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Uma luta por liberdade:

a trajetória de Maria do Bonfim em busca da liberdade de sua filha, Felicidade.

Geovanna M. Souza
Liriel A. Barbosa
Luiz R. R. Silva

No final do século XIX a escravidão já ia manca no Brasil, próxima a seu fim.


Embora a elite escravista nacional ainda segurasse o osso desse sistema brutal e cruel, o que
levou o Brasil a ser o último país das Américas a decretar a abolição da escravatura. O
Império tinha suas bases política e economicas na escravidão, justamente por isso, o fim da
escravidão também poderia representar a dissolução do Império. D. Pedro II doente e cansado
dormia nas reuniões do senado e do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. A classe
política via com maus olhos a sucessão da Princesa Isabel, talvez por ser uma mulher, mas,
sobretudo, porque não querer Conde d’Eu, um francês, como consorte.
Manter a escravidão, era, portanto, básico para manter o sistema como estava.
Contudo, os escravizados não aceitavam essa situação de forma submissa. Recorriam aos
tribunais ou à rebelião para conseguir seus objetivos. Na sociedade o cativo era visto como
objeto, era propriedade do seu senhor, mas, quando cometia um crime, ele tornava-se passível
de seus atos e ia a julgamento. Ainda no mundo jurídico, muitos cativos recorreram às ações
de liberdade, alegando que eles, na verdade, eram livres ou libertos e haviam sido
escravizados ilegalmente, ou então que lhe tinham prometido a liberdade, sem cumprir o
combinado.
Os documentos jurídicos, provenientes desses processos, são muito utilizados pelos
historiadores para compreender como os escravizados pensavam, e resistiam ao sistema
escravista. Todos os processos, testemunhos, julgamento, etc., eram escritos, o que facilita o
trabalho dos historiadores que querem dar voz a um povo silenciado e marginalizado. Esse
texto em específico, é sobre Maria do Bonfim, uma mulher negra que por amor a sua filha
enfrentou seus algozes e atravessou os quilômetros e quilômetros que separavam Recife de
Ouro Preto (em uma época sem carro, ônibus, avião ou qualquer veículo motorizado).
Maria do Bonfim era uma mulher negra, liberta, e na década de 1860 veio da Bahia
para o Rio de Janeiro, junto a um negociante português. Era um percurso de 1.295
quilômetros, e mesmo que fossem percorridos montados a mula, era uma viagem de meses.

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Mas, o que essa mulher, sem grandes posses, vinha fazer na capital do Império? Estava em
busca de sua filha, de nome Felicidade. Era uma busca que tinha por único motor a vontade e
esperança de encontrar a sua filha, pois ela não tinha grandes informações sobre o paradeiro
dela. Na verdade, ela tinha sim uma informação. Mas tão ampla e incerta, que pouco
adiantava. Sabia que ela tinha sido vendida ao sudeste brasileiro, nada além disso.
O negociante de nome Joaquim Guimarães foi pago por Maria do Bonfim com os
poucos réis - moeda da época - que ela tinha, para que investigassem sobre o paradeiro de sua
filha. Por mais surpreendente que possa parecer, Guimarães conseguiu encontrar Felicidade.
Descobriu que ela havia sido enviada para Ouro Preto, capital da província de Minas Gerais.
Nessa época as leis de libertação começavam a ser discutidas no Congresso e os negros
faziam sua resistência desde dos principios do escravismo no Brasil: fugindo, rebelando,
aquilombando, lutavam pela liberdade.
Maria do Bonfim buscava pela liberdade de sua filha, e pretendia lutar com unhas e
dentes para isso. Mandou Guimarães ir para Ouro Preto e comprar Felicidade em seu nome.
Lá, ele apresentou-se diante de João da Costa Varela Menna, homem que havia surrupiado a
liberdade da menina, e comprou-a por 2 contos de réis. É praticamente impossível converter
contos de réis para a nossa atual moeda, o real. Mas era uma pequena fortuna. Esse
negociante fez um empréstimo a Maria do Bonfim, e ela pagou primeiramente 300 mil-réis. E
o restante seria pago em parcelas. Porém, essas parcelas foram atrasando, o português foi
ficando cada vez mais bravo e começou a ameaçar vender Felicidade novamente.
Faltava 1 conto e 700 mil-réis. A liberdade da filha estava por um fio. A cada nova
ameaça o coração de Bonfim apertava-se mais, com medo da filha ser novamente roubada de
seus braços. Ela então, uniu-se a duas outras pretas, possivelmente suas amigas, a Olivia da
Purificação e Teresa da Conceição, e juntas elas foram pedir um empréstimo para outro
negociante, agora Antônio Costa. Era uma ação desesperada de uma mãe, que não queria
perder a filha!
A negociação foi fechada. Guimarães foi pago por Costa. Enquanto isso, o novo
credor recebia juros exorbitantes de Maria do Bonfim. Era 3% do valor total! Mãe e filha
trabalhavam sem parar para conseguir sanar a dívida, além de precisarem se sustentar.
Conseguiram pagar um valor de 500 mil-réis, mas durante dois meses em baixa, não
conseguiram pagar mais. O agiota… digo, o comerciante, então toma Felicidade da mãe, e a
escraviza novamente, alegando falta de pagamento.
Mas como pode uma mulher negra ser assim escravizada? Essa história não está
muito confusa? Afinal, o primeiro comerciante havia comprado a liberdade de Felicidade e

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agora as duas só deviam pagar a quantia. Mas a liberdade já era da filha. Ai que você se
engana, caro e ingênuo leitor. Os comerciantes haviam lesado Maria do Bonfim. Eles não
tinham comprado a liberdade para Felicidade, mas sim tinham comprado a própria menina.
Então, ocorreu, na verdade, apenas uma transferência de propriedade.
Antônio Costa negou que a tinha lesado! Diante do juiz, do júri e dos advogados
alegou que as mulheres sabiam exatamente todos os detalhes daquela negociação. Bateu
sobre a mesa e exigiu seus direitos sobre a negra e que a havia tomado unicamente por falta
de pagamento. E havia uma testemunha que comprova isso, disse o advogado do negociante.
Tente adivinhar quem, caro leitor. Gaste alguns neurônios pensando, para em vão obter a
resposta errada. Olivia da Purificação, uma das negras que anteriormente supomos ser amiga
de Maria do Bonfim. Como diria Júlio César, imperador romano deposto e esfaqueado por
seu próprio filho: “Até tu, Brutus!”.
Naquele tribunal, ocorria uma verdadeira peça shakespeariana. Mais depoimentos
chegaram ao tribunal para bombardear a narrativa da mãe. O negociante Guimarães também
depôs. Afirmou que não havia sido pago para buscar Felicidade. E aqueles 300 mil-réis que
ela havia pago de adiantamento pela filha, eram na verdade aluguéis que Maria do Bonfim o
devia. Mas, por que aquele negociante se meteu em Ouro Preto em busca de uma cativa? Ele
deu como desculpa que só buscou a filha de Maria do Bonfim, pois ela disse que usaria a
filha como moeda de troca até que conseguisse mais dinheiro.. Mas, se ele comprou-a, como
ela seria moeda de troca? Claro, não somos juízes, tão pouco júri, realizamos aqui o trabalho
de historiadores, e não é de nossa alçada saber qual lado da história é verdadeiro ou não.
Além de que, isso é impossível.
Mas, o defensor de Felicidade exclamou: aquilo era uma patifaria! Felicidade nunca
ficou sob obediência doméstica de Costa e mesmo após as negociações a menina viveu livre
com sua mãe. Portanto, Costa não tinha dominio sobre a preta, e se tivesse a posse, era ilegal,
feita com irregularidades. Mas o advogado de Costa deu sua réplica e afirmou que a menina
tinha autorização para morar fora, com a mãe, desde que pagasse os aluguéis. E ele tinha sim
autoridade sobre ela.
O caso não chegou a ser julgado, já que ambas as partes entraram em um acordo.
Antônio Costa concedia a liberdade a Felicidade, e em troca ela trabalharia 3 anos para ele,
ou, então pagaria 42 mil-réis mensalmente por 3 anos. Ou seja, no total estariam acumulados
aproximadamente 1 conto e 500 mil-réis. É impossível saber qual a escolha das mulheres.
Mas, que o negociante saiu beneficiado, não há dúvidas!

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Por muito tempo a história do Brasil foi contada sob a perspectiva de homens brancos,
europeus ou descendentes. Essa história clamava os feitos dos colonizadores, engrandecia os
jesuítas, as bandeiras, os homens de Estado - também brancos -, mas pouco se falava sobre as
baixas classes da nação. Sobre as pessoas que verdadeiramente ergueram o país. Esses
sempre tiveram voz, e a cada novo século que passa a constar no calendário, gritam mais e
mais alto, embora permaneçam silenciados. Mas, sem os processos jurídicos, não poderíamos
conhecer as transcrições desses gritos.
O que pediam? O que queriam? O que pensavam? É um campo de estudo vasto e
novo. Luiz Gama, o advogado dos escravizados, entra em moda. Ações cíveis de liberdade
passam a ser tema recorrente. E pessoas comuns, que seriam esquecidas pelo tempo, como
Maria do Bonfim e Felicidade, aparecem a nós. Não há como negar a importância dessas
histórias para a construção do Brasil, marcado pelo racismo e pela desigualdade.
Compreender que os negros escravizados desse país lutavam contra o sistema e nem de longe
se deixaram abater pela falta de leis que lhes favoreciam, inclusive usavam das leis e dos
argumentos brancos para conseguir o que almejavam. A luta da diáspora negra brasileira é
longa, e a cada passo conquista mais direitos.

Liriel A. Barbosa, capixaba, é graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro


Preto. É bolsista no projeto A Presença Negra na Ouro Preto do século XIX: Educação

Patrimonial mediada por tecnologias.


Luiz R. R. Silva, mineiro, poeta e graduando em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto. Seu romance histórico, A camélia ainda não brotou, pela Urutau, está em pré-venda.

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Geovanna M. Souza, mineira, é graduanda em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto.
Para saber mais:

CÂMARA, Maria Eduarda. Africanos livres e a busca por liberdades plenas. HH Magazine,
Coletivo Negro Braimá Mané, 21 de dezembro de 2023.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
DE MENEZES, Jaci Maria Ferraz. Abolição no Brasil: a construção da liberdade. Revista
HISTEDBR On-line, v. 9, n. 36, p. 83-104, 2009.
DEL PRIORE, Mary. O castelo de papel. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.
DOS SANTOS LEITE, Maria Jorge. Tráfico Atlântico, escravidão e resistência no Brasil.
Sankofa (São Paulo), v. 10, n. 19, p. 64-82, 2017.
NEEDELL, Jeffrey D. O movimento abolicionista de 1879-1888: lições de um movimento de
reforma popular. Almanack, 2021.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. Companhia das Letras, 2020.
VELLOZO, Júlio César de Oliveira; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos contra os
escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Práxis, v. 10, p. 2137-2160, 2019.

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