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- Afinal, municípios podem legislar concorrentemente?

Otávio Piva

O Brasil, desde 1889, adota a forma FEDERATIVA de Estado.

Isso significa que, como Estado Federal, existe uma organização formada
sobre a base de uma repartição de competências entre um governo nacional e
os governos estaduais, de tal sorte que a União tenha supremacia sobre os
Estados-membros, e estes, que normalmente participam na formação da
vontade do Estado central, são entidades dotadas de autonomia constitucional
perante a mesma União1.

Nessa esteira, sem exclusão de demais fórmulas de repartição de


competência previstas no texto constitucional, no art. 24, foram listadas as
matérias que são legisladas concorrentemente:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito


Federal legislar concorrentemente sobre: (...)

Evidentemente, a simples leitura faz excluir a entidade municipal da


partilha de matérias do art. 24. Por sinal, da doutrina é possível extrair
passagens a favor desse entendimento restritivo e simplificado (grifos nossos):

1
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 1.vol. São Paulo : Saraiva, 1989, p. 393.
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“O art. 24 estabelece a ‘competência legislativa concorrente’


entre a União, os Estados e o Distrito Federal. Os Municípios
não foram contemplados com a possibilidade de legislar
concorrentemente sobre tais matérias.”

(PAULO, Vicente. Aulas de Direito Constitucional. Org. Juliana


Maia. 8ª ed. Rio de Janeiro: Ìmpetus, 2006, p. 95).

Com a devida vênia, não parece ser essa a melhor interpretação a ser
conferida à Constituição Federal.

Ocorre que o art. 30, I e II, da Constituição Federal estabelece que aos
municípios cabe legislar sobre assuntos de interesse local (peculiar) e, ainda,
que a estes cabe suplementar a lei federal e estadual “no que couber”.

Ora, a expressão final “no que couber” aduz claramente que à


municipalidade caberá suplementar tudo aquilo que, de acordo com as
peculiaridades locais, demonstre haver necessidade e interesse, inclusive nas
matérias aduzidas no art. 24 da Constituição!

Essa é a posição majoritária na doutrina (grifos nossos):

A leitura do art. 24 mostra que a competência legislativa


concorrente foi distribuída entre a União, os Estados e o Distrito
Federal, não se mencionando os Municípios entre os
aquinhoados.
Isto não significa que estes estejam excluídos da
partilha, sendo-lhes dado suplementar a legislação
federal e estadual, no que couber, conforme dispõe o art.
30, II, da Constituição.

(ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na


Constituição de 1988. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 156).
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Nesse sentido, cumpre logo verificar que o art. 30, II, da


Constituição Federal atribui aos Municípios competência para
‘suplementar a legislação federal e a estadual no que couber’.
Assim sendo, parece claro que a divisão de competências
concorrentes próprias ocorre em três níveis: no federal,
onde foi conferido à União o poder de criação de normas gerais;
no estadual, em que foi outorgada a competência suplementar
aos Estados-membros; e no municipal, onde os Municípios
ficaram encarregados da suplementação das normas
gerais e estaduais em nível local todas as vezes em que
este interesse ficar evidenciado.

(ARAÚJO, Luiz Alberto David et.al. Curso de Direito


Constitucional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 274).

A competência suplementar se exerce para regulamentar as


normas federais e estaduais, inclusive as enumeradas no art.
24 da CF, afim de atender, como melhor precisão, aos
interesses surgidos das peculiaridades locais.

(MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional.


São Paulo: Saraiva, 2007, p. 776).

O art. 30, II, da Constituição Federal preceitua caber ao


município suplementar a legislação federal e estadual, no que
couber, o que não ocorria na Constituição anterior, podendo o
município suprir as omissões e lacunas da legislação federal e
estadual, embora não podendo contraditá-las, inclusive nas
matérias previstas do art. 24 da Constituição de 1988.

(MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo:


Atlas, 2007, p. 301).
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Veja-se, portanto, que a chave da questão é entender que às


municipalidades brasileiras foi permitido suplementar as leis federais e estaduais
naquilo que demonstrado existir “interesse local”.

Aqui, por sinal, se encontra toda a sutileza da matéria: não se trata de


simples inclusão genérica, por força interpretativa, do município no rol de
competências concorrentes do art. 24. Efetivamente, não.

Ocorre que na tradicional divisão de competências do art. 24, entre


União, Estados e Distrito Federal há a delimitação do campo de atuação de cada
ente federativo. Caberá à União estabelecer normas gerais e aos Estados
suplementar tais leis. É a chamada competência concorrente “não cumulativa”.

Para os municípios, contudo, não há esse expresso regramento, podendo


suplementar tão-somente (ou, por que não, ‘tudo’) aquilo em que for
demonstrado interesse local (grifos nossos):

Como dissemos antes, trata-se de modalidade de


competência legislativa concorrente primária, porque
prevista diretamente na Constituição, mas diferente da
competência concorrente primária que envolve a União e
os Estados. E diferente porque a Constituição não
define os casos e as regras de atuação da
competência suplementar do Município, que surge
delimitada implicitamente pela cláusula genérica do
interesse local.

(ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na


Constituição de 1988. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 156).
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Essa compreensão conduz, portanto, que aos municípios não será


possível suplementar a legislação federal e estadual em todas as matérias do
art. 24, como por exemplo, criação e funcionamento dos Juizados Especiais
(inc. X), posto que é acaciano que a municipalidade não possui Poder Judiciário.

Por outro lado, veja-se o exemplo da matéria do art. 24, XIII, qual seja,
legislar sobre “defensoria pública e assistência jurídica”.

Talvez, em primeira visão, se possa apressadamente excluir o município


dessa matéria, considerando uma suposta impossibilidade de enquadrar tal
conteúdo à cláusula geral do interesse local municipal. Todavia, isso não é
verdade.

Exemplificativamente, o Município de Porto Alegre, através da Lei 7.433,


de 07 de junho de 1994, criou a “Assistência Jurídica Municipal com atribuições,
dentre outras, de atuar na defesa dos cidadãos e das entidades municipais
necessitadas, em questões relativas à regularização fundiária de imóveis
urbanos, fornecendo orientação jurídica, promovendo ações, contestando,
reconvindo e recorrendo. Assim, o Município, através do serviço de assistência,
atende matérias de cunho eminentemente local, em consonância com as normas
constitucionais e infraconstitucionais...”2.

Outro exemplo que podemos citar para melhor esclarecer os limites da


competência municipal diz respeito à norma inscrita no art. 24, XV (proteção à
infância e à juventude), da Constituição Federal.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul têm entendido que


não é inconstitucional lei municipal que estabeleça outros critérios para o
exercício da função de Conselheiro Tutelar:

2
Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre – PGN/PMPA, Escola Superior de Direito
Municipal. Avaliando o Estatuto da Cidade/ II Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico. Porto
Alegre: Editora Evangraf, 2002, p. 705.
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“EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA.


DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. ESTATUTO DA CRIANÇA E
DO ADOLESCENTE. ELEIÇÃO. CONSELHO TUTELAR. REQUISITOS
PARA A CANDIDATURA.

Não ofende ao princípio da legalidade o Município estabelecer


requisitos aos candidatos a Conselheiro Tutelar, dispostos em lei
municipal que complemente a lei federal, além dos requisitos
enumerados no art. 133, do ECA, norteado pelo peculiar interesse
local. Disposições do art. 24, inciso XV e art. 30, inciso II, da
Constituição Federal. (...)”.

(TJRGS, Reexame Necessário nº 70009617630, 3ª Câmara Cível, Rel.


Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. 07/10/2004).

Por sinal, é digno de parcial transcrição, o irretocável artigo3 da Dra.


Vanêsca Buzelato Prestes, Procuradora do Município de Porto Alegre, que
possibilita exemplar inteligência da questão (grifos nossos):

“A criação dos Conselhos Tutelares é decorrência da política de


descentralização administrativa e da municipalização do
atendimento à criança e ao adolescente. O Conselho Tutelar é um
órgão público, sendo os conselheiros agentes públicos municipais.
Existe, portanto, um serviço público criado que é de
interesse local.
Destarte, o órgão a ser criado deve ser debatido nos municípios e
institucionalizado à luz da realidade da urbe. Diante da diversidade
da realidade dos Municípios teremos diferença de número de
conselhos, de pagamento ou não aos conselheiros, de
funcionamento ininterrupto e de diferenças de requisitos à
candidatura. Aliás a essência da municipalização do atendimento à
criança e ao adolescente está em que a própria comunidade
assuma esta questão como problema seu, a ser enfrentado
globalmente. Para tanto, os poderes constituídos, leia-se Executivo
e Legislativo Municipal, devem legislar para criar o serviço público
Conselho Tutelar, com base na necessidade local.

3
REQUISITOS À CANDIDATURA DE CONSELHEIRO TUTELAR COMPETÊNCIA MUNICIPAL
PARA LEGISLAR. Extraído do site:
http://www.mp.mg.gov.br/extranet/visao/sigecon/html/uploads/html_proprio/html_7621/material/dout
rina/Requisitos%20%E0%20candidatura%20de%20conselheiro%20tutelaR.htm
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Assim, não há formas gerais prontas a acabadas. Aos Municípios


menores em que todos se conhecem e que o conselheiro tutelar
pode ser localizado na iminência e quando da efetiva violação de
direitos de crianças e adolescentes talvez não haja necessidade de
sequer estabelecer expediente. Contudo, em Municípios maiores
onde o local de funcionamento do serviço público é a referência
para buscar o "socorro" imprescendível, o serviço deve funcionar
de forma permanente. Este ente outros tantos outros, é a
especificidade que cabe aos Municípios legislar, para atingir a
essência do que a Constuição Federal e o Estatuto como norma
regulamentadora visaram atingir, que á a municipalização do
atendimento à criança e ao adolescente, aliado ao atendimento
imediato para prevenir e remediar as violações de direitos sofridas
pelos mesmos.
Assim, inobstante os Municípios não constarem no art. 24
como aptos a legislarem sobre proteção à infância e ao
adolescente, aquilo que for de interesse local e,
especificamente para criação do serviço público, pode e
deve legislar.
Ainda, abstraindo o fato de estar dispondo sobre serviço público
municipal, no âmbito da legislação concorrente podem os
Municípios suplementarem a legislação federal e a estadual, no
que couber (art. 30 II da C. F.) A competência suplementar
engloba a complementar, que significa desdobrar,
pormenorizar, detalhar o conteúdo de uma norma geral e a
suplementar, que significa suprir, preencher. Destarte,
pode e deve o Município complementar normas gerais
originárias da União, a fim de ver cumprida a sua
responsabilidade pública.

Enfim, é fácil concluir que, efetivamente, naquilo em que demonstrado


interesse local, o município poderá legislar concorrentemente nas matérias do
art. 24, suplementando a legislação federal e estadual no que couber.

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