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Até que a morte nos separe

José César Coimbra

Cadê meu celular?


Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar
[...]
Cê vai se arrepender de levantar
A mão pra mim
[...]
E quando tua mãe ligar
Eu capricho no esculacho
Digo que é mimado
Que é cheio de dengo
Mal acostumado
Tem nada no quengo
Deita, vira e dorme rapidim
[...]
Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E pra cima de mim? Pra cima de muá? Jamé, mané!

Elza Soares, Maria da Vila Matilde

O ano de 2015 foi pontuado por notícias que fazem ver de diferentes maneiras
o tema violência contra a mulher. Seis delas: em julho, a matéria de capa da New York
Magazine com os depoimentos, fotografias e vídeos (na sua versão on-line) de 35
mulheres que teriam sido molestadas sexualmente pelo ator Bill Cosby ao longo dos
últimos 30 anos; em agosto, o prestigioso prêmio Pulitzer concedido ao jornal The
Post and Courier, na categoria ‘Serviço Público’, pela série de reportagens especiais
sobre crimes contra mulheres na Carolina do Sul, EUA; em setembro, a recusa por
parte do governo australiano de permitir a entrada no país do rapper Chris Brown,
que em 2009 admitiu ser culpado de um ataque dirigido à sua namorada à época, a
cantora Rihanna e o lançamento do videoclipe da música de Lady Gaga, Till It
Happens To You, que conta a história de quatro jovens que são abusadas sexualmente
em um estabelecimento universitário; em outubro, o Colégio Pedro II, referência do
ensino público no Rio de Janeiro, afasta três alunos adolescentes que teriam
molestado sexualmente aluna de 12 anos e divulgado imagens dessa ação em redes
sociais; no mesmo mês, o Exame Nacional do Ensino Médio apresenta questões
relativas ao feminismo e à violência doméstica e familiar contra a mulher, o que
resulta em discussões diversas em diferentes fóruns, muitas opiniões, algumas das
quais, inclusive, que quase não se poderiam crer possíveis.
É certo que desde 2015 muitos outros casos foram divulgados. No entanto, os
seis exemplos acima revelam a amplitude, a atualidade e as diferentes perspectivas
que se lançam sobre o tema violência contra a mulher, particularmente quando ocorre
no espaço doméstico ou familiar. Isto é, no qual existem relações de proximidade ou
parentesco entre autor e vítima. Seja no Brasil ou no exterior, as notícias cotidianas
retratam casos desse tipo que não cessam de ocorrer, tanto no âmbito privado como
no público. Leis são promulgadas, o sistema de proteção e responsabilização
aperfeiçoa-se e, contudo, algo da ordem da desigualdade de gênero insiste em
apresentar-se sob modos múltiplos de violência, quase que independentemente da
faixa etária ou do padrão socioeconômico em questão.
Nesse cenário, o que se pode entender por ‘violência contra a mulher’? Qual a
sua tipologia e prevalência? Que legislações existem e quais questões e polêmicas
suscitam? Com a Lei Maria da Penha, o que mudou nas possibilidades de garantia de
direitos e responsabilização? De que modo a sociedade percebe o fenômeno da
violência doméstica ou familiar contra a mulher? Essas são algumas das perguntas
que guiam a investigação realizada aqui.
As notícias acima retratam tipos de violência contra a mulher que ocorrem no
universo privado e cujos efeitos transbordam para o espaço público. Essa porosidade
entre privado e público tem várias implicações e acaba também por fazer ecoar um
lema utilizado anteriormente pelo movimento feminista: “O pessoal é político”. A
mudança do entendimento de que nem tudo que ocorre no âmbito privado deve ficar
ali encerrado abre novas possibilidades de respostas e de questionamentos ao que se
define como violência doméstica ou familiar. Da mesma forma, instaura outros modos
de recusa à perpetuação dessas situações e de formas de responsabilização,
completando o que se apresenta como objeto de análise aqui.

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