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QUILOMBOS EM SANTA CATARINA E OS 10 ANOS DO DECRETO 4.

8871

Raquel Mombelli

Após 10 anos da publicação do Decreto 4887/2003, 15 comunidades


quilombolas em Santa Catarina receberam a Certidão de Reconhecimento da Fundação
Cultural Palmares e ingressaram junto ao INCRA-SC com pedido para regularização
fundiária de suas terras. Mas até o presente momento, nenhuma comunidade foi titulada
e as perspectivas para que isso ocorra parecem cada vez mais distantes. Nesse artigo
aborda-se três fatores que contribuem decisivamente para esta situação: a morosidade
institucional na aplicação do Decreto, a peculiaridade do trabalho antropológico e os
múltiplos mecanismos ativados por diferentes grupos sociais interessados em
deslegitimar os direitos quilombolas. Além disso, analisam-se os diversos esforços de
mobilização dessas comunidades em torno de seu reconhecimento jurídico e de seus
reconhecimentos territoriais e culturais. Por fim, destacam-se as demandas das
comunidades quilombolas por acesso à educação superior e avalia-se as potencialidades
do Decreto para a inclusão sociopolítica e o combate ao racismo.

Palavras chaves: Quilombos, Santa Catarina, Decreto 4.887

1.Introdução

Este texto faz uma avaliação dos impactos do Decreto n. 4.887 no estado de
Santa Catarinapassados 10 anos de sua publicação. Como é de conhecimento público, o
decreto é responsável pela regulamentação dos procedimentos de regularização e
titulação de terras quilombolas conforme estabelece o artigo 68 dos Atos de Disposição
Transitórios da Constituição Federal Brasileira de 1988.

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.”
Neste período, 15 comunidades quilombolas em Santa Catarina receberam a
Certidão de Reconhecimento da Fundação Cultural Palmares e ingressaram junto ao
INCRA-SC com pedido para regularização fundiária de suas terras, conforme se
observa na Tabela 1.

Tabela 1: Relação dos processos e etapa de regularização territorial pelo INCRA2

Comunidade Abertura do procedimento Situação

Invernada dos Negros, 2004 Desintrução de parte das áreas de terra


Campos Novos quilombolas

São Roque, Praia Grande 2004 Em litígio com ICMBio

Morro do Boi, Balneário 2010 Estudo antropológico concluído em 2013


Camboriú

Família Thomaz, Treze de 2010 Estudo antropológico concluído em 2013


Maio

Aldeia, Garopaba 2010 Estudos iniciados em 2010 e abortados

Morro do Fortunato, 2010 Estudos iniciados em 2010 e abortados


Garopaba

Campo dos Poli, Monte 2010 Estudos iniciados em 2010 e abortados


Carlo

Valongo, Porto Belo 2010 Sem Previsão para licitação dos estudos

Santa Cruz/Toca, Paulo 2010 Previsão para licitação dos estudos em


Lopes 2014

Caldas do Cubatão, Santo 2011 Previsão para licitação dos estudos em


amaro da Imperatriz 2014

Caldas do Tabuleiro, 2011 Previsão para licitação dos estudos em


Caldas a Imperatriz, 2014

Vidal Martins, 2013 Sem previsão para licitação dos estudos


Florianópolis

2
Dados extraídos de http://www.incra.gov.br/index.php/estrutura-fundiaria/quilombolas/file/1789-
relacao-de-processos-abertos, acessado em 21/05/2014.
Tapera, São Francisco do 2011 Sem previsão
Sul

Itapocu, Araquari 2011 Sem previsão

Mutirão e Costeira, Seara

Sem previsão

Resumindo a situação apresentada na Tabela 1 é a seguinte:

• nenhuma das comunidades recebeu a titulação das terras;

• de todos os processos administrativos abertos, somente um – o da


Invernada dos Negros, em Campos Novos – encontra-se na última etapa
que antecede a titulação, a etapa da desintrusão de parte dos 8 mil
hectares3 identificadas como terra quilombola.

• embora tenha sido aberto conjuntamente com o processo da Invernada,


em 2004, o caso da Comunidade São Roque, em Praia Grande, está
parado desde a publicação do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID) e não houve avanço no processo de regularização
fundiária devido a sobreposição de terras quilombolas em áreas de
Unidades de Conservação Integral;

• duas outras situações Família Thomaz e Campo dos Poli estão com os
estudos antropológicos concluídos, porém os RTID não foram publicados
e,

• as demais situações seguem no rol das situações que ainda aguardam os


editais que darão início a elaboração dos estudos antropológicos que
compõem a primeira etapa desse processo, sem conhecer os prazos
institucionais determinados para esse fim.

3
Das 132 propriedades que constituem a área total de 7,9 mil hectares, onze tiveram ações de
desapropriação ajuizadas pela autarquia no mês de setembro de 2012, com parecer favorável sobre os
valores propostos para as indenizações. As onze áreas que somam 172,06 hectares, avaliadas em R$
2.397.517,58, valores que serão pagos pela autarquia aos seus ocupantes.
Nessa perspectiva, o cenário desenhado nesses 10 anos de implementação do
Decreto 4.887 em Santa Catarina, não parece otimista. A sua aplicação, a exemplo de
outras situações pelo país, tem sido marcada por um conjunto de procedimentos
administrativos institucionais extremamente morosos e frequentemente afetados pelo
efeito das ações políticas promovidas por determinados segmentos econômicos e
políticos declaradamente contrárias aos direitos das comunidades quilombolas.

A titulação das terras das comunidades quilombolas pelo Estado Brasileiro


constitui-se em uma política pública de reparação das injustiças cometidas em mais de
300 anos de escravidão4 e de combate aos efeitos perversos que impregnou à estrutura
da sociedade brasileira até a atualidade. Em analogia a um texto de Bourdieu (2001)5,
o Decreto 4.887 representaria metaforicamente grãos de areia na engrenagem
extremamente lubrificada do racismo brasileiro, com o poder de produzir um efeito
capaz de emperrar a máquina e exigir sua revisão. Por serem grãos tão pequenos, a
princípio parecem incapazes de contrafazer engrenagens tão pesadas, mas seus efeitos,
mesmo que discretos, e respingam em várias dimensões do mundo social. Idealizar
uma mudança rápida dessa estrutura seria desconsiderar as forças das engrenagens que
movem o pensamento e as práticas racistas que permeiam a estrutura social e econômica
desse País. Os grãos do combate ao racismo, do acesso à terra e a educação são pautas
antigas do quilombismo6 brasileiro desde 1945 e potencializaram-se sobremaneira
através da publicação do Decreto como abriram caminho para outras conquistas nesse
campo de direitos como a publicação da Lei 10.369 em 2010, sendo a mais recente a
Educação Escolar Quilombola (20 de Novembro de 2012).

O Decreto 4.8877 detalhou as competências e as etapas dos procedimentos de


regularização quilombola como definiu normativamente quem eram os sujeitos de
direito presente no artigo 68 “as comunidades remanescentes de quilombos” .
Importante destacar que o referido dispositivo jurídico incorporou parte das noções
elaboradas pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), como registram seus
dois primeiros artigos:

4
Nos 316 anos de escravidão no Brasil, foram 15 milhões de africanos arrancados de suas terras, durante
o ‘trafico negreiro’. Os primeiros africanos escravizados chegaram ao país em 1554.
5
Trata-se do Texto Os grãos de areia, publicado no livro Contrafogos 2: movimento social europeu, 2001.
6
Termo atribuído ao movimento criado por Abdias do Nascimento nos anos 1940 para tratar de propostas
de inclusão para população negra a educação, mercado de trabalho e acesso a terra à Assembléia
Constituinte.
7
Instrução Normativa n.16/2004 publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos
quilombos, para fins deste Decreto, os grupos étnicos-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à
opressão histórica sofrida.
§ 1º Para fins desse Decreto, a caracterização dos remanescentes das
comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição
da própria comunidade.

Dessa forma o Decreto esclarece os critérios para identificar quem são os


sujeitos coletivos “comunidades remanescentes de quilombos” que o artigo 68 da CF/88
se refere: a) trata-se de grupos étnicos raciais definidos segundo critérios de
autoatribuição, com trajetórias históricas específicas, dotados de relações territoriais
específicas e com preservação da territorialidade. Tais critérios para serem dirimidos
necessitam da realização de estudos antropológicos. No entanto, o fato do Decreto
elucidar sobre quem são os sujeitos de direito não significou a imediata aplicação
desse direito até o presente momento.
O direito previsto na Carta Constitucional assim como a aplicação do Decreto
4887 – dos direitos quilombolas - tem sido alvo de questionamentos e submetido a
inúmeras artimanhas para que sua efetivação não ocorra, promovidas por grupos de
interesses contrários aos processos de reconhecimento desses direitos culturais e
territoriais. Entre esses destaca-se a Ação de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239 8 que
visa sustar os efeitos do Decreto 4.887.
O questionamento contínuo das normas que tratam a regularização fundiárias
dos territórios, quer dos trabalhos executados pelo Incra e Fundação Cultural Palmares
dos antropólogos, dos veiculados pela mídia, são tentativas de deslegitimar os grupos
negros e suas demandas por reconhecimento de direitos territoriais. Além dessa questão,
é preciso chamar a atenção para o fato de que não se está diante de uma “configuração
de conflitos entre direitos igualmente protegidos pela lei que se opõe”. É preciso
considerar também que nessa luta pelos direitos do quilombo inserem-se num campo
onde se identifica a existência de uma relação hierárquica se impõe entre direitos
constitucionalmente reconhecidos e respeitados (direitos ambientais, ou ligados ao
desenvolvimento econômico, ou a propriedade individual das terras) versus o pleito por

8
Trata-se originalmente da proposta do extinto PFL, assumida pelo Democratas, que ajuizou uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade, sob nº 3239, questionando os critérios de autodefinição, os
procedimentos de desapropriações e os critérios de identificação da territorialidade. A ADI entrou em
votação no Supremo Tribunal Federal, em 18 de abril de 2012, mas o processo foi suspenso pelo pedido
de vistas da ministra Rosa Weber.
direitos pelas comunidades quilombolas constantemente reduzido a um problema,
perigo, fraude” (Brustolin, 2009, p. 211). Nesse campo, a questão dos direitos
quilombolas não parecem entrar para o rol das coisas indiscutíveis, como parece ser o
direito à propriedade privada no país. Nesse sentido, as reivindicações por direitos
territoriais com base na identidade quilombola esteve sempre associada à necessidade
de “justificar e fundamentar incessantemente a reivindicação, de acionar sempre mais
provas de veracidade, documentos, instrumentos jurídicos”. Apesar disso, grãos do
Decreto estão sendo depositados nas engrenagem do racismo e revelam em seu lento
movimento a capacidade dos quilombos em resistir diante das tentativas de
deslegitimar seus direitos, de forças que insistem em ignorá-los, desrespeitá-los.
A implementação do Decreto 4887 é a força capaz de promover a igualdade
racial, combater o racismo e consolidar a cidadania negra e quilombola nesse País.

2. De Comunidades negras aos quilombos em Santa Catarina

Os estudos sobre comunidades negras em Santa Catarina ganharam força a partir


nos anos de 1980 por meio das pesquisas realizadas pelo NUER (Núcleo de estudos de
Identidade e Relações Interétnicas) com o objetivo de pensar a questão da presença da
população negra e o acesso à terra, onde prevaleciam argumentos sobre sua
inexpressividade numérica e papel menor na história de um Sul “embranquecido” pela
colonização européia. Nessa década, o conceito de território negro surgiu enquanto um
instrumento analítico em diferentes abordagens e estudos no Brasil9, para compreensão
dos agrupamentos étnicos e as experiências e as estratégias de territorialização das
populações negras no campo e na cidade. O seu alcance de interpretação foi destacado
pioneiramente por Bandeira em 1988, no mesmo ano da publicação da Constituição ao
descrever que a noção de território como uma novidade no campo do conhecimento, e
como que informava sobre a especificidade das comunidades rurais de negros.

9
Destaca-se as pesquisas pioneiras efetuadas por Bandeira (1981) e nos anos posteriores por Soares
(1981), Vogt e Fry (1992), Queiroz (1993), Baiochi (1993), Monteiro (1985), Bandeira (1988),
Almeida, (1989), Leite (1990) Teixeira (1990), Martins (1990), Hartung (1992), Acevedo & Castro
(1993), Gusmão (1995)
A autora em sua pesquisa destaca a potencialidade do conceito para abordar a
questão das relações raciais atuais no Brasil e a dimensão étnica da posse da terra ao
dizer que “ a territorialidade negra, inequívoca aos negros e aos brancos, configura uma
situação especifica de alteridade, de cujo prisma refratam alguns aspectos encobertos
das relações raciais (....) A posse da terra, independente das suas origens patrimoniais,
se efetiva pelas comunidades enquanto sujeito coletivo, configurando um grupo étnico.
A apropriação coletiva é feita por negros organizados etnicamente, como sujeito social,
não se tratando, portanto, de posse de negros enquanto pessoas físicas”.
(Bandeira:1988, p. 22)

O conceito de território possibilitou desde então - e ainda possibilita – traduzir e


identificar a condição de invisibilidade dos agrupamentos negros, suas formas de
organização social e de mobilização pelo direito à terra. Informava sobretudo sobre
noções de pertencimento coletivas, relações de poder e acesso à cidadania foi
posteriormente desenvolvido por Leite (1990):

Um espaço demarcado por limites, reconhecido por todos que a ele


pertencem, pela coletividade que o conforta. Um tipo de identidade
social, construído contextualmente e referenciado por uma situação de
igualdade na alteridade. O território seria, portanto, uma das
dimensões das relações interétnicas, uma das referências do processo
de identificação coletiva. Imprescindível e crucial para a própria
existência do social. Enquanto tal pode ser visto como parte de uma
relação, como integrante de um jogo. Desloca-se, transforma-se, é
criado e recriado, desaparece e reaparece. Como uma das peças do
jogo de alteridade, é também e, principalmente, contextual. No caso
dos grupos étnicos, a noção de território parece ser tão ambígua como
a própria condição dos grupos e talvez seja justamente o que acentua o
seu valor defensivo. (LEITE, 1990, p. 40)

A organização de grupos negros vinculada a uma localidade e marcada por uma


racionalidade da organização familiar, das relações de parentesco, trabalho e
religiosidade aparece nos estudos produzidos por Gusmão (1991, p. 28), ao analisar
territorialidade de grupos negros no Rio de Janeiro. A dimensão coletiva do território
negro é novamente destacado, descrevendo-o como “produto da experiência comum
compartilhada e implicou refazer em solo brasileiro, os elementos da cultura africana.
(...) A transformação na língua, na religião, no trabalho e em tantos outros aspectos da
organização social dará origem a famílias inteiras com descendência comum, muitas
vezes, tornadas míticas, construirá ‘territórios negros’, onde, com a família estabelecem
as práticas no uso que faz da terra e os direitos sobre ela. (...) A territorialidade supõe
identificação e defesa por parte do grupo: supõe a tradição histórica e cultural
construída através dos tempos.” (idem, p. 31)

Em Santa Catarina, os estudos antropológicos produzidos a partir do conceito de


território negro revelaram conhecimentos sobre as famílias negras de Morro da África,
em Jaraguá do Sul; Morro dos Fortunato, em Garopaba; dos Cafuzos, em José Boiteaux
e do Sertão de Valongos, em Porto Belo10. Também desnudaram o cenário de conflitos
em torno do acesso à terra e os modos específicos de ocupação que podem assumir as
territorialidades negras. A Invernada dos Negros emerge nesse contexto enquanto um
território negro, simultaneamente a identificação de mais de cem territórios negros
existentes nos três estados da região Sul do Brasil11.

As pesquisas sobre esses territórios revelaram as diversidades de situações de


uso e apropriação das terras ocupadas, tanto em áreas rurais como em áreas urbanas
centrais e periféricas pelos agrupamentos negros, terras obtidas através de serviços
prestados, por compra, ou doação, entre outras, ocorria sob forte disputa e conflito com
grupos étnicos vizinhos e grupos e indivíduos politicamente influentes. Em geral
situações em que a existência de documentos de fé pública lavrados em cartório, para
escravos alforriados e seus descendentes, não foram suficiente para garantir a posse das
terras nas mãos dessa população e nem evitaram contestações dessas posse e sua
esbulho. As situações identificadas em Paiol de Telha (PR), Casca (RS) e Invernada
dos Negros (SC), todas apresentavam doações de terras a escravos alforriados e
lavrados em cartórios demonstraram a existência de múltiplos mecanismos acionados
pelo Estado brasileiro, para deslegitimar as posses de terras pelas comunidades negras.

Importante destacar também que os estudos produzidos no inicio dos anos 90


revelaram um quadro de exclusão social e econômica das comunidades negras. O
acesso a políticas públicas12 em todas essas áreas era precário ou totalmente

10
O estudo sobre o Morro da África foi produzido por Ilka Boaventura Leite; sobre Morro do Fortunato
por Miriam Hartung; sobre os Cafuzos por Pedro Martins; sobre os Valongos por Vera Item Teixeira.
(Leite, 1996)
11
A produção de um mapa ou de uma lista com os nomes e os lugares não foi produzida. O NUER, por
definição prévia, adotou uma postura de respeito às vontades e interesses das próprias comunidades, de
modo a preservar em qualquer circunstância os critérios de autodefinição e as categorias de pertencimento
elaboradas e compartilhadas pelos moradores das referidas áreas.
12
Em todas as localidades pesquisadas registraram-se precárias condições de moradia e acesso a serviços
básicos como água, luz, saneamento, telefone, postos de saúde, escolas, pavimentação, entre outras
questões. Assim como os vínculos de trabalho e atividades desenvolvidas, que se caracterizavam por
inexistente13, efeitos produzidos pela ideologia do embranquecimento como projeto
nacional, implementado por meio da miscigenação seletiva e políticas de povoamento e
imigração européia e também construída pelas elites políticas e intelectuais a respeito
dos seus países, supostamente caracterizados pela harmonia e tolerância racial e
ausência de preconceito e discriminação racial. Entre as representações e os efeitos no
mundo social, na realidade, corresponde a subordinação social ou a virtual desaparição
da população negra (Hasenbalg, 1996, p. 236). Se a população negra estava condenada
ao embraquecimento e ao desaparecimento, a implementação de políticas públicas nas
comunidades negras são vistas pelos poderes públicos como desnecessárias.

Com a publicação do Decreto 4.887, muitas das pesquisas sobre territórios


negros realizados pelo NUER ainda nas décadas de 80 e 90, em 2003 reaparecem
organizados política e juridicamente para acionar o direito quilombola. Esse fato destaca
a insurgência de sujeitos coletivos de direito – as então comunidades negras – como
unidades sociais existentes anteriormente a publicação dos dispositivos jurídicos . A
abertura democrática no país, potencializou as capacidades de mobilização social e de
expressão dessas comunidades como novos sujeitos de direito, que no novo contexto,
podem decidir em acionar ou não o direito Constitucional.

3. Conhecimento, história e cultura negra em Santa Catarina

Em artigo anterior14, analisei os desdobramentos dos estudos antropológicos


produzidos no âmbito da aplicação do Decreto 4887, para subsidiar processos de
reconhecimento territoriais das comunidades quilombolas de Santa Catarina15. Nele,
destaquei que esses contextos são espaços de: “ (1) a consolidação de metodologia
antropológica em contextos de reconhecimento legal; (2) a ampliação dos espaços de
interlocução teórica interdisciplinar envolvendo os campos da antropologia, da história,

vínculos sazonais, com baixa remuneração e exercidos de modo informal como diaristas, serventes, bóias-
frias, biscateiros e pescadores.
13
Um questionário foi elaborado e enviado às prefeituras municipais dos três estados do Sul perguntando
sobre a existência ou não de grupos negros no município. Em sua maioria as respostas eram negativas
mesmo naquelas áreas em que já haviam sido confirmadas pelos pesquisadores do projeto.
14
Trata-se do artigo O trabalho do antropólogo e o Decreto 4.887.
15
Trata-se do projeto Quilombos no sul do Brasil: subsídios para a implementação do Decreto
4.887,realizado através de convênio entre UFSC e INCRA, para elaboração de estudos antropológicos
para três situações: São Roque, Invernada dos Negros e Casca no Rio Grande do Sul.
da geociência e do direito; e (3) a proposição de parâmetros para formulações de
políticas públicas.” (Mombelli, 2012).

Para além desses apontamentos, que por si já seriam suficientes para valorização
decorrentes da aplicação do Decreto 4.887, não apenas para as comunidades mas para
toda a sociedade brasileira, as pesquisas produzidas naqueles termos inspiram a
elaboração de outras pesquisas e projetos, de diferentes áreas do conhecimento16 e de
diversas instituições. Pesquisas de dissertações de mestrados, teses de doutorados,
artigos científicos foram apresentados em seminários e eventos científicos nacionais e
internacionais, potencializando dessa forma à formação acadêmica e tornando esses
espaços lugares de interlocução e visibilidade da temática.

Entre outros desdobramentos da aplicação do Decreto está a questão dos


processos pelas quais a escrita antropológica ou os laudos potencializam os movimentos
de apropriação de histórias e memórias da cultura negra por parte dos próprios sujeitos
de direitos, até então invisibilizados e sem voz nos registros nas literaturas oficiais ou
nas instancias dos poderes públicos. É recorrente expressão das comunidades
quilombolas de que “a história está voltando”17, pois se antes as suas histórias eram
desconhecida, ou encobertas, pode agora, na condição de ‘remanescente de quilombo’,
ser ‘desencoberto’, verificado, confirmado, revivido. O interesse coletivo acentuado
pela constituição das genealogias, a busca pelos documentos oficiais, como o
testamento que nunca se teve acesso, o resgate de antigas práticas que deixaram de
existir são eventos presentes e cada vez mais valorizados, como descrito a seguir:

Veja Raquel, nos nunca sabíamos nada da nossa historia e agora tudo
que a gente tá vendo, tá vendo que é verdade, que é isso mesmo, que
nos estamos confirmando. Nós não tinha isso. Agora, a gente sabe que
18
foi assim, que aconteceu tal coisa .

Nesse sentido, a história volta, porque não foi totalmente esquecida, está sendo
reescrita, re-atualizada em outros termos, com propriedade e domínio dos rumos que se

16
Entre esses cita-se algumas pesquisas: dissertação de mestrado em historia de Luana Teixeira (2008)
UFSC; tese de doutorado de Cindia Brustolin (2009) UFRGS, dissertação de mestrado em antropologia
de Maicon Silva Steuernagel (2010) UFPR, TCC de Ely de Souza (2012) UFSC; Maninho e os ainda
em elaboração de Adriana da Silva sobre a Juventude quilombola, Tamajara Silva UFRJ sobre
alimentação quilombola. Cita-se minha própria tese de doutorado sobre o tema do patrimônio cultural.
17
Na Invernada dos Negros, a expressão foi registrada logo após a publicação dos estudos antropológicos,
e em outras situações registradas por Chaga (2009) no Rio Grande do sul.
18
Entrevista com Florência de Sousa, herdeira da Invernada dos Negros, em setembro de 2007.
Mombelli,(2009).
quer dar. A história volta para ser restaurada, para ser resignificada em outros termos
nas relações historicamente desiguais das instâncias de poder. As próprias relações de
poder que permitiram que seus territórios negros fossem esbulhados e expropriados,
assim como revelar conflitos até então escondidos pela ação de uma ordem jurídica
hegemônica que desconsiderou os seus direitos a terra (Leite, 2006, p. 4), podem ser
agora, na condição de “remanescentes de quilombos” desvendadas.

A implementação do direito quilombola credibiliza experiências históricas antes


suprimidas ou silenciadas: “através dos desdobramentos derivados de ‘releitura’ da
história dos quilombos”, é possível observar também histórias e memórias sociais que
passam a ser valorizadas, resgatadas e vivenciadas, concomitantemente ao processo de
reconhecimento legal. (Chagas, 2005, p. 8).

As publicação dos resultados da pesquisa no domínio do Decreto 4887,


possibilitou produzir novos conhecimentos, registrar saberes, conhecer e valorizar a
presença do negro e o papel protagonista à história e cultura dos afro-brasileiros na
região sul do Brasil. Esse processo, por sua vez, também instigou outras instituições
públicas, sobretudo em torno à revisão da imagem e dos discursos constituídos de que
Santa Catarina não é tão hegemonicamente “europeia”. A presença e a cultura de uma
população negra historicamente invisibilizada e a existência de quilombos no estado
catarinense passou a ser tema incluído nas agendas da implementação da Lei 10.63919,
como levou o IPAHN a reflexão sobre os bens culturais a serem protegidos nessas áreas
quilombolas. A realização de um Inventário Nacional de Referências Culturais20(INRC)
possibilitou identificar a existência de mais de 100 bens culturais como resultou na
produção de diversos tipos de materiais tais como filmes/documentários, exposições
fotográficas e publicação de livros, folders e pauta para notícias nos jornais locais.

Ademias, o Decreto 4887 potencializou as formas de participação das


comunidades negras na sociedade e fortaleceu as estratégias de mobilização
contemporâneas, impetradas pelos quilombolas, para manterem-se física, social e
culturalmente. Das suas formas de aquilombar-se (Souza, 2012, p. 162)21, das suas

19
A publicação do livro didático A África está em nós: história e cultura afro-brasileira: Africanidades
Catarinenses é um exemplo.
20
Trata-se do INRC realizado através parceria firmada entre FAPEU/NUFSC/NUER e IPHAN nos anos
de 2006 e 200, junto as comunidade de Invernada dos Negros e São Roque.
21
A autora define aquilombar-se como uma ação contínua de existência autônomo diante dos
antagonismos que se caracterizam de diferentes formas no curso de vida dessas comunidades e que
formas de resistência autônomas de existirem de acordo com sua identidade e cultura,
fortemente voltado para a coletividade, mas também como potencialidade para unir
comunidades de todas as regiões do país.

Esse movimento ultrapassa as unidades quilombolas e projeta-se para fora,


alcançando as instituições públicas, cobrando políticas públicas até então existentes em
seus territórios. Nesses contextos, empoderadas pela autoconciência de sua identidade e
de seus direitos, passam a construir novas formas de relações institucionais, até então
balizadas por clientelismos, sujeições e subordinação. Nas reuniões com representantes
do INCRA, Ministério Público Federal, prefeituras, secretaria da educação,
Universidades, as comunidades quilombolas tem procurado desempenhar um papel
protagonista, em que a consciência de seus direitos territoriais e culturais tem orientado
a condução dessas novas relações institucionais. Em 18 de novembro de 2013,
representações de seis comunidades quilombolas22 ocuparam duas instituições em um
único dia: o INCRA, para criticar a produção dos estudos antropológicos através do
sistema pregão, exigindo a elaboração de estudos através de outros modalidades de
convênios; e o ICMBio, por não cumprir o Termo de Compromisso23 que firmou com
a comunidade de São Roque e o MPF para visando regulamentar o uso e o manejo das
áreas e recursos naturais necessários à sobrevivência digna das famílias da comunidade,
no perímetro de sobreposição entre o território quilombola delimitado pelo Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e os Parques Nacionais de
Aparados da Serra Geral, no município de Praia Grande.

4. Quilombos: lutas pela educação e acesso ao ensino superior

A publicação do Decreto 4887 em 2003, ainda não alterou o histórico tratamento


de negligencia dispensado a educação formal nas comunidades quilombolas de Santa
Catarina pelos órgãos públicos locais, estaduais e nacionais. Grande parte das ações
produzidas nesse campo são resultados direto das articulações de parte de

demandam ações de luta ao longo das gerações para que seus sujeitos tenham os direitos fundamental de
resistir com seus usos e costumes. (Souza, 2012, p.162)
22
. Estavam presentes comunidades de Morro do Fortunato, Aldeia, Paulo Lopes, Caldas de Imperatriz,
Caldas de Cubatão, Vidal Martins e São Roque.
23
Trata-de de Ação Civil Pública do Ministério Público Federal - Ação de Execução (nº 5009890-
88.2013.404.7204) junto a 4ª VARA FEDERAL SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE CRICIÚMA (SC),
representantes24 do Movimento Negro Unificado de Santa Catarina (MNU-SC), no
contexto dos processos de regularização fundiárias das terras quilombolas. Esses
processos impulsionaram a necessidade de produção e o registro de informações e dados
quantitativos sobre as realidades socioeconômicas e culturais dessas comunidades, até
então desconhecidos pelas estatísticas dos órgãos oficiais. As ações produzidas pelo
MNU-SC revelaram um quadro de acentuada exclusão escolar nas comunidades
quilombolas, com elevado número de pessoas com pouco domínio da escrita e da leitura
e/ou com poucos anos de escolaridade. Tal déficit educacional seria apontado também
como um dos principais responsáveis pelas dificuldades relacionadas à mobilidade
econômica e do entrave dessas comunidades ao acesso às políticas públicas, entre esses
o sistema de crédito agrícola. Para tentar superar esse difícil quadro de desigualdade
educacional, foi formado em 2006 um coletivo por 16 Educadores, 8 representantes de
Comunidades de Remanescentes dos Quilombos de Santa Catarina25, professores e
pedagogos dos quadros do MNU-SC , com o objetivo de construir e implementar uma
proposta de alfabetização e escolarização dessa população. Desde então, esse coletivo
vem tentando fazer tratativa junto a Secretaria de Educação do Governo do Estado, para
a construção e implementação de uma proposta26 de Educação Quilombola fundada
pedagogicamente na “valorização das visões de mundo, modos de vida, saberes e o
processo de reconhecimento do território quilombola, com base em identidades étnicas,
especificidades culturais e memórias sociais”. Após sete anos de tentativas para esse
campo, nenhuma política pública de educação específica foi efetivamente realizada nas
comunidades quilombolas de Santa Catarina, em qualquer uma das modalidades
previstas, tais como a Educação de Jovens e Adultos, a Educação Profissional ou o
Ensino Superior. E, para completar, o governo do estado fechou no ano passado os 12
núcleos de alfabetização que existiam coordenados pelo coletivo dos professores das
comunidades quilombolas.
Sem contar com a presença do Estado na superação da desigualdade escolar, o
coletivo dos professores quilombolas, encontram nos editais públicos suporte para ações
de capacitação e fortalecimento das comunidades. Desde 2006, a execução de 7

24
Trata-se especialmente de Juan Pinedo (falecido), Vanda Gomes Pinedo e Maria de Lurdes Mina.
25
São elas: Invernada dos Negros Campos Novos, Campos dos Polli; Fraiburgo, localizada na região do
meio oeste; São Roque no município de Praia Grande; Aldeia e Morro do Fortunato, no município de
Garopaba; Toca/Santa Cruz, município de Paulo Lopes; e comunidade de Buraco Quente no município de
Araranguá.
26
Documento Proposta Educação Quilombola do MNU/SC/2007.
projetos27 incluíram aproximadamente 800 pessoas e constituíram-se em espaços
significativos de superação da desigualdade educacional e de inserção nas políticas
públicas.
Diante desse lamentável quadro, o MNU/SC tem investido em várias frentes
entre essas na elaboração de um projeto de Licenciatura Quilombola pela UFSC/NUER
e em projeto de Elevação da Escolaridade Quilombola através do PRONERA28
(Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária) do INCRA e também em
parceria com a UFSC. Entretanto, até o presente momento, não se tem informações
sobre os rumos administrativos das duas propostas.
O projeto de Elevação do Nível Escolar pelo PRONERA visa assegurar a
formação e a certificação educacional, respaldado em um conjunto de dispositivos
jurídicos nacionais e internacionais, diretrizes curriculares nacionais, que resguardam o
direito a diversidade étnico-racial, a valorização das diferentes culturas e étnicas para a
formação do povo brasileiro, especialmente as das matrizes indígenas e negras e o
combate o racismo. Entre essas, destaca-se o Decreto 4.887 no que diz respeito ao
direito a identidade, ancestralidade negra, manifestações culturais e sustentabilidade do
territorial, aquelas orientadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Escolar Quilombola29, e dos princípios estabelecidos pelo Movimento Negro Unificado
para a educação.

27
1) Projeto de Alfabetização, convênio com a Fundação Banco do Brasil, Associação RONDON
BRASIL, Movimento Negro Unificado-SC e a Secretaria Estadual de Educação através do Programa
Brasil Alfabetizado, alfabetizando 339 quilombolas; - 2) Programa Saberes da Terra – Beneficiando
aproximadamente 50 quilombolas das Comunidades Remanescentes dos Quilombos de Invernada dos
Negros, em Campos Novos , Aldeia e Morro do Fortunato – Garopaba e Toca, em Santa Cruz Paulo
Lopes; -3) Projeto e Formação Política – Convênio Ministério do Desenvolvimento Agrário, Associação
Rondon Brasil e MNU-SC, realizado na Comunidade dos Remanescentes do Quilombo Invernada dos
Negros, em Campos Novos. Beneficiando 100 Quilombolas. - 4) Projeto Puxirão- realizado nas
Comunidade dos Remanescentes do Quilombo São Roque/ Praia Grande, Aldeia e Morro do Fortunato,
em Garopaba – SC, beneficiando 140 quilombolas.- 5) Projeto Gado Leiteiro- – Convênio Ministério do
Desenvolvimento Agrário, Associação Rondon Brasil e MNU-SC – realizado na Comunidade Invernada
dos Negros – Campos Novos, beneficiando 42 mulheres ¨6) - Projeto Artesanato Nativo, realizado na
Comunidade dos Remanescentes do Quilombo Invernada dos Negros, em Campos Novos, beneficiou 40
mulheres do Grupo de Mulheres Damasia/Margarida;7) Projeto Agricultura orgânica. Realizado na
Comunidade dos Remanescentes do Quilombo Invernada dos Negros, em Campos Novos, beneficiando
80 Quilombolas. ( total de pessoas inseridas 833). Essas informações foram fornecidas pelo Movimento
Negro de Santa Catarina.
28
Nesse proposta o PRONERA seria executado através de convênio com o Colégio de Aplicação da
UFSC e em parceira com o Movimento Negro Unificado, e representantes das Comunidades
Quilombolas de Santa Catarina. Proposta semelhante foi recentemente aprovada na UFPR para
graduação em direito para comunidades quilombolas e dos assentamentos do MST. O PRONERA foi
originalmente criado em 2010 pelo INCRA com o objetivo de ampliar os níveis de escolarização formal
dos trabalharores rurais assentados.
29
Documento aprovado pelo Ministério da Educação em 20/11/2012. Processo n. 3.001.000.113.\ 2010-
81, elaboradora pela relatora Nilma Lino Gomes em 5/06/2012.
Levantamentos atuais realizados pelo MNU/SC registram o seguinte quadro de
demandas de Elevação Escolar30 nas diversas comunidades quilombolas do estado
catarinense:

Tabela 2: Demandas de Elevação Escolar em comunidades quilombolas de SC

Demanda Alunos
Alfabetização/Nivelamento 478
1º a 5ª séries
6ª a 8ª Séries 340
Ensino 365
Médio/profissionalizante
Total de alunos 1.183
Fonte: MNU-SC ( 2013)

Em 2013 o projeto “Ações Afirmativas para a promoção da igualdade Étnico-


Racial no ensino superior de Santa Catarina”31, realizou oficinas nas comunidades
quilombolas com o objetivo de divulgar as políticas de ação afirmativa da UFSC. A
realização do projeto contou com a participação de 9 alunos ingressos pelo sistema de
ações afirmativas para negros e de comunidades quilombolas, que realizaram sob
minha coordenação e de liderança do MNU/SC, oficinas temáticas sobre relações
étnico-raciais e o acesso ao nível superior na UFSC, os cursos graduação oferecidos as
áreas de atuação e esclarecimento sobre a vida universitária.
Durante os diálogos que se travaram nas oficinas foi possível perceber que o
acesso ao ensino superior é uma política que merece uma ação para além das fronteiras
internas da estrutura institucional. No caso das comunidades quilombolas, constatou-se
que as dificuldades em acessar o ensino superior inicia já com as possibilidade de cessar
a rede de internet, para preencher o formulário de inscrição para o vestibular,
disponibilizado somente pelo sistema digital. Em algumas localidades não há rede de
internet e isso exige o deslocamento para outros centros para acessá-la. Nesses lugares,
o custo pelo acesso à internet foi um fator destacado face ao elevado número de campos
do formulário de inscrição a serem devidamente interpretadas e preenchidas para sua

30
Dados do projeto Elevação do Nível Escolar – PRONERA/INCRA/MNU (2013).
31
Trata-se do projeto aprovado pelo Edital PROEXT/MEC , executado pelo NEPI – UFSC .
efetivação. Esse universo nem sempre é dominado rapidamente o que exige dos
candidatos um tempo maior para respondê-lo. Isso conseqüentemente interfere no valor
final a ser pago pelo acesso a internet, de aproximadamente 2 reais a hora. Alguns
jovens das comunidades explicam que necessitam de mais do que uma hora de acesso a
internet para realizarem a inscrição do vestibular, e que de fato, esse tempo extrapola os
recursos destinados para isso, o que acaba inviabilizando a candidatura à universidade.
Sem condições de arcar com despesas superiores a cinco reais, a desistência torna-se
inevitável. Aqueles que conseguem realizar a inscrição online encontram dificuldades
posteriores com outros trâmites burocráticos como a solicitação da isenção da taxa do
vestibular, esse também destacado como complicador do acesso a universidade.

Diante dessas constatações, buscou-se junto a UFSC facilitar esse processo com
a solicitação de isenção das taxas de inscrição para o Vestibular/2014 para as
comunidades quilombolas, nos moldes já aplicados para os candidatos de comunidades
indígenas. Para facilitar o processo, solicitou-se também a disponibilização impressa do
formulário de inscrições, o que foi recusado pela instituição. A isenção das taxas de
inscrição foram todas autorizadas para os candidatos oriundos das comunidades
quilombolas, desde que atestados e validados pelo Movimento Negro Unificado de
Santa Catariana.

Nesse processo, inscreveram-se 17 candidatos das comunidades quilombolas,


um número considerado expressivo diante do quadro histórico de exclusão escolar
nessas comunidades e das condições objetivas para a sua consolidação. Algumas
inscrições foram consolidadas porque realizadas durante as oficinas e outras por meio
de orientações a distancia, posteriormente realizadas através do apoio de integrantes do
projeto, muito deles oriundos das comunidades quilombolas e do movimento negro.
Porém, essas inscrições nem de longe, representaram uma ação suficiente para garantir
uma aproximação ao sistema de ingresso à universidade federal. Com exceção de
apenas um jovem da comunidade de Morro de Fortunato, grande parte desses
candidatos, nem mesmo compareceram no dia da prova. As razões objetivas sobre esse
fato ainda não foram devidamente investigadas, mas apontam para a existência de um
ciclo de exclusão pré-anunciada ao ensino superior devido a ausência de uma política de
ação afirmativa que assegure previamente condições estruturais mais igualitárias de
concorrência ao acesso a universidade pública pelos segmentos oriundos das
comunidades quilombolas. Para que realmente as políticas de ação afirmativa ao ensino
superior sejam efetivamente inclusivas, são necessárias ações que no mínimo garantam,
condições objetivas para os candidatos das comunidades quilombolas para a realização
da inscrição ao vestibular e as provas.

Como resultado dessas oficinas nas comunidades quilombolas, encaminhou-se


documento32 à reitoria com o registro das sugestões das comunidades quilombolas para
as políticas de ação afirmativa da UFSC, entre elas a criação de cursos pré-vestibular
nas comunidades quilombolas foi solicitada como uma das ações necessárias nesse
contexto.

Na UFSC os graduandos oriundos de comunidades quilombolas de Santa


Catarina estão matriculados em diversos cursos: Medicina, Fisioterapia e Educação no
Campo. No entanto, ainda não foram produzidas pesquisas analisando aspectos sobre a
permanência ou sobre as expectativas que tem sobre o curso que frequenta ou sobre as
condições de seu retorno após a graduação, junto a sua comunidades de origem.

5. Considerações finais

As emergências sociais e políticas de agrupamentos negros, que demandam


reconhecimento e lutam por direitos não podem ser vistas somente por uma perspectiva
de instrumentalização para fins políticos. Os debates contemporâneos sobre a etnicidade
apontam para a necessidade de se avançar na análise focada no caráter de organização
política dos grupos étnicos, a fim de demonstrar o quanto se está diante de um
fenômeno de construção cultural com amplos desdobramentos e complexidades. A
etnicidade não pode ser reduzida a interpretações duais entre a perspectiva cognitivista e
a situacionista. De acordo com Poutignat e Streiff-Fenart (1998), deve-se perceber como
tais processos de diferenciação operam e para qual finalidade externa eles são
mobilizados. Neste caso, pode-se afirmar que esses grupos não se organizam somente
para fazer frente à demanda por terras, mas em sua formação há aspectos mais
complexos que envolvem uma dimensão simbólica de distintividade cultural, a noção de
pertencimento, a produção de uma ancestralidade mítica, entre outros elementos

32
O documento chama-se Proposições a UFSC para assegurar uma efetiva inclusão de qualidade dos
indígenas e dos quilombolas na universidade, protocolado na reitoria no dia 12/12/ 2013. O documento é
parte dos resultados do projeto PROEXT/MEC/2013 “Ações Afirmativas para a promoção da igualdade
Étnico- Racial no ensino superior de Santa Catarina”, elaborado pelo NEPI/UFSC.
As reivindicações territoriais e culturais são também reivindicações de
reconhecimento de identidades. A defesa do Decreto 4887 desenhada nesse artigo visa
destacar a importância desse dispositivo jurídico para o efetivo combate ao racismo no
Brasil. A sua implementação eleva o debate sobre a questão do negro no país em outros
parâmetros, o de reconhecimento de direitos. Enganam-se aqueles que tentam reduzi-lo
a mero instrumento de reivindicações de direto territoriais, ou a mera adequação de
realidades às exigências Estatais. A implementação do Decreto 4.887 revela a dimensão
moral das reivindicações identitárias, das lutas por reconhecimento (Honneth, 2003) e
dos esforços dos sujeitos oprimidos ou desrespeitados para re-configurar a própria
identidade e sua cidadania. A sua aplicação amplia a cidadania negra, quilombola e a
democracia nesse país, ao reconhecer a pluralidade que a constitui a nação brasileira.

6. Referências Bibliográficas

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__________________.Santos e Visagens: patrimônio cultural quilombola. Pós


Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Tese de
doutorado, 2009.

_________________. Muito além dos laudos: o fazer antropológico e as comunidades


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e mobilidade social em um distrito agropecuário do Sul do Império do Brasil (São
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História, Universidade Federal de Santa Catarina, Dissertação de Mestrado, 2008.

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