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Alvin - O Que É A Crença Justificada
Alvin - O Que É A Crença Justificada
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04/02/12
Alvin I. Goldman
Tradução de Luiz Helvécio Marques, Sérgio R. N. Miranda e Desidério Murcho
Para evitar termos epistêmicos na nossa teoria, temos de saber que termos são
epistêmicos. É óbvio que não se pode oferecer uma lista exaustiva, mas eis alguns
exemplos: “justificado,” “fundamentado,” “tem (bons) fundamentos,” “tem razão (para
acreditar),” “sabe que,” “vê que,” “apreende que,” “é provável” (num sentido
epistêmico ou indutivo), “mostra que,” “estabelece que,” e “determina que.” Por
contraste, eis alguns exemplos de expressões não epistêmicas: “acredita que,” “é
verdade,” “causa,” “é necessário que,” “implica,” “é dedutível de,” “é provável” (no
sentido de freqüência ou no sentido de propensão). Em geral, expressões (puramente)
doxásticas, metafísicas, modais, semânticas, ou sintáticas não são epistêmicas.
Antes de me voltar para a minha teoria, quero passar em revista algumas outras
abordagens à crença justificada. A identificação de problemas associados às outras
tentativas fornecerá alguma motivação para a teoria que irei oferecer. Obviamente, não
posso examiná-las todas, nem sequer muitas das tentativas alternativas. Mas algumas
amostras serão esclarecedoras.
Para avaliar este princípio precisamos de saber o que quer dizer “indubitável.”
Pode ser entendido pelo menos de duas maneiras. Primeiro, “p é indubitável para S”
poderá significar “S não tem qualquer fundamento para duvidar de p.” Contudo, dado
que “fundamento” é um termo epistêmico, o princípio 1 seria inadmissível nesta leitura,
pois os termos epistêmicos não podem aparecer legitimamente na antecedente de uma
cláusula de base. Uma segunda interpretação evitaria esta dificuldade. Poder-se-ia
interpretar “p é indubitável para S” psicologicamente, i.e., como querendo dizer “S é
psicologicamente incapaz de duvidar de p.” Isto tornaria o princípio 1 admissível, mas
seria correto? Certamente que não. Um fanático religioso pode ser psicologicamente
incapaz de duvidar dos princípios da sua fé, mas isso não justifica a sua crença neles. De
modo semelhante, durante o caso de Watergate, uma pessoa poderia estar tão cega com
a aura da presidência que, mesmo depois de os mais fortes indícios contra Nixon terem
vindo à luz, seria incapaz de duvidar da veracidade de Nixon. Não se segue que a sua
crença na veracidade de Nixon estava justificada.
Para avaliar este princípio, precisamos uma vez mais de uma interpretação do
seu termo crucial, neste caso “auto-evidente.” Numa leitura comum, “evidente” é
sinônimo de “justificado.” “Auto-evidente” quereria então dizer algo como “diretamente
justificado,” “intuitivamente justificado” ou “não derivadamente justificado.” Nesta
leitura, “auto-evidente” é uma expressão epistêmica, e o princípio 2 seria excluído como
princípio da cláusula de base.
O que quer dizer “é impossível compreender p sem crer em p”? Quer dizer
“humanamente impossível”? Essa leitura tornaria provavelmente 2 um princípio
inaceitável. Poderá muito bem haver proposições que os seres humanos têm uma
disposição inata e irresistível para acreditar, e.g., “Alguns acontecimentos têm causas.”
Mas parece implausível que a incapacidade das pessoas para evitar crer em tal
proposição faça toda a crença nela ser justificada.
Uma coisa que corre mal neste exemplo é que ao passo que a crença de
Humperdinck em p implica logicamente a sua verdade, Humperdinck não reconhece
que a sua crença nela implica a sua verdade. Isto poderá levar um teorizador a rever 4L,
acrescentando o requisito de que S “reconheça” que p é logicamente incorrigível. Mas
isto, é claro, não serve. O termo “reconhecer” é obviamente epistêmico, de modo que a
revisão sugerida de 4L resultaria numa cláusula de base inadmissível.
II
Para testar melhor esta tese, note-se que a justificabilidade não é um conceito puramente
categórico, embora eu o trate aqui como categórico, em nome da simplicidade. Podemos
encarar, e de fato encaramos, certas crenças como mais justificadas do que outras. Além
disso, as nossas intuições sobre a justificabilidade comparativa harmonizam-se com as
nossas crenças sobre a confiabilidade comparativa dos processos formadores de crenças.
Considere-se as crenças perceptivas. Suponha-se que Jones acredita ter visto à pouco
uma cabra montês. A nossa avaliação da justificabilidade da crença depende de ele ter
tido um breve vislumbre da criatura a uma grande distância ou de lhe der dado uma boa
olhada a uma distância de trinta metros. A sua crença no último tipo de caso está
(ceteris paribus) mais justificada do que no primeiro. E se a sua crença for verdadeira,
estamos mais dispostos a dizer, no último caso, que sabe, do que no primeiro. A
diferença entre os dois casos é aparentemente a seguinte. As crenças visuais formadas
por uma varredura breve e rápida, ou em situações nas quais o objeto se encontra a
grande distância, tendem a ser erradas com mais freqüência do que as crenças visuais
formadas a partir de uma varredura detalhada e lenta, ou em situações nas quais o objeto
está a uma proximidade razoável. Em suma, os processos visuais da primeira categoria
são menos confiáveis do que os da última. Algo similar ocorre quanto às crenças de
memória. Uma crença que resulta de uma impressão de memória vaga e indistinta conta
como menos justificada do que uma crença com origem numa impressão distinta de
memória, e a nossa inclinação para classificar essas crenças como “conhecimento” varia
do mesmo modo. Uma vez mais, a razão está associada à confiabilidade comparativa
dos processos. As impressões obscuras e indistintas de memória são geralmente
indicadores menos confiáveis do que realmente se passou; portanto, as crenças formadas
a partir dessas impressões têm a probabilidade menor de serem verdadeiras do que as
crenças formadas a partir de impressões distintas. Considere-se ainda as crenças
baseadas em inferências a partir de amostras observáveis. Uma crença sobre uma
população, baseada numa amostragem aleatória, ou numa grande diversidade de
amostras, está intuitivamente mais justificada do que uma crença baseada numa amostra
tendenciosa ou em amostras de um setor específico da população. Uma vez mais, o grau
de justificabilidade é aparentemente uma função da confiabilidade. As inferências
baseadas em amostras aleatórias e diversificadas tendem a produzir menos erro ou
inexatidão do que as inferências baseadas em amostras que não são aleatórias nem
diversificadas.
Regressando a um conceito categorial de justificabilidade, poderíamos perguntar como
um processo confiável de formação de crenças tem de ser para que as crenças que dele
resultem estejam justificadas. Não é de esperar uma resposta precisa a esta questão. A
nossa concepção de justificação é vaga neste aspecto. No entanto, parece claro que não
se exige uma confiabilidade perfeita. Um processo de formação de crenças que algumas
vezes produza erro ainda confere justificação. Segue-se que pode haver crenças
justificadas falsas.
Precisamos dizer algo mais sobre a noção de “processo” formador de crenças. Seja um
“processo” uma operação ou processo funcional, i.e., algo que gera um mapeamento de
certos estados — “dados de entrada” — noutros estados — “dados de saída.” Os dados
de saída, neste caso, são estados de crer nesta ou naquela proposição num dado
momento. Nesta interpretação, um processo é um tipo e não um exemplar. Isto é
perfeitamente apropriado, visto que só os tipos têm propriedades estatísticas, como a de
produzir a verdade 80% das vezes; e são exatamente essas propriedades que determinam
a confiabilidade do processo. Obviamente, também queremos dizer que os processos
causam crenças, e parece que os tipos são incapazes de ser causas. Mas quando dizemos
que uma crença é causada por um dado processo, entendido como um processo
funcional, podemos considerar que isto quer dizer que essa crença foi causada pelos
dados de entrada particulares do processo (e pelos eventos intervenientes “por meio dos
quais” o processo funcional leva dos dados de entrada aos dados de saída) na ocasião
em questão.
É claro que o nosso pensamento comum sobre tipos de processos os divide de modo
amplo, mas não posso dar agora uma explicação precisa dos nossos princípios
intuitivos. Mas uma sugestão plausível é que os processos relevantes são neutros quanto
ao conteúdo. Poder-se-ia argumentar, por exemplo, que o processo de inferir p sempre
que o Papa afirmar p poderia colocar problemas para a nossa teoria. Se o Papa for
infalível, esse processo será perfeitamente confiável; contudo, não consideraríamos
justificadas as crenças resultantes desse processo. A restrição da neutralidade do
conteúdo evitaria essa dificuldade. Se exigirmos dos processos relevantes que admitam
como dados de entrada crenças (ou outros estados) com qualquer conteúdo, o processo
mencionado acima não conta, pois os seus dados de entrada são crenças que têm um
conteúdo proposicional restrito, i.e., “o Papa afirma que p.”
Com estes aspectos em mente, podemos agora avançar a seguinte cláusula de base como
princípio para a crença justificada:
Pode parecer que 5 promete ser não só uma cláusula de base bem-sucedida,
mas o único princípio que precisamos, além de uma cláusula de oclusão. Por outras
palavras, pode parecer que tanto é uma condição necessária como suficiente da
justificabilidade que a crença seja produzida por processos cognitivos confiáveis de
formação de crenças. Mas isto não é totalmente correto, dada a nossa definição
provisória de “confiabilidade.”
Um caso característico no qual uma crença está justificada sem que o agente o
saiba é aquele no qual os indícios originais para a sua crença já tenham sido há muito
esquecidos. Se os indícios originais eram muito fortes, a crença original do agente
cognitivo pode ter sido justificada; e esse estatuto justificativo pode ter sido preservado
pela memória. Mas visto que o agente cognitivo não se lembra já como veio a acreditar,
ou porquê, pode não saber que a crença é justificada. Se questionado agora sobre a
justificação da sua crença, pode ficar sem saber o que dizer. Mas a crença está
justificada, embora o agente cognitivo não possa demonstrar ou estabelecer isso.
A teoria histórica da crença justificada que advogo está ligada, em espírito, à
teoria causal do conhecimento que apresentei alhures.13 Tinha isto em mente quando
comentei, perto do início deste artigo, que a minha teoria da crença justificada faz a
justificação algo intimamente relacionado com o conhecimento. As crenças justificadas,
como os fragmentos de conhecimento, têm histórias apropriadas; mas podem não
constituir conhecimento quer porque são falsas ou porque não contemplam outro
requisito do conhecimento, do tipo discutido na indústria do conhecimento pós-Gettier.
Há várias maneiras possíveis de responder a este caso e não sei bem qual delas
é melhor, em parte porque as minhas intuições (e as de outras pessoas com quem me
aconselhei) não são inteiramente claras. Uma possibilidade é dizer que no mundo
possível imaginado, as crenças que resultam de sonhar alto estão justificadas. Por outras
palavras, rejeitamos a idéia de que sonhar alto nunca poderia, intuitivamente, conferir
justificabilidade.15
Contudo, quem sente que sonhar alto não poderia conferir justificabilidade,
nem mesmo no mundo imaginado, há duas saídas. Primeiro, pode-se sugerir que o
critério próprio de justificabilidade é a propensão de um processo para gerar crenças que
são verdadeiras num meio não manipulado, i.e., um meio em que não se dispõe
propositadamente o mundo quer para se conformar quer para entrar em conflito com as
crenças que se formam. Por outras palavras, a adequabilidade de um processo de
formação de crenças é apenas uma função do seu sucesso em situações “naturais,” e não
em situações do gênero que envolve demônios benevolentes ou malévolos, ou quaisquer
outras criaturas manipuladoras. Se reformularmos a teoria para incluir esta restrição, o
contra-exemplo em questão será afastado.
III
Pode a teoria ser revisada para enfrentar esta dificuldade? Uma sugestão
natural é que a confiabilidade efetiva de uma crença ancestral não é suficiente para a
justificação; além disso, o agente cognitivo tem de estar justificado em acreditar que o
ancestral da sua crença é confiável. Assim, poder-se-ia substituir 6A, por exemplo, por
7. (Para simplificar, desconsidero alguns detalhes da análise anterior).
É evidente, no entanto, que 7 não serve como cláusula de base, pois contém o
termo epistêmico “justificadamente” na sua antecedente.
Mas isto não funciona. Suponha-se que Jones acredita que as suas crenças de
memória são causadas de maneira confiável a despeito de todos os testemunhos
contrários (fidedignos) dos seus pais. O princípio 8 seria satisfeito, mas não diríamos
que essas crenças estão justificadas.
Para obter uma revisão melhor da nossa teoria, reexaminemos o caso de Jones.
Este tem fortes indícios contra algumas proposições a respeito do seu passado. Não usa
estes indícios, mas se os usasse de maneira apropriada, deixaria de acreditar naquelas
proposições. Ora, o uso apropriado de indícios seria um caso de um processo
(condicionalmente) confiável. Assim, o que podemos dizer de Jones é que ele não usa
certos processos (condicionalmente) confiáveis que poderia e deveria ter usado. É
inegável que se tivesse usado esse processo, teria “piorado” os seus estados doxásticos:
teria trocado algumas crenças verdadeiras pela suspensão do juízo. Mas não poderia
saber disso no caso em questão. Portanto, não fez algo que, epistemicamente, deveria ter
feito. Este diagnóstico sugere uma mudança fundamental na nossa teoria. O estatuto
justificacional de uma crença não é só uma função dos processos cognitivos que
efetivamente são empregados na sua produção; é também uma função de processos que
poderiam e deveriam ser empregados.
Como indiquei, a maior parte deste artigo visou a justificação ex post. Este é o
analysandum apropriado se estivermos interessados na conexão entre a justificação e o
conhecimento, dado que o que é crucial para que uma pessoa conheça ou não uma
proposição é se ela tem uma crença efetiva na proposição que é justificada. Contudo,
dado o interesse de muitos epistemólogos na justificação ex ante, é apropriado que uma
teoria geral da justificação tente fornecer uma explicação também desse conceito. A
nossa teoria fá-lo muito naturalmente, pois a explicação da justificação ex ante resulta
diretamente da nossa explicação da justificação ex post.18
Alvin Goldman
Retirado de Justification and Knowledge, org. G. S. Pappas (Dordrecht: D. Reidel,
1979), pp. 1-23.
Notas