalho: Nulidade e dialética: o


problema do método em Bouvard e Pécuchet, de Flaubert ..... 73

- Sérgio Henrique da Silva Lima: Poesia e negatividade: esboço para


umatanatocrítica em Giorgio Agamben ................................... 81

- Pedro Henrique Trindade Kalil Auad: Teoria como tradução:


Deleuze & Guattari, Derrida e Spivak ....................................... 93

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Apresentação
A quarta edição do Seminário Discente do Pós-Lit/UFMG ocorreu entre os
dias 20 e 22 de outubro de 2014 e apresentou como tema “A literatura e os
métodos de pesquisa”, dando continuidade à proposta temática iniciada em
2013 pela Representação Discente do Pós-Lit. Para contemplá-lo, foram
selecionados dois dos métodos absorvidos pelos estudos literários, a saber:
Marxismo e os Estudos Culturais. Contudo, as comunicações realizadas
puderam discorrer sobre métodos discutidos na edição anterior.

A discussão sobre o método em qualquer área do conhecimento é


enriquecedora, portanto, não necessita de muitas justificativas ou defesas.
Entretanto, o atual cenário dos estudos de literatura demonstra que tal debate
não tem se mostrado muito vigoroso, o que muitas vezes ocorre devido à
tendência de acharmos que pensar sobre as questões de método consiste,
inevitavelmente, em aprisionar ou limitar demasiadamente a reflexão.

O IV SPLIT se configurou como um espaço para pensarmos e


repensarmos nosso posicionamento, enquanto estudiosos, diante de nosso
objeto, o texto literário. Dessa maneira, foram acolhidas comunicações que
passam por uma metarreflexão sobre os métodos, bem como as que se
propõem a fazer uso direto deles no exercício de interpretação – ou seja, que
apenas aplicam um dos métodos em voga num determinado objeto de estudo.

Nestes Anais, encontram-se os textos apresentados nas comunicações,


por estudantes de pós-graduação de diversas universidades brasileiras.
Oportunamente, serão publicados também os textos dos professores
conferencistas.

A todos que possibilitaram a realização de mais uma edição do SPLIT,


nossos agradecimentos.

Os organizadores

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MÉTODO FILOLÓGICO E MÉTODO ESTRUTURALISTA:

CESERANI E GENETTE: UMA ABORDAGEM DISCURSIVA DO MODO


FANTÁSTICO

Ana Luíza Duarte de Brito Drummond1


(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: Este trabalho realiza uma articulação entre as formulações de Remo


Ceserani (2006) em O fantástico e o estudo de Gérard Genette (1979) em Discurso da
narrativa. As concepções de Ceserani derivam de um enfoque crítico desenvolvido em
termos dos conceitos centrais das teorias examinadas e de aspectos pontuais de um
conjunto de abordagens sobre a literatura fantástica e neofantástica. Além disso, seu
estudo faz uma importante revisão crítica da obra de Tzvetan Todorov. Assim, vem de
Ceserani a rejeição argumentada da classificação de Todorov do fantástico como
gênero literário e sua redefinição como uma categoria modal de contar, na medida em
que o fantástico utiliza diversos procedimentos formais e temas recorrentes dos mais
diversos gêneros. É dessa forma que a característica decisiva do fantástico assinalada
por Ceserani pode ser analisada sob a perspectiva de Discurso da narrativa, que além
de explorar sistematicamente os componentes e técnicas básicas da narrativa, aborda
uma série de procedimentos ficcionais ricos de implicações para uma análise mais
apurada da ficção.

As análises deste trabalho são baseadas, principalmente, na articulação entre


as formulações de Remo Ceserani (2006) em O fantástico e de Gérard Genette (1979)
em Discurso da narrativa. Nesse sentido deve-se, de início, definir o que consideramos
como fantástico para, em seguida, abordarmos o discurso narrativo e sua relação com
esse modo.

O FANTÁSTICO

1
Mestranda em Estudos Literários. Licenciada em Língua Portuguesa e Bacharel em Estudos
Literários pela Universidade Federal de Ouro Preto.
7
Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov, é uma das principais
referências sobre a literatura fantástica. Nela, Todorov (2010, p. 30-31) considera o
fantástico como uma hesitação que um ser experimenta frente a um acontecimento de
aparência sobrenatural. A partir dessa hesitação, esse ser deve optar por um destes
dois caminhos: ou considera que o acontecimento é fruto de sua imaginação e as leis
naturais seguem conforme são percebidas por nós, ou que ele ocorreu de fato e a
realidade deixa de ser a que conhecemos e passa a ser regida por leis desconhecidas.
No primeiro caso passaríamos do fantástico para o estranho, e, no segundo caso, para o
maravilhoso.
A consideração do fantástico como uma hesitação torna-se um conceito
vulnerável, cuja consistência pode ser questionada. Por exemplo, em relação ao conto
“Véra”, de Villiers de l’Isle-Adam, Todorov diz que nele “a hesitação não está
representada no texto”, e por isso só pode partir do leitor, pois “nenhuma personagem
compartilha esta hesitação”. Portanto, a identificação do leitor com o personagem em
relação à hesitação se trata “de uma condição facultativa do fantástico: este pode
existir sem satisfazê-la; mas a maior parte das obras fantásticas submete-se a ela.”
(TODOROV, 2010, p. 37, grifos nossos). Mais adiante Todorov trabalha A metamorfose,
de Kafka, explicando porque esse autor não se inclui no “gênero fantástico”.

Mesmo que uma certa hesitação persista no leitor, nunca toca a


personagem; e a identificação como anteriormente observada não é
mais possível. A narrativa kafkiana abandona aquilo que tínhamos
designado como a segunda condição do fantástico: a hesitação
representada no interior do texto, e que caracteriza especialmente os
exemplos do século XIX. (TODOROV, 2010, p. 181, grifos nossos)

Todorov exclui Kafka do gênero fantástico devido a não representação da


hesitação no interior de A metamorfose, algo que era, no início de sua análise, uma
condição facultativa do fantástico. Ora, a nosso ver, é uma tarefa um tanto difícil
caracterizar um gênero literário específico, como o faz Todorov, dando a esse gênero o
adjetivo de “fantástico”, sendo que, nele, o elemento que o qualifica, isto é, o
fantástico, não o é, e, sim, pode acontecer, mas jamais vir a ser, e, se acontece, é
durante um momento, uma “hesitação”, e, ainda, em alguns casos, pode ser que nem
ocorra. Por isso discordamos de Todorov e pensamos que, na verdade, mesmo que em
Kafka o fantástico seja tratado como natural, ele continua sendo sobrenatural, pelo
menos para o leitor, pois a forma como o sobrenatural é tratado como natural é, por si
8
só, sobrenatural. Poderíamos dizer, mesmo correndo o risco de também cairmos num
equívoco, que em Kafka o sobrenatural, exatamente por ser tratado como natural, é
elevado à sua máxima potência.
É principalmente a teoria do fantástico como hesitação que Ceserani irá
contestar. Em O fantástico, ele desenvolve uma consistente crítica em termos dos
conceitos centrais das teorias examinadas por ele e de aspectos pontuais de um
conjunto de abordagens sobre a literatura fantástica e neofantástica.
Conforme Ceserani (2006), após a publicação de Introdução à literatura
fantástica, houve uma “grande efervescência de estudos” sobre essa literatura,
especialmente direcionados às obras produzidas nos séculos XIX e XX. Surgem, então,
duas tendências opostas na crítica. Uma que tende a reduzir o fantástico a um gênero
literário limitado historicamente a alguns textos e escritores do século XIX, outra que
tende a alargá-lo demais, estendendo-o sem limite histórico a vários setores da
produção literária (CESERANI, 2006).
Voltando à definição de Todorov, Ceserani a considera portadora de pelo menos
dois méritos, que são “o da grande (embora abstrata demais) clareza e o de ficar ao
centro, desde aquele momento, de um debate amplo e muito acalorado, em que
demonstrou [...] resistir, em seu núcleo central, às muitas críticas e conseguir manter
ainda hoje uma notável utilidade hermenêutica.” (CESERANI, 2006, p. 48). Contudo,
Ceserani afirma que o esquema de Todorov, além de conter vários elementos
contraditórios, possuía “uma tendência a quase não dar espaço real, textual, ao
elemento que era o intermédio do fantástico, e a reduzi-lo a um momento quase virtual”
(CESERANI, 2006, p. 55-56). O próprio Todorov mostrou perceber o problema dessa
caracterização ao dizer que o fantástico “leva pois uma vida cheia de perigos, e pode se
desvanecer a qualquer instante. Ele antes parece se localizar no limite de dois gêneros, o
maravilhoso e o estranho, do que ser um gênero autônomo” (TODOROV, 2010, p. 48).
Em resumo, o fantástico limita-se em Todorov “a um momento quase virtual”,
sem qualquer autonomia. Sua vigência se restringe ao tempo de uma hesitação, até que
o leitor opte pelo maravilhoso ou estranho. Além disso, há, ainda, o problema de
construção de uma abordagem centrada na organização linguística e retórica do texto,
o que reduz os diversos níveis de discurso (literário, filosófico, psicológico) ao nível do
discurso literário/retórico.

9
Assim, Ceserani (2006, p. 12) descarta a categorização do fantástico como
gênero para defini-lo como um “modo” literário, com raízes históricas precisas e situadas
historicamente em alguns gêneros e subgêneros, mas utilizado em obras pertencentes
a gêneros muito diversos. Isso porque, como o estranho, o maravilhoso, o realista etc.,
o fantástico não designa um gênero narrativo nem uma classe específica de contos, mas
uma categoria modal de contar. O crítico afirma ainda “que a literatura fantástica não
pode ser reduzida a uma simples operação retórica e lingüística, mas trata-se [...] de
algo que tem suas raízes nas mais profundas camadas de significado e toca a vida dos
instintos, das paixões humanas, dos sonhos, das aspirações.” (CESERANI, 2006, p.
100). Dessa forma, temos, percorrendo toda a crítica de Ceserani, a rejeição
argumentada da classificação do fantástico como um gênero literário e sua redefinição
como uma categoria modal de contar.
Adotando a definição do fantástico como modo, Ceserani apresenta diversos
procedimentos formais e temas recorrentes dos mais diversos gêneros dos quais o
fantástico se alimenta, com combinações e empregos particulares, sem estar confinado
a esses mecanismos. Mas convém ressaltar que

Não existem procedimentos formais e nem mesmo temas que possam


ser isolados e considerados exclusivos e caracterizadores de uma
modalidade literária específica [...]. O que caracteriza o fantástico não
pode ser nem um elenco de procedimentos retóricos nem uma lista de
temas exclusivos. O que o caracteriza, e o caracterizou particularmente
no momento histórico em que esta nova modalidade literária
apareceu em uma série de textos bastante homogêneos entre si, foi
uma particular combinação, e um particular emprego, de estratégias
retóricas e narrativas, artifícios formais e núcleos temáticos.
(CESERANI, 2006, p. 67)

É o caráter recorrente, portanto, do emprego nos textos fantásticos, que


caracteriza os dez procedimentos formais que Ceserani seleciona, os quais
apresentamos abaixo de forma sintética, mas mantendo as ideias principais.
1) Posição de relevo dos procedimentos narrativos no próprio corpo da
narração. Existe, por detrás do modo fantástico, toda uma série de experimentações e
descobertas narrativas do século XVIII, das quais ele faz uso em todas as suas
amplitudes.
2) Narração em primeira pessoa. Esse procedimento já fora destacado por
Todorov (2010) ao falar da liberdade cedida a um narrador que diz “eu”: sendo

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narrador, seu discurso não é colocado à prova de verdade, o que não aconteceria no
caso de uma personagem. Ceserani (2006) o alarga um pouco mais ao afirmar que o
fantástico contempla, além da narrativa em primeira pessoa tradicional, aquelas onde
há personagens que trocam cartas, onde há destinatários explícitos – como o famoso
Der Sandmann, de E. T. A. Hoffmann.
3) Um forte interesse pela capacidade projetiva e criativa da linguagem. Para
Ceserani (2006, p. 70), entre transitividade e a intransitividade da linguagem, o modo
fantástico escolhe um terceiro caminho, o de suas potencialidades criativas.
4) Envolvimento do leitor: surpresa, terror, humor. O conto fantástico tem a
forte capacidade de envolver o leitor, levando-o para um mundo familiar a ele para,
depois, lançar sobre ele seus mecanismos de surpresa, de desorientação e de medo.
5) Passagem de limite e de fronteira. Esse procedimento, que consiste na
passagem do cotidiano, familiar, para o perturbador, inexplicável, é fundamental nos
contos fantásticos. Podemos encontrá-lo, por exemplo, na passagem de fronteira de
uma dimensão real para uma dimensão do sonho, do pesadelo ou, ainda, da loucura.
6) O objeto mediador. O procedimento do objeto mediador está ligado
diretamente ao procedimento anterior de passagem de limite e de fronteira. Isso por
que o “objeto mediador” refere-se a um objeto que, devido a sua inserção concreta no
texto, torna-se o testemunho efetivo do fato de o personagem inequivocamente ter
estado em outra dimensão da realidade e ter trazido dela o objeto consigo.
7) As elipses. É comum nos depararmos em alguns textos fantásticos com
súbitas aberturas de espaços vazios, ou seja, de elipses na narrativa. Para Ceserani
(2006, p. 74), trata-se da “escritura povoada pelo não dito”.
8) A teatralidade. As técnicas e práticas teatrais (como a fantasmagoria, a
criação de efeitos de “ilusão”) são muito usadas pelo modo fantástico devido a seu
gosto pelo espetáculo como um procedimento.
9) A figuratividade. O modo fantástico procurou “ativar todos os procedimentos
de figuratividade e iconicidade implícitos na prática narrativa” (CESERANI, 2006, p. 76).
10) O detalhe. Os procedimentos de destaque e da função narrativa do
detalhe, que foram procedimentos amplamente utilizados pelo romance policial e
considerados um traço distintivo da literatura moderna, tiveram um papel importante
no modo fantástico.

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Após essa definição dos dez procedimentos formais mais recorrentes no modo
fantástico, Ceserani apresenta alguns dos sistemas temáticos mais difundidos e
praticados por esse modo. Cabe destacar que alguns desses temas estão estreitamente
relacionados com os procedimentos já definidos, sendo que, em alguns casos, ocorre
mesmo uma tematização dos desses procedimentos. Eis os oito sistemas temáticos
enumerados pelo crítico.
1) A noite, a escuridão, o mundo obscuro e as almas do outro mundo. O mundo
noturno é o ambiente preferido pelo modo fantástico. Ceserani aponta a preferência do
modo fantástico “pelos mundos tenebrosos, subterrâneos, do além, ‘subnaturais’ mais do
que ‘sobrenaturais’” (CESERANI, 2006, p. 79).
2) A vida dos mortos. Esse tema constrói-se no fantástico com aspectos
novos, interiorizando-se, ligando-se a novas explorações filosóficas e experimentações
pseudocientíficas. Em Todorov ele vem acompanhado do tema do amor: o amor pela
morte ou por algo (alguém) morto, ou seja: necrofilia. A necrofilia, na literatura
fantástica, “assume habitualmente a forma de um amor com vampiros ou com mortos
que voltaram ao meio dos vivos” e pode ser “apresentada como a punição a um desejo
sexual excessivo”, embora não precise receber nenhuma valorização negativa.”
(TODOROV, 2010, p. 145-146).
3) O indivíduo, sujeito forte da modernidade. A individualidade burguesa
colocada no centro da vida social e biológica, tema característico da modernidade.
Tem-se, de um lado, de acordo com Ceserani (2006, p. 82), o eu que planeja a própria
história e evolução de uma forma linear e unitária; de outro, o eu que representa-se
“nas hesitações e nas dúvidas que acompanham inevitavelmente a afirmação do modelo
forte da individualidade auto-afirmada”. É desse último, segundo Ceserani, que nascem
várias obras literárias do século XIX, em especial as do modo fantástico.
4) A loucura. Sabe-se que a loucura é tema literário de grande tradição,
porém, no modo fantástico ela se liga aos problemas mentais da percepção. “Não há
um salto entre o louco e o homem normal. Os limites entre o louco e o homem de
gênio [...] tornam-se muito flexíveis” (CESERANI, 2006, p. 83).
5) O duplo. Na narração fantástica há uma descentralização do sujeito, uma
agressão em sua unidade subjetiva e em sua personalidade humana que levam a uma
tentativa de colocá-las em crise.

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6) A aparição do estranho, do monstruoso, do irreconhecível. De acordo com
Ceserani (2006, p. 84), a presença de um “estranho” ou “estrangeiro” num ambiente
familiar, dá-se de forma repleta de aspectos inquietantes, que suscita “reações de
profunda perturbação psicológica e não tem como conseqüência apenas a simples
exclusão do elemento estranho”.
7) O Eros e as frustrações do amor romântico. O modo fantástico aborda esse
tema de forma tal que em seus textos “todos os limites e todas as aberrações do amor
romântico” (CESERANI, 2006, p.88) se unem.
8) O nada. Esse tema se relaciona tanto com a filosofia materialista do século
XVIII quanto com o idealismo e o espiritualismo de cunho pessimista.
Finalizando com o nada essa parte em que salientamos as teorizações de
Todorov e Ceserani a respeito do fantástico, assim como a crítica de Ceserani a
Todorov, convém considerar o seguinte: é sabido, é claro, a importância de Introdução
à literatura fantástica para os estudos da área, por isso não a abandonamos. Por
exemplo, vimos que parte dos procedimentos e temas trabalhos por Ceserani já
estavam em Todorov, sendo que alguns foram trabalhados de forma mais específica e
outros tiveram maior amplitude em O fantástico. Mas consideramos que o trabalho de
Ceserani é, em primeiro lugar, mais abrangente e ao mesmo tempo mais específico que
o de Todorov; em segundo lugar, que a consideração do fantástico como um modo é
mais cabível e melhor argumentada, tendo em vista o caráter dependente do
fantástico enquanto gênero em Todorov.

ARTICULAÇÃO DO FANTÁSTICO COM O DISCURSO DA NARRATIVA

Discurso da narrativa, de Gérard Genette, explora as diversas possibilidades


do discurso narrativo, entendido tanto em seu sentido mais corrente, isto é, de texto
narrativo, quanto como o estudo das relações entre esse discurso e os acontecimentos
que narra e o mesmo discurso e seu processo de produção. Em outras palavras, a
relação categórica entre a narrativa propriamente dita, isto é, “o significante,
enunciado, discurso ou texto narrativo em si” e a história que narra (“significado ou
conteúdo narrativo”) e, ainda, dessa mesma narrativa com a narração, considerada o
ato “narrativo produtor e, por extensão, o conjunto da situação real ou fictícia na qual
toma lugar” (GENETTE, 1979, p. 25).

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Para analisar o discurso da narrativa propriamente dita – a única à disposição
dos estudos ficcionais –, Genette divide seu trabalho em três classes principais: Tempo
(subdividida em Ordem, Duração e Frequência), em que ele explora os problemas da
análise do discurso narrativo concernente às relações temporais entre narrativa e
diegese. Modo, relacionada “às modalidades (formas e graus) da ‘representação’
narrativa”. E, por fim, Voz, relativa à “forma pela qual se encontra implicada na
narrativa a própria narração”, ou situação ou instância narrativa. (GENETTE, 1979, p.
29). Essas três classes propostas por Genette recobrem as três categorias definidas por
ele, de forma que “o tempo e o modo funcionam ambos ao nível das relações entre
história e narrativa, enquanto que a voz designa ao mesmo tempo as relações entre
narração e narrativa e entre narração e história.” (GENETTE, 1979, p. 30).
Nessa obra Genette faz, por um lado, um estudo sobre À la recherche du
temps perdu, de Marcel Proust, e, por outro, uma análise cuidadosa das inúmeras
possibilidades de organização de uma narrativa. Nesse sentido, crítica e teoria literária
são relacionadas aqui em termos de uma análise sistemática da arte de contar em suas
várias possibilidades de realização. Conforme sublinha Jonathan Culler (1980), no
prefácio à edição inglesa da obra,

Gérard Genette’s Narrative Discourse is invaluable because it fills this


need for a systematic theory of narrative. As the most thorough
attempt we have to identify, name, and illustrate the basic
constituents and techniques of narrative, it will prove indispensable to
students of fiction, who not only will find in it terms to describe what
they have perceived in novels but will also be alerted to the existence of
fictional devices which they had previously failed to notice and whose
implications they had never been able to consider. Every reader of
Genette will find that he becomes a more acute and perceptive
analyst of fiction than before. (CULLER, 1980, p. 7)2

Nesse sentido, a obra de Proust ocupa um lugar importante em Discurso da


Narrativa por oferecer um conjunto amplo de procedimentos narrativos. Porém, o

2
Discurso da Narrativa de Gérard Genette é de valor inestimável porque preenche a
necessidade de uma teoria sistemática da narrativa. Como a tentativa mais completa que temos
para identificar, nomear, e ilustrar os componentes básicos e as técnicas da narrativa, a obra
irá provar-se indispensável para o estudante da ficção, não somente na procura de termos para
descrever aquilo que perceberam nos romances, mas também porque serão alertados para a
existência de dispositivos ficcionais que antes tinham falhado em observar e cujas implicações
não tinham sido capazes de considerar. Cada leitor de Genette descobrirá que vai se tornar um
analista de ficção mais agudo e mais perceptivo do que fora até então. (CULLER, 1980, p. 7,
tradução nossa).
14
estudo não se mantém confinado a ela. Como assinala Maria Alzira Seixas, em Genette
“todas as hipóteses discursivas que a narrativa de À la Recherche não concretiza são
também convenientemente estudadas, embora numa dimensão menos ampliada”
(SEIXAS, 1979, p. 11).
Nosso interesse em Discurso da Narrativa está pautado em sua efetiva
capacidade de sistematização e conceituação de técnicas narrativas que podem ser
encontradas em textos dos mais diversos gêneros. Por isso encontramos referidas nela
desde uma obra como a Recherche, dita realista, como outras bem diversas, como La
peu de Chagrin, de Balzac, La forma de la espada, de Borges, Sei personaggi in cerca
d'autore, de Pirandello, e, ainda, Continuidad de los parques, de Julio Cortázar.
Nomeamos os enfoques dessas narrativas para reforçar ainda mais que, apesar de ser
a Recherche a narrativa principal de seu trabalho, Genette estabelece uma
investigação de caráter o mais amplo possível, buscando, quando necessário, a análise
e exemplificação de procedimentos que sejam capazes de cobrir o máximo de
possibilidades de construções narrativas específicas. Dessa forma, ele realiza um
exemplo raro e excepcional tanto de crítica quanto de teoria literária.
No entanto, como salienta Culler, o estudo de Genette não se mantém no limite
de um modelo canônico de descrição das categorias e técnicas. Discurso da Narrativa
abre-se para o espaço de violações do modelo proposto, produzindo textos que
envolvem combinações que parecem ser impossíveis. Culler afirma, ainda, que Genette
lida, nesse trabalho, com as manifestações do poder do marginal, do suplementar, da
exceção (“the power of the marginal, the supplementary, the exception”), relacionando-
se assim com as investigações de Jacques Derrida sobre a lógica da marginalidade ou da
suplementaridade que está sempre em ação em nossos esquemas interpretativos (“the
logic of marginality or supplementarity that is always at word in our interpretive
schemes”) (CULLER, 1980, p. 13).
É assim que a obra de Genette se liga ao nosso estudo. Se retomarmos a
consideração de Ceserani a respeito dos procedimentos narrativos utilizados pelo modo
fantástico, vemos que

Não existem procedimentos formais e nem mesmo temas que possam


ser isolados e considerados exclusivos e caracterizadores de uma
modalidade literária específica. Isso vale para o fantástico mas
também para todos os outros possíveis modos da produção literária.
Cada procedimento formal, ou artifício retórico e narrativo, ou tema

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ou motivo, pode ser utilizado em textos pertencentes às mais diversas
modalidades literárias. (CESERANI, 2006, p. 67)

Portanto, é dessa forma que a característica decisiva do fantástico assinalada


por Ceserani, qual seja, a de realizar as mais diversas combinações dos procedimentos
formais e sistemas temáticos que pertencem ao repertório geral das narrativas, pode
ser devidamente analisada sob a perspectiva de Discurso da narrativa, que além de
explorar sistematicamente os componentes e técnicas básicas da narrativa, aborda
uma série de procedimentos ficcionais ricos de implicações para uma análise mais
apurada da ficção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.

CULLER, Jonathan. Foreword. In: GENETTE, Gérard. Narrative discourse. Translate by


Jane E. Levin. Oxford: Basil Blackwell, 1980, p. 7-13.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Trad. Fernando Cabral


Martins. Lisboa: Arcádia, 1979.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa


Castello. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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MÉTODO MARXISTA

A MATERIALIDADE DE PARIS: UMA LEITURA À LUZ DE WALTER


BENJAMIN
Jorge de Freitas1
(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: A metrópole de Paris surge como uma importante imagem na


reflexão que Walter Benjamin constrói acerca da modernidade não apenas pela
posição de personagem principal que ocupa na poesia de Charles Baudelaire,
poeta considerado pelo pensador alemão como expoente da modernidade,
como também pela importância da cidade no cenário de consolidação do
processo de produção capitalista e de seu posicionamento como metrópole do
século XIX. Nesse sentido, a proposta da presente comunicação é a de discutir
alguns aspectos da modificação da estrutura material de Paris destacados por
Walter Benjamin no Projeto das Passagens. Para tal, analisaremos o poema “O
cisne” (Le cygne) de Charles Baudelaire, a reurbanização promovida pelo Barão
de Haussmann no século XIX e, sobretudo, o signo da transitoriedade como
determinante da visão da Paris material benjaminiana. Deste modo,
enfatizaremos a potência que o signo da transitoriedade exerce na metrópole
parisiense evidenciando, principalmente, a fragilidade de suas construções e a
existência de um movimento de interpenetração entre elementos da Paris
antiga e da Paris moderna.

PALAVRAS-CHAVE: Paris; Benjamin; Baudelaire; Reurbanização.

1
Doutorando em Estudos Literários (POS-LIT/FALE) pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Esta comunicação é um derivado do artigo “A Paris material de Walter Benjamin”
publicado na Revista GEWEBE. Disponível em: <http://gewebe.com.br/cadernos_vol11.htm>.
17
INTRODUÇÃO

A metrópole de Paris surge como uma importante imagem na reflexão


que Walter Benjamin constrói acerca da modernidade benjaminiana não apenas
pela posição de personagem principal que ocupa na poesia de Charles Baudelaire,
poeta considerado por Benjamin como expoente da modernidade, como também pela
importância da cidade no cenário de consolidação do processo de produção capitalista
e de seu posicionamento como metrópole do século XIX. Para Ernani Chaves, isso de
dá por meio da efetivação da promessa de um “ideal” que antes de tudo “é sempre
sonhado” (CHAVES, 2009, p. 61) através das fantasmagorias. A alegoria da metrópole
pode ser compreendida através de dois aspectos fundamentais: pela interpretação da
reestruturação material de Paris ocasionada pelas reformas urbanísticas do século XIX
e pela constatação da criação de uma cidade de sonhos que atua no imaginário de
seus habitantes. O aspecto comum dessa alegoria – que se situa na ambiguidade entre
uma constituição material e uma construção onírica – é que em ambos os casos,
material e onírico, o regente das interpretações é o signo da transitoriedade dos
elementos da metrópole.
Uma consideração importante sobre a regência que o signo da transitoriedade
exerce na metrópole parisiense é a evidenciação da fragilidade de suas construções,
algo capaz de revelar a existência de um movimento de interpenetração entre
elementos da Paris antiga e da Paris moderna. Em outras palavras, a transitoriedade
da Paris – tanto aquela que se constrói materialmente, como aquela que se constitui
como uma esfera de sonhos – revela a interpenetração entre elementos da antiguidade
e da modernidade, característica principal da modernidade benjaminiana. Como
exemplo dessa interpenetração, as reformas urbanísticas do Barão de Haussmann
oferecem um arquétipo privilegiado, pois no embelezamento estratégico de Paris,
Haussmann, o “artista da demolição”, ao levantar uma “nova Paris” deixa como rastro
as ruínas de uma Paris antiga. Sem dúvida, esse movimento de destruição e
construção está marcado não só pelo signo da transitoriedade, como também pela
temporalidade destrutiva da modernidade, uma vez que as construções de hoje estão
fadadas ao perecimento amanhã. Isto é, aquilo que é visto como novidade em breve
será considerado como antigo e se tornara ruína. Nesse sentido, de acordo com Kátia
Muricy no artigo “O heroísmo do presente”, tudo aquilo que está ligado “à busca do

18
novo, está paradoxalmente ligada à morte, à destruição no tempo. A cidade grande é o
cenário desta morte.” (MURICY, 1995, p. 40) Tal movimento de reurbanização revela,
também, a exclusão inerente ao embelezamento e a modernização da metrópole, pois
os operários que durante o dia reformam a cidade são à noite expulsos para os
subúrbios. Exclusão que é representada com maestria pelo poema “O cisne” (Le
cygne), de Baudelaire.

A PARIS MATERIAL

Paris, a morada das fantasmagorias, entendida como uma espécie de mônada


onde se é possível apreender a totalidade das relações que deram forma à
modernidade do século XIX, é o local escolhido por Benjamin para desvendar a
historiografia material e o imaginário da sociedade moderna. A metrópole destaca-se
nas observações benjaminianas por situar-se como o lugar privilegiado para o
desenvolvimento das passagens, das inovações tecnológicas, da moda, da arquitetura,
constructos que abrigaram e representaram o desenvolvimento pleno dos conceitos de
progresso e de fetiche. Para Benjamin (2009, p. 41), a metrópole parisiense foi capaz
de incorporar ao seu desenvolvimento a “forma do novo meio de produção”, no qual o
desfecho principal foi a consolidação do imaginário social dos habitantes de Paris sob a
forma do culto ao progresso e a fetichização das relações sociais, ambos através das
imagens de sonho. Desse modo, a metrópole francesa tornou-se, por excelência, a
morada do culto ao capitalismo, culto fortalecido pelas recorrentes exposições
universais, apresentadas incialmente como “lugares de peregrinação ao fetiche da
mercadoria.” (BENJAMIN, 2009, p.43)
Ao entendermos a Paris moderna de Benjamin como o cenário onde as
potências da modernidade encontram o amplo desenvolvimento, iremos caracterizá-la,
inicialmente, como tendo o signo da transitoriedade como o seu paradigma de
inteligibilidade, apresentando as modificações materiais da metrópole e seu impacto na
consolidação do sujeito.
Cabe dizer, portanto, que a noção de transitoriedade se situa como o
determinante de um modelo de desenvolvimento regido pelos conceitos de progresso e
de fetiche, conceitos que se encontram em constante movimento, sempre
apresentando novas e transitórias constituições, sempre se adaptando ao moderno

19
jogo alegórico de significação. Já a noção de progresso pode ser ilustrada com o
avanço das tecnologias de reprodução imagética. Esse movimento pode ser
exemplificado com o desenvolvimento dos panoramas, técnica de reprodução
imagética que, segundo Benjamin (2009, p. 45), anunciava “uma revolução nas
relações da arte com a técnica”. Tal técnica não figurou por muito tempo como a
última novidade no cenário da reprodução imagética e foi rapidamente substituída pela
fotografia. Já a técnica fotográfica, por sua vez, perdeu o seu posto e foi substituída,
como última moda na reprodução e captação de imagens, pelo cinema, primeiramente
o mudo e posteriormente o falado. A transitoriedade, por sua vez, inerente ao conceito
de fetiche, pode ser exemplificada pela moda. É fato que, nesse movimento transitório,
a moda mais recente – a última novidade – exerce uma potência enfeitiçadora mais
forte do que a anterior e acaba por tomar-lhe o lugar. Assim, a “fantasia impulsionada
pelo novo” (BENJAMIN, 2009, p. 41) torna-se capaz de renovar a força do fascínio que
a mercadoria exerce sobre os sujeitos e, devido ao seu caráter de última novidade no
mercado, o movimento transitório da moda apresenta renovada a fantasia da
mercadoria de colocar-se como a capacidade de realização imediata das promessas. A
relação de transitoriedade estabelecida no movimento entre a permanência de
elementos antigos e a iminência da novidade na constituição da metrópole parisiense
pode ser entendida através da visão de uma cidade cuja estrutura material é sempre
mutável. Uma cidade constantemente marcada pelas reformulações urbanísticas que
removem do seu cenário as antigas construções para que essas possam ceder o seu
lugar às novas, como foi o caso exemplar de Paris. Porém, as ruínas dessa destruição
permanecem, visto que as “novas” construções estão fadadas ao mesmo destino das
“antigas”, a saber, o deperecimento, a morte. Este movimento de reurbanização que
expõe a fragilidade material da capital francesa revela não apenas a violência exercida
contra os monumentos de uma Paris antiga, como também apresenta a violência
exercida contra o habitante da metrópole – para o qual a cidade torna-se estranha e
desumana.
Para Benjamin, a “cidade de Paris ingressou nesse século sob a forma que lhe foi
dada por Haussmann. Ele realizou sua transformação da cidade com os meios mais
modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas e coisas semelhantes.”
(BENJAMIN, 1989, p. 84) É justamente na modificação do espaço urbano da metrópole
que a marca da transitoriedade de Paris revela-se com maior primazia, fundada

20
principalmente pelas reformas urbanísticas do Barão Haussmann, iniciadas em 1859. As
reformas de Haussmann visavam o embelezamento estratégico da metrópole através da
substituição da “verdadeira Paris”, uma cidade naturalmente “escura, lamacenta,
malcheirosa, confinada em suas ruas estreitas” (BENJAMIN, 2009, p. 564. [P 4,1]), por
uma cidade extremamente planejada, com largas e arborizadas avenidas (boulevards),
que tinham como intuito, sobretudo, impedir a insurreição dos populares em barricadas
e propiciar o deslocamento mais efetivo das tropas militares, proporcionando, assim,
uma nova fisionomia para a cidade. De acordo com Benjamin, ao citar um fragmento do
arquivo temático “E - Haussmannização, Lutas de barricadas”, o embelezamento
estratégico consistiria em dois movimentos: na abertura de “Novas artérias” que “fariam
comunicar o coração de Paris com as estações e as descongestionariam” e,
principalmente, na abertura de outras vias que “participariam do combate travado contra
a miséria e a revolução; seriam vias estratégicas, atingindo os núcleos de epidemias, os
centros de rebeldia, permitindo, com a vinda de ar puro, a chegada do exército.”
(BENJAMIN, 2009, p. 169. [E 3a, 3])
A velocidade das demolições de Haussmann transforma Paris em um canteiro
de obras, em um amontoado de ruínas, de modo que a desfiguração do espaço
material da metrópole aflige o seu próprio habitante, ocasiona-lhe o sentimento de ser
um estrangeiro em sua própria cidade. Nesse contexto, temos a seguinte afirmação de
Benjamin (2009, p.49): “Aquilo que sabemos que, em breve, já não teremos diante de
nós torna-se imagem”, isto é, o caráter transitório e mutável da imagem de Paris
provoca em seus habitantes o estranhamento em relação à cidade que habitam. A
fisionomia transitória de Paris, arruinada pelos intentos megalomaníacos de
Haussmann, aponta para o “desprezo da experiência histórica” (BENJAMIN, 2009, p.
172. [E 5, 6]), experiência essa que o parisiense construiu anteriormente com sua
cidade. Aponta também para a desvalorização dos elementos da própria cidade,
incluindo-se aí o próprio habitante. Desse modo, na imagem da Paris moderna, regida
pela transitoriedade e fragilidade das suas construções, a possibilidade do parisiense
construir uma relação experiencial com a metrópole é impossibilitada pela volatização
das construções arquitetônicas da cidade. Por isso a experiência que a Paris de
Haussmann possibilita ao seu habitante é a do estranhamento frente às constantes
mudanças em sua estrutura, ou seja, não é, de modo algum, uma experiência
enraizada no sujeito (Erfahrung), mas, sim, uma vivência (Erlebnis) que se choca com

21
o estranhamento produzido pela transitoriedade da metrópole familiar arruinada.
Benjamin evidencia o caráter destrutivo e a sensação de estranhamento da
haussmannização de Paris com uma citação de Dubech e D’Espezel em Historie de
Paris, como pode ser visto no seguinte fragmento:

Sobre Haussmann: “Paris deixou, para sempre de ser um


conglomerado de pequenas cidades tendo a sua fisionomia, sua vida;
onde se nascia, onde se morria, onde se gostava de viver, que não se
pensava em abandonar; onde a natureza e a história tinham
colaborado para realizar a variedade na unidade. A centralização, a
megalomania criaram uma cidade artificial onde o parisiense, traço
essencial, não se sente mais em casa. Assim desde que pode, ele vai
embora, eis uma nova necessidade, a mania da vilegiatura.
Inversamente, na cidade deserdada de seus habitantes, o estrangeiro
chega com data fixa: é a ‘estação’. O parisiense, na cidade transforma-
se em encruzilhada cosmopolita, sente-se desenraizado.” (DUBECH;
D’ESPEZEL apud BENJAMIN, 2009, p. 169. [E 3a, 6] - Grifos nossos)

Paris torna-se, então, estranha para o seu habitante, a antiga relação de


pertencimento que o parisiense estabelecia com sua cidade não existe mais, as
construções de outrora são substituídas por estruturas da metrópole haussmanizada,
caracterizada como “um grande mercado de consumo, um imenso canteiro de obras,
uma arena de ambições, ou apenas um ponto de encontro dos prazeres. Não é a terra
deles.” (BENJAMIN, 2009, p. 168. [E 3a, 1] - Grifos nossos) No entanto, pode-se dizer
que algo de antigo permanece na constituição da “nova Paris”, pois o movimento de
reurbanização da cidade produz, incessantemente, ruínas. Essa produção é capaz de
evidenciar que as novas construções possuem o mesmo destino das antigas, a saber, a
morte, o deperecimento, a ruína. Jeane Marie Gagnebin, em Sete aulas sobre
linguagem, memória e história, resume esse movimento de coopertencimento entre o
antigo e o novo realizado pelas reformas de Haussmann de modo muito esclarecedor:

Haussmann realiza materialmente a aproximação do antigo e do


moderno pela manifestação da caducidade do presente: às minas do
passado correspondem as de hoje; a morte não habita só os palácios
de ontem, mas já se apoderou dos edifícios que estamos construindo.
É esta convergência do passado e do presente na forma de seu futuro
comum, a morte, que caracteriza a consciência temporal da
modernidade. O sempre-novo revela-se na sua obsolescência
essencial, no brilho da vida fulgura a chama da destruição.
(GAGNEBIN, 1997, p. 150)
22
O movimento de transitoriedade de Paris, não revela somente o destino comum
das estruturas do antigo e do moderno, revela também, por meio dos efeitos das
escavações da cidade, os resíduos de uma outra Paris, uma cidade antiga, cuja
linguagem que “falam as ruas e vielas incessantemente atravancadas, destruídas e
refeitas, desde os primeiros dias da cidade” (BENJAMIN, 2009, p. 136. [C 7a,1]) não
apenas, evoca o seu lugar na construção da Paris de Haussmann, mas também
reclama pelos lamentos dos seus habitantes e pelos símbolos que já não possuem
lugar na estrutura mutável da cidade, conforme destaca Baudelaire nos versos do
poema “O cisne”.
Benjamin destaca que a fragilidade, a transitoriedade da metrópole parisiense e
o movimento de interpenetração entre antiguidade e modernidade são alegorizados
com primazia em “O cisne”. Esse poema, segundo Benjamin (2009, p. 402. [J 72,5])
“possui o movimento de um berço que balança entre a modernidade e Antiguidade”.
Pode-se inferir, nesse sentido, que a construção do poema baudelairiano repousa nas
alegorias que nos remetem à transitoriedade de Paris, construção destacada em versos
como:

Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história


Depressa muda mais que um coração infiel);
[...]
Paris muda! muda, mas nada em minha nostalgia
Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria.
E essas velhas lembranças pesam mais do que rochedos.
(BAUDELAIRE, 2006, p. 301-303).

Versos nos quais, de acordo com Gagnebin (1997, p. 151) está tematizado o
“processo de corrosão do tempo que caracteriza a consciência da modernidade”,
consciência determinada pela constatação do signo da transitoriedade que transforma
o novo em ruína e decreta – como visto anteriormente – o destino comum às
estruturas inorgânicas ou orgânicas da metrópole: o deperecimento. Nesse sentido,
tanto a imagem da cidade que muda em uma velocidade assustadora, quanto as
alegorias dos exilados presentes no poema - depositadas, sobretudo, nas imagens do
cisne, de Andrômaca e da negra, entendidos como imagens de uma Paris fragilizada –
têm a sua estrutura moldada como “símbolos de fragilidade”. Enquanto estruturas
orgânicas, esses exilados são entendidos em duas vertentes: a) como “símbolos de
23
criaturas vivas (a negra e o cisne)” e b) como “símbolos históricos (Andrômaca, ‘viúva
de Heitor e... mulher de Heleno’)” (BENJAMIN, 1989, p. 181). Entretanto, em ambos os
símbolos o entendimento comum é que eles simbolizam uma relação com a tradição
que já não possui mais local na sociedade moderna – em suma, representam a
exclusão de uma tradição no seio da modernidade. Nesse sentido, o traço comum a
esses símbolos – orgânicos ou históricos –, “é a desolação e desesperança pelo que
virá”. (BENJAMIN, 1989, p. 81).
Os símbolos da fragilidade da metrópole – fragilidade orgânica (o cisne e a
negra) e histórica (Andrômaca) – significam, para Luciano Gatti, no artigo “Experiência
da Transitoriedade: Walter Benjamin e a modernidade de Baudelaire”, “a expulsão da
vida orgânica pelo processo de urbanização e transformação em concerto de todo o
ambiente” (GATTI, 2009, p. 168) e a consolidação do “exílio de uma tradição histórica
e literária”. Desse modo, a estruturação transitória da Paris do século XIX determina
que qualquer perspectiva de futuro para os exilados está, de antemão, fadada a
tornar-se um amontoado de ruínas.
No poema “O cisne”, “Baudelaire faz o registro do exílio no interior de uma
Paris em reconstrução sob os auspícios do projeto de reurbanização efetuado pelo
Barão Haussmann”, afirma Gatti (2009, p. 165-166). Nesse sentido, o sentimento de
exílio se faz presente na imagem do poeta que lamenta perante a violência da
destruição e o não reconhecimento de sua antiga cidade. Baudelaire é um exilado – tal
como o cisne e Andrômaca – e que está inserido no jogo de transitoriedade dos
símbolos da cidade parisiense. Todavia, sua situação é ainda mais desesperadora, pois
ele tem ciência que na força desse processo de reurbanização, capaz de revelar a
fragilidade material e imaterial da metrópole parisiense, repousa a possibilidade –
fundada, sobretudo, na crença de um progresso infinito da técnica e da ciência – de
que, com apenas um golpe, a cidade é feita em ruínas. É nesse sentido que Gatti
afirma que

Alguns testemunhos, que Benjamin recolhe na sua afinidade com o


projeto de Baudelaire de revelar a antiguidade no interior da
modernidade, revelam o pressentimento de uma ameaça que paira
sobre a cidade moderna e que poderia, de um golpe, reduzi-la em
ruínas comparáveis àquelas que transformaram as cidades antigas.
(GATTI, 2009, p. 170-171)

24
Nesse conjunto de testemunhos destaca-se a visão “de que, juntamente com as
grandes cidades, cresciam os meios que permitem arrasá-las” (GEOFREY, apud,
BENJAMIN, 2009, p. 135-136. [C 7a,1]). Entre esses testemunhos, Benjamin destaca
as colocações do escritor Maxime du Camp e as representações do gravurista francês
Charles Meryon, o primeiro acreditando que a cidade está fadada à “lei inevitável da
caducidade de todas as coisas humanas” e o segundo representando a cidade de Paris
como “um campo de ruínas” (BENJAMIN, 1989, p. 84-86). Meryon, definido por
Benjamin como um pintor alegórico, apresenta em suas gravuras sobre Paris,

uma aparência de vida passada, que está morta ou que vai morrer...
[...] ele certamente advinha que essas formas tão rígidas eram
efêmeras, que essas curiosas belezas pereceriam como tudo o mais.
Ele escutava a linguagem que falam as ruas e as vielas
incessantemente atravancadas, destruídas e refeitas, desde os
primeiros dias da cidade, e por isso sua poesia evocadora se encontra
com a Idade Média através da cidade do século XIX; através da visão
das aparências imediatas ele identifica a melancolia de sempre.
(GEOFREY, apud, BENJAMIN, 2009, p. 135-136. [C 7a,1])

São esses os sentidos que Meryon coloca em sua obra que o faz ser tão
admirado por Baudelaire. O gravurista, em suas representações de Paris, condensa
aquilo que o poeta, ciente da constituição transitória de Paris, quis inserir em sua obra.
Pode-se dizer, nesse sentido, que a poesia urbana de Baudelaire inunda-se dos
elementos que Meryon trouxe à tona ao apresentar as coisas em seu destino natural de
perecimento, em sua estrutura efêmera e, especialmente, na representação da cidade
moderna em sua conexão com elementos da cidade antiga – as ruínas. Se na
modernidade, “Meryon fez brotar a imagem antiga da cidade sem desprezar um
paralelepípedo” (BENJAMIN, 1989, p. 85), Baudelaire, continuamente em sua poesia,
procurou se entregar a essa mesma ideia. Ademais, em ambos “se manifesta
continuamente a forma dessa superposição, que é a alegoria” (BENJAMIN, 2009, p.86).
Por isso é evidente que em Baudelaire e em Meryon a única possibilidade de pôr-se de
frente à transitoriedade estrutural da metrópole, seja ela ocasionada pelas
reurbanizações promovidas por Haussmann, pelo efeito de estranhamento que provoca
no habitante da metrópole ou pela visão de um declínio imediato da cidade, é por meio
da inserção no jogo de significação alegórico, buscando, por fim, compreender que as
antigas construções conceituais passíveis de imputar um significado único e imutável às

25
relações construídas, não somente entre os sujeitos, mas também, entre os sujeitos e os
objetos, perdem a sua validade na transitoriedade da vida moderna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDELAIRE, Charles. O cisne. In: As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de
Janeiro. Nova Fronteira, 2006.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009.

______. A modernidade. In: Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire, um lírico no


auge do capitalismo. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista.
São Paulo: Brasiliense, 1989.

CHAVES, Ernani. Der zweite Versuch der Knust, sich mit der Techink
auseinanderzusetzen: Walter Benjamin e o Jugendstil”. In: Revista Artefilosofia, vol.
06, p. 56-62. Ouro Preto: ED. UFOP, 1° semestre de 2009.

FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do
princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das letras, 2010.

GATTI, Luciano Ferreira. Experiência da Transitoriedade: Walter Benjamin e a


Modernidade de Baudelaire. In: Revista Kriterion, vol. 119, p. 159-178. Belo Horizonte,
jun de 2009.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de
Janeiro: Ed. Imago, 1997.

MURICY, Katia. O heroísmo do presente. In: Tempo Social. Revista de Sociologia USP.
São Paulo: vol. 07, p. 31-44.

26
COMPANHIA DO LATÃO E O MÉTODO BRECHT: UMA ANÁLISE DA PEÇA
“O MERCADO DO GOZO”
Flávia Almeida V. Resende1
(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: O presente artigo propõe uma análise da peça “O mercado do


gozo”, da Companhia do Latão. Entendemos que se trata de um espetáculo que
tanto coloca em funcionamento algo que poderíamos chamar, com Jameson, de
“Método Brecht”, quanto atualiza e repensa o funcionamento dos pressupostos
brechtianos – estranhamento, distanciamento crítico, historicização – para o
contexto brasileiro estético e político atual. Estreada em 2003, em São Paulo, a
peça apresenta como pano de fundo histórico a greve de operários em São
Paulo em 1917, trazendo em seu enredo uma discussão clara acerca da
mercantilização do corpo, da alienação do sujeito no sistema, da produção
cinematográfica crescente do início do século XX, e da consequente
mercantilização da imagem. A isso, a plateia pode contrapor e comparar seu
próprio contexto. Assim, percebemos que “O mercado do gozo” pode ser
entendido como um exemplo do “teatro dialético” praticado pela Companhia do
Latão.
Primeiramente, é preciso afirmar que não há como falar do teatro
brechtiano e, por consequência, de todo teatro influenciado por Brecht (no qual
incluo a Companhia do Latão), sem falar de método. Reforçar a importância do
método nesse tipo de teatro é fundamental, sobretudo, porque, ao longo das
últimas décadas, várias foram as tentativas de escamotear seja o método
épico-dialético2 de Brecht, seja o seu objetivo político, transformando sua
técnica em apenas “jogo cênico”.

1
Mestre em Teoria da Literatura pelo Pós-Lit (Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários) da Faculdade de Letras da UFMG. Doutoranda em Literaturas Modernas e
Contemporâneas pela mesma instituição.
2
Brecht denomina seu teatro primeiramente como “teatro épico”, mas depois reconsidera o
termo, afirmando ser este demasiadamente formal e não compreender todo o projeto de
transformação social trazido por esse tipo de teatro. Cf. Brecht, 2005, p. 167.
27
Dito isso, podemos afirmar que o teatro épico-dialético formulado
por Brecht, no qual a Companhia do Latão se baseia, é uma pesquisa que
conjuga um apurado trabalho formal com um objetivo social: tornar a
representação teatral um evento mais crítico e de caráter didático3 evidente,
possibilitar a crítica das imagens e das formas ideológicas dominantes,
fornecendo ao espectador uma visão de um mundo modificável. Para tanto, o
teatro deveria estabelecer uma relação histórica clara – aquilo que é visto em
cena está ligado a um período histórico determinado e é, portanto, passível de
modificação.
Inúmeros são os elementos que envolvem o teatro épico-dialético de
Brecht, que corroboram para o distanciamento e para uma atitude crítica do
espectador, tais como: o uso da narração, que permite que os acontecimentos
sucedam de forma não linear e com saltos; das canções, que, de acordo com
Brecht, não devem nunca ser colocadas como uma continuidade natural da fala,
como nos musicais, mas sempre como rupturas; de títulos de cenas e
projeções, que rompem com o fluxo da ação e provocam um estranhamento4.
Tais elementos se configuram como oposição ao modelo do drama, que investe
no envolvimento emocional do espectador com a trajetória do herói dramático.
Uma vez que não há uma trajetória linear que caminha para um ponto de maior
interesse, todas as cenas ganham um interesse especial e importante para a
análise e não para o “gráfico emocional”. Além disso, como observa Benjamin
em seus estudos sobre Brecht5, “o teatro épico não reproduz condições, mas as
descobre. A descoberta das situações se processa pela interrupção dos

3
Frederic Jameson, em O método Brecht, a respeito desse caráter didático da obra de Brecht,
afirma: “Ainda que didático, é preciso acrescentar que Brecht, a rigor, nunca teve uma doutrina
a ensinar” (JAMESON, 1999, p. 14). Entendemos que Brecht, em suas propostas cênicas e
teóricas, buscava não apenas transmitir um conteúdo (que não corresponde a transmitir uma
cartilha, um programa marxista), mas, principalmente, reformular uma linguagem cênica para
apresentar os conflitos de maneira dialética. Trata-se, portanto, de um trabalho de apuro
formal, de linguagem, em função de objetivos didáticos e críticos.
4
O “estranhamento” a que Brecht se refere é uma espécie de reação provocada no espectador
quando vê algo que poderia passar por natural como algo não natural, ou um acontecimento a
princípio cotidiano que ganha um aspecto “chamativo”, “incrível”, para que possa ser
“estranhado” em sua cotidianidade e, então, transformado.
5
Cf. “Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht” (BENJAMIN, 1994, p. 78-90).
28
acontecimentos” (BENJAMIN, 1994, p. 81). É na interrupção desses
acontecimentos encenados que Brecht potencializa a análise intelectual
desejável dos espectadores sobre as condições sociais. Isso se dá precisamente
porque a interrupção propicia o aparecimento dos Gestus6, que são os gestos
que revelam as relações sociais de determinada personagem – daí a famosa
afirmação categórica de Benjamin, de que “o teatro épico é gestual”
(BENJAMIN, 1994, p. 80), em oposição a um teatro prioritariamente textual.
Segundo Frederic Jameson (2009), a estética de Brecht está ligada à
sua concepção de ciência, que seria menos uma questão de conhecimento do
que de puro experimento: “a visão particular da ciência de Brecht foi seu meio
de anular a separação entre a atividade física e mental e a divisão do trabalho
(...) que procedia dela: volta a unir o conhecer o mundo e o transformá-lo”7
(JAMESON, 2009, p. 195). Há aqui dois pontos fundamentais do pensamento
brechtiano que serão apropriados pela Companhia do Latão. O primeiro deles
diz respeito à forma de produção, à divisão do trabalho: o Latão adota o que
hoje no teatro se convencionou chamar de processo colaborativo, uma forma
menos hierárquica, em que todos os componentes do grupo têm (ou devem
ter) consciência crítica de todo o processo (eliminando a separação entre
atividade física e mental). O segundo diz respeito à ênfase no transformável,
ligada à noção de historização e distanciamento.
A respeito dessa historização, Brecht afirma que

O ator deve interpretar os processos como processos históricos. Os


processos históricos são processos únicos, efêmeros e relacionados
com determinadas épocas. O comportamento das pessoas neles não é
simplesmente humano, monolítico, mas possui determinadas
características, devido ao passo da história ter aspectos superados e

6
Basicamente, os Gestus são atitudes concretas de determinado personagem que permitem
analisá-lo em sua relação social. A interrupção aqui é fundamental para que fique evidente o
gestus, pois ele pode traduzir um “hábito” social já incorporado, como a forma de manipular
determinado instrumento de trabalho, ou a maneira de um patrão tratar seu empregado. A
simples representação desse hábito seria como reforçá-lo. A interrupção permite a leitura e a
análise desse gestus que carrega consigo as relações sociais.
7
“La particular visión de la ciencia de Brecht fue su medio de anular la separación entre la
actividad física y mental y la división del trabajo (…) que precedía de ella: vuelve a poner juntos
el conocer el mundo y el cambiarlo”. Tradução própria.
29
superáveis e estar submetido à crítica a partir do ponto de vista das
épocas seguintes. (...) Os processos e pessoas da vida cotidiana são
para nós algo natural por estarmos acostumados. Seu distanciamento
serve para que nos chame a atenção. A técnica de sentir-se intrigado
por acontecimentos correntes, “naturais”, nunca postos em dúvida, foi
cuidadosamente criada pela ciência, e não há razão alguma para que
a arte não aproveite essa atitude tão infinitamente útil. 8 (BRECHT,
2004, p. 137-138)

Assim, estando distanciado dos acontecimentos e observando-os


como processos históricos, o espectador seria capaz de percebê-los como
transformáveis. Esse ponto nos parece fundamental para pensar a peça “O
mercado do gozo”. Estreado em 2003, no Teatro Cacilda Becker, em São Paulo,
o espetáculo apresenta como pano de fundo histórico a greve de operários em
São Paulo em 1917. A dramaturgia gira, basicamente, em torno de cinco
personagens: Burgó, dono de uma fábrica de tecidos, que é o sujeito que
possui o capital e ao qual todos os outros personagens, por isso, se submetem;
Bubu, um cáften; três mulheres/prostitutas – Rosa Bebé, Cafifa e Getúlia, cada
uma com sua ambição. No enredo da peça, há uma discussão clara acerca da
mercantilização do corpo e da alienação do sujeito no sistema. Além disso, a
peça traz uma relação com os movimentos grevistas de 19179, com a produção
cinematográfica, que estava crescendo no início do século XX, e com a

8
“Los procesos históricos son procesos únicos, efímeros y relacionados con determinadas
épocas. El comportamiento de las personas en ellos no es simplemente humano, monolítico,
sino que posee determinadas características, debido al paso de la historia tiene aspectos
superados e superables y está sometido a la crítica desde el punto de vista de las épocas
siguientes. (…) Los procesos y personas de la vida cotidiana, del entorno inmediato, son para
nosotros algo natural por acostumbrado. Su distanciamiento sirve para que nos llame la
atención. La técnica de sentirse intrigado por procesos corrientes, ‘naturales’, nunca puestos en
duda, ha sido cuidadosamente criado por la ciencia, y no hay razón alguna para que el arte no
aproveche esta actitud tan infinitamente útil.” Tradução própria.
9
Bóris Fausto (1977, p. 192) afirma que “julho de 1917 assumiu na memória social o sentido
de um ato simbólico e único. Símbolo de uma mobilização de massas impetuosa, das
virtualidades revolucionárias da classe operária, de organizações sociais representativas, não
contaminadas pela infecção burocrática”. A greve geral de 1917, deflagrada sobretudo no setor
têxtil em São Paulo, contou com a paralisação do operariado de diversas fábricas e setores.
Essa greve, fortemente influenciada pelo ideário anarquista e anarco-sindicalista, que primava
pela ação espontânea dos trabalhadores, foi duramente reprimida pelo estado oligárquico, a
começar pelo assassinato do anarquista José Martinez, que protestava na porta da fábrica
Mariângela. Seu enterro levou milhares de operários às ruas, e deu ainda mais fôlego para a
deflagração da greve geral.
30
consequente mercantilização da imagem, que é ainda mais clara e esmagadora
nos dias atuais.
Podemos pensar que essa distância histórica – o fato de a peça se
passar em 1917 – já é um mecanismo de distanciamento e de historização dos
acontecimentos. Uma vez que eles já parecem distantes no tempo, é possível
lançar um outro olhar e uma nova leitura sobre eles, compará-los com a
realidade atual, e, além disso, percebê-los como modificáveis ao longo da
história (se algo que acontecia de tal forma naquela época e parecia insolúvel
hoje já é diferente, o que está dado hoje também pode ser modificado).
Na peça “O Mercado do Gozo”, esse distanciamento temporal está
presente sobretudo nos “intermezzos de agit prop”, que são, aliás, o que há de
mais claramente “político” na peça, no sentido tradicional do termo. O primeiro
intermezzo acontece na cena 6, “Intermezzo de agit prop: declaração de greve
geral”, e traz a seguinte rubrica: “Um coro de atores assiste à projeção de
imagens históricas da greve de 1917 em São Paulo. A cena é um corpo
estranho na narrativa. Não deve ser harmonizada ao conjunto. É como se
fizesse parte de um estudo preparatório que foi banido do roteiro do filme” (p.
220)10. São, portanto, imagens – reais, é válido lembrar – do passado, que
irrompem no presente da cena e estabelecem uma relação de tensão com o
plano narrativo ficcional.
Aqui podemos pensar nas ideias de Benjamin apresentadas no
famoso ensaio “Sobre o conceito da história” (1994):

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele


de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico
fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento
do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso.
(BENJAMIN, 1994, p.224-225)

10
As citações da peça serão apresentadas apenas com o número de página. A referência é
sempre ALBERGARIA, Helena; CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. “Mercado do Gozo”.
In CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio. Companhia do Latão – 7 peças. São Paulo:
Cosac&Naify, 2008.
31
Benjamin afirma essa possibilidade de lampejos e irrupções do
passado no presente, em detrimento de uma falsa ideia de um “continuum da
história” (BENJAMIN, 1994, p. 230) rumo ao progresso. E seria justamente essa
possibilidade que permitiria uma esperança em relação ao presente, já que o
materialista histórico seria capaz de fixar – pelo trabalho da memória – um
momento decisivo na história, em que ela poderia – e pode, enquanto
esperança do presente – tomar novos rumos. Benjamin, quando escreve sobre
Brecht, aponta para uma proximidade entre o teatro do dramaturgo alemão e
sua noção crítica da história, por exemplo ao afirmar: “Quando o fluxo real da
vida é represado, imobilizando-se, essa interrupção é vivida como se fosse um
refluxo: o assombro é esse refluxo. O objeto mais autêntico desse assombro é
a dialética em estado de repouso. O assombro é o rochedo do qual
contemplamos a torrente das coisas (...).” (BENJAMIN, 1994, p. 89-90). Essa
“dialética em estado de repouso” é que nos permitiria vislumbrar as forças
contraditórias.
Trata-se, pois, no caso de Brecht e da Companhia do Latão, de uma
visão dramatúrgica que rompe com o fluxo contínuo da narrativa, e permite
irrupções, citações e mesclas temporais, de forma a possibilitar um olhar crítico
sobre a história e um olhar historizado sobre os fatos presentes. Os intermezzos
de cunho histórico aparecem em “Mercado do Gozo” como “um corpo estranho
na narrativa”, e criam uma tensão em relação às demais cenas. As declarações
dos grevistas servirão para ressignificar as relações entre Burgó, Bubu e as
prostitutas, por exemplo, que são também relações de trabalho e pautadas pelo
capital, e para evidenciar a força do coletivo, presente nas falas dos coros de
grevistas. Além disso, embora o caráter histórico dessa cena seja bem marcado,
e termos como “anarquistas” ou “operários” nos pareçam datados, há
declarações que podem muito bem servir para a atualidade, como o seguinte
trecho, quando já está finalizada a greve e as reivindicações dos trabalhadores
são – ao menos parcialmente – atendidas (condições que vigoram ainda hoje):
“CAFIFA [cita] ‘Salários em dia, as criancinhas longe dos teares, jornada inglesa
de oito horas... sadias.’ / VOZ OPERÁRIA Para que a riqueza não seja jamais
32
compartilhada. Para que os interesses de classe nunca se organizem. Para que
continue morto o direito ao confronto.” (p. 254). Essas falas, durante a
comemoração do fim da greve, podem muito bem se referir ao estado de
conformismo que impera atualmente, em que as formas de trabalho parecem
“mais justas”.
A historização, portanto, é um elemento de distanciamento para que,
a partir daquele contexto histórico – e da irrupção de fotos de um contexto
real, na peça –, sejam pensadas as relações estabelecidas pela ficção, e estas
em relação ao tempo presente e ao contexto não ficcional. E, se algumas
questões relativas ao anarquismo, à classe operária e à ambientação parecem
ser datadas – embora possam estabelecer uma relação com a atualidade –,
outras nos parecem extremamente atuais, como a ideia da mercantilização da
imagem, que tomará corpo ao longo da peça.
A primeira cena de “Mercado do Gozo” apresenta o seguinte título:
“Prólogo na porta do teatro. Julho de 1917. Em frente à Fábrica de Tecidos
Burgó, o jovem herdeiro contempla gente de aparência ordeira.”11 (p.208). Essa
cena traz uma dupla ambientação que perpassará toda a peça: há o cenário
pelo qual as personagens transitarão (a fábrica, o Opiário, etc); e há, para além
disso, uma ambientação cinematográfica, como se tudo aquilo que as
personagens e o público vivessem fosse uma filmagem para o cinema12. Nesse
contexto, o público é tratado tanto como essa “gente de aparência ordeira” que
aparece no título da cena, que está entrando na fábrica do jovem herdeiro
Burgó, quanto como figuração do filme. Em ambos os casos, lhe é subtraído o
papel de sujeito da história, ou seja, ele é incluído na ficção, mas não pode ter
participação direta nela. Poderíamos nos perguntar em que isso diferenciaria,
então, de qualquer peça com “quarta parede” que trata o espectador como
mero contemplador do drama. A diferença está na crítica que é explicitada na

11
Todas as cenas da peça recebem títulos mais ou menos explicativos ou sintéticos da ideia da
cena. Falaremos mais desse recurso adiante.
12
A maior parte das cenas da peça se passará nos cenários da ficção das personagens; em
alguns momentos pontuais, a estrutura cinematográfica reaparecerá e lembrará o espectador
dessa dupla ficção, impedindo que ele se envolva completamente e inconscientemente com o
que está sendo representado.
33
peça do Latão. Ainda na primeira cena, o personagem do Ensaiador tem a
seguinte fala, direcionada à plateia:

ENSAIADOR [Num megafone, ao público, ligeiramente agressivo]


Atenção, figuração, para os quatro mandamentos do figurante. Um:
jamais olhem para a câmera. Dois: nunca se dirijam ao elenco
protagonista. Três: permaneçam em pé para não amassar o figurino.
Quatro: o processo só pode ser interrompido em caso de morte.
Agora, me acompanhem (p. 209).

Essa fala dirigida ao espectador, num tom “ligeiramente agressivo”,


causa um estranhamento13 na plateia. Primeiro, o público é incluído na ficção,
rompendo assim a “quarta parede”; depois, ao ter, paradoxalmente, o seu
papel assumidamente delimitado, ele pode se questionar acerca desse papel
passivo diante da ficção. Dessa forma, como é o objetivo no teatro épico, a
aceitação ou a recusa de qualquer elemento, nesse caso do lugar do
espectador, se dá no âmbito da escolha consciente, não do inconsciente
(BRECHT, 2005, p. 75).
A passividade retratada na peça é atribuída não apenas ao
espectador e aos papéis ficcionais que lhe são sobrepostos – figurante,
operário. Burgó também é o sujeito que aceita passivamente sua condição no
sistema em que está envolvido, ainda que consiga ver as injustiças e
inumanidades promovidas por esse sistema. Após se angustiar com algumas
cenas de crueldade da fábrica (as mulheres terem que colocar a mão na soda
cáustica, por exemplo), Burgó faz o seguinte comentário: “Produza o que
quiser. E me mande o dinheiro. Vou descansar uns dias. [Ao público, num tom
diferente da personagem] Sinto-me como um caramujo, preso numa casca que
eu próprio não construí” (p. 210). Aparece aí, pela primeira vez na peça, uma
das técnicas mais conhecidas e difundidas do distanciamento, em que o ator
“desmonta” a personagem para fazer um comentário crítico à plateia. Esse

13
Aqui, o estranhamento pode ser entendido pelo fato de uma situação aparentemente
“natural”, em que a figuração recebe instruções, ser dirigida para o espectador e de forma
agressiva, o que provoca um distanciamento (o espectador no teatro normalmente não é
tratado dessa maneira) e uma possibilidade de questionamento daquela situação, que passa a
soar “estranha”.
34
efeito de distanciamento, além de não permitir uma identificação total do
espectador com as personagens, permite mostrar as contradições destes.
É desse lugar de passividade, tanto frente ao drama quanto frente
ao sistema capitalista, que a Companhia do Latão busca tirar o espectador, pois
o grupo acredita que a arte tem um papel fundamental frente a esse sistema
que coíbe as possibilidades da utopia, de um outro sistema possível, e que
mantém o conformismo justamente a partir da ideia de que há um mecanismo
maior em funcionamento e que o sujeito individual é impotente frente a ele
(como a ideia do caramujo presente na fala).
A linguagem cinematográfica é um elemento fundamental da peça
“O Mercado do Gozo”. Como já dissemos, há o tempo todo uma espécie de
“segunda camada ficcional”, em que, para além do espaço de encenação
teatral, há uma ambientação cinematográfica. Os efeitos dessa ambientação
para a dramaturgia da peça são diversos. A cena 4, por exemplo, já inicia com
uma estrutura cinematográfica, pois um narrador anuncia o título da seguinte
forma, semelhante a um roteiro de filmagem: “Cena 4, cemitério, noite. A
prostituta ocasional Getúlia comercia seu talento”14. Na primeira versão da
cena, Getúlia leva um cliente ao cemitério, oferece para se deitarem sobre uma
tumba, o cliente lê o nome dela escrito na lápide e recusa-se a dar continuidade
ao programa. Na segunda versão, após os atores se reposicionarem “como se
atendessem a um comando externo” (p. 216), a relação se inverte, e é Getúlia
que está temerária de fazer o programa naquele local. Entre as duas versões,
não há uma “mais verdadeira”, ambas fazem parte de uma construção ficcional,
embora a segunda apresente uma dramaticidade intensificada pela trilha
sonora, pela iluminação mais baixa, e pela vitimização de Getúlia. Essa tensão
dialética entre duas versões opostas não se resolve em cena. Ela é colocada
diante do espectador para que ele possa analisar o caráter relativo e
manipulável dos acontecimentos e, principalmente, da ficção. Não há,

14
O anúncio do título também é um recurso utilizado em outras cenas. Cf. cenas 8 e 12. Sobre
esse recurso de anunciar ou projetar o título em cena, Brecht (2005, p. 40) afirma que “são um
impulso inicial para conferir ao teatro uma feição literária”, que por sua vez “possibilita ao
teatro aproximar-se das outras instituições da atividade intelectual”.
35
tampouco, uma projeção de resolução para fora da cena, como propõe uma
dialética brechtiana. Nas duas versões, o que há é uma relação comercial, em
que o que está em jogo é o corpo de Getúlia, uma prostituta “ocasional”, e não
“profissional” como as outras da peça, alguém que, nesse ponto, ainda não
está totalmente transformada em mercadoria. A escolha por uma cena ou por
outra, pela Getúlia que se comercializa a despeito do lugar macabro e das
apelações sentimentais, ou que cede a esses apelos e se humaniza, não é feita
pelo texto do Latão. Aqui está colocada apenas a tensão.
O que há, na verdade, é uma politização do olhar sobre a atualidade,
pelo tratamento historizado de questões atuais – a indústria cultural, mais
especificamente –, uma relativização de pontos de vista, na medida em que não
há verdades absolutas sendo transmitidas, mas cenas que se confrontam, na
tentativa de desnaturalizar a visão do espectador e colocá-lo em movimento e
em constante questionamento da realidade. Uma vez que o espectador é
confrontado com o debate que se instaura em cena (o debate de pontos de
vista: das personagens, da companhia), que não se resolve nem aponta uma
saída clara, ele é levado a construir seu próprio ponto de vista e emitir também
sua posição sobre a realidade. É sobre isso que falava Benjamin no ensaio “O
autor como produtor” (1994), quando afirmava que o teatro épico de Brecht
possibilitava que o espectador e o autor também se tornassem colaboradores
no processo de produção: por meio da tomada de posição. É a esse tipo debate
e raciocínio crítico que Brecht quer levar o seu espectador. E é esse debate que
a Companhia do Latão radicaliza ao buscar atualizar o método brechtiano e
evidenciar contradições de nossa própria época e país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e
historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. Trad. Sergio Paulo Rouanet.
256p.

BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro. Barcelona: Alba Editorial, 2004. 345p.
____. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2005. 210p.
36
CARVALHO, Sérgio de; MARCIANO, Márcio; ALBERGARIA, Helena. “O mercado
do Gozo”. In: Companhia do Latão 7 peças. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p.
207-233.

FAUSTO, Bóris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). Rio de Janeiro:


Difel, 1977. 183p.

JAMESON, Frederic. O método Brecht. Trad. Maria Sílvia Betti. Petrópolis:


Vozes, 1999. 240p.

____. El debate entre realismo y modernismo. Reflexiones para concluir. In


Youkali – Revista Crítica de las artes y el pensamiento, nº7, junho de 2009.
Disponível em < http://www.youkali.net/index7.htm>.
out de 1995.

37
MÉTODO SOCIOLÓGICO

ALEGORIA E REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NA OBRA CABEÇA DE


PAPEL, DE PAULO FRANCIS
Bárbara Del Rio Araújo1
(CEFET/MG)

RESUMO: Esse trabalho parte de um posicionamento crítico de David Arrigucci


Jr, que problematiza a construção do realismo nos romances alegóricos da
década de 70, para entender a coerência interna específica da narrativa de
Cabeça de Papel. A intenção é analisar, tendo em vista o conceito de alegoria,
como a realidade se engendra na fatura romanesca, dramatizando as relações
históricas e tornando-se presente como dispositivo literário na obra.

PALAVRAS-CHAVE: Realismo; Alegoria; Cabeça de Papel.

A FORTUNA CRÍTICA E O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO ALEGÓRICA

Na conferência “Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente”,


publicada em Outros Achados e Perdidos, David Arrigucci Jr. analisa a ficção
nacional da década 70 e afirma:

Da ficção de 70 para cá apareceu uma tendência muito forte, um


desejo muito forte de voltar à literatura mimética, de fazer uma
literatura próxima do realismo, quer dizer, que leve em conta a
verossimilhança realista. (...) Isso se colocou através de uma espécie
de neonaturalismo, de neorealismo que apareceu agora e que está
ligado às formas de representação do jornal. (ARRIGUCCI,1999, p.77)

Ainda que reconheça o crescimento do volume de publicações


romanescas nesse período, comparando até mesmo com a produção dos anos
30 e 40, o estudioso deixa evidente a redução do nível qualitativo da
representação. Para ele, em relação ao tratamento da realidade, já houve
transfigurações mais profundas, muito mais radicais do ponto de vista artístico
do que essas atuais. Ao comentar alguns romances, Arrigucci reflete sobre a
incidência da técnica jornalística nas narrativas e discute sobre a tendência que
esses textos ficcionais têm para naufragar na singularidade, isto é, “buscar o

1
Doutoranda em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em estudos literários da
UFMG. Professora efetiva do CEFET/MG.
38
inessencial, atribuindo sentido à tudo e, portanto, à nada”. Intrigado com a
composição de algumas obras, o crítico questiona como a representação de um
fato singular pode aludir a uma situação geral, comentando: “o autor dessas
narrativas escolhe um determinado caso típico, dentro da situação da realidade
brasileira, e tenta aludir com isso a uma totalidade de coisas que não aquele
fato específico. Então, é um romance alegórico, baseado na reportagem”.
(ARRIGUCCI, 1999, p.78)
Wilson Martins, no texto “A situação do romance”, já alertava para a
redução da qualidade das obras produzidas durante o regime militar. Segundo
o crítico,foi frustrada a expectativa de que havia muita coisa inovadora
escondida em meio à repressão. O que se notou foi a produção romanesca
“incerta entre o realismo e a fuga alegórica, entre a observação jornalística e os
exercícios de estilo, entre a tentação da gratuidade estética e a febre
devoradora da participação política”. (MARTINS, 1995, p.239)
Diante dessa perspectiva, a obra Cabeça de Papel é analisada como uma
narrativa que se constrói de maneira complexa que engendra um projeto
confessional ao mesmo tempo em que embarca na descrição da anatomia
social. Utilizando a imitação da montagem jornalística e uma linguagem
imediata e bárbara, que imita uma escrita à jato, aparentemente mal
construída, a obra é percebida como agregadora de um conteúdo reflexivo
muito forte:

A intenção disso aí é uma intenção curiosa. Porque pretende


representar tudo que aconteceu no Brasil nesses últimos tempos
através da análise da classe dominante, desses 0,3 por cento. (...) E o
romance acaba sendo abstrato e não apanhando de fato a realidade
concreta. Escapa. (ARRIGUCCI, 1999, p.80)

Pelo fato da perspectiva narrativa se centrar em um extrato social


específico, tentando, através da visão de um intelectual, representar a
totalidade histórica brasileira, os críticos qualificam a obra como um romance
alegórico, que não consegue explicitar os conflitos da sociedade real. Trata-se
de uma história que não passa pelo povo:

39
No Paulo Francis há a mesma fragmentação (...) Ele acumula coisas e
pretende representar uma totalidade através de uma fragmentação.
Só que o que ele pega como abertura para o sentido geral são os 0,3
por cento da classe dominante, e como ele acha que isso é que
decide, que decidiu tudo aqui, certamente é isso que dá história. E
quando vai ver não é. (ARRIGUCCI, 1999, p.81)

Arrigucci, assim como Wilson Martins, reclama ainda da pouca


profundidade na construção dos personagens e diz que todos são sequestrados
pela consciência absoluta do narrador, Hugo Mann, que nunca cede a voz e a
tudo deglute de forma absoluta. Deste modo, deixa-se claro que a narrativa
não configura personagens reais e complexas, pois não consegue escapar a
“abstração inevitável da construção alegórica”:

No caso de Hugo Mann é muito visível: a ideia que ele tem do povo é
uma ideia inteiramente sem contradição. (...) Aparentemente é uma
neutralidade, é uma passividade completa. (...) A visão que ele tem é
uma visão sem contradições. E, portanto, a-histórica. (ARRIGUCCI,
1999, p.87)

A grande questão que chama atenção da crítica, em especial de


Arrigucci, é se existe uma incompatibilidade entre a alegoria e o realismo. O
crítico questiona se o romance, cuja preensão é ser realista, pode se pautar
pela lógica abstrata da alegoria:

No impulso realista, o procedimento alegórico é problemático. O que


eu noto é o seguinte: se eu construo de acordo com a ficção realista,
eu tenho dificuldades para tratar a forma alegórica (...) Você vê no
Paulo Francis: parte-se de particularidades..Então, você não tem o
realismo, aí. (ARRIGUCCI, 1999, p.94)

A concepção alegórica na estrutura realista, para Arrigucci, evidencia


uma tentativa malograda de romance, uma vez que a vontade de representar o
que foi e o que tem sido a realidade a partir de um fragmento (social) rompe
com a verossimilhança, obtendo uma representação problemática e falseada.
Esse trabalho, motivado por essas afirmativas, pretende discutir e verificar se a
alegoria consegue ou não se sustentar como forma. Revisando essa discussão,

40
acreditamos ser possível entender como a fatura assenta a condição histórica
na obra Cabeça de Papel, de Paulo Francis.

CABEÇA DE PAPEL E A SITUAÇÃO ALEGÓRICA

Franz Paul Tannin da Matta Heilborn, ou Paulo Francis, é autor de 13


livros publicados, sendo que o florescimento de sua arte como romancista se dá
em torno de duas obras. Cabeça de Papel (1977) e Cabeça de Negro (1979)
fariam parte de uma trilogia, caso o último livro, denominado Cabeça, fosse
publicado. Esses dois livros fazem parte de um projeto, que já dá notícia de
uma vertente ficcional, que o escritor se enveredava em meio aos seus escritos
políticos e jornalísticos, chamando atenção de toda critica literária pelo
procedimento adotado. Polemista, o neto de alemães e franceses buscou
através dessas obras um painel dos anos de chumbo da ditadura brasileira,
representando, na oposição entre forças e classes de interesses, a luta do
homem oprimido, a sociedade capitalista, a espoliação do povo e os dramas
coletivos frente a uma política ditatorial.
Especificamente em torno da obra Cabeça de Papel, há uma posição
unânime da fortuna crítica - inclui-se aqui nomes como Alceu Amoroso Lima,
Franklin Oliveira, José Onofre, além dos já citados Wilson Martins e David
Arrigucci – em considerar a narrativa como uma mistura de confissão, que
quase invade a perspectiva autobiográfica, e uma vontade imensa de analisar
as relações sociais. Nesse sentido, esses estudiosos percebem que tudo é
monopolizado na figura do narrador e nesse ponto todos acreditam esta seria
uma falha da composição. Esse narrador, que no enredo faz resenhas
cinematográficas para um jornal, relata todos os acontecimentos e até mesmo
as intervenções dos outros personagens. Isto é, num discurso indireto
predominante, o narrador fala pelo outro, tematizando-o e destituindo esse
outro de uma consciência plena e ativa (BAKHTIN,1981, p.40). Hugo Mann,
narrador absoluto, parece se desdobrar em outros personagens como Hesse, o
diretor do jornal:
41
Sou crítico de cinema, gosto das legendas, o único humor puro,
chalaça, que resta na praça, me pagam pelo que acho, é o que eu
chamaria minha atividade capitalista, não darei explicações. (...) Não
quero discutir porque estou assim life is awful but don't say it, basta ir
ao dicionário. Os melhores me acham sob sofrimento profundo &
inexpresso, de que têm certeza conhecem as causas, como o velho
A., que, aos oitenta e um anos, acredita em Deus, liberdade e
progresso para as massas, que chamaria povo, identificando a origem
fascista da palavra "massas", o velho A. até escreve a respeito, e me
olha caridoso, silenciosamente se solidarizando com meu chagrin, na
língua step dele. Olho-o e me lembro que Hesse só o conserva porque
pinga um molho liberal no pasquim reacionário que Hesse edita. .
Ainda dá para ver Ipanema às seis da manhã. Moro no Leblon.
Sabemos o que tínhamos de fazer e não fizemos. Órfãos da
tempestade. Talvez nem isso. Falta-nos gravitas. Não escolhemos ou
propusemos. Deixamo-nos dispor e depor. Vivemos entre segundos.
Não contamos. (FRANCIS, 1977, p.13)

Percebe-se que além de elencar os temas, ceder opiniões e aglutinar


críticas, esse narrador reflete inteiramente sobre acontecimentos que
estruturarão a narrativa. O que se nota, além da esquematização e clarividência
prejudiciais que faz desse narrador uma instância monopolizadora, é que se
trata de um enredo que apresentará uma missão falida, algo que não deu
certo.
Dividido em oito capítulos, o enredo da obra se passa no Rio de Janeiro,
entre os anos de 1944 a 1976. O grande acontecimento narrado é a amizade
entre Mann e Hesse e uma polêmica sobre a traição política entre eles. Disposto
em oito partes, esse enredo estabelece dois marcos principais: o primeiro
capítulo “A manhã seguinte -1976” e o último, denominado “Coda”. Os demais
capítulos são digressões sobre os personagens e acontecimentos que cercam
esses momentos decisivos.
No primeiro capítulo, temos uma ligação de Vitor para Mann, depois de
16 anos afastados e um ter salvado a vida do outro. Vitor, fornecedor de
cocaína que se integra aos negócios estrangeiros de Hesse, é então
apresentado na narração. Junto dele está um amálgama de assuntos, como por
exemplo, Raquel, a namorada de Mann:

42
Chegou de maiô e toalha enrolada e chaves do VW na mão, o easy
rider dela e minha tantalizante limousine com chofer, "às ordens do
patrão", depois de quarar na praia depois da Nacional, "eu não me
sentiria bem na PUC". Já que fumigaram as faculdades de sociologia,
aprende a literatura das vacas do Nhonhô ou do cumpadre Ermelindo,
ou a classe sem consciência de si própria de Graciliano; pré-1968;
hoje, Graciliano virou modelo estruturalista; "deixa a desejar". Raquel
estuda sob algum nordestino Casa Tavares Caporal Douradinho que
talvez já tenha atingido o Oliu & filtro, ou sob algum mineiro
maneiroso, Proust de bolso, um ou outro entupidos de Barthes ao
último obscurantista sintético de Paris, ambos ensinando as crianças
que é marca de superioridade negar o real e concreto, o conceituado
e dinâmico, um conselho prudente, se fosse dado honestamente; não
é; pois clareza e movimento não cabem no nosso sarcófago,
inquietam e irritam as múmias locadoras, cuja maldição é
incontrastável. Serão muito diferentes, porém, dos "nossos", que
insistem na existência dessa realidade? Se os modelos divergem, a
obscuridade de linguagem é idêntica. No fundo, se dirigem apenas
iniciados, a eles próprios, aos portadores do anel de doutor, aos
presentes e futuros inquilinos da academia brasileira de túmulo grátis,
na vida e na morte'. (...) "Espectros. Nunca falei a você de um Victor
quando eu era delinqüente juvenil, já? Ele vem daqui a pouco. Você
me espera lá em cima ou tem alguma coisa pra fazer?" (FRANCIS,
1977, p.14-15)

Nessa nebulosa mistura, nota-se um tom rancoroso e de ataque à falta


de consciência das classes dispostas na organização social. Esse tom
acompanha o narrador durante todo o livro, sobretudo no capítulo que se
segue, “Homem de Visão – 1965”, onde em meio a digressões, Mann diz sobe a
ambivalência política de Hesse:

A Esquerda caiu sobre Hesse. No Cosme Velho, a maioria dos oficiais


já o reconhecia um "fino intelecto", e o sogro apresentou-o a
empresários americanos. Gringos discretos e até humildes, pois
admitiam que capital e know-how eram insuficientes sem o elemento
humano. "Os brasileiros sabem o que é melhor para os brasileiros." E
pediram aos revolucionários, esperando não importuná-los, que
indicassem nomes de colegas fora da ativa ou "em vias de", que
quisessem auxiliá-los, trabalhando na iniciativa privada na grande
arrancada pela recuperação nacional. (...) Hesse insistia na tecla da
revolução capitalista liberal (...) Aceitara uma coluna duas vezes por
semana no jornal que agora dirigia a vinte e cinco mil cruzeiros na
carteira e trinta e cinco mil sob o balcão. Não procurava ninguém fora
da família, o sogro e ele tornaram-se íntimos (...) Semanas depois,
Hesse foi convidado à primeira de uma série de conferências na
Escola Superior de Guerra e em federações industriais. (FRANCIS,
1977, p.27-28)

43
Aqui, Mann revela a facilidade que Hesse tem em si imiscuir entre os
diversos setores sociais. Além disso, mostra a fidelização partidária do editor
chefe como amorfa, capaz de estabelecer ligações tanto com os militares
quanto com os revolucionários. O narrador evidencia claramente Hesse
renegando uma postura radical comunista, a qual o projetava em favor de
novas relações, como por exemplo, com o sogro capitalista, que era antes
rejeitada. Essas mudanças de preferências progridem:

Muito bem, e os madeleines do esquerdismo? Se dói, por que me


cortaram? Ou eu os cortei? Continuam indo ao jornal, pedindo
matérias promocionais aos meus editores, adulando-os, e sabendo
que não sai uma linha sem autorização minha. Logo, é a mim que
adulam, de dia, e à noite me esculhambam. Não só a mim, claro, ao
Sadat, Brito, Blochs, Civitas, Marinhos, aos Mesquitas. O feudalismo
dos Mesquitas. Meu caro, os Mesquitas converteram o esquerdismo
bilubilu do teatro paulista num acontecimento nacional. Você conhece
algum diretor de cinema novo ou canário contestatório que não tenha
se servido de Manchete ou da Abril? (FRANCIS, 1977, p.95)

No trecho citado, Mann denuncia, sob a fala de Hesse, a estrutura da


intelectualidade, que se supunha parte de um movimento contestatório, aliada
ao conservadorismo do jornal. Deste modo, o leitor se surpreende com a
tenuidade dos posicionamentos políticos. Isso se torna ainda mais enfático no
último capítulo, quando as personalidades dos personagens são colocadas em
dúvida.
Em “Coda”, noticia-se a morte de Vitor e Hesse causada por um
acidente automobilístico. A narrativa, agora um pouco destoante do tom
confessional e analítico, apresenta em três páginas sucintas a identidade de
Hesse como um espião a serviço da URSS em luta contra a agência de
inteligência norte-americana, CIA. Sem mais explicações, o final é dado para o
leitor em tom de surpresa. Tal desfecho é avaliado pela crítica como mal
elaborado por destoar do modo de elaboração da narração:

Paul Hesse ser um espião da Cia, e tal, é um esquema meio puxado


pelos cabelos, numa certa altura. O final do livro é extremamente
abrupto, e não combina bem com a distensão que tem que ter o
romance de análise, a confissão analítica. (ARRIGUCCI, 1999, p.79)

44
Sem eximir os problemas narrativos, o que se nota é a busca por mostrar
certa ambivalência e alternância de posições políticas, insistindo, nesse aspecto,
em um jogo de esconder/revelar. Atento a essas mudanças, analisemos mais
de perto o narrador. Ele, assim como Hesse, deixa bem claro a classe social a
que pertence o seu ponto de vista:

Nós aqui, neste recinto, pertencemos aos 0,3% de que te falei.


Centenas de políticos, intelectuais, jornalistas, o máximo em
insignificância. Ninguém que te interesse nesta cidade faz nada exceto
festejar o próprio marasmo, o que é uma atitude de classe, justíssima,
porque a gente que você precisa conhecer é 0,3% da população, a
que o resto serve, ou mendiga. E logo mais, os senhores da província
se congregam, no que se convencionou chamar noite de autógrafos,
de uma subliterata, Odaléia, jornalista que adula essa malta e cobra
vendendo livros que ninguém lê. Figuras representativas dos 0,3%
comparecerão en masse. (FRANCIS, 1977, p.152)

Arrigucci é decisivo em relação à alegoria no engenho romanesco,


mostrando a singularidade do processo, em um foco narrativo particular que
busca representar um momento histórico nacional. Contudo, vejamos mais
sobre esse foco narrativo, que revela Hugo Mann discutindo sobre a tendência
ao aburguesamento da sociedade, independentemente das classes sociais
originárias. Revendo sua condição humilde, ele declara que o mundo está
fadado ao pensamento burguês:

Nosso mundo é insano e corrupto, não importa o ângulo de visão, e


não pode ser analisado ou compreendido, só experimentado,
fragmentariamente, no varejo de nossas sensações e emoções. Os
modelos sociológicos, o babalaô individual, etc. não alteram a certeza
nervosa, central, de que vivemos um apocalipse. Burguês, claro, mas
que somos nós, nada gestamos de diferente. E aqui a lógica serve ao
irracionalismo. O burguês é senhor de "algo mais", de que nenhuma
classe condenada dispôs. (FRANCIS, 1977, p.31)

Evidenciando o seu lado moralista, elitista-burguês e até mesmo


capitalista, o narrador, reconhecido pelo seu esquerdismo radical, se mostra
ambivalente. Deste modo, o que se vê é a ausência de um posicionamento
político definido:

45
Meu impasse é claro. Moralmente, rejeito a supremacia de uma classe
montada em sacrifícios humanos que causariam indigestão a Moloch,
o vasto GULAG sem arame farpado (às vezes) que bestializa, exaure,
mata bilhões, relegando-os a frios relatórios da ONU, aqueles que nos
informam que quinhentos milhões de pessoas morrem de fome, a
qualquer hora do dia, trezentos e sessenta e cinco dias ao ano,(...) E,
no entanto, foi nos confortos dessa classe que eu e semelhantes
cultivamos a moralidade antagônica a nossos próprios "interesses".
Moralidade que não conseguimos converter em ação, sequer pelo
devagar e sempre das diversas modalidades de social-democracia.
(FRANCIS, 1977, p.101)

Analisando a postura de Mann ou de Hesse, percebemos que há uma


inconstância de posições em que um lado pode se tornar outro. Acima, deixa-se
evidente que, embora preso a uma classe elitista, revelam-se outras classes e a
totalidade histórica. Nota-se que as presilhas ideológicas ou de classe se
movem:

O que há de comum entre nós é que não nos interessamos o bastante


pelos outros para dependermos deles, vivemos nossas abstrações
particulares mais intensamente que qualquer contato humano. É o
nosso 'segredo’ que os outros vislumbram, sem entender direito, só
percebendo que os exclui, o que é correto. (FRANCIS, 1977, p.95).

Nesses matizes da narração de Mann, o leitor vai montando a lacuna e


percebe que elites e massas teriam comportamentos iguais. Melhor dizendo, as
elites aparentavam um raciocínio combativo das massas, mas permaneciam
burguesas; as massas, por sua vez, se comportavam de maneira aburguesada.
Nesse aspecto, podemos perceber que existe algo oculto, que através de uma
perspectiva alegórica e fragmentada acaba por inferir a totalidade e, sobretudo,
uma visão crítica dela. Ainda que exista um ponto de vista determinante, uma
visão particular como nos fala Arrigucci, vemos também perspectivas de
contradição, que nos levam a ver uma realidade menos parcial. Nesse caso, a
representação realista se impõe, uma vez que o arcabouço histórico se faz ali
presente por meio da contradição velada dessas classes sociais.
É percebido que Mann e Hesse centralizam em si a direita e a esquerda,
os arroubos moralistas burguês e as propostas revolucionárias das massas.
Uma dessas facetas aparece mais submersa, contudo a ambiguidade está ali,
ainda que velada. A narrativa mostra certa volubilidade e uma circularidade em
46
que os fatos são e não são o que parecem. Ao mesmo tempo em que a
realidade está fragmentada em uma visão elitista e parcial, a representação
consegue captar o todo, em um jogo de velar e desvelar. O grande lance é
perceber como o fragmento, o alegórico, consegue mostrar mais do que aquilo
que se pretende.

A ALEGORIA COMO FORMA DE REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE

Arrigucci Jr., quando se propõe em discutir o romance Cabeça de Papel,


deixa claro a fonte da noção de alegoria com que trabalha para expressar a
falta de realismo na obra:

A ideia central do Lukács, a respeito da alegoria, é de que ela


corresponde ainda a um impulso religioso na arte. (...) Na perspectiva
de Lukács, a volta à alegoria representa a volta àquele impulso
religioso. Só que na sociedade atual, este impulso não se preenche
por nenhuma religião institucionalizada. Ou seja, a alegoria moderna
corresponde a um conteúdo vazio, ela corresponde a uma posição
niilista, no fundo a um individualismo anárquico e niilista.
(ARRIGUCCI, 1999, p.93)

Partindo dos pressupostos do filósofo húngaro, explanados no quarto


volume de Estética, Arrigucci não viabiliza a representação da realidade pelo
viés alegórico. Lukács, por sua vez, desenvolve em seus escritos um raciocínio
desconfiado em relação alegoria como processo criativo, uma vez que, para ele,
a alegoria é uma forma decadente de expressão artística, onde se aniquilam os
planos permanecendo atemporalidade moderna subjetivista.
Tal concepção de alegoria nos parece diferente daquela trabalhada pelo
filósofo alemão Walter Benjamin. Em Origem do drama barroco alemão, o
estudioso conceitua a alegoria como sendo a revelação de uma verdade oculta.
Isto é, uma alegoria não representa as coisas tal como elas são, mas pretende
antes dar-nos uma versão de como foram ou podem ser. Nesse sentido, a
preocupação com a totalidade abrangente se dá de maneira indireta, ou seja,
essa aparece em contraponto ao fragmento: “A alegoria diz para

47
significar, r e v e l a , p o r t a n t o , a existência de um outro do que ela diz;
manifesta um enigma, uma figuração a ser decifrada”. (BENJAMIN,2011, p.173)
Assim, percebemos que a alegoria enfatiza o artifício usado, pois através
dele é que veremos, aos poucos e progressivamente, uma série de momentos
importantes para a interpretação. Diferentemente de uma compreensão
instantânea, o véu alegórico aos poucos desvela a unidade, já interrompida e
devassada. Os deslocamentos efetuados pela visão alegórica permitem que o
que foi excluído volte à tona, fazendo emergir o outro da história: “a alegoria
não está livre de uma dialética correspondente, e acalma contemplativa com
que ela mergulha no abismo entre o ser figural e a significação não tem nada
da autosuficiência indiferente” (BENJAMIN, 2011, p.176).
Assim, ainda na esfera particular, sobrepuja a realidade, já que esse
alegórico é também fenômeno da historicidade. Para Benjamin, a alegoria e o
fragmento são a história representada e dramatizada de forma sensível. O
filósofo alemão ainda diz que esse é o modo mais verossímil para expressar o
mundo capitalista, das mercadorias, já que ela oculta o valor de uso no seu
valor. (BENJAMIN, 2011, p. 189). Na mercadoria não se percebe o acesso
imediato aos fenômenos originários, que a compõe, por exemplo, o trabalho.
Nesse sentido, nota-se seu caráter fetichista, que esconde a sua realidade,
adquirindo vida autônoma, independente. Há de se decodificar esse viés
alegórico para entender, então, o processo totalizador, que é ambíguo.
Usando esse mesmo raciocínio é que se pode decodificar a realidade na
obra Cabeça de Papel, onde ela parece de maneira alegórica, centralizada em
um discurso pequeno burguês. Percebe-se que no interior desse discurso
proliferam vozes contrárias, manipuladas pelo narrador. Na consciência de
Mann se impõe uma ambiguidade que é comum a sua própria classe. Pois, se
por um lado, ele precisa ter sobre cada questão particular uma consciência
clara dos seus interesses; por outro, essa consciência clara não pode ser
estendida à totalidade: porque a dominação é exercida por uma minoria e com
o interesse voltado para si. O enfeitiçamento é provocado por uma relação
dialética que, pelo viés alegórico, representa por um lado o que foi alienado, e
48
por outro, o que sobrevive, sobrepondo-se ao que está alienado. O que se
percebe então é que a ambiguidade e a plurivalência de sentidos é o traço
essencial da alegoria (BENJAMIN, 2011, p.188).
O que se vê, portanto, é que a alegoria é uma forma de representação
que, embora partilhe de uma visão una, faz sentir outras tantas. Benjamin, ao
contrário de Lukács, mostrou que a fragmentação alegórica é produto de uma
mediação social e que seu conteúdo é essencialmente histórico, funcionando
como parte da lógica da sociedade burguesa historicamente representada.
(ADORNO, 1998, p. 179).

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49
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WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um. São Paulo: Cosac Naify,


2007.

50
A DECADÊNCIA COMO FORMA ROMANESCA DE O AMANUENSE
BELMIRO
Wagner F. Guimarães Júnior1

(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: Em O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, o motor que


estrutura toda a vida do narrador-protagonista Belmiro Borba é o processo
histórico de transição de um Brasil arcaico e aristocrático para um Brasil
capitalista e relativamente moderno; transição que tem como consequência a
decadência das grandes famílias aristocráticas rurais, possuidoras não só de
terras, como também de influência política. Segundo a perspectiva crítica aqui
adotada, essa tensão histórica é o que dá forma e substância ao narrador-
personagem e à sua consciência, bem como a todo o romance. Partindo desse
pressuposto e da ideia da homologia entre forma literária e processo social, a
presente comunicação investiga, por meio da análise da formalização da
consciência de Belmiro Borba, como o processo histórico da decadência
engendra a forma romanesca de O amanuense Belmiro – sendo “forma” aqui
entendida, segundo Roberto Schwarz, “como um princípio mediador que
organiza em profundidade os dados da ficção e os da realidade, sendo parte
dos dois planos”.
PALAVRAS-CHAVE: O amanuense Belmiro. Decadência. Forma literária e
processo social.

INTRODUÇÃO

Narrador-protagonista de O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos


Anjos, Belmiro Borba é filho da oligarquia rural decadente do interior de Minas
Gerais, que teve muitas posses e influência política. Quando jovem vai estudar
em Belo Horizonte e segue o caminho das letras, contrariando seu pai, para

1
Mestrando em Literatura Brasileira – Pós-Lit/UFMG.
51
quem deveria ser agrônomo ou agrimensor e permanecer em Vila Caraíbas,
cidade de origem dos Borba.
O livro dramatiza (em seu todo: memórias e presente da narração) o
período situado entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, que
corresponde ao processo de decadência do patriarcado rural brasileiro,
deflagrado pela modernização por que passava o país naquele momento.
Entretanto, seu foco é concentrado no passado-recente e no presente da
narração, que ocorrem entre o natal de 1934 e o pós-carnaval 1936.
Belmiro é um desadaptado aos novos tempos do Brasil. Em Belo
Horizonte, é um medíocre amanuense, na Seção do Fomento Animal, colocação
obtida por meio de um pistolão, vestígio de uma estreita relação entre
oligarquia e Estado, que ainda prevalece no país, apesar do processo de
modernização em curso. Insatisfeito com a mudança radical que representa a
vida na capital mineira decide escrever um livro de memórias, uma espécie de
fuga para o passado. Entretanto, a realidade acaba acentuando suas
contradições, revelando-se no jogo entre passado, presente e sonho;
movimento que leva Belmiro a buscar cada vez mais refúgio na tentativa de
afirmação de um tempo pretérito irrecuperável. Sua desadaptação não implica
no mero saudosismo em relação à sua infância em Vila Caraíbas, sua crise
resulta de um movimento histórico de desagregação de toda uma classe.
Belmiro sente falta daquele mundo inteiriço, em que as posses da família
garantiam sua integridade moral e financeira. Essa inteireza se perdeu em Belo
Horizonte, cidade relativamente moderna e já inserida na ordem capitalista do
início do século XX. Na capital mineira, Belmiro é apenas um burocrata,
arruinado financeiramente, classe média, que vive no bairro Prado, então
periferia da cidade.
Nesse sentido, o motor que estrutura toda a vida do narrador-
protagonista Belmiro Borba é o processo histórico de transição de um Brasil
arcaico e aristocrático para um Brasil capitalista e relativamente moderno;
transição que tem como consequência a decadência das grandes famílias
aristocráticas rurais, possuidoras não só de terras, como também de influência
52
política. Segundo a perspectiva crítica aqui adotada, essa tensão histórica é o
que dá forma e substância ao narrador-personagem e à sua consciência, bem
como a todo o romance.
Partindo desse pressuposto e da ideia da homologia entre forma literária
e processo social, a presente comunicação investiga, por meio da análise da
formalização da consciência de Belmiro Borba, como o processo histórico da
decadência engendra a forma romanesca de O amanuense Belmiro – sendo
“forma” aqui entendida, segundo Roberto Schwarz (1987), “como um princípio
mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e os da realidade,
sendo parte dos dois planos”.

QUESTÕES DE FORMA

Nesta parte, iremos nos utilizar do capítulo “E por que não pode ser
brasileira a forma do Realismo europeu?”, do livro A passagem do três ao um,
de Leopoldo Waizbort, para pontuar brevemente algumas questões relativas à
forma romanesca. O estudo trata especificamente a leitura de Roberto Schwarz
de três romances de Machado de Assis, mas é também um estudo da “forma
romanesca brasileira”, de maneira geral.
Waizbort se apoia em György Lukács para afirmar que “a compreensão
da forma exige a compreensão do processo social” (WAIZBORT, 2007, p. 37).
Dito de outro modo, no romance do século XIX, isso quer dizer
necessariamente a compreensão da relação entre forma romanesca e
desenvolvimento do capitalismo. Isso significa que nossa condição de país
dependente engendra certo romance e certo realismo, sempre, dialeticamente,
inscritos em um nexo global. A partir da ideia trotskiana do “desenvolvimento
desigual e combinado”, retrabalhada por Roberto Schwarz, Waizbort conclui:

(...) pode-se dizer que a forma do romance também passa pelos dois
momentos, da desigualdade – o processo do romance brasileiro não
se confunde com o processo do romance europeu, a forma machadiana
não se confunde, sem mais, com a forma do romance europeu, nem o
processo de formação do romance brasileiro segue o ritmo e as etapas
53
do processo europeu – e da combinação – o desenvolvimento da
forma romance precisa ser considerado em sua totalidade, a forma
machadiana se faz forma em diálogo com a forma da matriz e com a
história das formas na Europa e levando-as em consideração, sendo
nesse processo forma local de um processo global. (WAIZBORT, 2007,
p. 38).

Nesse sentido, a forma do romance brasileiro pressupõe as contradições


específicas da nossa sociedade, “retratadas” por ele. Schwarz é enfático em
dizer que “passando a pressuposto sociológico uma parte das condições
históricas originais reaparece, com sua mesma lógica, mas agora no plano da
ficção e como resultado formal. Nesse sentido, formas são o abstrato de
relações sociais determinadas” (SCHWARZ apud WAIZBORT, 2007, p. 39). É
nesse ponto que o crítico explica o que entende por “forma”:

Esta é entendida como um princípio mediador que organiza em


profundidade os dados da ficção e os da realidade, sendo parte dos
dois planos. Sem descartar o aspecto inventivo, que existe, há aqui
uma presença da realidade em sentido forte (...). Noutras palavras,
antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico
estuda foi produzida pelo processo social, mesmo que ninguém saiba
dela. Trata-se de uma teoria enfática do realismo literário e da
realidade social enquanto formada. (SCHWARZ apud WAIZBORT, 2007,
p. 39).

Posteriormente, Waizbort explica que nossa situação dependente de país


colonizado engendra uma forma social, a partir da qual o romancista cria sua
forma literária. Quer dizer, a forma social é transfigurada para o romance,
tornando-se, assim, forma literária, fator interno.
Feitas essas breves mas importantes considerações, passemos à análise
do romance.

A FORMALIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA DE BELMIRO BORBA

A consciência de Belmiro Borba é formada e deformada pelo processo de


decadência da aristocracia rural por que passou o país entre 1888 e a década
de 1930. Desse modo, sua consciência é marcada pelo desacordo entre o
passado e o presente, entre a realidade e a deformação da realidade,
54
movimentos que resultam, ao fim do romance, em sua paralisia diante da vida.
A partir da análise da formalização da consciência do narrador-protagonista,
tentaremos demonstrar como o processo histórico da decadência engendra a
forma romanesca do livro.
O episódio do sanfoneiro revela a tensão histórica da confusão temporal
de Belmiro; percebe-se como o personagem está no presente, em Belo
Horizonte, e de repente o passado se insinua a ele por conta da presença do
músico. A partir disso, sua memória dispara o conflito entre os dois tempos,
que se manifesta na formalização do choque entre as duas valsas e entre as
duas ruas:

Eu ia, atento e presente, em busca de um bonde e de Jandira. Foi só


ouvir uma sanfona, perdi o bonde, perdi o rumo, e perdi Jandira. Fiquei
rente do cedo da sanfona, não sei se ouvindo as suas valsas ou se
ouvindo outras valsas que elas foram acordar na minha escassa
memória musical. Depois, o cego mudou de esquina, e continuei a pé o
caminho, mas bem percebi que os passos me levavam, não para o
cotidiano, mas para tempos mortos. Desci a Rua dos Guajajaras com a
alma e os olhos na Ladeira da Conceição, por onde, num bando alegre,
passava Camila, tão leve, tão casta, depois da missa das nove, na
igreja do Rosário. Era precisamente por ali que estacionava outro
sanfonista que não esmolava nem era cego, e tocava apenas por amor
à arte, ou talvez para chorar mágoas. (ANJOS, 2006, p.26).

A percepção de que há um mundo diverso do “seu”, do qual não se


sente parte, leva o amanuense a buscar refúgio no passado, que também é
simbolizado pela casa da Rua Erê:

A multidão me revela, assim, que há coisas extraordinárias, vibrações


estranhas, há um mundo diverso do meu e com o qual tentarei, em
vão, comunicar-me. No seu bojo, tocamos seres cuja existência nos
surpreende quase dolorosamente, tão certos estávamos de que nada
havia no espaço além do nosso sistema.
Habituei-me a uma paisagem confinada e a um horizonte quase
doméstico. No seu âmbito poucas são as imagens do presente, e
muitas as do passado. (ANJOS, 2006, p. 30).

55
Em “Uma data importante”, capítulo em que narra seu aniversário, o
amanuense demonstra, orgulhoso, como, mesmo na cidade grande, a tradição
dos Borba continua viva, mantida por ele e por suas irmãs:

Emília, com certeza, não se esqueceu do peru tradicional. Viva a


tradição dos Borbas! Não esqueceu mesmo, não. (...) Fiquei para o
jantar e a mesa me comoveu: tivemos vinho do Rio Grande e peixe de
Pirapora. (...) A gentileza desta tarde, o peru, a lembrança das
comemorações domésticas das grandes datas dos Borba e, por último,
ou principalmente, a caneca de vinho realizaram uma operação
benéfica, transportando-me para um plano onde a vida se torna
possível e as mágoas se esquecem. (ANJOS, 2006, p. 68).

A deformação mental de Belmiro está formalizada no mito da donzela


Arabela, resultado da mistura da idealização de Carmélia Miranda (moça que
conhece no carnaval) com a figura de Camila, namorada da infância em Vilas
Caraíbas:

Efeito da excitação de espírito em que me achava, ou de qualquer


outra perturbação, senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos
só percebiam a doce visão. Era ela, Arabela. Como estava bela! (...) Em
meio dos corpos exaustos, a incorpórea e casta Arabela (ANJOS, 2006,
p. 32).

Como resultado do conflito, ocorre a disjunção do personagem, que se


divide em Belmiro sofisticado (o de Belo Horizonte, moderno) e Belmiro patético
(o caraibano sonhador, que se realiza na escrita): “O mito donzela Arabela tem
enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas tem uma força
que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer,
desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro” (ANJOS, 2006, p.
33). É interessante notar que o mito é criado pela mistura de passado e
presente, o que também demonstra a confusão mental de Belmiro.
Na passagem seguinte, Belmiro demonstra, entre um desatino e outro,
ter relativa compreensão da realidade: “Reajo, com virilidade, contra essa
ridícula história da noite de carnaval. Já era tempo de fazê-lo. Há solicitações
graves, a que devemos atender, e um homem não deve se entregar, assim, a

56
uma vida inútil, de vagabundo lírico”. (ANJOS, 2006, p. 73). Essa compreensão
estende-se, ainda, ao entendimento de sua situação de classe em relação a
Carmélia: “Lembra-te, Belmiro, de que essas bodas são impossíveis (...).
Carmélia é fina, jovem e rica. É da alta, como diz Glicério” (ANJOS, 2006, p.
54). Entretanto, mesmo “consciente” da realidade, o amanuense a falsifica ao
relativizar a diferença social que o separa de Carmélia, dando a entender que
são os “costumes” de sua [de Belmiro] tradicional família o problema, quando
na verdade é sua condição de classe o real e determinante empecilho a um
possível casamento com a moça rica:

O sistema Borba não comporta nem prevê senhoras de tão fina estirpe.
Sei que, apesar de minha decadência, em face do sistema, os Borbas
gritam dentro de mim. (...) Ouvi que, na casa da viúva Miranda, se
toma chá às cinco. Bastaria isso para exasperar o velho Borba. Onde já
se viu tal disparate? Às cinco horas, era a janta na fazenda (ANJOS,
2006, p. 116).

O plano do livro de memórias acaba comprometido pelo tempo presente.


Belmiro admite que a ideia original era reconstruir o passado de Vila Caraíbas,
plano que está diretamente ligado ao desejo de reestabelecimento daquela
inteireza e segurança que a família rural forte e poderosa proporcionava:
“Examinando-as, hoje, em conjunto, noto que, já de início, se compromete meu
plano de ir registrando lembranças de uma época longínqua e recompor o
pequeno mundo de Vila Caraíbas, tão sugestivo para um livro de memórias”
(ANJOS, 2006, p. 34). Diante do fracasso do plano, o amanuense admite que
suas páginas refletirão o presente, já que este se insinua a ele:
Não farei violência a mim mesmo, e estas notas devem refletir meus
sentimentos em toda a sua espontaneidade. Já que as seduções do
atual me detêm e desviam, não insistirei teimosamente na exumação
dos tempos idos. E estas páginas se tornarão, então, contemporâneas,
embora isso exprima o malogro de um plano (ANJOS, 2006, p. 34).

No capítulo dezesseis, o narrador-protagonista é remetido novamente ao


passado, mas compreende que tentar reconstitui-lo é um projeto fracassado:
“Vã tentativa de reintegração de porções que se desprenderam da alma nesse

57
trajeto imenso. Em cada ramo do caminho ficou um pouco de nossas vestes e é
inútil voltar, porque os bichos comeram os trapos que o vento não levou”
(ANJOS, 2006, p. 55). É importante perceber que para Belmiro o presente
nunca tem o valor positivo do passado, o que está estilizado na disjunção entre
o Belmiro do passado e o do presente:

Certo São João de Vila Caraíbas é um fenômeno que não se reproduzirá


jamais. (...) Tempo velho. Velho Belmiro. Hoje é o nosso dia. Enquanto
a fogueira funcionar, nós ficaremos de braços dados, nem tristes, nem
alegres, apenas nos namorando e nos lembrando daquela moça de
cabelos de retrós, tão viva, tão palpitante em nossa memória, que
cantava inefável modinha. (...) Tempo velho. Moço Belmiro. (ANJOS,
2006, p. 55).

A certa altura, o amanuense percebe que o passado perseguido por ele


está no tempo, não no espaço, e admite, ainda que parcialmente, a vida
presente: “Às vezes ainda me vem uma necessidade angustiosa de rever velhas
paisagens, de evadir-me para uma região que realmente já não se acha no
espaço, e sim no tempo. Mas, no comum dos dias, agora é o presente que me
atrai.” (ANJOS, 2006, p. 92).
O capítulo “Ritornelo” é recheado de lembranças que mostram o
desacordo de Belmiro com a realidade. O amanuense se lembra de sua última
ida a Vila Caraíbas, onde sofreu um “choque realidade” e percebeu que o
mundo com que sonhava não passava de uma idealização do passado, que seu
pai havia morrido e que a fazenda já possuía outro dono: “Verifiquei esse
angustiante fenômeno quando, em 1924, fui à Vila pela última vez. O Borba já
havia morrido, a fazenda passara a outras mãos e as velhas já aqui [em Belo
Horizonte] estavam com sua extravagante bagagem”. (ANJOS, 2006, p. 92).
Dito de outro modo, do confronto entre idealização e realidade, surge a
constatação do fracasso e a realidade se impõe:

Vila Caraíbas, a montanha, o rio, o buritizal, a fazenda, a gameleira


solitária no monte – que viviam em mim, iluminados por um sol festivo
de 1910, ou apenas esboçados por um luar inesquecível que caiu sobre
as coisas, naquela noite de 1907 – ali já não estavam. Onde pretendi

58
encontrar a alma das épocas idas, não encontrei senão pobres
espectros. (ANJOS, 2006, p. 93).

É importante frisar que, pelo que se lê nas duas últimas passagens, Belmiro já
havia retornado a Vila Caraíbas, em 1924, mas apenas no momento da escrita
do diário (momento de reflexão e balanço), anos depois, percebe que o que ele
fantasiou já não existia. Isso reflete a consciência deformada do narrador-
protagonista, que falseia a realidade, como uma válvula de escape do presente,
já que é incapaz de assimilar a transição (temporal, financeira e até afetiva) por
que passa. Em outra passagem, o amanuense reconhece a deformação que a
fantasia e o delírio provocam em sua compreensão da realidade:

O que a meus olhos surgiu foi a sombra miserável de um tempo que


morreu. O sertão estraga as mulheres e a pobreza as consome. Mas,
devastação maior lhes causa porventura a nossa imprudência,
querendo cotejar com a realidade as invenções de uma desenfreada
fantasia. (...)
A Velha fazenda, que foi dos Borbas, exibiu-me apenas a ossatura
desnuda daquilo que, em outros tempos, fora um corpo exuberante de
vida.
Percebi que vago delírio se apossara de mim, envolvendo-me naquela
onda de saudade e naquele desejo de encontrar uma forma de morte,
que é procurar as sombras de um mundo que se perdeu na noite do
tempo. (ANJOS, 2006, p. 94).

Quando se trata da imposição da realidade sobre Belmiro, uma das


passagens em que há maior carga de dramaticidade em todo o romance é
quando o amanuense se conscientiza de que está perdendo tempo com suas
fantasias, enquanto suas irmãs estão doentes e seu dinheiro acabando:

Sei que estou amando a mulher e não o mito. Não me faltam cuidados
na vida, e é ridícula essa trama sentimental em que me envolvi. Lá está
Francisquinha no Instituto [hospício]. Emília se acha de cama, doente.
Desde dois dias, fiquei reduzido a níqueis, embora estejamos a sete do
mês. O ordenado se foi em despesas com a mana, e ainda há contas
por pagar. É ridículo. Amanhã terei de visitar o agiota. Não deveria
preocupar-me, antes, com estas coisas? (ANJOS, 2006, p. 100).

Belmiro entende que “a verdade está na Rua Erê”, onde as coisas


continuam mais ou menos paradas e similares à atmosfera caraibana; pelo
59
menos no plano externo, a casa é um ponto de equilíbrio para o burocrata, um
refúgio que, na falta do passado real, faz as vezes deste:

É aqui nesta sala de jantar, onde o relógio de repetição bate horas


caraibanas, que encontro um refúgio embora precário.
Emília continua grave e exata. As coisas, louvado Deus, não se
mexeram de seu lugar. Tudo está como deixei e como sempre esteve.
(...) Entretanto, as transformações interiores me devastaram. (ANJOS,
2006, p. 205)

O amanuense continua:

Retorno, agora, à paz desta casa imutável, onde não subsiste nas
coisas o sinal das atribulações. Quero possuir o espírito pacífico destes
velhos móveis, desta Emília velha, que se torna grandiosa à medida
que seus cabelos branqueiam. A quietude suaviza os meus ardores,
mas não me dá o desejado repouso. (ANJOS, 2006, p. 205-206).

É perceptível que o significado de “paz”, para o amanuense, é bastante


específico; algo próximo de “passado”, de “Vila Caraíbas” e da “fazenda dos
Borba”. De alguma forma, a casa da Rua Erê representa para Belmiro esse
sentimento, ainda que saiba da precariedade da “solução”.
O livro termina na paralisia de Belmiro. Quando a fantasia “perde o
sentido” e o burocrata compreende sua realidade, já não tem mais o que
escrever, uma vez que seu presente não lhe interessa: “Previdente e providente
amigo! Esqueceu-me comunicar-lhe que já não preciso de papel, nem de
penas, nem de boiões de tinta. Esqueceu-me de dizer-lhe que a vida parou e
nada há mais por escrever” (ANJOS, 2006, p. 228). No atoleiro da paralisia por
excesso de análise, Belmiro conclui o diário deixando o futuro em suspenso: “–
Que faremos, Carolino amigo?”.

CONCLUSÃO

A partir dos exemplos utilizados, verificamos como Cyro dos Anjos


apropria-se da forma do romance Europeu, gravando nela a transfigurada
realidade brasileira, que passa a fazer parte do plano da ficção, surgindo como

60
resultado formal no engendramento de uma forma romanesca própria já que
criada a partir das nossas relações sociais (forma social). Ao dramatizar a
decadência da aristocracia rural brasileira, o escritor mineiro capta um
importante momento do nosso processo social, que mesmo ressurgindo no
romance enquanto forma literária mantém forte vínculo com a realidade, lendo-
a de forma crítica. Essa decadência é o que dá forma à consciência do
narrador-personagem Belmiro Borba, bem como a todo o romance, uma vez
que seu desacordo entre o passado e o presente (espinha dorsal do livro) é, em
última instância, determinado por tal processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. São Paulo: Globo, 2006. 239 p.

CANDIDO, Antonio. Estratégia. In: ______________. Brigada Ligeira. Rio de


Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 73-79.

FERNANDES, Marcos Rogério Cordeiro. Dualismo e dialética em Cyro dos Anjos:


O amanuense Belmiro. In: WERKEMA, Andréa Sirihal et al. (Orgs.). Literatura
Brasileira 1930. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. 359 p.

FERNANDES, Marcos Rogério Cordeiro; FOGAL, Alex Alves. Realismo e


intimismo em um romance de 30: O amanuense Belmiro. Revista Verbo de
Minas: Letras, Juiz de Fora, v. 10, n. 18, p.55-70, jul./dez. 2010.

LAFETÁ, João Luiz. À sombra das moças em flor: uma leitura do romance O
amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos. In: PRADO, Antonio Arnoni (Org.) A
dimensão da noite. São Paulo: Ed. 34, 2004. p.19-37.

SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da


malandragem”. In: ________________. Que horas são?. São Paulo: Editora
Schwarcz, 1987. P. 129-155.

SCHWARZ, Roberto. Sobre o amanuense Belmiro. In: ______________. O pai


de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 11-20.

WAIZBORT, Leopoldo. E por que não pode ser brasileira a forma do Realismo
europeu?. In: ________________. A passagem do três ao um: crítica literária,
sociologia, filologia. São Paulo: Cosac Naify, 2007. P. 37-84.
61
REALISMO DIALÉTICO E PSICOLÓGICO NA PEÇA RASGA CORAÇÃO:
UMA LEITURA SOCIOLÓGICA E MATERIALISTA
Luiz Paixão1
(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: O presente trabalho, inserido em nosso projeto de dissertação, O nacional e


o popular na obra de Oduvaldo Vianna Filho, se propõe a uma análise sociológica e
materialista a respeito da configuração do realismo psicológico e do realismo dialético
brechtiano na peça Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho. Aqui, se discute os
fundamentos teóricos da crítica sociológica, bem como suas aplicações na análise de
um texto teatral, que estabelece uma estreita ligação entre os procedimentos
dramatúrgicos e as relações sociais, com as quais o personagem central da peça se
confronta. As relações sociais, estabelecidas, tanto no passado quanto no presente,
por regimes de força – ditadura Vargas e ditadura militar -, interferem diretamente nos
conflitos apresentados na peça e determinam sua formalização estética.

PALAVRAS-CHAVE: Crítica sociológica. Dramaturgia. Teatro brasileiro.

A definição de um método de análise literária não se constrói isenta de um


componente político e ideológico. O percurso investigativo se orienta por uma teoria
que, assimilada em seus conceitos fundamentais, instrumentaliza o analista,
estabelecendo os limites de sua ação. Tais conceitos estão fixados nas diversas teorias
e métodos de análise, como estruturalismo, semiótica, estética da recepção,
psicanálise, etc. A opção por uma orientação teórica implica na aceitação dos
parâmetros impostos, estabelecendo, assim, um compromisso ideológico do analista
com o método. Entendemos que negar o componente ideológico a qualquer operação
crítica é negar a própria crítica, enquanto manifestação concreta de determinado ponto
de vista.
Como afirma Lukács, “toda estrutura poética é profundamente determinada,
exatamente nos critérios de composição que a inspiram, por um dado modo de
conceber o mundo”2. A concepção de mundo está intimamente vinculada ao contexto
histórico, e sua variação ideológica responde à própria dinâmica do movimento da
história, com o qual estabelece uma relação dialética. As ideologias se batem no
esforço de se colocarem hegemonicamente uma sobre a outra: a luta entre suas
contradições e o consequente acúmulo de forças promovem saltos qualitativos, que
visam compreender a realidade sob determinada concepção do mundo e criar
respostas alternativas a cada um desses momentos.

1
Mestrando em Literatura Brasileira, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais.
2
LUKÁCS, Marxismo e teoria da literatura, p. 178.
62
O escritor não está alijado desse processo de luta que cada momento histórico
trava dentro de si mesmo. Embora a realidade se manifeste na obra de arte de forma
consciente ou mesmo à margem da consciência do seu autor, consideramos que a
visão de mundo – a ideologia – do criador, pode amplificar as possibilidades de
representação da realidade histórica na construção ficcional. Nesse sentido,
entendemos caber ao escritor engajado3 perceber, compreender e configurar
literariamente essa realidade, utilizando os recursos formais que se encontram à sua
disposição, e que são, eles mesmos, condicionados pela realidade objetiva e subjetiva.

[...] o escritor precisa ter uma concepção do mundo sólida e profunda; precisa
ver o mundo em seu caráter contraditório para ser capaz de selecionar como
protagonista um ser humano em cujo destino se cruzem os contrários. As
concepções de mundo próprias dos grandes escritores se manifestam no plano
da concepção épica. Na verdade, quanto mais uma concepção de mundo é
profunda, diferenciada, alimentada por experiências concretas, tanto mais
variada e multifacetada pode se tornar a sua expressão compositiva. [...] não
há composição sem concepção de mundo.4 (grifo nosso)

A crítica literária somente se realiza se houver um objeto a ser criticado. Crítica


e objeto, ainda que produzidos em momentos históricos distintos, não se desvinculam
dos seus respectivos momentos, e a eles respondem ideologicamente. Portanto, assim
como a obra literária foi gestada em um contexto histórico específico, refletindo e
refratando através de sua forma esse mesmo contexto, não há como não considerar
essas mesmas condições à crítica relativa àquela obra.

Qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem, sentimento e


experiência humana, inevitavelmente envolverá crenças mais amplas e
profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos, problemas de
poder e sexualidade, interpretações da história passada, versões do presente e
esperanças para o futuro. [...] teoria literária “pura” é um mito acadêmico:
algumas das teorias [...] são claramente ideológicas em suas tentativas de
desconhecer totalmente a história e a política. As teorias literárias não devem
ser censuradas por serem políticas, mas sim por serem, em seu conjunto,
disfarçada ou inconscientemente políticas; devem ser criticadas pela cegueira
com que oferecem como verdades supostamente “técnicas”, “autoevidentes”

3
Utilizamos aqui o verbo engajar no sentido de “pôr-se a serviço de uma causa”, como o define
o Dicionário Aurélio, e que Raymond Willians categoriza como “alinhamento” ou “compromisso”.
No entanto, é preciso não confundir, como ensinaram Marx e Engels, engajamento como
desculpa para baixa qualidade artística: “Torna-se cada vez mais um hábito, particularmente
dos tipos inferiores de literati, compensar a falta de inteligência de suas produções com alusões
políticas que certamente atraem a atenção. Poesia, romances, críticas, drama, toda produção
está cheia do que era chamado de tendência”. Apud: WILLIAMS, Marxismo e literatura, p. 198.
4
LUKÁCS, op. cit., p. 179.
63
(sic), “científicas” ou “universais” doutrinas que um pouco de reflexão nos
mostrará estarem relacionadas com, e reforçarem, os interesses específicos de
grupos específicos de pessoas, em momentos específicos.5

A crítica sociológica materialista, ao considerar o contexto histórico, relações


sociais, luta de classes e fatores econômicos como pertinentes a uma análise literária,
o considera por entender que tais condições interferem significativamente na
formalização estética, que responde a esse contexto. Portanto, a crítica sociológica
materialista não se furta em operar uma análise minuciosa dos procedimentos
estéticos da obra literária, pois, como destaca Candido:

[...] o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na
constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. [...] quando estamos
no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e
o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de
maneira a construir uma estrutura peculiar. Tomando o fator social,
procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes,
traços grupais, ideias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora
[...] ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de
essencial na obra enquanto obra de arte.6 (grifo do autor)

A realidade social e histórica fornece matéria bruta. Ao confrontar-se com a


realidade, o autor extrai dela o que lhe convém, imprimindo-lhe determinada forma,
operando, assim, sua transfiguração artística, que deverá responder, enquanto obra
comprometida com o seu tempo, às necessidades objetivas do momento de sua
realização. Ao refletir e refratar a realidade, a obra literária “devolve”, de forma
artística, aquilo que dela mimetizou, agora transfigurado, estabelecendo uma relação
dialética, que pretende oferecer uma nova visão daquela mesma realidade.
Tal operação se realiza mediante procedimentos específicos da confecção
artística. A dinâmica própria da história proporciona novas modalizações desses
procedimentos, que jamais serão inalteráveis, pois dialéticos em sua relação histórica.
Em última análise, podemos dizer que a realidade social determina a forma artística,
ou como afirmou Adorno, “a arte, como forma de conhecimento recebe todo seu
material e suas formas da realidade – em especial da sociedade – para transformá-la”7,
e, acrescenta em outro estudo que

5
EAGLETON, Teoria da literatura: uma introdução , p.294-295.
6
CANDIDO, Literatura e sociedade, p. 14-15,
7
ADORNO, A vida é alegre?
64
As obras são vivas enquanto falam de uma maneira que é recusada aos
objectos naturais e aos sujeitos que as produzem. Falam em virtude da
comunicação nelas de todo o particular. Entram assim em contraste com a
dispersão do simples ente. Mas precisamente enquanto artefactos, produtos do
trabalho social, comunicam igualmente com a empiria, que renegam e da qual
tiram o seu conteúdo. [...] Embora se oponha à empiria através do momento
da forma – e a mediação da forma e do conteúdo não deve conceber-se sem a
sua distinção – importa, porém, em certa medida e geralmente, buscar a
mediação no facto de a forma estética ser conteúdo sedimentado. 8

No entanto, não é apenas a complexidade social decalcada na obra que deverá


imprimir nela o seu caráter social. A matéria literária não é o fato em si, por mais que
se aproxime estilisticamente do seu referente; matéria literária é a palavra formalizada,
que somente se realiza segundo parâmetros próprios que lhe garantam configuração
artística, pois,

[...] o dado ficcional não vem diretamente do dado real, nem é deste que o
sentimento da realidade na ficção depende, embora o pressuponha. Depende
de princípios mediadores, geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças
aos quais se tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia.9 (grifo nosso)

Da mesma maneira que a realidade atua sobre a literatura determinando-lhe a


forma, a literatura, ao expressar essa forma elaborada esteticamente, atua também
sobre a realidade, uma vez que, ao denunciar os desvios sociais produz, ato contínuo,
um processo de conscientização do homem. Neste sentido, a análise sociológica
materialista se atenta para a forma da expressão e, também, para aquilo que
expressado artisticamente discute a própria realidade, agora refletida e refratada. A
estreita harmonia entre o externo e o interno nos impõe um viés preciso de análise
crítica, tal como apontou Candido:

[...] saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história


sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que
assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá [...] o
externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas
crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia
[da obra], ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. [...] Uma
crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,
psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de
conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico

8
ADORNO, Teoria estética, p. 15.
9
SCHWARZ, Que horas são?, p.133 .
65
ressalte o elemento de sua preferência, desde que o utilize como componente
da estruturação da obra.10 (grifo do autor)

A decisão por uma análise sociológica e materialista, na obra Rasga coração,


vem amparada por um entendimento de que o nosso corpus estabelece uma estreita
ligação entre os procedimentos dramatúrgicos e as relações sociais, com as quais o
personagem central da peça se confronta. As relações sociais, estabelecidas, tanto no
passado quanto no presente, por regimes de força – ditadura Vargas e ditadura militar
-, interferem diretamente nos conflitos apresentados na peça e determinam sua
formalização estética. O agente externo atua sobre os personagens levando-os a reagir
dessa ou doutra maneira ao momento político que vive o país e, ao reagir,
estabelecem conflitos interpessoais, uma vez que a reação não se manifesta de
maneira unívoca. Neste sentido, o social – externo – cria as condições para que o
drama se estabeleça, respeitando uma forma que lhe é particular. Em ambos os casos,
passado e presente, as relações obedecem a uma estética previamente determinada
que, segundo o autor, melhor traduziria os conflitos apresentados.
A utilização de dois modelos dramatúrgicos, visando contrapor passado e
presente, estabelece uma dinâmica que permite percorrer um período histórico
consideravelmente longo. Podemos verificar uma conjugação de fatores sociais e
dramáticos, numa realização estética em que forma e conteúdo experimentam uma
complexa relação dialética, ainda que consideremos a primazia do conteúdo, uma vez
que a determinação estética se efetiva a partir de sua organização. O dramático e o
épico se completam e se explicam: os acontecimentos históricos ganham forma e se
traduzem dramaticamente, colocando o personagem central em permanente estado de
conflito.
No tempo presente, o drama se estabelece sob os parâmetros do realismo
psicológico, obedecendo a uma linearidade de ações: os conflitos se alimentam de
conflitos, gerando novos conflitos. O personagem, estimulado por um acontecimento
externo e cotidiano – um acidente de trânsito com vítima –, é levado a um processo de
imersão em suas memórias e, provocado por suas lembranças, vivencia um profundo
processo de ajuste de contas consigo mesmo. As cenas com o filho o obrigam a uma
revisão de sua própria história de luta. Os mecanismos de investigação psicológica

10
CANDIDO, op. cit., p. 17.
66
orientam a ação principal da peça e organizam os acontecimentos dramáticos como
frutos da mente conflituosa do personagem central.
No tempo passado, resultante das lembranças de Manguari, a forma realista
dialética, que encontra amparo no pensamento épico brechtiano, nos apresenta os
conflitos em forma de flashes, e estabelecem suas contradições com o presente. Não
há mais a linearidade dos acontecimentos. A ação respeita as necessidades de
revelação das relações sociais predominantes nos diversos momentos históricos que
peça propõe discutir. Verificamos, com isso, a utilização do “efeito de distanciamento”,
proposto por Bertolt Brecht.
Ao confrontar seu personagem com a realidade social, Vianna demonstra que
sua vinculação com as forças materiais condiciona dialeticamente seu desenvolvimento
humano. O autor aplica, assim, na prática dramatúrgica, a teoria marxista que ensina
que

O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social,


política e intelectual de maneira geral. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas ao contrário, seu ser social determina sua
consciência.11

As formas dramatúrgicas revelam tais condições, numa relação metonímica,


visando desvendar as contradições sociais e, com isso, revelar o caráter do
personagem em seu processo de formação e maturidade política. O aprimoramento de
sua consciência se realiza no momento em que se confronta com a realidade e, dela,
retira matéria para a construção e afirmação de seus compromissos com a
transformação social, política e econômica do país, visando a construção de uma etapa
superior do desenvolvimento humano.

Do ponto de vista do olhar histórico lançado sobre os movimentos das


esquerdas, esta escolha trouxe a Vianna desafios importantes do ponto de vista
da forma e sinalizou claramente para a necessidade do épico como base para a
estrutura formal em “Rasga Coração”. Afinal, só seria possível chegar ao âmago
desejado de questões como as abordadas através de mecanismos formais que
transcendessem o patamar dos conflitos intrafamiliares e interpessoais, e que
permitissem colocar em foco a tessitura histórica e a experiência política
presente nas experiências e ações representadas. O eixo fragmentado de
tempos e de situações desempenha, na peça, uma função épica por excelência,

11
MARX, Sobre literatura e arte, p. 13.
67
colocando no epicentro da matéria figurada os processos históricos e as
transformações políticas.12

Vianna encontra no pensamento brechtiano os elementos necessários para uma


escrita que, nos parâmetros do realismo dialético, apresente a realidade como passível
de mudança. Brecht, que entendia o teatro como um poderoso agente de
transformação social, buscou novos elementos que contribuiriam para o melhor
entendimento das relações sociais a que os homens estão subordinados. Para se
entender o mundo como passível de modificação, é preciso compreender o homem
como agente transformador e, ao mesmo tempo, transformável. Compreender a
dinâmica do movimento e suas leis, regidas pela dialética. Compreender que o
movimento é absoluto e o repouso relativo. Compreender que da observação nasce o
espanto, do espanto surge a compreensão de que assim como está não está bom.
Rompeu com o chamado teatro dramático e formulou um novo e revolucionário
pensamento para o teatro, pois acreditava que

só poderemos descrever o mundo atual para o homem atual, na medida em


que o descrevermos como mundo passível de modificação. Para o homem
atual, o valor das perguntas reside nas respostas. O homem de hoje interessa-
se por situações e por ocorrências que possa enfrentar ativamente. 13

Os movimentos de presentificação da história e historicização do presente


observados em Rasga coração, através da unidade dialética das formas, visam
consolidar uma compreensão crítica da realidade muito mais acurada. Ao propor um
conhecimento das relações sociais vigentes no Brasil nos anos da ditadura militar,
Vianna estabelece uma conexão dialética do presente com o passado, em que ambos
se deslocam, num movimento dinâmico e de mútua completude: o presente busca no
passado seu correlato histórico e dialético, enquanto o passado se projeta no presente
e, neste, se materializa.
Tais movimentos são implementados por técnicas dramatúrgicas contrárias em
sua estrutura, mas que se completam em seus propósitos: o realismo psicológico
propõe uma aproximação – através da presentificação da ação – com o universo
interior do personagem, enquanto o épico se pauta pela técnica do distanciamento,

12
BETTI, Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho, p.36.
13
BRECHT. Estudos sobre teatro, p. 6.
68
que implica, ou possibilita, uma postura crítica em relação às ações do personagem,
utilizando-se, para tal, da historicização da ação.
Seus conflitos se manifestam a partir do conhecimento de uma possível luta do
filho contra a estrutura dominante da escola em que estuda. Ao perceber que este
poderia ser o momento de conscientização social e política de seu filho Luca, Manguari
empresta a ele toda sua experiência e combatividade. Busca orientá-lo e oferece todo
o seu apoio. No entanto, é nesse momento que a relação entre os dois manifesta
contradições que se tornam insuperáveis.
Os conflitos com o filho acentuam o seu próprio conflito, e suas contradições
ganham uma dimensão ainda não vivenciada. Numa tentativa de superação, que
acredita efetivar-se através dos conhecimentos dessas mesmas contradições, o
personagem enfrenta o seu passado. O embate dos fatos históricos com os
acontecimentos atuais opera uma tomada de consciência de sua realidade. Manguari,
consciente de sua função social e histórica, é capaz de, num processo crítico e
autocrítico, voltar atrás ao perceber-se numa postura que não corresponde com os
parâmetros de comportamento exigidos a um comunista.
A partir da revisão do passado tenta compreender as ações do filho, e constatar
uma fissura irremediável em suas relações. Cria-se, então, uma nova história em seu
presente, que aponta para um futuro no qual a coerência de posições se reafirma e se
fortalece. Na dialética da crítica e autocrítica, o personagem se revela em sua inteireza,
pois sujeito a constantes transformações e, até mesmo, reformulação do seu
pensamento, ainda que mantenha firme sua orientação ideológica, da qual não abre
mão. Importante é ressaltar que o seu processo de formação/transformação não está
preso ao seu passado: é um processo dinâmico e complexo, e corrobora o pensamento
marxista de que a prática é o critério da verdade:

A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não


é uma questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar
a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.
A disputa sobre a realidade ou não-realidade de um pensamento que se isola
da práxis – é uma questão puramente escolástica.14 (grifo do autor)

Embora todo esse processo se realize sob a égide do realismo psicológico,


podemos identificar nesses confrontos entre Manguari e Luca, traços marcantes do

14
MARX, A ideologia alemã, p.125-126.
69
realismo dialético, uma vez que, aos moldes propostos por Bertolt Brecht, o confronto
das ideias é colocado a partir de argumentos e não de sugestões, pois tem o homem
como “objeto de análise [...] susceptível de ser modificado e de modificar”15.
Vianna nos apresenta um herói que se constrói em sua prática cotidiana; um
herói que, respondendo às necessidades do seu tempo, sabe enfrentar suas
contradições e não se render às reações adversas. Um herói construído de
contradições e alimentado por essas contradições, por isso, sua configuração realista
não o torna um super-herói: é um homem comum que sabe sua função social é
determinante em sua formação psicológica, e sua práxis é que justifica sua própria
existência. Verificamos, portanto, que o recurso dramatúrgico do flashback visa, além
de configurar o caráter histórico da peça, revelar o processo de transformação dialética
da realidade e do próprio homem, diante de acontecimentos sociais aos quais está
submetido. Manguari forja sua luta e busca entender a realidade que o cerca e os
meios para transformá-la. Para transformá-la é preciso compreendê-la; para
compreendê-la é preciso, antes, enfrentá-la em toda sua complexidade e
segmentação, pois

a realidade se tornou problemática, o mundo real nos escapa em sua dinâmica,


em sua riqueza, em suas complicações. Ele é sempre mais rico do que
conseguimos compreender, e nós só temos possibilidade de conhecer alguma
coisa efetiva do mundo real se percebermos alguma coisa das suas
contradições. Quando estamos diante de uma construção harmônica, numa
visão de harmonia no plano do conhecimento, significa que nós estamos
mistificando ou estamos sendo mistificados. 16 (grifo nosso)

Consciente de que a realidade não está dada e, portanto, é passível de ser


modificada, Manguari se coloca a tarefa de lutar para a efetivação da mudança. Sua
vida se pauta por sua luta; sua luta se alimenta na profunda certeza de que o homem
é capaz de transformar e se transformar, pois, como afirmou Sófocles: “há muitas
maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem”17.
Rasga coração se apropria de quarenta anos da realidade histórica e social do
Brasil e os transforma em matéria dramatúrgica, numa clara pretensão de, ao resgatar
essa memória, resgatar também a luta do povo brasileiro, e tentar avançar em

15
BRECHT, op. cit., p. 16.
16
KONDER, A questão da ideologia na ficção literária.
17
SÓFOCLES, Antígona. In: ______. SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono,
Antígona, p. 215.
70
conquistas sociais e transformação da sociedade. Utiliza-se de uma sofisticada técnica
dramatúrgica, em que seus procedimentos revelam todo esse complexo histórico e
social.
Ao propor um estudo qualificado dessa obra, compreendemos que ele somente
se efetivará a contento se mantivermos nosso compromisso com uma análise que
considere o seu estreito relacionamento com os fatores sociais e de classes, mantendo
seus olhos voltados ao objeto primeiro de sua análise, que são os mecanismos de
formalização e transfiguração do tema em literatura. Dessa dialética forma/conteúdo,
pretendemos extrair a comprovação de que a forma dramatúrgica é uma mediadora
entre o conteúdo social e a obra, essa enquanto expressão estética do movimento
histórico, pois entendemos que
[...] a gravitação cotidiana das ideias e das perspectivas práticas é a matéria
imediata e natural da literatura, desde o momento em que as formas fixas
tenham perdido a sua vigência para as artes. [...] a feição exata com que a
História mundial, na forma estruturada e cifrada de seus resultados locais,
sempre repostos, passa para dentro da escrita, em que agora influi pela vida
interna – o escritor saiba ou não, queira ou não queira. [...] a matéria do artista
mostra assim não ser informe: é historicamente formada, e registra de algum
modo o processo social a que deve a sua existência. 18

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. A vida é alegre? In: Noten zur Literatur. Trad. Newton Ramos-
de-Oliveira e revisão pela Equipe do Potencial Pedagógico da Teoria Crítica (Antonio
Álvaro Zuin, Bruno Pucci e Newton Ramos-de-Oliveira). Disponível em:
http://adorno.planetaclix.pt/tadorno6.htm. Acesso em 12/03/2014. Acesso em
12/03/2014.

______. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, nd.
BETTI, Maria Silvia. Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho: perspectivas formais da
representação sócio-histórica. Revista UniABC - v.1, n.1, 2010.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 11ª.


ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.

EAGLETON, Terry. Marxismo e crítica literária. Trad. Matheus Corrêa. São Paulo:
Unesp, 2011.

______. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.

18
SCHWARZ, Ao vencedor as batatas, p.30-31.
71
KONDER, Leandro. A questão da ideologia na ficção literária. Disponível em:
http://www.letras.puc-rio.br/unidades&nucleos/catedra/revista/5Sem_10.html. Acesso
em: 28/01/2014.

LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (I – Feuerbach). Trad. José Carlos
Bruni; Marco Aurélio Nogueira. 2 ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos


inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

VIANNA FILHO, Oduvaldo. Rasga coração. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro,
1980.

72
NULIDADE E DIALÉTICA: O PROBLEMA DO MÉTODO EM
BOUVARD E PÉCUCHET, DE FLAUBERT

Maria Elvira Malaquias de Carvalho1

(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: A crítica à noção de método é evidente em Bouvard e Pécuchet,


último romance de Flaubert, no qual o autor discute os efeitos da
democratização do acesso à ciência e a utilização desta por indivíduos leigos.
Levando em conta a maneira como o afã enciclopédico dos protagonistas é
convertido em uma espécie de “religião da ciência” na qual a lógica dialética
estaria ausente, exponho as considerações da crítica flaubertiana a respeito da
sátira que o livro empreende aos fundamentos da metodologia científica, bem
como ao imaginário burguês e positivista da França oitocentista. A partir da
deflagração do vínculo entre a incapacidade de julgar e o nivelamento
democrático, Bouvard e Pécuchet toma a questão da nulidade (dos sujeitos e
dos procedimentos técnicos) como fator determinante para o debate sobre a
crise moderna do conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE: Flaubert; nulidade; dialética.

Bouvard e Pécuchet, romance inacabado de Gustave Flaubert (1821-


1880), assume a questão que denomino de nulidades procedimentais, isto é, a
questão dos logros da linguagem, das proposições incoerentes e das ficções
heurísticas que acirram o debate sobre a crise da metodologia moderna. Para
relacionar as perspectivas da vulgarização do acesso à ciência à indagação
sobre a possibilidade de educar e de transmitir o conhecimento na sociedade
burguesa afetada pelo nivelamento democrático, o autor utiliza o procedimento
que designou de “cômico de ideias”. Publicado em 1881, após a morte de
Flaubert, Bouvard e Pécuchet provocou, segundo Pierre-Marc de Biasi, uma
“consternação unânime” (BIASI, 2009, p. 446. Tradução minha) no leitorado do
fim do século XIX. Erguido pelo reconhecimento do Nouveau Roman e pelo
interesse proeminente que Roland Barthes dedicou à ficção de Flaubert, o livro
póstumo deste romancista toma lugar de destaque na crítica literária apenas

1
Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais.
73
nas últimas décadas do século XX, muito tempo depois da publicação do
volume.
As características da enunciação flaubertiana problematizam a
legitimação de uma metalinguagem aparentemente criada pelos discursos dos
saberes, os quais fazem circular a lógica da “enciclopédia crítica em farsa”, tal
como o autor chamava seu romance em andamento. De saída, podemos expor
as considerações de Derrida sobre determinada história da ideia no espaço
flaubertiano, ou seja, sobre a recepção da Ideia dentro de um projeto literário-
filosófico. Diante de uma proposta enciclopédica dos saberes e das linguagens,
a qual se torna estúpida pela necrose das ideias, pela circularidade dos
conceitos e pela incapacidade de julgamento que caracteriza a bêtise bouvard-
pécuchetiana, Derrida polemiza a questão do “rapport au philosophique” em
Flaubert:

Os enunciados declarativos, as tomadas de posições explícitas ̶


talvez os menos dúbios ̶ sobre o tema da filosofia, nós os
encontramos em Bouvard e Pécuchet, no Dicionário das ideias feitas e
na Correspondência também, certamente, isto é, nos lugares fora da
obra ou, pelo menos, nos lugares que, imitando o fora da obra
literária, abundam em discurso de saber sobre o saber e, quem sabe,
em metalinguagem sobre a linguagem, notadamente sobre o próprio
desenho literário de Flaubert. Nós veremos que a filosofia ou, de toda
maneira, certo discurso da Ideia é esboçado nesse desenho literário, a
propósito em vão, para falar da literatura. Da literatura, assinalada
por Flaubert, para além do filosófico. (DERRIDA, 1981, p. 660.
Tradução minha)

Percebemos a atualidade de Bouvard e Pécuchet a partir do momento


em que a sátira ao método se relaciona, na elaboração da narrativa romanesca,
com a reflexão sobre as possibilidades e os limites do conhecimento. Para Yvan
Leclerc, os fracassos dos heróis epônimos colocam em xeque, de maneira
indiscernível, “a competência dos personagens e a validade do método.”
(LECLERC, 1988, p. 78. Tradução minha). A demonstração da ineficácia do
método, tomado em sua acepção cartesiana ou positivista, seria inseparável do
questionamento sobre os discursos fundadores da ciência e da filosofia, à

74
medida que uma verdade literária se aloja no vácuo deixado pelos erros da
verdade científica.
Subtitulado “Do defeito do método...”, pode-se ler Bouvard como um
anti Discurso do método, ou um Discurso do espírito negativo, ou
ainda como um par à Introdução ao estudo da medicina experimental
(1865). Flaubert escreve nas margens ou no verso dos discursos
fundadores na filosofia e nas ciências. (LECLERC, 1988, p. 79.
Tradução minha)

Kazuhiro Matsuzawa destaca que o subtítulo do romance ̶ “Du défaut


de méthode dans les sciences” ̶ é assunto de controvérsia entre os
flaubertianos, pois a ambiguidade do sintagma sugere ou uma ausência de
método atribuída apenas aos dois autodidatas que não seriam “inteligentes o
bastante para adquirir um bom método (MATSUZAWA, 2010, p. 333. Tradução
minha), ou uma falta de método intrínseca às ciências modernas. A propósito, o
verbete “método” consta do Dicionário das ideias feitas ̶ “méthode: ne sert à
rien” (FLAUBERT, 1997, p. 105) ̶ e apresenta uma questão própria à era
moderna, qual seja, o culto da ciência mal compreendida e manejada de forma
indiscriminada por indivíduos leigos.
Flaubert teria percebido que a crescente laicização do conhecimento e a
demanda por informação dão origem a um “uso mágico do saber”, uso que
muito se aproxima a uma “religião da ciência”, conforme os termos utilizados
por Paul-Laurent Assoun. Em seus constantes fracassos, Bouvard e Pécuchet
revelam que “nenhuma dialética entre saber e ignorar é possível para eles”.
(ASSOUN, 1999, p. 109. Tradução minha). A constatação de Assoun é
pertinente; porém, vê-se que ela não se aplica a Flaubert ou ao narrador
flaubertiano. Para os personagens ficcionais, o lastro da nulidade está em
consonância com o fato de que, nas ciências humanas ̶ que incluem o estudo
da literatura ou a crítica literária ̶ , o “problema do método (...) somente ocupa
o primeiro plano a partir do século XIX” (MATSUZAWA, 2010, p. 334. Tradução
minha), como lembra Matsuzawa.
Na França, os pilares da metodologia moderna representados pela
filosofia de Auguste Comte diziam respeito, sobretudo, a uma transferência de
modelos epistêmicos que partia das ciências exatas em direção às ciências
75
humanas e às ciências sociais. Aparentemente, Comte pretendia criar uma
unidade metodológica do saber, baseada na regularidade das leis e no
nivelamento da diferença entre o fato natural e o fato social ou humano.
Parodiando o modo pelo qual a tradição positivista tomava a realidade como
dependente do texto da ciência, o romance de Flaubert vincula a incapacidade
de julgamento dos dois copistas, isto é, a própria bêtise bouvard-pécuchetiana,
às premissas do nivelamento democrático. Acerca da disjunção entre a teoria e
a razão prática, ou entre o saber metodológico e a competência prática,
Matsuzawa aponta ainda que:

É impossível descrever de maneira exaustiva as condições de


aplicação da regra em cada situação específica sem regressão ao
infinito. Conhecer a regra é uma coisa. Saber praticar com a regra é
outra coisa. Vê-se bem que a metodologia que visa a um
conhecimento objetivo se condena a desprezar o conhecimento
prático, o qual não consegue se articular completamente em
preceitos. (MATSUZAWA, 2010, p. 334. Tradução minha)

Ficam evidentes, na obra tardia de Flaubert, a fascinação e a


interpelação diante do dicionário e da enciclopédia, gêneros narrativos
emblemáticos no que concerne à autoridade da palavra escrita e à transmissão
dos saberes. Bouvard e Pécuchet, ao qual se liga o esboço do sottisier, este
último composto da cópia da burrice dos dois amigos escriturários, torna visível
a crise de uma forma orgânica ideal, afim à estrutura da Encyclopédie iluminista
e supostamente apta a totalizar os saberes. Uma importante interrogação que
atravessa o fim do século XIX e que repercute no romance é a de como
transmitir o conhecimento para o grande público, como divulgar o
conhecimento para um público não letrado, não culto, não especializado. Para
Thierry Poyet, a correspondência entre Flaubert e George Sand exemplifica de
que maneira, na década de 1870, período em que a sociedade francesa discutia
projetos de lei sobre a educação popular, o autor manifestou-se contrariamente
ao ensino aberto a todas as classes sociais:

76
No ponto em que George Sand defendia uma educação das massas,
Flaubert sempre rejeitou a democratização das políticas educativas,
persuadido de que era necessário, antes de tudo, promover o saber
das elites e elevar o nível destas últimas, antes de um dia se
preocupar ̶ mas quando? ̶ com o povo. (POYET, 2012, p. 138.
Tradução minha)

Bouvard e Pécuchet explora o amadorismo de dois excêntricos senhores


em busca de respostas sobre a vida, os fenômenos da natureza, os eventos
históricos e as criações culturais da humanidade. Os personagens norteiam
suas pesquisas por um ímpeto de acumulação de livros, manuais, ferramentas e
gadgets. Esse ímpeto não lhes proporciona, contudo, nenhum desenvolvimento
intelectual efetivo. O périplo dos personagens perde o sentido pedagógico e
moral da formação do homem e toma o valor daquilo que Kate Rees nomeia
como “pedestrian practice”. Segundo a autora, Bouvard e Pécuchet concebem
sua relação com o espaço e o conhecimento a partir de uma série de “conexões
entre a andança e a divagação filosófica”, conexões as quais revelam “o
paradoxo na concepção de progresso destacado no último romance de
Flaubert” (REES, 2010, p. 122. Tradução minha). Em suma, por causa da
degradação da função original da Enciclopédia, a odisseia de Bouvard e
Pécuchet adquire, como nota Derrida, uma motivação meramente turística,
agravada pela aceleração das contradições e pela substituição das ideias e dos
próprios sistemas filosóficos:

O grande tour ou o grande turismo enciclopédico de Bouvard e


Pécuchet filósofos é tão claramente um turismo da ideia que, depois
de eles terem escrutinado as doutrinas da ideia representativa e da
própria gênese da ideia, eles devem contorná-las pela ideia hegeliana.
(DERRIDA, 1981, p. 666. Tradução minha)

Levando em conta os princípios da estética de Flaubert, princípios os


quais Pierre-Marc de Biasi resume em quatro quesitos que me parecem prontos
para ser desconstruídos ̶ “impessoalidade, relatividade dos pontos de vista, não
conclusividade, espessura temporal” (BIASI, 2009, p. 306. Tradução minha) ̶ ,
alguns especialistas têm levantado a hipótese de uma ausência de lógica

77
dialética que configuraria a poética da obra de Flaubert. Gisèle Séginger chama
atenção para a não dialetização do tempo em Bouvard e Pécuchet, isto é, para
uma temporalidade “jamais acabada e oposta ao pensamento de uma
racionalidade histórica e de um devir representável” (SÉGINGER, 2000, p. 51.
Tradução minha). Norioki Sugana, por sua vez, alega explicitamente que, no
romance enciclopédico de Flaubert, “a dialética não se mostra mais capaz de
deter a verdade como tampouco o fazem os outros sistemas filosóficos. Ela, a
dialética, não consegue se apresentar como a ultrapassagem das contradições”
(SUGANA, 2010, p. 137. Tradução minha).
Em contraste com as interpretações de Séginger e de Sugana, analiso,
no projeto estético flaubertiano, o funcionamento da dialética, por meio da
discriminação dos papéis do autor empírico, do narrador, dos personagens, do
leitor e da crítica. Nessa perspectiva, acompanha-se, em Bouvard e Pécuchet,
aquilo que Derrida chamou de “simulacro da dialética e da ideia (platônica e
hegeliana)” (DERRIDA, 1981, p. 671. Tradução minha. Grifo do autor) que
parasita o conteúdo metafísico da história da ideia de Platão a Hegel. Ao
comparar as particularidades dos programas de Flaubert e de Mallarmé no que
concerne às virtuosidades da prosa ou do verso e à (in)sustentabilidade da
noção de Livro no contexto flaubertiano e malarmaico, Derrida aponta, em tais
programas, à revelia da incompletude de um sistema filosófico, algo parecido
ao mimetismo de uma lógica dialética.

Todos os dois [Flaubert e Mallarmé] inscritos em um lugar de


esgotamento do filosófico, no qual eles não podem mais regular sua
escrita literária, sua arte, se vocês quiserem, sobre um sistema
literário ou uma posição filosófica; eles devem continuar a manobrar
os filosofemas como um tipo de metalinguagem instrumental para
anunciar sua escrita. (DERRIDA, 1981, p. 670. Tradução minha)

Diante das análises que defendem a inexistência de pensamento


dialético no programa estético de Flaubert e que sinalizam a repulsa de
Bouvard e Pécuchet pelo esquema teleológico de resolução das contradições,
admito, no panorama de uma metacrítica da Lei em Flaubert, o funcionamento
“de uma ultrapassagem dialética que atua, no projeto flaubertiano, em
78
benefício de uma síntese em direção à bêtise” (CARVALHO, 2014, p. 146). Se
me for permitido um epílogo, este último conteria, à maneira de Derrida, a
“estranha vizinhança de um pós-hegelianismo à Hegel” (DERRIDA, 1981, p.
670. Tradução minha) que marcaria o destino da metacrítica flaubertiana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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la psychanalyse. In: ASSOUN, Paul-Laurent et al. Analyses et réflexions sur
Gustave Flaubert: Bouvard et Pécuchet. Paris: Ellipses, 1999. p. 104-115.

BIASI, Pierre-Marc. Gustave Flaubert: une manière spéciale de vivre. Paris:


Grasset, 2009.

CARVALHO, Maria Elvira Malaquias de. Bovarismo, epifania, bêtise: exercício de


metacrítica flaubertiana. Tese de doutorado (Teoria da Literatura e Literatura
Comparada): Belo Horizonte: UFMG, 2014.

DERRIDA, Jacques. Une idée de Flaubert: la lettre de Platon. In: POMEAU,


René. (org.) Revue d’histoire littéraire de la France. Paris: Armand Colin. 81ͤ
année (n. 4/5). Juillet-Octobre, 1981. p. 658-676.

FLAUBERT, Gustave. Bouvard et Pécuchet. Introdução e notas de Pierre-Marc


de Biasi. Paris: Le Livre de Poche, 2010.

FLAUBERT, Gustave. Le dictionnaire des idées reçues suivi du Catalogue des


idées chic. Texto estabelecido e apresentado por Anne Herschberg Pierrot.
Paris: Le Livre de Poche, 1997.

LECLERC, Yvan. La spirale et le monument: essai sur Bouvard et Pécuchet.


Paris: SEDES, 1988.

MATSUZAWA, Kazuhiro. Sur l’ambiguité du “défaut de méthode” dans Bouvard


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MATSUZAWA, Kazuhiro; SÉGINGER, Gisèle. (org.) La mise en texte des savoirs.
Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2010. p. 333-342.

POYET, Thierry. Bouvard et Pécuchet: le savoir et la sagesse. Paris: Kimé,


2012.

REES, Kate. Pedestrian practice. In: REES, Kate. Transportation, progression,


progress. Berna: Peter Lang AG, European Academic Publishers, 2010. p. 107-
139.

79
SÉGINGER, Gisèle. Flaubert: une poétique de l’histoire. Strasbourg: Presses
Universitaires de Strasbourg, 2000.

SUGANA, Norioki. Flaubert épistémologue: autour du dossier médical de


Bouvard et Pécuchet. Amsterdã: Rodopi, 2010.

80
POESIA E NEGATIVIDADE: ESBOÇO PARA UMA TANATOCRÍTICA EM
GIORGIO AGAMBEN

Sérgio Henrique da Silva Lima1


(PÓS-LIT/UFMG)

RESUMO: Em um comentário acerca do método em seu pensamento, o


italiano Giorgio Agamben o definirá pelos termos “arqueológico e paradigmático
num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente
coincidente com ele”. No intento de dissolver as dicotomias produzidas pelos
progressivos processos de racionalização na cultura ocidental, Agamben analisa,
por essas vias, os problemas que envolvem as forças polares num campo onde
já não é possível estabelecer binarismos ou discernibilidades. Se também a
crítica percorre um campo de tensões formulado pelos embates entre os
discursos afinados ora com palavra pensante, ora com a gozante , seu
pensamento se abre para uma nova possibilidade de operador de leitura, o qual
aqui denominamos tanatocrítica. Trata-se de uma nova concepção de crítica do
presente fundada na problematização de um discurso cuja origem se planeia na
morte e que, então, deve se decidir nos limiares de uma filosofia sem
linguagem própria e uma poesia sem consciência de si. Decorre daí a noção de
uma crítica da negatividade que encontra seu fundamento entre um
pensamento tanatológico (que aqui se configura na relação ontológica entre
morte e linguagem) e uma experiência tanatográfica: aquela que guarda e
celebra – no segredo de sua relação com a poesia – o lugar que fala para e
pelos mortos.
PALAVRAS-CHAVE: tanatocrítica – poesia – negatividade

Ouço o ruído calamitoso das águas.


São muitas vozes.
Os mortos estonteados
têm medo de nascerem belos.
A noite
é de aparato.
Atrás disso andam enxurradas
de sóis e de pedras, e outras figuras tremendas
atrás das palavras. Fica de pé
o espanto, e os mortos mais vivos
do que quando estavam vivos.

Herberto Helder

1
Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Doutorando em Literaturas Modernas e
Contemporâneas.
81
INTRODUÇÃO

Em um de seus textos mais importantes sobre a crítica, Agamben negrita


uma inflexão sobre sua origem tomando-a pelo discurso que “nasce no
momento em que a cisão [entre filosofia e poesia] alcança seu ponto
extremo”2. Tal questão parece não só colocar em evidência o abismo discursivo
que atravessa a história do pensamento, mas, sobretudo, os impasses
concernentes ao objeto da crítica. Assim, na obra Estâncias, o pensador pôde
discorrer sobre tais proposições partindo de uma reflexão acerca da crise que
descreve a condição da crítica na contemporaneidade e a coincidência com a
enfática suspensão da poesia em seu discurso. O recorte que se propõe nessa
obra resulta do planeamento acerca de um possível conceito de crítica cujos
impasses se abrem às possibilidades de se pensar tanto certas políticas
discursivas (a saber, os das exigências de um nexo a ser estabelecido com as
disciplinas tradicionais) quanto o estatuto da crítica no contexto já
evidentemente definido pelas exceções que o constituem. Tais pendências
arrostam-se a outras – não menos importantes – que implicam na lida com
operações suspensivas no terreno do próprio discurso crítico e que, assim, nos
revela que não só está em jogo o estatuto da crítica, mas também aquilo que
por meio dela fora ou não produzido. Para o caso da crítica, trata-se, pois, dos
descompassos que a modernidade e seus progressivos métodos de
racionalização puderam decidir ao excluir a poesia de outros discursos inerentes
à práxis humana.
De todo modo, o que aqui se coloca em jogo é a impossibilidade de
descartar o pressuposto de que a ideia de crítica está sempre aliada ao discurso
que deve incluir e testemunhar por aquilo que está incessantemente a se
desprender dele. Se no caso da poesia fala-se de um discurso que quer saber
ler, escrever e inscrever o ilegível, tornando-se, para todo o caso, testemunha
do Mal que traça a ilegibilidade do presente, a crítica, assim, não simplesmente

2
AGAMBEN, 2007, p.13.
82
deve testemunhar o Mal de sua própria crise, mas assiduamente urge em
aprender a ler pelo Mal da poesia o que ele mesmo – o Mal – habituou a tornar
ilegível. Não se trata, portanto, da apropriação de um território, mas de uma
lógica que consiste em um apropriar-se do Mal da desapropriação como forma
de destruição do território regido por um poder tirano capaz de tornar o
presente ilegível.
Questionar, portanto, acerca da inserção da poesia no estatuto da crítica
não implica empreender uma noção de crítica de caráter pessimista ou
paranoico que defende o esgotamento ou se espanta diante do esvaziamento
ou mesmo o fim da crítica. Trata-se, antes, do investimento no que se trata de
enfrentar todo discurso travestido de uma autonomia que se coloca em jogo
quando o seu próprio objeto já se tornou, de certo, questionável. De qualquer
modo, a inscrição da poesia no discurso crítico pode bem ainda – por meio de
uma de uma voz que se silencia em qualquer discurso que tem a intenção de
dizer – narrar sobre um novo modo de práxis capaz de orientar (ou, ainda, de
ler) as práticas discursivas num terreno em que está em questão não o objeto
em si, mas o que dele se tornou resto. Como o material que o poeta português
Herberto Helder invocou como uma espécie de “voz silenciosa” a sonhar a sua
possibilidade de cantar - ou mesmo de ler - no horizonte do corpo poético,
fala-se das “palavras, frases, fragmentos, metáforas”, cuja regra cardeal pode
ser descrita pela prática da “liberdade, liberdade”3.
Colocam-se, a partir daqui, alguns dos problemas que Giorgio Agamben
empreende em seu projeto sobre o fim da crítica (que indaga sobre a sua
finalidade e o seu destino) e da morte da e na crítica (a saber, o problema da
polarização que envolve a sua autonomia e, ao mesmo tempo, a dissolução de
um pressuposto território, aliado ainda ao fato de ter que aprender a lidar com
a possibilidade de uma língua morta; a poesia tida pelo lugar que coincide com
a língua que deve falar pelos mortos). Vislumbra-se, assim, no horizonte da
crítica, um nó que já não pode deixar de atravessar – como também fazer

3
HELDER, 2006, p.222.
83
conciliar – as esferas da poética e da política, de modo que assim é suposto
que se toda a crítica reivindica uma politização do discurso é porque também
poesia e arte, no tangente ao poder dizer e aos sentidos, são
fundamentalmente políticas. Por outro lado, é também da força advinda da
relação ontológica que se estabelece entre morte e linguagem que parece
nascer o momento crítico que enreda o fundamento de uma crítica e de uma
política. Essa, ao ser compreendida pelas aporias que resultam na produção de
vida que descreve a política contemporânea em detrimento da morte e os
rituais que a envolve; aquela, pelo privilégio de uma negatividade que deve
sempre assegurar o desaparecimento da relação com a verdade de uma língua
morta.
Também a noção de negatividade, como a forma de lidar com a
ilegibilidade, fundamenta o discurso crítico que aqui decide o recorte que nos
interessa em Agamben. De tal concepção, o elemento morte, enquanto
abertura própria do homem ao mundo, não cessa de aparecer como o
problema que incessantemente obscurece os universos ontológico, crítico,
político e poético. Daí decorre que a relação entre crítica e morte encontra no
pensamento agambeniano a possibilidade que fundamenta uma leitura do
presente que se formula no que resta de fundamento nos campos do saber; no
que da linguagem é excluído sempre quando nela se inscreve; na morte, que
toda experiência suspende ao torná-la apenas aparência.
Frente a essas considerações, pudemos ler em Agamben uma primeira
possibilidade de crítica cujo fundamento é tanatológico, porque, ao definir a
negatividade enquanto categoria ontológica, não pode deixar de invocar a
relação essencial entre morte e linguagem. De outro lado, ao colocar em cena o
gesto de escritura que se experimenta no caso particular de uma práxis
discursiva, abre-se também uma possibilidade de leitura que empreende, nos
horizontes do pensamento, uma potência crítica tanatográfica, uma vez que a
poesia ocupa um lugar capital definido – como já colocado – pela sua relação
com a crítica.

84
Na tentativa de lidar com tais questões, propõe-se, a partir desse ponto,
algumas brevíssimas considerações e possibilidades de formulação de um
operador de leitura que aqui se define pelo termo tanatocrítica. Tal noção
pretende-se como uma categoria analógica que segue a metodologia do
paradigma do pensador italiano, uma vez que elegendo a categoria morte,
possui como fundamento a polarização – então, a formatação de um campo –
entre uma tanatologia e uma tanatografia, ou seja, trata-se de problematizar
um discurso cuja origem se planeia na morte e que, então, deve se decidir nos
limiares de uma filosofia sem linguagem própria e uma poesia sem consciência
de si.4

QUESTÕES TANATOLÓGICAS

O projeto agambeniano em torno dos abismos traçados entre o homem e


suas relações com o que de algum modo o reivindica, ou seja, a linguagem e a
morte, tem origem numa revisitação à tradição metafísica ocidental conjugada
a um método que se direciona ao que Foucault pôde definir enquanto uma
“ontologia do presente”. O embate que envolve a passagem do não-ser ao ser
se reformula em Giorgio Agamben de modo que aqui a noção de negatividade
se cumpre enquanto categoria ontológica de seu pensamento.
Por essas vias, o pensador italiano encontrará em Heidegger um
problema central da tradição metafísica, segundo o qual o homem é o ser
vivente que, possuindo logos, é capaz de experimentar a morte enquanto
morte. Tal questão, reivindicando a relação que tem na morte e na linguagem
aquilo que pertence originalmente ao homem, também se abre para um
pensamento que se interroga acerca da voz humana (a voz que articula uma
morte), “procurando manter-se livre para o caso em que nem a morte nem a
linguagem pertençam originariamente àquilo que reivindica o homem”5.

4
AGAMBEN, 2007, p.12.
5
AGAMBEN, 2006, p.10.
85
O problema da Voz6 – que se conjuga nas faculdades humanas de falar e
de ser mortal – se abre para a investigação metafísica original no concernente à
inclusão do que permanentemente se exclui quando da inscrição do sujeito na
linguagem; trata-se da passagem que comina a voz da morte e inevitavelmente
a faz calar na voz da consciência humana. Aqui, o lugar que pressupõe a
experiência de linguagem não é nem o da morte que o homem experimenta em
seu puro estado biológico, nem o que está inscrito no campo do que o torna
falante. Está em jogo a morte da voz animal que só pode ser possível a partir
do silêncio de uma Voz, ou como defenderá Agamben: a partir da experiência
da Voz enquanto o lugar negatividade. Assim, se de um lado, Agamben lê em
Hegel a discussão acerca do modo como o sujeito poderá ter uma experiência
da Voz que, de maneira análoga, corresponda ao mesmo som que todo animal
emite na ameaça ou na efetivação de sua morte, de outro vislumbra no Dasein
heideggeriano a asserção que pontua que o homem se inscreve na linguagem
sem ter voz, ou seja, o homem tem, na linguagem, o não-lugar da voz da
morte, já que sua Voz não pode lhe dizer senão o nada.
Mas se a negatividade até aqui se define por meio de uma Voz que
guarda a voz da morte animal, de que maneira isso pode ser articulado como
método no pensamento crítico de Giorgio Agamben? Se a passagem da voz da
morte à voz da consciência cria um campo de tensão que implica a
possibilidade da Voz, como se é possível estender tal concepção a um método
capaz de fundar uma práxis contemporânea? O que é possível depreender de
uma voz que diz nada?
Se em A linguagem e a morte, vemos o deflagrar de um método de
análise fundamentado sob um prisma fenomenológico do ser que nunca pode
se decidir entre uma voz da morte e uma linguagem que significa, também na
exposição restrita ao método em seu pensamento, Agamben defenderá, ao
reler a proposta de uma arqueologia em Michel Foucault, as insurgências de

6
Agamben pontua com letra maiúscula para distinguir “a Voz” da voz como mero som, a voz
animal desprovida de significado. No entanto, a Voz, que suprime a voz animal, deve ser
compreendida enquanto um campo de tensão, na medida em que não é mais um mero som
nem ainda um discurso significante.
86
certos fenômenos positivos que, mantendo uma heterogeneidade com os
modelos substanciais estabelecidos pelo presente, cria um campo atravessado
por tensões polares que tendem ao abandono de uma inferência lógica. Talvez
nesse sentido torna-se mais evidente a proximidade do pensamento
agambeniano com aquele que Walter Benjamin pôde pensar por meio da
alegoria que, diferentemente da lógica metafórica foucaultiana (que estabelece
uma relação de campo de ordem semântica), descarta qualquer possibilidade
de formulação a priori. O campo criado no enfretamento de tensões é, assim,
incluído em uma lógica substancial como forma não de superá-la, mas de criar
meios de infindas possibilidades de um terceiro analógico que, não coincidindo
com os dois primeiros, os torna indistintos. O método aqui se faz, portanto, na
oposição entre o dialético e o analógico. Tal como a Voz, que tem lugar no
ponto de sutura entre o phoné (a voz da morte animal) e o logos (a palavra
humana) que definem a linguagem humana, o tópos (ao molde do que Platão
definiu como “terceiro gênero”) que determina o método em Agamben é
sempre um tópos outopos (lugar não-lugar).
O campo de tensões polares produzido pela operação arqueológica – em
detrimento das dicotomias substanciais – reivindica um terceiro elemento
heterogêneo àqueles que tornaram possível o campo. Assim, através da
neutralização das falsas dicotomias dadas pelas exceções produzidas
permanentemente em nossa cultura chega-se ao segundo constituinte
metodológico em Agamben: o paradigma.
Como fenômenos históricos positivos particulares, os paradigmas (para –
deigma = o que se mostra ao lado) se propõem em Agamben por meio de um
método analógico que opera somente a partir de seu não funcionamento e da
suspensão de uso normal, ou seja, somente se retirados de um uso habitual –
ou impondo a impossibilidade de uma regra – que os paradigmas podem servir
enquanto forma de conhecimento. O que não significa, em todo caso, que o
paradigma, ao se excluir da regra, esteja fora da norma. Antes, se trata de
compreender que uma vez retirado de um uso que o inscreve em qualquer
possibilidade contextual, o paradigma deve constituir e, ao mesmo tempo,
87
exibir um pertencimento ao caso normal. Desse modo, o método paradigmático
em Agamben opera como forma de compreender a totalidade dos fenômenos
por meio da exposição de suas singularidades (ou, se for o caso, das regras
gerais que nunca podem se constituir a partir de um a priori).
Sabemos por Agamben que o método arqueológico e paradigmático
atuam como contraponto simétrico da exceção e, por isso, se propõem
enquanto um projeto cuja lógica resulta no enfretamento entre uma força
substancial e outra que compreende a lógica do campo. Assim, enquanto a
exceção busca enredar o fluxo histórico por meio de uma ação que inclui
através de uma exclusão, o paradigma exclui através da exibição de sua
inclusão, ou seja, ele mostra “ao lado” de si a inteligibilidade e a classe a qual
constitui.
Ao seguir o método em Agamben, tomando a morte pelo paradigma
absoluto em seu pensamento, o que aqui se propõe parte da ideia de uma
crítica – enquanto uma tanatocrítica, ou seja, enquanto paradigma da crítica do
projeto agambeniano – poderia ter lugar no campo de tensão criado entre uma
tanatologia, que (como já exposto) busca propor por meio da relação entre
linguagem e morte uma indagação acerca do lugar em que o homem ocidental
pensa a própria relação fundamental com a linguagem; e uma tanatografia:
aquela experiência de escritura que guarda e celebra – no segredo de sua
relação com a poesia – o lugar que fala para e pelos mortos.

TANATOGRAFIA

A ideia de uma possível tanatografia em Giorgio Agamben nasce do


propósito de se pensar nos limites da vida transmutados para os limiares da
experiência escrita. Trata-se, pois, de incluir a poesia enquanto ideia em seu
pensamento.

88
A experiência de uma crítica que pressupõe a flutuação entre prosa e
poesia7 em Agamben se experimenta quando a poesia deixa de ser o algo
sagrado no último verso (quando a estrutura soberana do enjambement já não
é mais possível) transformando-se, assim, em prosa. Ou seja: a prosa – a ideia
da prosa – resulta da profanação da poesia em discurso prosaico 8. Essa
experiência, que se dá por meio da escritura, só aprofunda o sentido da prosa
diante de sua natureza herética. O que não quer dizer, para todo o caso, que a
prosa pressuponha uma forma vulgar. Pelo contrário, a heresia, como a
presença incorporada do Mal, se configura como forma única de aproximação e
desmistificação da substância, da matéria, da mercadoria, para que assim seja
possível se propor uma nova forma de uso.
Se assim se coloca um problema que acaba por definir a prosa enquanto
potência, quer dizer, enquanto elevada ao limite pelas tensões que a
atravessam – a saber, aquela de uma violência que transborda a vida, de um
lado, e aquela que incessantemente questiona e decide por meio da palavra, de
outro – pode-se compreender que aqui a “ideia de uma ideia” também resulta
em uma utopia da linguagem; como um tópos outopos que se destina a uma
“ideia da prosa”. É notável, contudo, que tal experiência – pelo menos ao
primeiro olhar – não parece ser uma constante no pensamento agambeniano.
Isso, porque a reflexão acerca da poesia, conjugada com a experimentação das
formas (mais evidente em obras como Ideia da prosa e A comunidade que
vem, cuja fórmula cardeal também pode ser descrita por meio da “definição do
pensamento enquanto ato particular da escrita”9), está manifesta de forma
pontual em precisos textos do pensador. Por outro lado, se leva-se em conta o
fato de que o trabalho de Agamben não deixa, em todos os casos, de se
configurar na lógica de um campo – dessa vez, entre prosa e poesia, entre a

7
Vale lembrar que, no caso da prosa e da poesia, trata-se também da formatação de um
campo, a saber, o campo crítico – ou momento crítico. Se em primeiro lugar buscamos colocar
a questão do pensamento enquanto o que deve, em consciência, saber lidar com a com o
silêncio de uma Voz, aqui é posto o problema da inclusão da poesia enquanto a linguagem que
deixa desvanecer toda possibilidade de consciência.
8
Cf. SCRAMIM, 2005, p. 176.
9
SEDLMAYER in PUCHEU, 2008, p.143
89
palavra que pensa e a palavra que goza – , seria no mínimo prudente concordar
que se trata apenas de formas diferentes – ainda que inelutáveis – de exigir o
que, ao fim é o mesmo, ou seja trata-se “[da] implacável reivindicação [do]
nada como pura, absoluta potência”10.
Se a prosa – como discurso crítico – nasce da impossibilidade da poesia,
uma “ideia da prosa” – a ideia de uma crítica – advém de sua possibilidade e
impossibilidade. O que resta dessa tensão: isso é uma “ideia da prosa”. À
linguagem humana destina-se o saber aprender a colher esse gesto. Caberia
pontuar, nesse sentido, que uma “ideia da prosa” só pode resultar na prosa e
que, assim sendo, a prosa deve guardar a negatividade da ideia como seu bem
mais precioso. Partindo da experiência de escritura fundada em tal proposição é
que a crítica em Agamben também se abre a uma possibilidade de
experimentar uma tanatografia.
Em um de seus textos, o pensador italiano citará Hölderlin quando esse
define a palavra poética/trágica como aquela “que dá a morte, porque o corpo
que ela aferra realmente mata”11. O anúncio de Hölderlin não só coloca o
problema da poesia enquanto aquele que guarda uma persuasão que se efetiva
no corpo de forma violenta e passional, mas também aquele que se direciona à
própria palavra poética, cujo destino, dando a morte, só pode coincidir com ela.
Disso decorre que a poesia, violentamente e passionalmente, só diz da morte
porque é o que, de fato, ela tem a dar. Por outro lado, o que ela oferece ao
doar é simplesmente a impossibilidade de dizer que só se torna possível
dizendo. A tanatografia, como a experiência que exige uma postura de
alteridade diante daquilo que está constantemente a negar o idêntico, inscreve-
se justamente nesse gesto de abrir-se à morte, não para morrer, mas para,
diante da impossibilidade de falar dela – diante da potência e da impotência da
força da palavra jogada a seu próprio silêncio –, arriscar-se naquilo que da
palavra ficou por exprimir e, só desse modo, aprender a morrer. “O anjo da
morte – escreve Agamben – [...] é a linguagem. O anjo anuncia-nos a morte –

10
AGAMBEN, 2007b, p.25
11
AGAMBEN, 2012b
90
e que outra coisa faz a linguagem? – mas é precisamente este anúncio que
torna a morte tão difícil para nós”12.
Dadas tais considerações torna-se possível um questionamento sobre o
mistério que se guarda nos abismos entre as línguas vivas e as línguas mortas;
no segredo que o anjo da linguagem, ao anunciar, ocultou em seu próprio
gesto; naquela língua que o muçulmano – a figura-limite que se afogou no
holocausto - pôde experimentar ao “fitar a medusa” no Lager, ou aquela
mesma que percorre os últimos sinais de vida indecifráveis do comatoso, do
néomort e do faux vivant. Se tal relação de fato é possível, assim como as
formas de vida levadas ao limite pelo estado de exceção contemporâneo
produzem uma espécie de Voz política, também da poesia é possível falar de
uma Voz poética. Com efeito, corpo poético e corpo político abrem-se também
a outra possibilidade analógica entre crítica e biopolítica, como categorias que
são dadas à contemporaneidade pelo campo indiferente que se funda por entre
a poesia e os elementos que constituem uma tanatopolítica. Dessa tensão, que
resulta numa espécie de resto discursivo, nasce a possibilidade de uma
tanatocrítica: o discurso crítico que guarda no “silêncio do rosto (...) a
verdadeira morada do homem”13.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da


negatividade. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

_________________ . Estâncias: A palavra e o fantasma na cultura ocidental.


Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.

_________________ . Ideia da prosa. Trad. João Barrento. Lisboa: Cotovia,


1999.

_________________ . Profanações. Tradução e apresentação Selvino J.


Assmann. São Paulo:
Boitempo, 2007.

12
AGAMBEN, 1999, p.126.
13
Ibid., p.112.
91
_________________ . Sobre os limites da violência. Tradução de Diego
Cervelin. Revista Sopro, v.79, setembro, 2012b. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro.

HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. São Paulo: A Girafa, 2006.

PUCHEU, Alberto (org.). Nove abraços no inapreensível: filosofia e arte em


Giorgio Agamben. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

SCRAMIM, Susana. A exceção e o excesso. Revista Outra Travessia, n.5, 2005.


Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/12592.
Acesso em: 20/10/2014.

92
TEORIA COMO TRADUÇÃO: DELEUZE & GUATTARI, DERRIDA E
SPIVAK
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad1
(UFG/CAC)
RESUMO: Pretende-se, a partir das obras de Jacques Derrida, Gayatri
Chakravorty Spivak e de Gilles Deleuze & Felix Guattari, pensar na própria
teoria da literatura como uma tradução. Aqui, não é um estudo sobre a
tradução, sobre como funciona a tradução, sobre os processos tradutórios, ou
algo desse viés, mas uma forma de pensar como a própria teoria da literatura é
uma espécie de tradução. Nesse sentido, é importante apontar as reflexões
desses teóricos supracitados que, com maior ou menor ênfase, pensaram sobre
o que é uma tradução para que esse próprio pensamento seja incorporado para
dentro da teoria, isto é, contemplar os sentidos e as diferenças da resposta e
da ideia de fantasma, tal como pensado por Derrida; entre o original e a
sombra; entre lógica, retórica e gramática; sobre os silêncios retóricos, como
argumentado por Spivak; sobre propagação, extensão, refração, renovação e
impulso, que Deleuze & Guattari apontam como intrínsecos ao processo de
traduzir.

Vou começar com um pequeno desvio para me colocar diante de um escritor


que é bilíngue ou plural, como definiu Célia Barrentini (2004): Samuel Beckett e
um de seus textos mais citados ultimamente. Não se trata de Esperando Godot
ou Dias Felizes, muito menos de alguma das obras de sua trilogia, apesar de
que poderia ter começado por aí, também. Trata-se de Worstward Ho (2006, p.
471), sua antepenúltima obra. O trecho em questão, tantas vezes citado, é o
seguinte: “Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better”.
Deste trecho segue-se: “First the body. No. First the place. No. First both. Now
either. Now the other”.
Eu poderia tentar uma tradução para estes trechos. A primeira escolha
seria para a palavra “ever”. Escolherei eu “já tentei” ou “sempre tentei” ou
“nunca tentei”? Escolherei o “já falhei” ou “sempre falhei” ou “nunca falhei”?
“Não importa. Falhar novamente” daí se segue o “Falhar melhor”. Mas em qual

1 Mestre em Teoria da Literatura e doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo


PosLit da FALE/UFMG. É pós-doutorando pelo Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem
da UFG/CAC.
93
sentido deveria apreender essa última frase? Uma falha melhor é algo com
mais falha ou algo com menos falha? A minha tentação é roupar a resposta do
próprio texto, “não importa, tente novamente”. Ou tentar a resposta pela frase
seguinte mencionada: “Primeiramente o corpo. Não. Primeiramente o lugar.
Não. Primeiramente ambos”. Daí se segue “now either”. Como escolho? “Agora
qualquer um”? “Agora ambos”? “Agora em vez de”? Diante da escolha ainda me
encontro com o “Agora o outro”. Qual é esse outro enunciado aqui diante de
ambos, diante de qualquer um, diante do “em vez de”?
Como me portar diante desse outro é para onde quero prosseguir.
Porque esse outro corresponde a algo não inteiramente fixado entre as
escolhas que poderiam inicialmente ser perseguidas, isto é, entre o corpo ou o
lugar, porque o corpo e o lugar podem ser parte e podem não ser parte do
mesmo “either” que o outro nega e não nega ao mesmo tempo, porque podem
ser ambos ou podem ser qualquer um. Esse outro, pois, é uma espécie de
interseção entre o “ambos” e o “qualquer um”, mas que reserva o seu espaço
único em que também não está inserido o “ambos” e o “qualquer um”, que é
somente o outro.
Spivak nos coloca o problema do Outro, ou, melhor dizendo, nos coloca
que o pós-estruturalismo, entre outros princípios, “tenta revelar e conhecer o
discurso do Outro da sociedade” (SPIVAK, 2010, p. 22). Sua resposta é nada
otimista para aqueles que pretender achar a interseção entre o outro e o
qualquer um, ainda mais quando pensa que a voz desse Outro é, também, a
voz do subalterno, em especial a voz da mulher subalterna do terceiro mundo:
“o subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à ‘mulher’ como um
item respeitoso nas listas de prioridades globais. A representação não definhou”
(SPIVAK, 2010, p. 126). A solução seria falar pelo o Outro? Ou falar ao Outro?
Ou falar sobre o Outro? Ou falar com o Outro? Spivak, se a li bem, rechaça a
possibilidade de falar pelo outro, de falar sobre outro, já que isto proporcionaria
uma reificação desse mesmo Outro. E como posso me dirigir a esse Outro para
falar a ele? Me parece que ao falar ao outro corre-se o risco de que não se
encontre a resposta, que não se escute, que, enfim, ele possa novamente não
94
falar. Mas e falar com o Outro? Como incluir a voz do outro para que possa
falar com ele e não sobre ele e não para ele? Com o outro parece ser uma
possibilidade de interseção que preserva a área independente do próprio Outro.
No exórdio que abre o seu Espectros de Marx, Derrida reflete sobre a
estranha frase “aprender a viver” e evoca os fantasmas: “é preciso falar do
fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética,
nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem
reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou
por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam
mortos, quer ainda não tenham nascido” (DERRIDA, 1994, p. 11). Os outros,
ainda não nascidos e os já mortos. O Outro fantasmático aqui não deixa
parênteses quando se trata dos vivos, é um Outro da memória do passado, um
Outro da memória do futuro, um Outro que se comunica com os presentemente
vivos. São esses fantasmas, ou fantasmas-outros que poderiam nos dizer como

viver de outro modo, e melhor. Não melhor, mas justamente. Mas com eles.
Não há estar-com o outro, não há socius sem este com que, para nós, torna
o estar-com em geral mais enigmático do que nunca. E este estar-com os
espectros seria também, não somente, mas também, uma política da
memória, da herança e das gerações (DERRIDA, 1994, p. 11).

Aqui, deveríamos pensar que deveríamos falar-com ou simplesmente


estar-com? Ou estar-com é também uma forma de falar-com? Se sim, aqui se
trata também de uma política, uma política que é, como define Derrida, da
memória, da herança e das gerações. Sei que parece que estou devagando,
isto é, sendo devagar e divagando ao mesmo tempo. Sei que o que prometi
como um pequeno desvio que parece estar se estendendo demais. Mas aponto
que um desvio ainda é uma forma de chegar a algum lugar, ou, melhor
dizendo, que é desviando que se pode chegar a algum lugar, desviando para
fora do tempo, desviando com o tempo descontrolado. “O tempo está fora de
controle”, diz Hamlet, retransmitido especularmente no texto supracitado de
Derrida, um desvio que vou seguir adiante, porque não posso negar agora o

95
espaço da política, dessa política da memória, da política do estar-com ou do
falar-com.
Porque é da política que chego à tradução, ou como bem definiu Spivak,
às políticas da tradução. Em texto com este título, a teórica indiana aponta que
existiria sempre em um texto o que ela denomina de “silêncio retórico”. Não é
mais aquilo que é dito, mas aquilo que intencionalmente não é colocado nos
textos originais e que, nem sempre, os tradutores estão atentos. Essas posições
extraliterárias são, muitas vezes, esses silêncios retóricos que, na tradução são
silenciados, mas que, doravante, se tornam ainda mais presentes.
Volto a Beckett, volto ao texto que discutia acima. Volto, ou revolto,
porque aqui é apenas uma pausa no texto de Spivak. Quando traduzo, ou
quando tento traduzir e me questiono as possibilidades de tradução para os
trechos supracitados, eu acabo por evidenciar que uma escolha irá impedir
outras escolhas possíveis. Ou seria possível uma tradução que incluísse aí todas
as possibilidades? Enfim, se traduzisse o “ever treid” não por uma dessas
escolhas, mas traduzisse assim: “já sempre nunca tentei”? Mesmo assim, eu
estaria ali tolhendo outras possibilidades, como ao trocar a ordem dos termos,
como em “sempre nunca já tentei” ou “nunca já sempre tentei”. Aqui, claro,
nesse processo de tradução, seja escolhendo um termo ou escolhendo o
encadeamento de sentidos possíveis numa mesma sentença, se revela que por
trás da escolha o silêncio, o silêncio retórico, e se descortina o que estava
silenciosamente inscrito no texto beckettiano, uma pluralidade de sentidos
possíveis e de possibilidades de tradução que uma sentença tão curta como
“ever tried” pode conter. Traduzir aqui, seguindo Spivak, seguindo Derrida,
expandindo Beckett, é uma forma de redimensionar uma mesma fala, empregar
um primeiro sentido, depois negá-lo, escolher outro e daí negá-lo novamente,
então todos os sentidos juntos, depois nenhum e daí o outro.
Tradução, nesse sentido, pode ser entendida como um
redimensionamento, como uma espécie de expansão. É aqui que trago os
últimos convidados anunciados, Deleuze e Guattari, talvez os convidados mais
surpreendentes. Surpreendentes porque, diferente de Spivak e Derrida, não
96
constituíram volumes em que se discute incisivamente a tradução. Mas no
círculo expansivo e irradiante de seus Mil Platôs, entre parágrafos de seu último
capítulo, O Liso e o Estriado, encontramos a seguinte afirmação:

Traduzir não é um ato simples; não basta substituir o movimento pelo


espaço percorrido, é preciso uma série de operações ricas e complexas (e
Bergson foi o primeiro a dizê-lo). Tampouco é um ato secundário. Traduzir é
uma operação que, sem dúvida, consiste em domar, sobrecodificar,
metrificar o espaço liso, neutralizá-lo, mas consistente, igualmente, em
proporcionar-lhe um meio de propagação, de extensão, de refração, de
renovação, de impulso, sem o qual ele talvez morresse por si só: como uma
máscara, sem a qual não poderia haver respiração nem forma geral de
expressão. (DELEUZE & GUATTARI, 2008, p. 195-195)

Aqui, o processo de tradução é definido por uma quantidade de verbos: domar,


sobrecodificar, metrificar, neutralizar, o que indica que traduzir é também um
tipo de ação. E aqui é uma ação em direção à propagação, extensão, refração,
renovação e ao impulso. Traduzir, no sentido que entende Deleuze e Guattari,
não é um ato de aprisionamento, de asfixiamento, de cerceamento, de
enjaulamento.
Aqui chego ao meu primeiro ponto para pensar a teoria como uma
tradução. Um outro primeiro ponto poderia ter sido de descoberta mais fácil,
com um silogismo mais enxuto, enfim, a possibilidade de outro ponto de partida
poderia ter sido outra chave de Derrida, ou mesmo Bakhtin, de que já que tudo
são signos, tudo é uma tradução. Não que isso não seja uma verdade ou,
melhor dizendo, que isso não é uma possibilidade de verdade. Mas aqui tento
pensar um pouco além dessa afirmação, um pouco além dessa reforma
automática do império dos signos, isto é, quero dizer que tudo pode ser
tradução, mas que uma tradução também é mais do que isto. Nesse sentido,
pensar a teórica como uma tradução não é uma questão de codificar, achar
elementos de uma maneira x e reatualizá-los de uma maneira y – não que seja
isso que Derrida ou Bakhtin afirmam quando falam dos signos – como o senso
comum apregoa, mas uma maneira de fazer emergir do x uma multiplicidade
de ys, como uma forma de expandir e renovar o próprio x. Uma espécie de
97
“ever” que pode ser tantos. A teoria, pensada dessa maneira, não é uma forma
de buscar locais fixos, estanques, a teoria não é uma forma de fixação de uma
verdade monolítica e imutável ou engarrafada, ou até pode ser engarrafada se
for jogada no mar para encontrar outra praia.
Aqui talvez seja um pouco ingênuo, ou mesmo cômico, que eu me
recorra a uma imagem ou mesmo a uma metáfora, ainda mais quando se trata
de uma imagem e metáfora desgastada. Mas suponhamos que esse meu
recurso retórico de retomar a imagem e a metáfora da garrafa com uma
mensagem que navega pelo mar seja, por alguns minutos, uma espécie de
forma de pensamento. Suponhamos que sejamos capazes de aceitar, mais uma
vez, essa possibilidade imagética/metafórica. Se ela for aceita, pois, ela é uma
nova forma que essa mesma metáfora carrega, somado-se a outras metáforas
da garrafa no mar, não subtrai e elimina as outras, é mais uma, mais uma
possibilidade de traduzir, utilizando os mesmos termos, para algo inteiramente
novo.
Mas suponhamos ainda que a metáfora da garrafa não seja também
assim tão inocente. Retorno a Beckett e o texto Worstward Ho. O título, como é
sugerido, remete a outro texto, Westward Ho!, de Charles Kingsley, que por
sua vez remete ao texto dramático Eastward Hoe de George Chapman, Ben
Jonson e John Marston. Leste, oeste e pior ou derrotado. O texto de Beckett é
de 1983, o de Kingsley de 1855 e o dos três autores foi impresso em 1605.
Enfim, entre os três textos temos quase 380 anos de distância, mas um texto
remete ao outro, de alguma forma. Como uma garrafa abandonada podemos
sair da de um texto anti-escocês na Inglaterra, navegar o Atlântico, chegar ao
caribe, brigar com espanhóis em uma fragata e voltar para o lugar nenhum
enunciado que está presente no título do texto de Beckett. Temos aqui uma
expansão, uma outra tradução.
O quanto se pode expandir uma obra? O quanto uma obra pode ser
propagada e impulsionada? O quanto uma tradução de uma obra pode ser
renovada e estendida? Aqui, a pergunta é: há limite pra uma tradução? Há
limite, para voltar a Spivak, entre a obra original e sua sombra? Para a teórica
98
indiana, um texto produz uma série de tipos de relações que devem ser levadas
em conta na hora da tradução: relação entre lógica e retórica, ente gramática e
retórica, que são “relações entre a lógica social, razoabilidade social, e a
desorganização da figuração na prática social” (SPIVAK, 1993, p. 209), bem
como essa retórica apontará para “a possibilidade de aleatoriedade, a
contingência como tal, disseminação, o desmoronar da linguagem, a
possibilidade de que as coisas podem não ser sempre semioticamente
organizadas” (SPIVAK, 1993, p. 209).
Semioticamente desorganizada, uma linguagem que desmorona: há de
ter essas possibilidades num processo de tradução assim como da
aleatoriedade, da contingência e da disseminação. Disseminação, expansão,
renovação. Desorganização, linguagem desmoronada. Os termos vão firmando
posição para fazerem conexão entre si e depois outras conexões e daí mudando
os lugares, ocupando o lugar de outrem. Primeiramente a expansão. Não.
Primeiramente a disseminação. Não. Agora ambos. Agora o outro. Qual pode
ser esse outro? Esse outro não é um identificado: renovação, aleatoriedade,
contingência, propagação, extensão, impulso e mais uma série de outros
termos que vão sendo agregados quando se tenta traduzir os textos sobre
tradução. Enfim, quando se pensa sobre a teoria como tradução chegamos ao
ponto que delineamos desde o início com o questionamento do texto de
Beckett. Pensar a teoria como tradução nos faz ter que expandir o próprio
sentido de tradução agregando vários pontos, agregando vários significados,
várias palavras. Pensar a teoria como tradução vai, também, criando vários
silêncios retóricos – e aqui não escondo a ausência de um sem número de
textos importantes do tema, até mesmo dos autores citados. Mas pensar a
teoria como tradução nos indica uma direção, sem dúvida, uma direção colhida
nas pistas deixadas pelos próprios teóricos: teorizar como uma tradução é
expandir, propagar, estender, impulsionar, disseminar; é entrar em contato
com a possibilidade de aleatoriedade, com a contingência, não é o caso de
fazer um mesmo texto de uma outra forma, mas o caso de projetar uma
sombra do texto original.
99
Mas aqui uma pergunta se impõe, aliás, duas, porque uma ainda não foi
suficientemente respondida. A primeira seria: e o Outro do qual tanto se falou
esse texto. Essa pergunta ainda se apresenta como dilema, mas talvez o com o
outro sugira alguma direção para a questão. A segunda: existira um limite de
expansão ou tal como o universo ele é infinito? Volto ao texto de Derrida, volto
a uma expressão colhida em seu texto – “responsabilidade da língua”
(DERRIDA, 1994, p. 25). Da responsabilidade da língua, Derrida irá se deparar
com a expressão de Hamlet supracitada: “the time is out of joint”. Da tradução,
da tradução desse espectro que fala na peça de Shakespeare, ele apregoa que
não se trada de um, mas de mais de um. Pensar a teoria como tradução, esse é
meu último ponto por aqui, talvez não seja ver um, e somente um, fantasma
apropriado para se falar de um texto, para se pensar a respeito de um texto,
para se projetar a sombra de um texto, para se expandir um texto. Pensar a
teoria como tradução é pensar que é mais de um, que não é uno.
Um adento é importante: aqui não se propõe uma forma de se teorizar,
mas uma forma de pensar a teoria ou pensar como a teoria responde ao texto.
Quero com isso dizer que isso não é uma forma de pensar como proceder, mas
pensar sobre como a teoria até hoje procedeu. Por isso, cito aqui, mesmo de
passagem, alguns momentos brasileiros em que, de alguma forma, a teoria
enquanto tradução significou também essa expansão, disseminação,
propagação: a tradução intitulada Direito das mulheres e injustiça dos homens,
de Nísia Floresta do texto de Mary Wollstonecraft; o texto de Joaquim Nabuco,
Balmaceda; a teoria do autor, tal como apregoada por Glauber Rocha no Brasil;
o estruturalismo de Luiz Costa Lima. Existem, claro, muitas outras.
Para não falar que não falei de Torres de Babel, cito, Junia Barreto, sua
tradutora. Ela afirma que sua esperança ao traduzir a obra de Derrida é “não
destruir as possibilidades de descobrir a escritura que se esconde na produção
da escrita” (BARRETO, 2002, p. 7). Se me permitem fazer essa ligação, ela
pensa numa sobrevida do texto, com uma responsabilidade da língua. Dizendo
de outra maneira, e resgatando outro texto derridiano, talvez trate-se de
responder ao texto, responder com o texto, “seja lá o que queira dizer
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‘responder’” (DERRIDA, 2002, p. 26). Espero aqui ter encontrado alguma forma
de ter respondido ao que me propus, ter respondido sobre pensar a teoria
como uma espécie de tradução e, espero, sobretudo, que tenha falhado
melhor, seja lá o que queira dizer “falhar melhor”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRENTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural.São Paulo: Perspectiva,
2004.

BARRETO, Junia. Introdução. In: DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Trad.


Junia Barreto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

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IV: Poems, Short Fiction, Criticism. Nova Iorque: Grove Press, 2006.

DELEUZE, Gilles & GUATARI, Felix. O Liso e o Estriado. In: DELEUZE, Gilles &
GUATARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. V. 5. Trad. Peter Pál
Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2008.

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e


a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.

DERRIDA, Jacques. O Animal que Logo Sou. Trad. Fábio Landa. São Paulo:
Unesp, 2002.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. The Politics of translation. In: SPIVAK, Gayatri


Chakravorty. Outside in the Teaching Machine. Nova Iorque & Londres:
Routledge, 1993.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno Falar? Trad. Sandra Regina


Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2010.

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