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As contas se empilhavam na mesa. João levou as mãos à cabeça. De costas para ele,
Maria, protuberante nos seus quase nove meses de gravidez, limpava os restos do humilde café
da manhã. João trabalhava de pedreiro, construindo prédio para os ricos do Maurício de Nassau.
Desde os nove anos ajudava em casa, trazendo os trocadinhos que ganhava guardando e lavando
carros no Parque 18 de Maio. Os carros dos dotôres, como ele falava, no linguajar de quem
Não porque não quisesse. O maior sonho dele era poder vestir um daqueles uniformes
de brim azul-marinho, tênis conga, cadernos e livros debaixo do braço. Mas a mãe, viúva, oito
filhos pequenos para criar, nunca poderia se dar ao luxo de enviar, logo o mais velho, para a
escola, mesmo a pública, quando ele podia trabalhar. E assim o destino correu para ele. Os sete
irmãos foram alimentados com o que a mãe ganhava, como doméstica e lavadeira, e com o que
ele, menino de nove, depois dez, onze (e assim por diante) trazia dos bicos que arranjava pela
rua.
Agora, aos trinta e dois, prematuramente envelhecido pelo trabalho penoso e desgastante
médica pública, estava prestes a ser pai. Maria, sua esposa, tinha dezenove anos. Pequenina,
mirrada, moreninha. Caçula de uma família de treze irmãos. O pai, alcoólatra, batia na mãe, nos
irmãos, nela. Aos treze, depois do pai tê-la estuprado, fugiu de casa, lá no Rafael, e foi morar
nas ruas. Corpo de menina-moça, não lhe foi difícil encontrar trabalho. Como prostituta.
também moravam. A cafetina, uma mulher gorda e fedorenta, com um horrendo buço-quase-
bigode, as explorava continuamente. Às vezes, tinha que atender a cinco clientes na mesma
noite.
Um dia, Maria engravidou. Ao descobrir isso, a dona da pensão a espancou
horrivelmente. Ela burlara a regra número um da casa. Não pegar barriga. Expulsa do lugar
que se acostumara a chamar de lar, com um filho no ventre e sem um tostão, ela foi dormir na
rua. Gemendo por causa da surra que recebera da ex-patroa, deitou-se na calçada de uma loja
Um grupo de senhoras, que saía da Matriz, a viu. Teriam passado direto por Maria, não
fosse uma delas, que se apiedou do embrulho humano largado numa calçada, naquela noite tão
fria. A mulher, Adelaide Fontes, esposa de um conhecido comerciante português, ao ver que a
moça estava muito machucada, levou-a para a Casa de Saúde. Maria foi salva mas perdeu o
bebê.
D. Adelaide resolveu tomar a moça a seu serviço. E Maria virou doméstica. O João, com
quem se casou logo depois, conheceu quando ele foi na mansão dos Fontes reformar um dos
banheiros. Foi amor à primeira vista. João se agradou da moça quieta, tímida, que vinha lhe
trazer um copo d’água, de vez em quando. E Maria gostou daquele homem trabalhador, de olhar
D. Adelaide ajudou-os a fazer o enxoval. Modesto, a maior parte dos itens coisas usadas,
doadas pela patroa, mas, ainda assim, um belo enxoval para uma doméstica e um pedreiro. O
casal foi morar num casebre no Fernando Lyra, comprado com as economias que João
conseguira fazer mais um dinheiro que dona Adelaide deu a eles. Não era muita coisa, mas,
para os dois, acostumados com a pobreza e apaixonados, era um pequeno ninho de amor.
Foi nessa época que a patroa de Maria descobriu que estava esperando um filho. Ela
estava nos seus quarenta anos e já tinha engravidado várias vezes e abortado em todas. O marido
No barraco não muito longe dali, Maria também esperava uma criança. João ficara
contente com a notícia, mas, ao mesmo tempo, apreensivo. Tinham pouco dinheiro e o que
ganhavam mal dava para ele e a mulher. Como iriam sustentar mais um? Ele haveria de querer
que pelo menos seu filho pudesse ir para a escola, como nunca pudera ir. Meu Deus, o que
Na mansão dos Fontes, d. Adelaide também se preparava, certa de que, dessa vez, Deus
iria lhe ajudar. Os exames mostravam que tudo ia bem. Por que, então, acreditar que algo daria
errado? ‘Não’, pensou ela, sacudindo a cabeça, ‘dessa vez, você vai nascer’. E alisou a barriga
de apenas oito semanas. E os meses se passaram e os exames provaram estar corretos. Pelo
menos até agora. A barriga de d. Adelaide cada vez crescia mais. A de Maria também. E a
Faltando quase um mês para o neném nascer, ele sofreu um acidente na obra e foi
Depois de uma semana, sarado o ferimento, voltou a sair de casa todo dia, dizendo que
ia para a obra. As contas, penduradas há algum tempo, pois ele tinha vergonha de pedir dinheiro
a Maria, começaram a ser cobradas. Ele continuava a fingir que estava tudo bem e Maria de
nada desconfiava.
Um dia, ela estava lavando a louça na casa da patroa, quando começou a sentir as
arrebentou e o líquido começou a escorrer por entre as suas pernas. D. Adelaide entrou na
cozinha naquele momento e viu o estado da empregada. Mais que depressa, correu ao telefone
quando d. Adelaide deu um grito, ao sentir uma dor insuportável lhe esmagando o ventre. ‘Meu
João foi avisado pela vizinha e correu para o hospital. Ao chegar lá, viu o dr. Fontes,
sentado no sofá, com o rosto entre as mãos. Era a imagem do desespero. Estava na loja quando
muito difícil’, começou ele, ‘de modo que não podemos prever nada’. O marido de d. Adelaide
baixou a cabeça. ‘Meu Deus, me ajude! Não posso perdê-la também...’, e começou a chorar
baixinho. João apiedou-se daquele homem. Tão rico, tão poderoso e, no entanto, tão impotente
Numa das salas de parto, os médicos lutavam para trazer um bebê à vida, enquanto que
numa outra uma mulher acabava de perder o filho. Uma hora depois, o mesmo médico que viera
‘Senhores’, pigarreou contrito, ‘suas esposas deram à luz e passam bem, mas...’
estava a salvo, era o que importava. João puxou a manga do obstetra. ‘Doutor, e o meu filho? ’
João fechou os olhos. Sentiu uma mistura de tristeza e de alívio. Deus é sábio, pensou
luta para trazer os filhos ao mundo. D. Adelaide, orgulhosa, os louros cabelos penteados pela
enfermeira, sorriu quando o marido entrou. Maria, de olhos fechados, parecia serena e
conformada com a morte do seu filhinho. João a beijou na testa. Ela entreabriu os olhos.
D. Adelaide estendeu as mãos para ela e murmurou: ‘Obrigada’... Maria assentiu. João
inconsolável por ter sido arrancado do seu refúgio seguro. No pequenino pulso, a pulseira de