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| _JEAN-PAUL “= Cy Sn a Io s ivros de bolso *A-AMERICA “AS MAOS SUJAS _ fot representada pela primeira vez em Paris, na notte de 2 de Abril de 1948, no Teatro Antoine (directora, Simone Berriau) e com a seguinte distribuicdo : André Luguet Francois Périer Paula Dehelly =~ Marie Olivier Sen a es eS VOL ELLE Jacques Castelot Roland Bailly Maurice Regamey Robert Le Béal Maik = Christian Marquand Encenacdo de Pierre Valde Cenérios de Emile e Jean Bertin Maquetas de Olga Choumansky PRIMEIRO QUADRO EM CASA DE OLGA O rés-do-chéo de uma casa pequena, 4 beira da estrada principal. A direita, a porta de entrada e uma janela com portas de pau exteriores, que estao fechadas. Ao fundo, o telefone, em cima de uma cémoda. A esquerda alta, uma porta, Uma mesa, algumas cadeiras. Mobilidrio hete- réclito e barato. Percebe-se que a pessoa que ali vive é totalmente indiferente aos méveis. A esquerda, a0 lado da porta, uma chaminé de aquecimento; por cima da cha- miné, um espelho. Passam automéveis, de vez em quando, pela estrada. Buzinas. Klaxons CENA I OLGA, depois HuGO (Olga, sozinha, sentada em frente de uma telefo- nia, manobra os botées do aparelho. Ruidos, depois uma v0z bastante distinta.) CUTOR: Os Alemfes batem em retirada em toda a > da frente. Os exércitos soviéticos apoderaram-se hnar, a quarenta quilémetros da fronteira ilirica. que podem, as tropas iliricas recusam o combate; s transfugas passaram j4 para o lado dos Alia- 3, nés sabemos que Vos obrigaram a pegar em ntra a U. R. 8S. S., conhecemos os sentimentos mente democraticos da populac&o iliria e esta- (Olga destiga o aparelho; a voz deixa de se ouvir. Olga fica imével, de olhos fixos. Pausa, Batem @ porta. Olga estremece. Voltam a bater. Olga dirige-se devagar para a porta. Batem de novo.) il “Shl ‘oe | . T rs 1 1 HucGo: £ tag cémodo dar aos outros: nada melhor para guardar ag distancias. E depois quem come tem sempre um ar de pessoa inofensiva. (Pawsa.) Pego-te que me desculpes: nao tenho fome nem sede. OLGA: Quem é? A VOZ DE HUGO: Sou eu, o Hugo. OLGA: Quem? ; 3 OLGA: Tinha sido mais prdtico dizeres logo. A voz DE Hvuco: Hugo Barine. (Olga estremece. Serena rapidamente, e fica imdével diante da porta.) N&o reconheces a minha voz? Abre, v4 14! Abre-me a porta. a eee, a A ial ll ised Yi eae Huco: O qué? Ja n&o te lembras? Eu falava sem- pre de mais. i lion (Olga caminha rapidamente para a cémoda... mete OLGA: Lembro-me. a médo esquerda na gaveta, agarra num objecto, enrola a mado numa toalha e vai abrir a porta, deitando-se para trds com vivacidade, para evi- tar surpresas, Vé-se, no limiar, um rapagdo de 23 anos.) HuGo, olhando @ roda dele: Que deserto! E, todavia, tudo esté no mesmo sitio. A minha maquina de escrever? OLGA: Vendeu-se. HucGo: Sou eu. (Olham-se um momento em siléncio.) Huco: Ah! (Pausa. Contempla a sala.) Que vazio! Estas admirada ? OLGA: Que vazio o qué? OLGA: Admirada com a tua cara. . HuGo, com um gesto circular: Tudo isto! Estes -méveigs parecem abandonados num deserto. Na prisdo, _ quando eu estendia os bragos podia tocar ao mesmo . tempo em duas paredes opostas. Anda ca para o pé de mim. (Olga nao se aproxima.) & verdade; fora da prisao ag pessoas vivem a uma distancia respeitosa. Tanto espacgo perdido! & cémico estar em liberdade: d& vertigens. Tenho de me habituar outra vez a falar com os outros sem lhes tocar. HuGo: Sim. Estou mudado. (Pausa.) JA me viste bem? Reconheceste-me bem? N&o h& erro possivel? (Apertando o revdlver escondido por baixo da toalha.) Entaéo podes pousar isso. OLGA, sem largar o revélver: Julgava que tinhas apanhado cinco anos, HuGco: E nao te enganavas: tinha apanhado cinco anos. _ OLGA: Quando é que eles te libertaram? OLGA: Entra e fecha a porta. (Recua wm passo. Ha bocadinho. O revélver ndo esta exactamente apontado para Hugo, mas pouco falta. Hugo deita um olhar divertido ao revél- ver e, lentamente, vira as costas a Olga; depois fecha a porta.) Evadiste-te ? ; HuGo: Evadir-me? Nao sou parvo. Foi preciso porem- — -me na rua, aos encontrées. (Pausa,) Libertaram-me por prémio do meu bom comportamento, . Vieste para aqui directamente? Para onde querias tu que eu fosse? OLGA: Nao falaste com ninguém? . (Hugo olha para ela e pée-se a rir.) Steg gas Néo, Olga, nfo. Est4é descansada. Com nin- HuGo: Gostavas que tivesse, hem? OLGA: Porqué? (Olga fica mais sossegada e olha para ele.) 12 13 OLGA: Nao te raparam o cabelo. HuGo: Nao. OLGA: Mas cortaram-te a madeixa da testa. (Pausa.) Huco: Est&s contente por me voltares a ver? OLGA: Na&o sei. (Ouve-se wm automével na estrada. Klaxon; barulho do motor. Sobressalto de Hugo. O auto- mével afasta-se. Olga observa o rapaz friamente.) Se 6 verdade gue te puseram em liberdade, nao precisas de ter medo. Huco, irenicamente: Achas que néo? (Encolhe os evoluido. H& vagas a preencher: tornaémo-nos... menos : estritos. Huco: Est&é claro: é a adaptacaéo. (Com uma leve in- quietacdo.) Mas, quanto ao essencial, a linha é a mesma? OLGA, embaracada: Bom... &... sim, de uma maneira geral. Hvuco: Enfim! Vocés viveram, € 0 que 6. A gente, na prisféo, custa-Ihe a imaginar que os outros continuam a viver, HA algum homem na tua vida? OLGA: De vez em quando. (A wm gesto de Hugo.) Naé&o neste momento, Huco: E voecés... tu e og outros, falavam de mim, . aleumas vezes? ambros. Pausa.) Que € feito do Luis? OLGA: Vai andando. Huco: E o Lourengo? OLGA: Esse... teve pouca sorte. Hueco: JA suspeitava. Nao sei porqué, tinha-me habi- tuado a pensar nele como num morto. As coisas devem ter mudado muito. OLGA: Tudo se tornou mais perigoso, desde que os Alem&es aqui chegaram. HvuGO, com indiferenga: E verdade. Temos c& os Alemaes. 4 OLGA: era sO atravessarem o Pais para chegarem & Hungria. © Ha trés meses. Cinco divisédes. Em principio, Mas afinal deixaram-se ficar. HucGo: Sim, senhor. (Com interesse.) Tém entrado 4 militantes? OLGA: Muitos. HuGo: Rapazes novos? OLGA: Bastantes. A nossa maneira de recrutar tem is OLGA, deizando ver que mente: Algumas vezes, sim. Huco: Estou a vé-log chegarem de noite, de bicicleta, como no meu tempo; sentavam-se & roda da mesa; o Luis enchia o cachimbo, e entéo um deles dizia: «Fol numa noite como esta que o mitido Se ofereceu para uma mis- sao de confianca.» Era assim? OLGA: Assim ou de outra maneira. Huco: Entao os outros comentavam: « OLGA: Era o que diziamos, ¢ra. Huco: As vezes acordava-me o barulho da chuva, tia para comigo: «Os rapazes vao-se molhar»; e depois, es de voltar a adormecer: 15 OLGA, recuando bruscamente: Estas doido? Huco: Porque tw, contra mim, néo és capaz de dis- . parar. (Olha para o revdlver que Olga tem ainda na mao Huco: Entao, Olga! HEntéo? (Pausa.) Foi a ti que e sorri.) Pelo menos, assim o creio. (Olga, com um mau eles encarregaram de me mandar os chocolates? modo, atira para cima da mesa o -revélver embrulhado na toalha.}) E n&éo me engano. OLGA: Que chocolates? OLGA: Ouve, Hugo: eu nfo acredito numa sé palavra Huco: Ora, ora! | do que me contaste, e n&o recebi ordem nenhuma a teu OLGA, imperiosamente: Que chocolates? respeito. Mas, se vier a receber alguma, deves saber que & | | cumprirei sem hesitar. E, se alguém do Partido me inter- _HuGo: te v0 abater a minha vista. Tens dinhelro? -rosa. Durante seis meses, regularmente, um certo Dresch mandou-me encomendas. Como eu nao conhecia ninguém - ¢om, aquele nome, percebi que o remetente eram vocés. [| | Hugo: Nao. Foi uma satisfacio para mim. Em seguida os envios ces- saram, e eu pensei:

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