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Danilo Mondoni DiacramacAo: Telma dos Santos Custédio RevisAo: Joseli Nunes Brito Edicoes Loyola Rua 1822, n® 347 — Ipiranga 04216-000 Sio Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — Sdo Paulo, SP @ «11 6914-1922 @® «an 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Yendas: vendas@loyola.com.br Todos 05 direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma elow quaisquer meios (eletrénico ou mecanico, incluindo fotocdpia ¢ gravagdo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissdo escrita da Editora. ISBN: 85-15-02234-6 2" edigdio: junho de 2006 © EDICOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 2001 Sumario Introdugao ............. 1, A Igreja no trem da Historia .. o steer 13 1a - METODO E FUNCAO PEDAGOGICA DA HISTORIA DA TaREIA.. 13 1.8 - RELACAO ENTRE HISTORIA DA IGREJA E TEOLOGIA?........ 15 COMPLEMENTO BIBLIOGRAFICO neceeeeeeneee 6 2. Origens do cristianismo seseevanees 2aA-P = one I i W 2.B - FONTES HISTGRICAS ....22::0eceeceeeeee 18 3. Expansao do cristianismo.............00100+ siseeseneee 3.4 —A COMUNIDADE PRIMITIVA 10:0 cseseesncsneserserenennnne 3] 3.8 > O MUNDO GRECO-ROMANO stsssesssssscescetsesessescasasnsss 32 APENDICE: QUADRO GEOGRAFICO, CARACTERISTICAS E FATORES DA EXPANSAO DO CRISTIANISMO tissttcscssetsesssssesencsessncsorene Al) 4. Relacao Igreja-Estado na Antigiiidade ~ 43 4.4 - PERiopO PRE-CONSTANTINIANO: DISTANCIA DA JGREIA EM RELACAO AO ESTADO ssessssseessessessssenees: 43 4.8 - FASES DA PERSEGUICAO AOS CRISTAQS: DE Nero A DiocECIANO . 45 4.c - A GUINADA CONSTANTINIANA? 4, - CONSTANTINO EO CRISTIANISMO sssisssssssscssorssssessassees 51 4.8 - A REAGAO PAGA: TENTATIVA ANACRONICA ‘DE RESTABELECIMENTO DO PAGANISMO sistestessessosssssssses 5] 5. A Igreja em meio as transmigragdes germanicas a7 =. 5 7. Génese, desenvolvimento e formas de vida consagrada.. 87 8 = VIDA EREMITICA ...tetecsnssaserenssasseeesssesanssssesenssserne 89 Za- Vina CENORITICA OT APENDICE: COSTUMES E EXCENTRICIDADES 8. Correntes cristas: cismas, heresias ea via média eclesial. 99 8.4 ~ O PROCESSO DE INDEPENDENCIA DO CRISTIANISMO EM _RELACAO A SINAGOGA ......-..sssessecsesserseeerrsesseessseee 99 101 105 107 8.8 - INFILTRAGOES RACIONALISTAS E SINCRETISMO 8.c - TENSAO ENTRE ESCATOLOGISMO E ENCARNACIONISMO .. 8.D - CONTROVERSIAS LITURGICO-SACRAMENTAIS .... COMPLEMENTO BIBLIOGRAFICO (REFERENTE A ESTE CAPITULO E AOS SUBSEQUENTES) ...++s0+seeenteereetsnetenee Q.B - MONARQUIANISMO ....0ssesssssesseeees 9.c - A CONTENDA DOS DIONISIOS.....4.sssesseeeees 10. Configuracao do dogma trinitario . 10.8 - O concitio pz Nictta ons. 5-29.6. 325). 10.c - PERIODO POS-NICENO .. 10 & - O concitio pz ConsTANTINOPLA (MAIO-JULHO DE 381). 132 134 135 Apénnice I: a quesTAo Do Fini0que Apénpice IT: RESPINGO TRINITARIO .. 137 11. Controversias cristologicas 11. - A POLARIZACAO DAS CONCEPCOES CRISTOLOGICAS: NESTORIO VERSUS CIRILO ooo stettsetetettettesesesssersesenenssosssrsnssee 137 11.8 - O concitio pz Ereso (22.6-17.7.431) 141 11.c - O MonorisisMo: EuTIQUES 143 11.p - O concitio pe Canceponta (8.10- 145 11,451) 12. Controvérsias doutrinais pds-calcedonianas .........+.000 12.4 - O MOVIMENTO ANTICALCEDONIANO sussstssssassesseia 149 12.8 - O MOVIMENTO NEOCALCEDONIANO .....2....000006 asus 12.c — FoRMAS MITIGADAS DE MONOFISISMO:: MONOENERGISMO E MONOTELISMO, A ULTIMA CENTELHA DO MONOFISISMO...... 155 13. A controvérsia sobre a graga.......ssessessesueseess 159 13.A = PROTAGONISTAS DO PELAGIANISMO: PELAGIO & CELESTIO. 159 7 13.8 - A POLEMICA AGOSTINIANA E A CONDENACAO DO PELAGIANISMO ....... “Ainda que a Igreja, por virtude do Espirito Santo, tenha per- manecido a fiel esposa de seu Senhor e nao cessado jamais de ser um sinal de salvagdo para o mundo, ela, contudo, nao igno- ra de modo algum que nao faltaram entre seus membros, cléri- gos e leigos, na série ininterrupta de tantos séculos, os que foram infi¢is ao Espirito de Deus. Também em nossos tempos nado ignora a Igreja quanto se distanciam entre si a mensagem que ela profere e a fraqueza humana daqueles aos quais o Evan- gelho foi confiado. Seja qual for o juizo que a historia pronun- ciar sobre esses defeitos, devemos estar conscientes deles, combaté-los vigorosamente, para que nao tragam prejuizo 4 difusdo do Evangelho, Para desenvolver suas relagdes com o mundo, a Igreja sabe igualmente o quanto deve continuamente aprender da experiéncia dos séculos. Guiada pelo Espirito San- to, a Mie Igreja exorta os seus filhos incansavelmente 4 purifi- cagao € renovagao, para que o sinal de Cristo brilhe mais clara- mente sobre a face da Igreja.” (Concitio Varicano II, Gaudium et Spes 43) Introducao A presente obra sintetiza o percurso histérico da Igreja durante os séculos I-VII: apds algumas indicacdes metodolégicas, apresentamos os fundamentos da Igreja — a pessoa e obra de Jesus Cristo e seu discipulado — e descrevemos 0 modo como os discipulos de Jesus foram compreendendo e expressando sua vida de fé, esperanga e caridade/fraternidade, estabelecendo como marca limiar a configura¢ao dos dogmas a partir das con- trovérsias teologicas, cristolégicas e antropoldgicas. Procuramos recolher o melhor de duas possiveis orientagdes historiograficas: uma, de carater mais analitico — apresenta¢ao de noticias e pormenores de todos os aspectos de uma determi- nada época, acentuando a dimensao da personalidade —, outra, de carater mais sintético — leitura reflexiva de determinadas problematicas, enfatizando a influéncia do ambiente histdrico. Assim, nossa Histéria da Igreja na Antigtiidade alia a narracéo dos dados essenciais dos eventos histéricos e a reflexio sobre seus principais problemas e implicagGes, preservando e ressal- tando a importancia das contribuigGes pessoais em meio aos condicionamentos histéricos. A bibliografia é seleta: indicamos apenas obras que repre- sentam os principais fildes historiograficos. Listas mais amplas e/ou exaustivas podem ser encontradas nas obras referidas. Danito Monpont | A Igreja no trem da Historia De um grupo pobre e humilde de discipulos, como o resto de Israel de outrora ou um grao de trigo perdido na terra, a forga de Deus fez surgir a colheita. Quando a comunidade dos discipulos de Jesus cresceu e se expandiu, gradualmente desen- volveu estruturas institucionais, simbolos sacramentais e minis- térios para assegurar a fidelidade as origens e 4 missao de imergir as pessoas no mistério de Deus e de promover a comunhio fra- terna, solidaria e universal (Mt 28,16-20). A Igreja é, ao mesmo tempo, visivel ¢ invisivel, uma ¢ muitas, corpo mistico e assembléia visivel, unida pelo Espirito e expres- sa em estruturas de sacramentos, governo e comunhao. Enquan- to comunidade dos discipulos de Jesus, a Igreja é uma realidade histérica e, portanto, passivel de ser estudada sob o ponto de vista da objetividade cientifica. 1.A - METODO E FUNCAO PEDAGOGICA DA HISTORIA DA IGREJA Etimologicamente 0 termo “historia” — em grego, Aistoria — significa, ao mesmo tempo, pesquisa, estudo e 0 resultado da pesquisa: sua informacao e/ou exposicao. Como disciplina cien- tifica, a Historia da Igreja tem por finalidade a reconstituicao e compreensao, por métodos cientificos, do passado da sociedade eclesial — sua evolugdo e seus tracos particulares — mediante documentos escritos, monumentos arqueolégicos etc. Historia da Igreja na Antigdidade A fungdo pedagégica da Histéria da Igreja consiste em ser uma hermenéutica sapiencial do passado eclesial (Tradigao), da qual possam fluir ligdes iluminadoras para o presente. Parafra- seando Marrou, 0 conhecimento histérico nao pretende ditar ao ser humano uma decisao de ordem politica, néo é um principio animador, mas fornece 4 sua consciéncia os materiais sobre os quais poderd exercer seu julgamento e sua vontade. Ha somente uma histéria: a histéria da salvagdo é a salvaco na histéria; 0 que comega com Cristo nao é a salvagao, mas a revelacao do plano salvifico que engloba todos os tempos. O designio de Deus de fazer os seres humanos participantes de sua vida leva-o a criagao; todo ser humano ja é atingido por esse amor infinito, independentemente de regiao, povo ou épo- ca histérica. Por isso, sé ha uma verdade: a verdade religiosa nao se con- trapGe a verdade cientifica. A confusao se estabelece quando se toma como verdade aquilo que € hipdtese, e como dados da fé simples opinides tradicionais. Nao se pode renunciar ao que é psicolégica e moralmente honesto e aceito como verdadeiro, No entanto, a verdade é parcial: nao podemos saber tudo a respeito do passado, Enquanto ciéncia humana, as conclusdes historicas sao logicamente provaveis, diferindo, portanto, da certeza matematica ou empirica. Todo conhecimento humano tem seus limites: diante da realidade numenal do passado obte- mos apenas resultados parciais. A Igreja nao se identifica com nenhuma forma determinada de civilizagao, forga politica ou sistema cientifico e filosdfico, mas defende valores absolutos que devem se encarnar no tem- po, ou melhor, assumir uma veste histérica; como sinal de re- conciliagao em Cristo e comunhao no Espirito Santo, deve abar- car todos os povos e conciliar as diferengas de raga, classe e cultura. Ela nao deve se limitar 4 guarda de situagdes que exau- riram sua fungdo, mas encontrar na fé a forga e a luz para 4 A Igreja no trem da Historia encarnar de modo novo os valores antigos. Seguindo as pegadas de Paul Veyne, quem estuda a Historia da Igreja procura redescobrir e reter o que historicamente se revelou eficaz — os aspectos do passado que conservaram seu valor. 1.B - RELAGAO ENTRE HISTORIA DA IGREJA E TEOLOGIA: Para H. Jedin, a Historia da Igreja somente pode ser com- preendida sob o ponto de vista da histdria da salvagao, e seu significado Ultimo s6 pode ser captado pela fé. E uma disciplina teolégica, distinta de uma mera historia do cristianismo. Ja para G. Alberigo, a perspectiva da Historia da Igreja é a sucesséo, no tempo, das manifestagdes visiveis da Igreja; deve- se procurar nas fontes o contetido fenoménico, nao 0 providen- cial. A Hist6ria da Igreja nado é uma disciplina teolégica. E. Poulat afirma que o historiador deve esquecer todas as suas concepgdes, do mesmo modo como o fisico destaca-se do senso comum, de forma a nao fazer aparecer aos leitores qual seja a sua fé. Segundo R. Aubert, a historia da Igreja ¢ a reconstituigao, por métodos cientificos, do passado da sociedade eclesial; como se deve atender 4 natureza do objeto a ser estudado, implica op¢Ges teologicas, Salienta a existéncia de duas historias da Igreja correspondentes a duas eclesiologias: 1) a Igreja una e cat6lica; 2) uma mensagem vivida por diversos grupos. Para G. Martina, o historiador deve ter uma concepgao, uma vez que a ciéncia se fundamenta em pressupostos. Ha uma disting4o entre concepgées aprioristicas e procura da verdade por meio das fontes: um historiador auténtico sabe se manter distante de qualquer exagero aprioristico, ser avesso a aceitar relatos nao documentados, contrario a qualquer exalta¢do e mito, capaz de acolher a realidade com as suas diversas facetas e 5 Historia da Igreja na Antigiidade preparado para as interpretar em seu exato significado. O estu- do da hist6ria da Igreja deve ser realizado de modo sereno, imparcial e documentado. Deve-se apresentar claramente 0 con- ceito de Igreja, para nao confundi-la ou identificd-la com a hie- rarquia (distingdo entre histéria eclesiastica e histéria eclesial); a Igreja nunca se constituiu como um bloco monolitico, mas como um corpo, numa tensdo freqiiente entre vértice e base (deve-se atender a linha predominante). A Histdria da Igreja é a historia do povo de Deus em seus multiformes aspectos. COMPLEMENTO BIBLIOGRAFICO A. Franzen, Iglesia, Historia de la, in Sacramenium Mundi, Barcelona: Herder, 1973, III, cols. 634-670, G, Martina, Introdugio, in Ip., Histéria da [greja. De Lutero a nossos dias. I: O periodo da Reforma, S30 Paulo: Loyola, 1995, 15-46. H. C. L. Vaz, Politica e Histéria (editorial), Sintese n° 39 (1987) 5-10. H.-L. Marrou, De /a connaissance historique, Paris: Seuil, *1966. Trad. bras.: Sobre o conhecimento histérico, Rio de Janeiro: Zahar, 1978. M. Cuarrin, [ntrodugdo a Histéria da Igreja, S40 Paulo: Loyola, 1999. P. Verne, Comment on écrit l'histoire: essai d'épistémolagie, Paris: Seuil, 1971. Trad. bras.: Como se escreve @ histéria, Brasilia: UNB, °1995. R. Ausert, Introducao geral, in L. J. Rocier, R. Ausert, M. D. Knowe.rs (dirs.), Nova historia da [greja, Petropolis: Vozes, 1966-1976, I, 5-22. 2 Origens do cristianismo O fato historico Jesus Cristo @ a origem da Iqreja HA mais de dois séculos a critica literdria e historica subver- teu a leitura dos textos evangélicos e desfigurou a imagem tra- dicional de Jesus. Pela primeira vez a historia do fundador de uma experiéncia religiosa universal foi submetida de forma metédica ao exame da ciéncia historica, ou seja, a pesquisa histérico-critica. O primeiro mestre que contestou a realidade historica da existéncia de Jesus foi Bruno Bauer (1809-1882): para ele, Jesus nao é um personagem histérico, mas uma criagao mitica dos evangelistas (realizagao metddica das profecias). 2.A + PROCESSO DE REVISAO CRITICA DO JESUS HISTORICO Os iluministas e racionalistas tentaram recuperar o Jesus his- térico real além das incrustagdes dogmaticas e miticas. H. S. Reimarus (1694-1768), sob o influxo dos deistas ingleses, projetou uma reconstrugao hist6rico-cientifica do cristianismo; para ele deve- se distinguir entre o que Jesus realmente fez e ensinou, e o que os apéstolos narraram em seus escritos; Jesus teria propugnado uma revolta contra os romanos; seus discipulos furtaram seu cada- ver € se arvoraram em propagandistas de sua ressurrei¢ao, trans- formando-o em mestre espiritual e redentor da humanidade. Historia da Igreja na Antiguidade Impulso renovado e decisivo 4 pesquisa sobre o Jesus histé- rico foi dado pelo estudo das fontes dos evangelhos (Lachmann, 1835; Wilke, 1838). Com base nessas hipdteses, que revelaram a credibilidade histérica dos evangelhos, iniciou-se uma pesquisa orientada a reconstruir a figura de Jesus segundo um rigoroso método histérico-critico. Os representantes da escola liberal reconstituiram Jesus se- gundo o modelo do pregador de uma ética elevada e de uma re- ligido universal — os tedlogos dessa escola viam em Jesus sobre- tudo um exemplo inspirador, isto é, um pioneiro dos ideais do século XIX, O modo da escola liberal encarar a histéria de Jesus integrava a interpretagao dos textos com uma explicagdo de cara- ter psicoldgico e reduzia a sua mensagem a um ideal ético-religio- so. Para Harnack (1851-1930), os evangelhos nao sao propriamen- te uma obra histérica, mas livros postos a servigo da evangeliza- ao; Jesus é um grande e iluminado mestre de religido e moral, centradas na paternidade de Deus e na fraternidade humana. Os comparadores das religides descobriram em Jesus os tragos do profeta do Reino de Deus dentro de um quadro de catastrofe apocaliptica (J. Weiss, A. Schweitzer). Na historia das formas dos evangelhos, conjugada com o existencialismo heideggeriano, Jesus correu 0 risco de volatilizar- se no Kerygma (Dibelius, Bultmann). Hoje ninguém mais poe seriamente em duvida a existéncia histérica de Jesus e a possibilidade de reconstituir um nucleo substancialmente sdlido de sua atividade. 2.B - FONTES HISTORICAS Fontes ou documentos criticamente validos para a reconsti- tuicéo do ambiente de Jesus, ou seja, que nos podem por em contato com o acontecimento Jesus e sua ressonancia no meio ambiente: textos de alguns historiadores e gedgrafos (Estrabao de 18 Origens do cristianismo Amasea-Ponto, 60 a.C.-21 d.C.; Plinio, o Velho, 23-79 d.C.; Flavio Josefo, 27/28-95 d.C.), os textos de Qumran e de Nag-Hamadi (Egito) e as descobertas arqueoldgicas (escavagdes na Palestina). Na literatura nao-crista ha poucos textos que mencionam pessoalmente Jesus: — o texto de Flavio Josefo: “Por esse tempo surgiu Jesus, homem sabio (se é que na realidade se pode chamar ho- mem). Pois ele era obrador de feitos extraordinarios e mestre dos homens que aceitam alegremente a verdade (coisas estranhas), que arrastou apds si muitos judeus e muitos gregos. Ele era considerado (chamado) messias. Embora Pilatos, por acusagGes dos nossos chefes, o condenasse 4 cruz, aqueles que o tinham amado desde o principio nao cessaram (de proclamar que), passado o terceiro dia, apa- teceu-lhes novamente vivo; os profetas de Deus tinham dito essas coisas e muitas outras inumerdveis maravilhas a respeito dele. Ademais, até o presente, a estirpe dos cris- taos, assim chamada por referéncia a ele, nao cessou de existir”. (Flavio Josefo, Antiguitates judatcae XVII, 3,3 § 63-64). Como Flavio Josefo era judeu e fariseu, é provavel que seu texto tenha sido revisado. O texto hipoteticamen- te reconstituido seria o seguinte: “Foi naquele tempo que ocorreu a atividade de Jesus, um sabio que teve muitos adeptos, tanto entre os judeus como entre os gregos; cha- maram-no de Cristo. Seus sequazes afirmam que ele, revivificado, lhes apareceu. Até hoje a tribo dos cristaos, dos que adotaram seu nome, ainda nao deixou de existir”. — Tacito, ao relatar o incéndio que irrompeu em Roma: Nero “fez passar por culpados e submeter a refinadissimos tormentos os que o povo chamava cristaos e odiava por suas aces nefandas. Cristo, fundador da seita, cujo nome haviam adotado, fora justiciado pelo procurador Péncio Pilatos, sob o reino de Tibério” (Annas XV,44). 19 Historia da Igreja na Antigdidade A fonte mais antiga para a pesquisa histérica sobre Jesus é 0 apéstolo Paulo — suas cartas foram escritas nos anos 50. O texto de Rm 1,3-4, de fins dos anos 50, pode ser considerado como o documento mais remoto sobre as origens historicas de Jesus. Mas a fonte do conhecimento de Jesus, de sua obra ¢ men- sagem, continuam sendo os evangelhos, embora nao sejam relatos historicos (no sentido em que os entendemos, tais relatos surgi- ram apenas nos ultimos séculos na Europa ocidental). Os evange- Thos sao testemunho e proclamagio da fé, e nao mera reportagem de ciéncia histérica — narrativas com teor querigmatico, nao relatos histéricos —; nao s4o histéria, mas nao podem prescindir dela, pois a interpretagao crente ou teolégica, em contraste com os apocrifos, trabalha sobre dados reais, e, portanto, a pressupde como sua condi¢ao de possibilidade. Os Evangelhos sao interpretagdes teologicas a respeito de Jesus Cristo, elaboradas no seio das comunidades cristas do século I, com o objetivo de atender as necessidades e responder aos questionamentos dessas comunidades. Trata-se de interpretagdes crentes, enraizadas na histéria: sio pés-pascais, mas relacionadas com palavras, atitudes e acontecimentos vividos por Jesus de Nazaré. A luz da experiéncia pascal, as comunidades cristas do século I utilizaram categorias do judaismo e do helenismo para expressar e comunicar a singularidade do messianismo de Jesus. Na pratica, realizaram uma profunda releitura das expectativas messianicas das Escrituras judaicas. Para um controle histérico dos evangelhos foram fixados alguns critérios gerais (critérios de historicidade). Um dado evangélico pode ser considerado auténtico quando: — € atestado por diversas fontes, e em particular pelos estratos mais arcaicos da tradicao — critério dos teste- munhos; —~ no pode ser explicado como produto nem do ambiente judaico contemporaneo a Jesus, nem do ambiente cris- 20 Origens do cristianismo to posterior (cf. o “Abba”, o antincio do Reino etc.) — critério da descontinuidade ou dessemelhanga-ruptura, ou, em forma positiva, especificidade ou unicidade; — situa-se, de modo homogéneo, no ambiente vital de Jesus, em conformidade com a situagdo sociocultural de seu tempo, e em harmonia com a originalidade de sua pessoa e de sua mensagem (cf. as parabolas) — critério da continuidade ou coeréncia-conformidade. Tais critérios tém valor se sio usados de maneira comple- mentar e convergente. Um dado evangélico que satisfaga aos trés critérios tem garantia de grande atendibilidade histérica. Mas nem o ensinamento de Jesus e muito menos sua pessoa deixam-se exaurir ou reduzir as dimensdes de uma realidade histérica objetiva. Na pesquisa cientifica é valida a hip6tese que melhor expli- ca um conjunto de dados; na pesquisa historica é aceitavel a interpretagdo que satisfaz a mais ampla gama de elementos convergentes, 2.C - O CONTEXTO JUDAICO DO SECULO I Depois da morte de Alexandre em 323, a Palestina esteve sob a dependéncia dos reis helenisticos, entre a tolerancia e as tentativas de assimilagao; apés uma relativa independéncia politica e religiosa por um século — desde 164 a.C. —, Pompeu interveio na divisdéo interna entre os hasmoneus, conquistou Jerusalém em 63 a.C. e impés-lhe a ordem romana. A tradicao evangélica situa a atividade publica de Jesus dentro do quadro geografico da Galiléia. Esta era uma regiao fértil, den- samente povoada e marcada por movimentos insurrecionais; sua relativa autonomia sob os governos de Herodes Magno e Herodes 2l Historia da Igreja na Antigdidade Antipas, enquanto a Judéia ea Samaria passavam para o governo direto de Roma, manteve viva a aspiragdo a independéncia. Outra regiao onde Jesus exerceu certa atividade, por oca- sido das festas de peregrinagao, é a Judéia. Esta era montanhosa e semi-arida, e ai se encontrava a capital religiosa de todo o mundo judeu, Jerusalém. No ano 6, Arquelau foi destituido do titulo de rei, e a Judéia, a Samaria e a Iduméia passaram para a administragao direta de Roma, com um governador da ordem eqiiestre (praefectus até Tibério, procurator no tempo de Clau- dio); o procurador dependia do governador comandante das legides da provincia da Siria, residente em Antioquia; durante as festas de peregrinagao, transladava-se do pretério de Cesaréia a Jerusalém, para prevenir desordens e tumultos anti-romanos; incumbia-Ihe a seguranca militar e a diregao econdémica; ao sinédrio cabia zelar pelos assuntos internos. A influéncia do governador romano sobre os acontecimentos na Galiléia era indireta; muitos assuntos locais eram resolvidos pelo colégio local dos anciaos, ao passo que em Jerusalém o eram pelo sumo sacerdote e seu conselho. Sob o governo indeciso do tetrarca herodiano Antipas e a administragao provocadora de Pilatos, ja se faziam sentir os pré- dromos dos movimentos judaicos de insurreigaéo anti-romana, que eram estimulados pelas precarias condigGes econémico-sociais da populacao judia e por suas expectativas e aspiragées religio- sas e nacionalistas. Fora das cidades mais ou menos helenizadas, a economia palestinense tinha uma base agricola artesanal e satisfazia as necessidades de seu mercado interno (trigo, dleo, frutas, horta- ligas, pesca e criagao de gado). Sobre a atividade do agricultor e do comerciante pesava o sistema tributario das administragdes romana, local e religiosa. Estratificagao social: a maioria rica vivia nas cidades heléni- cas; havia uma categoria intermediaria, constituida pelos traba- 22 Origens do cristianismo Ihadores aut6nomos; a categoria dos pobres era formada de operdrios tempordrios e diaristas, mendigos e invalidos; ao “povo da terra” (“‘pecadores e publicanos”) pertenciam os nao-obser- vantes, privados dos direitos religiosos e civis; as mulheres eram equiparadas aos menores e aos escravos. Nas classes média e pobre o casamento era geralmente mono- gamico. A educagao familiar era acompanhada pela escolar em todas as aldeias em que havia sinagoga. A assembléia liturgica da sinagoga (sibados de manha e festas) compreendia a profissao de fé monoteista, preces, bén- ao dos sacerdotes, leitura da lei e dos profetas. Movimentos ¢ grupos do judaismo palestinense: sua diver- sificago nos anos 30 refletia as contradicGes e os contrastes de um pais ocupado por uma poténcia estrangeira, ou administra- do pelos descendentes de um rei oriental alheio as tradicdes culturais e religiosas do povo judeu; a nagao judaica e seu povo encontravam sua forga de coesio em torno de dois pélos ou instituigdes: a lei e o templo; o modo diferente de se relaciona- rem com tais entidades estava na origem de suas divergéncias. a) 0 surmo sacerdote era a autoridade suprema da nagao ju- daica, e o sinédrio, composto de 71 membros, era o con- selho supremo. b) saduceus. membros da aristocracia sacerdotal e leiga de Jerusalém; seu fator religioso distintivo era a adesao a lei escrita da Biblia (interpreta¢ao literal da lei) e a rejei¢ao de todo messianismo; no plano politico permaneciam abertos 4 colaboragdo com o poder politico, para conser- var o controle da instituigéo do templo e de seus recur~ sos financeiros; os sacerdotes das aldeias opunham-se 4 linha religiosa e politica dos saduceus, pois eram obriga- dos a exercer um trabalho ou profissao. C) essénios. sacerdotes e leigos dissidentes, em contraste com a linha religiosa e politica do sumo sacerdote e do alto clero 23 Historia da Igreja na Antigiidade de Jerusalém, que viviam numa espécie de organizagao co- munitaria 4s margens do mar Morto, empenhados na obser- vancia da lei e 4 espera da libertacao final dos “filhos da luz”; os “sacerdotes que obedeciam a fé” (Atos 6,7) provi- nham, talvez, desse meio, e tiveram um papel importante na organizagao liturpica da comunidade de Jerusalém. d) fariseus: seu traco distintivo era a interpretagao e obser- vancia da lei, baseadas numa tradigao oral que tendia a aplicar a Torah escrita as novas situacdes; organizados em forma de confrarias, reuniam-se para refeigdes em comum de “puros” e para meditar a lei; os mestres ou escribas promoviam a interpretagdo e atualizacao da Escritura, se- gundo a orientagdo das escolas de Hil/e/ e Shamai, e con- trolavam de fato a formacao e a vida religiosa do povo por meio da rede capilar das sinapogas ¢ escolas anexas. zelotas-bandidos-sicarios: grupos mais politizados que, ins- 2 pirando-se no zelo dos fariseus em prol da lei mosaica, se empenhavam numa a¢4o militante pela independéncia na- cional com uma ideologia de cunho teocratico e nacionalis- ta; parecem ser a ala extrema dos fariseus, reivindicando o respeito a lei por todos os meios e opondo-se a toda forma de autoridade nao procedente diretamente da lei, f) samaritanes. reivindicavam o direito de possuir um tem- plo sobre o monte Garizim, e s6 aceitavam o Pentateuco ea autoridade de Moisés. Os prosélitos eram os ndo-judeus, ou gentios, que passavam ao judaismo mediante circuncisao, batismo de imersao e sacri- ficios. JA os tementes a Deus eram atraidos pelo monoteismo e pelo culto da sinagoga, mas nao aceitavam a circuncisao. A diaspora judaica: desde o século VIII a.C., devido as depor- tagdes e imigracdes, o judaismo espalhara-se pela Asia anterior e Mediterraneo; no comego da era imperial os judeus da diaspora j4 superavam o numero de judeus da Palestina; sua vida religiosa 24 Origens do cristianismo e cultural centrava-se na sinagoga, chefiada pelo arqui-sinagogo como diretor das reunides littirgicas, e no conselho dos ancidos, que cuidava dos assuntos de carater civil. Os judeus gozavam de um estatuto juridico particular, conseguindo das autoridades uma série de excegdes e privilégios que salvaguardavam os ideais re- ligiosos e usos litirgicos; mantinham uma vinculacao ideal e real com a patria por meio do sacrificio pecuniario anual em favor do templo e do desejo de participar de uma festa da pascoa em Jerusalém; a maioria pertencia 4 classe média, e as comunidades mais numerosas residiam em Antioquia, Alexandria e Roma; 0 anti-semitismo popular latente contribuia para seu isolamento. 2.D - IDENTIDADE HISTORICA DE JESUS Jesus (Joshu’a, ou abreviado Jeshu) acha-se radicado no ambiente histérico-cultural da Palestina judaica do século I. Nazaré era uma pequena aldeia a 5 quil6metros de Séforis. Pesquisas arqueolégicas recentes evidenciaram que a Baixa Galiléia era muito povoada e em grande parte urbanizada. E enganosa a imagem de Jesus proveniente de um ambiente cam- ponés e de uma regiao pouco influenciada pelo helenismo. O ano do nascimento de Jesus é desconhecido; tentou-se calcula-lo pela conjungao de planetas, ocorrida em 7 a.C., mas a legenda dos magos fala apenas de estrela. Lucas cometeu um erro ao citar o censo: o primeiro recenseamento fiscal sob Quirino, que se tornara prefectus da Judéia em 6 d.C., foi feito em 6-7, mas somente na Judéia, Samaria e Iduméia. Herodes Magno morreu no ano 4 antes da era crista. Ou Jesus nasceu sob Quirino, e entao Mateus cometeu um erro de 10 anos, ou durante a vida de Herodes, ¢ ai ¢ Lucas que errou em 10 anos. Dionisio Exiguo, no século VI, fixou-o em 25 de dezembro do ano 753 de Roma, mas em seu calculo também cometeu um erro de 6 anos. E possivel, mas nao certo, que Jesus fosse mais velho. 25 Historia da Igreja na Antiguidade Celso, em 180, langou a noticia de que Jesus foi filho ilegi- timo de uma meretriz rejeitada, chamada Maria, e um soldado romano de nome Pantera (nome usado entre os soldados roma- nos). Comentarios desse tipo sio uma espécie de género literd- rio; pessoas detestadas so apresentadas como o resultado de- ploravel de atividades sexuais indecorosas. Também o ano preciso da morte de Jesus nao pode ser estabelecido: Pilatos foi procurador de 26 a 36, ¢ Caifas, o sumo sacerdote, de 18 a 37; parece que o 14 de Nisan do ano 30 tenha sido sexta-feira; os calculos aproximativos vao de 27 a 34. Jesus nao freqiientou a escola superior de um rabino ou mestre: possuia a cultura basica normal dos jovens de um luga- rejo da Galiléia, onde havia uma escola de leitura da Zorah, ao lado da sinagoga. A partir de algumas expressées — Zaltt@ qum(i) (Mt 5,41), Effata (Mc 7,34), Eloi eloi lamd sabagtdni (Mc 15,34) — e pa- lavras — Adbd, Bar, Paska — atribuidas a Jesus, pode-se supor que ele falava aramaico. O “carpinteiro” (Mc 6,31) e o “filho do carpinteiro” (Mt 13,55) deixam imprecisa a natureza da atividade desempenhada por Jesus e José. Em Nazaré, Jesus era conhecido por sua pro- fissdo de artesdo da madeira; esta atividade garantiu a Jesus e 4 sua mide a autonomia social e econdmica; ele ndo pertencia a categoria dos mais pobres de seu meio. As fontes evangélicas e extra-evangélicas néo permitem concluir que Jesus fosse casado, viivo ou separado da mulher. O celibato de Jesus, nao imposto por coergao externa, condi- g6es sociais ou econdémicas, tampouco decorrente de uma im- possibilidade fisica de casar-se e gerar, é um sinal do tempo novo inaugurado com a irrupgao do Reino de Deus na historia humana. Jesus foi um mestre itinerante seguido por um grupo de discipulos, originarios, na maioria, da regido do lago da Galiléia. 26 Origens do cristianismo O quadro geografico de sua atividade tem dois pélos: Cafarnaum, na Galiléia, e Jerusalém, na Judéia. Jesus tinha consciéncia de uma missao unica relacionada a salvagdo prépria do Reino de Deus --- ele é portador da salvagao do Reino de Deus —, e de que o Reino se realizava nele (Le 10,23; 4,21; 11,20; Mt 11,5 ss). Ele vive uma missao que vai muito além da vocagao de um profeta; fala com sur- preendente autoridade e exige de seus discipulos um segui- mento radical. “Abba” e “Reino de Deus”, palavras pronunciadas por Je- sus, S40 0 resumo mais expressivo de sua vida e do sentido dela. No Antigo Testamento aparecem dois aspectos da idéia de realeza: 0 senhorio protetor de Deus sobre o seu povo e o do- minio universal sobre o universo. No judaismo o reino aparece como pura referéncia ao fim dos tempos, sem repercussées intra- histéricas; a literatura apocaliptica esperava a vinda de um mundo totalmente diferente e transformado. Jesus insere sua mensagem na promessa dos profetas sobre o reinado escatolégico de Deus e aceita a esperanca da vinda do Reino de Deus. O que ha de especial na mensagem da dasilcéia de Jesus é que ele anuncia o reinado escatolégico de Deus como proximo e imi- nente, como ja ativo e observavel (Jesus anuncia-o como mise- ricérdia, como algo que tem seu hoje agora mesmo), como salvi- fico, e que chama os ouvintes a uma opcio; tudo isto é ligado misteriosamente 4 sua pessoa e atividade. Jesus ndo pregou uma piedade individual, mas uma mensa- gem que unificava como irmaos de uma familia religiosa os que o ouviam e se plenificavam de sua verdade. Em suas palavras e atos existia uma tendéncia inegavel 4 formagao e ao crescimento de uma comunidade religiosa. Jesus nao foi um revolucionario politico: ele nao pregou a luta armada contra a dominagao estrangeira, nem pertenceu ao grupo dos zelotas, tampouco pregou uma revolucao sociopolitica al Historia da tgreja na Antiqdidade em sentido moderno. Sua preocupagao sempre foi profunda- mente religiosa, embora tivesse fortes implicagées politicas e sociais. A ressurreigao de Jesus nao pode ser objeto de investigagao histérico-cientifica, pois nao pode ser provada cientificamente nem desmentida pela histéria. E um fato real, mas nao um aconte- cimento histérico, porque ninguém o presenciou nem poderia ter presenciado, Nos relatos sobre a ressurreigdéo de Jesus, os evangelistas quiseram deixar claro que a historia de Jesus nao havia acabado e que ele realmente esta mais presente do que nunca. Trata-se de um acontecimento real mas meta-historico, porque foi percebido em seus efeitos e, sem ser historico, toca a historia enquanto contribui para modificar os acontecimentos deste mundo; o ressuscitado nao pertence mais a este mundo, mas faz parte da dimensdo escatoldgica, e a ele s6 podemos ter acesso 4 medida que se manifestar. Nao é um dogma a mais, mas € todo o cristianismo, visto que somente pela convicgao dos discipulos houve Nove Testamento, Igreja, e hoje ha crentes. Fatos indubitaveis: batismo, relagao especial com Deus (in- vocado como “Abba”), éxito inicial, a atribuicao a si mesmo do poder de perdoar pecados, de modificar a Lei de Moisés, de violar prescrigdes sobre o sdbado e de anunciar a vontade de Deus, com base em sua propria autoridade, primeiros con- flitos, escolha de um grupo de discipulos, parabolas, crise, ida a Jerusalém, ceia, prisdo e crucifixao. COMPLEMENTO BIBLIOGRAFICO H. Conzemann, Le origiti del cristianesimo. I risultati della critica storica, Torino: Claudiana, 1976, 15-44. Introduction au Nouveau Testament, in Traduction Gicuménique de la Bible, édition intégrale: Nouveau Testament, Paris: Cerf/Société Biblique Francaise, '1989, 19-34, (Trad. bras.: Novo Testamento. 28 Origens do cristianismo Introdugao, in Biblia — Tradugdo Ecuménica, Sao Paulo: Loyola, 1994, 1833-1844). M. Simon, A, Benotr, Le judaisme et le christianisme antique: de Antiochus Epiphane & Constantin, Paris: Presses Universitaires de France, 1962. Trad. bras.: Judarsmo e cristianismo antigo: de Antioco Epifania a Constantino, Sao Paulo: Pioneira, 1987. R. Fasnis, Jesus de Nazaré, Historia e interpretagdo, Sao Paulo: Loyola, 1988, 5-88, R. Zuurmonp, Procurais o Jesus histérico? Si0 Paulo: Loyola, 1998. 29 3 Expanséo do cristianismo Do particularismo judaico ao universalismo cristéo O Império Romano foi o cenario da primeira pregagao do evangelho. Como unificara politica e economicamente a bacia do Mediterraneo, a circulagéo dos homens, das mercadorias e das doutrinas nao encontrava obstaculo. O cristianismo ultra- passou rapidamente os limites da terra de Israel ¢ atingiu o conjunto da bacia mediterranea. 3.A - A COMUNIDADE PRIMITIVA Nos primeiros tempos da evangelizagao, a mensagem crista difundiu-se entre os judeus da Palestina, de cultura hebraica, e os da diaspora, de cultura helenistica. A vida da comunidade crista de Jerusalém, além da conti- nuidade da pratica religiosa judaica e das reunides em comum, com a fragao do pao, caracterizava-se pela partilha des bens, embora sua doagao nao fosse obrigatdria. Uma perseguicao violenta atingiu o grupo dos helenistas de Jerusalém: alguns se dispersaram pela Judéia e Samaria, en- quanto outros chegaram a Fenicia, a Chipre e Antioquia, pre- gando aos judeus e também aos pagios (Atos 11,20); Paulo tor- nou-se perseguidor deles. O grupo dos doze se dispersou quan- do Herodes Agripa fez perecer a Tiago, em 42. Em 66 as pertur- 3 Historia da Igreja na Antigdidade bagées politicas degeneraram em revolta. Parece que antes disso a pequena comunidade crista refugiara-se em Pela, na Decdpole. A importancia da diaspora judaica para a fé crista reside no fato de que a sinagoga foi o ponto de partida da primeira evange- lizagao. O cristianismo encontrou um terreno propicio nas comu- nidades de simpatizantes da lei mosaica, das quais surgiram as primeiras igrejas paulinas. Na sinagoga, apés a leitura da Escritura, os irmaos de pas- sagem eram convidados a dirigir a palavra aos demais. Paulo aproveitava tais momentos para anunciar a chegada do Messias; sua prega¢do, que atingia mais os tementes a Deus, provocou a hostilidade dos judeus; tais acontecimentos convenceram-no de que devia ir aos pagaos. O judaismo ¢ 0 zelo missionario de Paulo abriram o caminho para o cristianismo, de modo que durante muitos anos as auto- ridades romanas nio fizeram distingao entre um e outro. Para os pagaos a terra de Israel nao era uma regiao muito importante, e muitas vezes consideraram-na como simples prolongamento da Siria-Fenicia. Apresentar sua histéria obrigava a interrogar- se sobre a origem de uma religido muito diferente dos numero- sos cultos do mundo romano. 3.B - O MUNDO GRECO-ROMANO Os constantes conflitos politicos de 133-27 a.C. desintegra- ram a republica e deram origem ao Império Romano. Com a vitéria de Otaviano sobre Anténio em 31 a.C., surgiu a nova forma de governo, exercida pelo comandante do exército. Come- sou entéo a Par Romana. Em 27 a.C., 0 Senado concedeu ao imperador o titulo de augusto (abengoado), até entao atribuido aos deuses; tal titulo inaugurou o principado e o culto do im- perador. Augusto era o principe (primeiro) dos romanos e do 2 Expansdo do cristianismo Senado e tinha 0 émperium, isto é, todos os poderes civis e militares; 0 poder tribunicio conferia-lhe a inviolabilidade ou o carater sacrossanto e permitia-lhe legiferar; como sumo ponti- fice era o chefe da religiao. Descendente de Julio César por adogao, Augusto e seus sucessores fizeram de “césar” seu nome de familia, e por isso foi mais usado para designar a fungao imperial. Os imperadores reassumiram 0 cargo de censor, que consis- tia em recensear as pessoas ¢ fortunas e em promover novos senadores. Reuniam os dados com o intuito de conhecer a situa- ¢ao do império, para administrar a cobranga de impostos e organizar o recrutamento militar. Desde o tempo de Augusto as provincias eram subdivididas em senatoriais (Asia Menor) e imperiais. As provincias senato- riais estavam sob o controle do Senado, que nomeava e enviava os proconsules. As imperiais estavam sob o governo direto do imperador, que enviava para la o /egatus August? pro praetore; tinham estatuto diversificado e eram subdivididas em: consula- res — as maiores e com mais legides — e procuratoriais — as mais instaveis e perigosas. Além disso havia territorios que dependiam em grau diferenciado de Roma, numa espécie de protetorado; em regides mais dificeis, por razées taticas e para recompensar os reis que o ajudaram, Augusto deixou no gover- no dinastias locais (protetorados revogaveis). As colénias eram constituidas por veteranos do exército que, junto com os /uni- cipia, gozavam o direito de cidadania itélica, o direito de pro- priedade sobre os bens e a isencgéo dos impostos. A tarefa dos representantes de Roma nas provincias relacionava-se com a defesa das fronteiras e da ordem publica, a cobranga de tri- butos diretos e indiretos e a administracao da justica para as causas capitais. Em 29 a.C., para os orientais, ¢ em 12 a.C., para os ociden- tais, Augusto autorizou a instalagao de assembléias provinciais: 33 Historia da tgreja na Antiguidade nao tinham poderes administrativos, judiciais ou legislativos; a finalidade principal das sessGes anuais era a celebragao do culto imperial, 0 exame da administragado do governador, e as mogGes ao imperador. A conquista romana reduziu muito as liberdades e os poderes das cidades, mas elas continuaram com suas ins- tituig6es tradicionais, particularmente as do oriente. O estatuto delas era diversificado; de modo geral podiam escolher seus magistrados, mas o voto era reservado aos cidadaos. O titulo de civis romanus — que podia ser hereditario, com- prado ou conferido — era necessario para as carreiras adminis- trativa e militar, dava garantias na justiga — isengdes das penas corporais ¢ desonrosas — e permitia o apelo ao imperador. A economia antiga tinha seu fundamento na escravidao. O escravo era considerado como um bem e nao desfrutava direi- tos. As guerras de conquista multiplicaram o numero de escra- vos; em algumas cidades formavam mais de dois tergos da po- pulagao, dado que incutia temor nos homens livres. O Império Romano abrangia regides de costumes e de econo- mias bem diferentes. No entanto, existia um mundo mediterraneo com tragos comuns — unidade romana e mediterranea —, com produtos agricolas, artesanato, vida urbana etc.; a unidade poli- tica favorecia 0 intercambio. O vinho de boa qualidade, ao lado do dleo de oliva, era um dos principais produtos comercializados. Pessoas ¢ mercadorias circulavam pelo império por terra e por mar. Os romanos tinham uma rede de 80 mil quilémetros de grandes estradas. O servico postal atendia apenas a correspon- déncia oficial; os particulares deviam procurar viajantes que levassem suas cartas. Os ricos tinham seus escribas, ao passo que os pobres recorriam a um escrivao ptiblico. O grego Koind (comum) era nao somente a lingua da cultura e da filosofia, mas também do comércio internacional. O latim, lingua de Roma e posteriormente do ocidente, era a lingua da administracgao e do direito. 34 Expanséo do cristianismo A Antigiiidade nao se interessava pela crianga enquanto tal: era um ser a educar para que se libertasse o mais cedo possivel da condigao infantil e entrasse na idade adulta. A unidade politica nao correspondia uma unidade religiosa, pois Roma nao impunha um credo comum. A re/igido era diversi- ficada — muitos deuses — e 0 culto unicamente ritual. As cerim6nias religiosas compreendiam preces e sacrificios; estes eram concebidos como presentes e ofertas aos deuses; parte do sacrificio era queimada e o resto consumido pelo clero ou pelos fiéis, ou vendida no mercado. No ambito do império existiam collegia Jicita, isto ¢, asso- ciagdes permitidas. Parece que as colonias judaicas gozavam dos direitos dessas associagées, e que Roma lhes havia reconhecido alguns privilégios particulares: o direito de recolher as ofertas (didracma) para o templo de Jerusalém, o direito de discutir as causas religiosas diante de tribunais préprios, a isencao do ser- vico militar e da homenagem religiosa as divindades oficiais do império. Nao se tratava de um estatuto especial para os judeus como grupo étnico-religioso, mas representava a aplicagdo e extensdo dos direitos dos stiditos nas cidades livres. Na Antigitidade a sociedade humana estava permanentemen- te ameacada de precipitar-se no caos e necessitava ser salva de uma derrocada ja em andamento. Quem conduzia os homens de maneira ordenada e procurava assentar as bases para que se ins- taurasse a felicidade comum na cidade era considerado como um salvador. Os reis, os chefes vitoriosos, os libertadores dos povos e os salvadores das cidades passavam por super-homens. Para que recebessem culto eram necessarias algumas condicées politicas. Pelo culto a comunidade reconhecia sua subordina¢ao aquele que honrava e queria comprometé-lo a perpetuar sua protecao. As cidades gregas e latinas tinham suas divindades proprias. Temendo atrair a célera de uma divindade, pelo fato de esquecé- la, erigiam-se altares aos “deuses desconhecidos”. 3% Historia da Igreja na Antigdidade O culto do soberano teve origem no oriente: as cidades gre- gas da Asia Menor deram aos seus senhores os titulos de soter, epifanus e kyrios. Cada vez mais impunha-se a idéia de que deus aparecia visivelmente no soberano. Pouco antes da era crista comecou-se a encarar os imperadores como seres divinos, filhos de deus ou deuses. As antigas religides greco-romanas estavam em decadéncia devido a critica filoséfica e a influéncia das religiGes orientais. Para Evémero, os deuses seriam personalidades eminentes do passado as quais lentamente se atribuiram honras divinas. Augusto tentou conter a ruina religiosa e moral de seu povo iniciando uma reconstrugao geral da religiao oficial (no ano 12 a.C. assumiu a dignidade de pontifex maximus). Implantou o culto oriental do soberano com o intento de p6-lo a servigo da reorganizacao religiosa; nas casas privadas dever-se-iam ofere- cer sacrificios ao génio do imperador. Se nas provincias orien- tais Augusto incentivou o culto ao imperador, na Italia teve de ser mais discreto, pois o Senado decidia, apds a morte do impe- rador, a respeito da sua consecratio ou catalogagao entre os deuses. No século I, Tibério, Claudio ¢ Vespasiano estimularam o culto do imperador defunto; Caligula e Nero deixaram-se adorar; ¢ Domiciano exigiu decididamente o culto divino j4 em vida, reivindicando o titulo de “Dominus et Deus”. As manifestagées do culto imperial eram relativamente ra- ras: o imperador tinha apenas de deixar que as provincias, ci- dades e corporagées exprimissem seu entusiasmo, reconheci- mento e obséquio; ademais, tinha pouco contato com os campo- neses. Para tal culto os sacerdotes eram escolhidos dentre os magistrados locais. A massa apegava-se aos deuses familiares protetores. Além de preservar seus deuses e crengas, os povos que constituiam o império deviam aceitar a religido romana restau- 36

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