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Instituto dos Irmãos Maristas
© Casa Generalizia dei Fratelli Maristi delle Scuole
P.le Marcellino Champagnat, 2
00144 Roma – Itália
comunica@fms.it
www.champagnat.org

Diagramação: Departamento de Comunicações da América Central


Realização: Departamento de Comunicações da Administração Geral
Fevereiro de 2022

Vozes Maristas: Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Instituto dos Irmãos Maristas;


V872
Preâmbulo do Ir. Ernesto Sánchez
2022 Roma: Casa Generalizia dei Fratelli Maristi delle Scuole, 2022.
444 p.; 21 cm

ISBN 979-12-80249-22-7
Inclui bibliografias

1. Irmãos Maristas. 2. Liderança – Aspectos religiosos – Cristianismo.

CDD. 22. ed. – 271

Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR


Biblioteca Central Sônia Maria Magalhães da Silva - CRB-9/1191

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

ÍNDICE

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Preâmbulo pág. 11
Ir. Ernesto Sánchez Barba, Superior-Geral

Prefácio pág. 15
Ir. Luis Carlos Gutiérrez, Vigário-Geral
Ir. Benjamin Consigli, Conselheiro-Geral
Ir. Ken McDonald, Conselheiro-Geral

PARTE 1: VISÃO

Capítulo 1 pág. 21
Introdução à liderança profética e servidora
Chamada e propósito
Ir. Luis Carlos Gutiérrez, Vigário-Geral
Ir. Benjamin Consigli, Conselheiro-Geral

Capítulo 2 pág. 37
A relevância da presença na liderança marista
Ir. Ernesto Sánchez Barba, Superior-Geral

PARTE 2: CARACTERÍSTICAS DA LIDERANÇA


PROFÉTICA E SERVIDORA

Capítulo 3 pág. 55
Que tipo de líder você deseja ser?
Ir. Seán Sammon, Superior-Geral (2001-2009)

Capítulo 4 pág. 69
A liderança da empatia, do serviço e da compaixão
“Filho, eles não têm vinho”
Ir. Óscar Martín Vigario, Conselheiro-Geral

Capítulo 5 pág. 89
Liderança e cura
Ir. Peter Carroll, Provincial da Austrália

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VOZES MARISTAS

Capítulo 6 pág. 113


A conciência
Ir. Ken McDonald, Conselheiro-Geral

Capítulo 7 pág. 129


Liderança e persuasão
Ir. Vincent de Paul Kouassi, Província da África Ocidental - Reitor do MIUC

Capítulo 8 pág. 143


Um líder que escuta
Ir. Norbert Mwila, Provincial da África Austral

Capítulo 9 pág. 153


Sentinelas da aurora
Pre-ver: a imaginação profética
Ir. Emili Turú, Superior-Geral (2009-2017)

Capítulo 10 pág. 169


Administração e gestão na liderança servidora
Ir. Libardo Garzón Duque, Ecônomo-Geral (2015-2021)

Capítulo 11 pág. 183


Liderança, um compromisso prioritário com as pessoas
crescendo juntos, acompanhando-nos, empoderando-nos
Ir. Gabriel Villa-Real, Vigário Provincial de L’Hermitage
Ir. Pere Ferré, Provincial de L’Hermitage

Capítulo 12 pág. 203


"Quantos pães vocês têm?”
Ir. Hipólito Pérez, Provincial da América Central

PARTE 3: HABILIDADES

Capítulo 13 pág. 221


Habilidades de comunicação em liderança
profética e servidora
Ir. Cyprian Gandeebo, Provincial da África Ocidental

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Índice

Capítulo 14 pág. 235


Habilidades para a tomada de decisões
Ir. Robert Teoh, Provincial de East Asia (2013-2019)

Capítulo 15 pág. 245


Colaboração e trabalho em equipe
Ir. Patrick McNamara, Provincial dos Estados Unidos (2015-2021)

PARTE 4: TRILHAS E FUNDAMENTOS

Capítulo 16 pág. 261


Pinceladas bíblicas em chave de fraternidade para
uma liderança orientada ao serviço
Ir. Josep Maria Soteras, Conselheiro-Geral

Capítulo 17 pág. 281


Liderando com Maria em nosso coração
Ir. Juan Carlos Fuertes, Provincial de Mediterránea (2016-2021)

Capítulo 18 pág. 293


Marcelino Champagnat, um modelo
de liderança servidora
Ir. Benjamin Consigli, Conselheiro-Geral

Capítulo 19 pág. 349


Estilo marista de liderança profética e servidora:
alguns exemplos em nossa tradição
Ir. Michael Green, Provincia da Austrália

Capítulo 20 pág. 365


A sabedoria ética e espiritual na liderança
Ir. Luis Carlos Gutiérrez, Vigário-Geral

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PARTE 5: PERSPECTIVAS DE FORMAÇÃO

Capítulo 21 pág. 405


Formação e formação permanente para um mundo
emergente
Ir. Chano Guzmán Moriana, Delegado da Missão da Província de
Mediterrânea (2016-2022)

Capítulo 22 pág. 425


A educação superior marista na perspectiva do serviço
Ir. Evilazio Francisco Borges Teixeira, Reitor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Ir. Manuir José Mentges, Vice-reitor da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PREÂMBULO
Ir. Ernesto Sánchez Barba
Superior-Geral

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VOZES MARISTAS

A publicação de “Vozes Maristas: Ensaios sobre liderança profética


e servidora” é uma iniciativa que procura responder ao convite do XXII
Capítulo Geral sobre liderança. No documento do Capítulo é expresso que
“para um novo começo, acreditamos num estilo de governo que assume
uma liderança profética e servidora, que acompanha de perto a vida e a
missão maristas”. E, dentre outras propostas, o Capítulo sugeriu “identificar
e formar líderes, leigos e irmãos, da todos os níveis, tendo em vista crescer
na co-responsabilidade pela vida e missão maristas”.

Acreditamos que a reflexão e formação sobre liderança é um


tema necessário e importante a todos os níveis de animação e governo
do Instituto. Nas Unidades Administrativas, temos várias iniciativas que
procuram formar, reforçar e acompanhar os líderes maristas. Desejamos
apoiá-los, e convidamo-los a desenvolver outros que são sugeridos no
projecto “Liderança Servidora” do plano estratégico da Administração
Geral.

Há alguns meses, num diálogo realizado pelo do Conselho Geral,


pareceu-nos que seria útil ter reflexões escritas, experiências e ideias
práticas relacionadas com a liderança marista que pudessem servir de
convite, motivação, consulta e referência. Foi assim que surgiu a ideia de
produzir este livro.

Tivemos a generosa resposta de vários irmãos para escrever os


ensaios que compõem este livro. O meu agradecimento a todos aqueles
que colaboraram na sua redação, entre os quais vários irmãos do Conselho
Geral. Agradeço à equipa coordenadora, a os irmãos Luis Carlos Gutiérrez,
Vigário-Geral, Ben Consigli e Ken McDonald, Conselheiros Gerais, por
esta iniciativa e por seu trabalho de organização e acompanhamento.
Muito obrigado também àqueles que têm colaborado na tradução, revisão,
layout e impressão.

Temos uma longa experiência de liderança marista, a começar pela


que nos foi transmitida pelo Padre Champagnat, bem como por tantos

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

irmãos e leigos ao longo da história do Instituto. Como líderes maristas,


procuramos viver hoje as atitudes de Jesus, inspirados por Maria. Cabe a
cada um de nós adaptar e atualizar os valores recebidos no contexto actual,
procurando viver e exercer a liderança profética e servidora para a qual
fomos convidados.

Fraternalmente,
Ir. Ernesto Sánchez Barba,
Superior-Geral
2 de Janeiro de 2022

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PREFÁCIO
Ir. Luis Carlos Gutiérrez, Vigário-Geral
Ir. Benjamin Consigli, Conselheiro-Geral
Ir. Ken McDonald, Conselheiro-Geral

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VOZES MARISTAS

Roma, 2 de janeiro de 2022

Você tem em suas mãos um livro sobre liderança marista. Talvez


com curiosidade, você se pergunte por que decidimos falar sobre este tema
e como vamos abordá-lo. A verdade é que foi um prazer com um pouco
de ousadia, realizar esta publicação.

Este livro é inspirado na orientação do XXII Capítulo geral (2017)


que nos impulsiona a viver uma liderança servidora e profética que acom-
panhe de perto a vida. Com esta ideia, fizemo-nos as seguintes perguntas:
Como podemos explicar aos maristas hoje o que significa este modelo
de liderança? Como podemos traduzir algumas de suas características em
nossa experiência cotidiana? O que acontece se damos uma “voz marista”
a este estilo de dirigir, servir e acompanhar? Como podemos ser mais fiéis
ao estilo de liderança de Jesus, hoje? Como conectamos nossa liderança
com o estilo de Champagnat e nossa tradição? O que podemos propor aos
maristas, irmãos e leigos, para repensar seu próprio modelo de liderança?

Iniciamos assim a tarefa de convidar, neste primeiro texto, um gru-


po de irmãos maristas de todos os continentes para que nos explicassem o
que significa ser líderes servidores e proféticos, de acordo com suas próprias
vivências e reflexões. Certamente, o resultado é uma publicação muito di-
versa tanto em estilos como em enfoques, mas muito integrada quanto ao
conteúdo fundamental. Lendo os ensaios, pode-se comprovar a riqueza e
diversidade de nossas experiências e o denominador comum marista. Gra-
ças à generosidade dos autores, exploramos as diferentes características de
uma liderança provocadora, atual e profética, que nos convida a questionar
nossas práticas, nossa formação e nossos “modos” de dirigir e atuar. Além
disso, fizemos um exercício intercultural que nos mostra o valor da família
global à qual pertencemos.

Tudo isso nos serviu para preparar esta publicação. Desejamos que
sirva para fomentar o diálogo, enriquecer a formação, facilitar os cursos e ajudar
a todos a repensar como servir ao estilo de Jesus e tantos outros líderes, plena-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

mente humanos e comprometidos com o bem e a compaixão. Em nossa men-


te estão todos: maristas da estrada, educadores, dirigentes, líderes comunitários,
líderes apostólicos, responsáveis provinciais, regionais e globais; também, todos
os que não pertencem à nossa família. Somos religiosos, leigos e leigas maristas,
acadêmicos ou líderes de diversas organizações e muita gente cujo desejo é
viver para “servir e servir em primeiro lugar”. Não desejamos limitar nada nem
ninguém, e sim multiplicar a sinergia de todos os que como nós procuram fa-
zer o bem, criar movimentos positivos e transformadores, e desenvolver comu-
nidades, organizações e instituições dispostas a realizar uma mudança positiva.

Pedimos aos autores que escrevessem ensaios e evitamos a ideia de


que estaríamos fazendo um trabalho em sequência e de estilo semelhante.
Isto deu muita liberdade, tanto no estilo como no conteúdo. Cada um re-
fletiu a partir da sua própria experiência e conhecimento. Reconhecemos
que há muitos livros sobre liderança, por isso nossa contribuição é nossa
singular “voz” marista.

Sem dúvida, esperamos que estas páginas ajudem você a escutar os


interessantes argumentos e vivências com que cada pessoa quis contribuir:

1. Que sirvam de referência para compreender o sentido da liderança


profética e de serviço (capítulo 1)
2. Que motivem você a desenvolver um novo estilo de liderar com base
em uma presença significativa (capítulo 2).
3. Que permitam que você compreenda algumas características fundamen-
tais de ser líder marista mediante: a escuta atenta e contemplativa (ca-
pítulo 3), o desenvolvimento da empatia e da compaixão (capítulo 4), a
importância da cura (capítulo 5), a necessidade de uma atenção constan-
te (capítulo 6), e fator medular da persuasão (capítulo 7), a necessidade de
ter uma conceitualização estratégica (capítulo 8), a importância de uma
visão intuitiva de futuro (capítulo 9), o sentido de ser uma pessoa ser-
vidora (capítulo 10), o compromisso pelo crescimento das pessoas e seu
empoderamento (capítulo 11) e a importância de construir comunidade
dentro de uma experiência de fraternidade (capítulo 12).

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VOZES MARISTAS

4. Que ajude você a desenvolver três destrezas básicas: a comunicação


(capítulo 13), a tomada de decisões (capítulo 14) e a colaboração em
ambientes de trabalho em grupo (capítulo 15).
5. Que iluminem você com algumas reflexões sobre as bases bíblicas da
liderança (capítulo 16), o fundamento mariano de nosso estilo de diri-
gir (capítulo 17), a riqueza derivada do exemplo de Marcelino Cham-
pagnat (capítulo 18), o pano de fundo da nossa tradição (capítulo 19)
e o núcleo espiritual, moral e ético de nossa liderança (capítulo 20).
6. Que proporcionem a você perspectivas sobre a formação inicial ou
permanente dos líderes neste mundo emergente (capítulo 21) e o pa-
pel das Instituições maristas de Educação Superior na promoção in-
vestigativa e formativa da liderança profético-servidora (capítulo 22).

Restam muitos aspectos a explorar. Estes são os que, por ora, pro-
pomos a você porque são iluminadores, práticos e inspiradores.

Desejamos, desde já, uma leitura que obrigue você a se fazer per-
guntas, que o deixe inquieto e que o impulsione a mudar suas perspectivas.
Sabemos que este livro foi escrito por um grupo significativo de Irmãos, a
quem agradecemos profundamente sua generosidade, começando por nos-
so Irmão Superior geral atual, Ir. Ernesto Sánchez, e os ex Superiores gerais
Irmãos Seán Sammon e Emili Turú. Para alguns autores foi um desafio
compartilhado com suas equipes e com outras pessoas. Juntos, o que é mais
importante, realizamos algo que tem uma particular beleza: nosso desejo de
servir e inspirar solidariedade e esperança.

Não duvidamos de que este primeiro passo abrirá caminho para


escutar as vozes de leigos e leigas maristas, companheiros de vida e de
missão no futuro, e de outros irmãos em diferentes posições e apostolados.
Desejamos ardentemente que o tempo e a Providência nos permitam tor-
ná-lo realidade.

Por ora, esperamos que você aproveite muito este conteúdo e que
traga muita vitalidade.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PARTE I

VISÃO

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 1

Ir. Benjamin Consigli Ir. Luis Carlos Gutiérrez


Conselheiro-Geral Vigário-Geral

Introdução à liderança
profética e servidora:
chamada e propósito

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VOZES MARISTAS

Para a liderança há apenas um caminho: servir. Não há outro caminho.


Se você tem muitas qualidades, capacidade de se comunicar etc., mas não é um(a)
servidor(a), sua liderança vai falhar, é inútil, não tem poder de reunir [pessoas]... A
liderança deve estar a serviço, mas com um amor pessoal pelo povo. (Papa Francisco,
2014)

I. Nosso apelo
Liderança do Servidor

Quase desde o momento em que foi eleito pelo Colégio dos Car-
deais para suceder ao Papa Bento XVI, que se aposentava, o Papa Francis-
co deixou poucas dúvidas quanto à direção que queria dar para a Igreja,
começando com a adoção do nome de São Francisco de Assis, a figura
dos séculos 12 e 13, que rejeitou a riqueza de sua família por uma vida
monástica de serviço aos pobres e ao meio ambiente. Outros papas tiveram
a mesma mensagem, mas Francisco tem insistido muito em manter essa
mensagem em primeiro lugar: liderança do servidor e cuidado com os mais
necessitados primeiro.

Como líder, ele vai aonde as pessoas estão: as pessoas que estão so-
frendo, que são pobres. É disso que trata a verdadeira liderança: conectar-se
primeiro com o lugar onde as pessoas estão antes de levá-las para onde você
deseja que elas vão. Como resultado, quando as pessoas olham para ele, a
esperança renasce nos corações. Trata-se dessa conexão humana emocional
para ajudar “o outro”.

Embora a liderança do servidor seja um conceito atemporal, a fra-


se “liderança do servidor” foi cunhada por Robert K. Greenleaf em The
Servant as Leader (O servidor como líder), um ensaio que ele publicou pela
primeira vez em 1970. Em seu ensaio Greenleaf R. (1977/2002) disse:

O líder servidor é primeiramente um servidor… Começa com o senti-


mento natural de que se quer servir, primeiramente servir. Então a escolha

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

consciente leva a pessoa a aspirar à liderança. Essa pessoa é nitidamente


diferente de quem é líder em primeiro lugar, talvez por causa da necessidade
de amenizar um impulso de poder incomum ou de adquirir bens mate-
riais... A diferença se manifesta no cuidado tomado pelo servir em primeiro
lugar para garantir que as necessidades da mais alta prioridade das
outras pessoas estejam sendo atendidas. O melhor teste, e difícil de ad-
ministrar, é: Os que são servidos crescem como pessoas? Ao serem ser-
vidos tornam-se mais saudáveis, mais sábios, mais livres, mais autônomos,
mais propensos a se tornarem servidores? E qual é o efeito sobre os menos
privilegiados na sociedade? Eles vão se beneficiar ou pelo menos não serão
mais privados? (p. 27).

Para Greenleaf o líder servidor se concentra principalmente


no crescimento e no bem-estar das pessoas e das comunidades às
quais pertencem. Enquanto a liderança tradicional geralmente envolve o
acúmulo e o exercício do poder por alguém no “topo da pirâmide”, a
liderança do servidor é diferente. O líder servidor compartilha o poder,
coloca as necessidades dos outros em primeiro lugar e ajuda as pessoas a se
desenvolver e ter o melhor desempenho possível.

Então, o que as ações do Papa Francisco e este conceito trazem


para nós como líderes, como cristãos e como evangelizadores?

Jesus como Líder Servidor

Não há dúvida de que o líder cristão mais admirado, respeitado,


honrado e lembrado de todos os tempos é Jesus Cristo. Seu estilo de lide-
rança pode ser mais bem resumido em Mateus 20,28: “…assim como o Filho
do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate
de muitos”. Ele veio para ensinar, liderar e treinar. Como Ele fez isso? Ele
serviu. A ordem de Jesus é que façamos discípulos, ensinando-os a seguir
Seu exemplo.

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VOZES MARISTAS

Jesus pediu a seus seguidores que não apenas compartilhassem a


Boa Nova com os outros, mas também testemunhassem, representassem a
Boa Nova e entendessem como exercer autoridade e influência. Enquanto
estava com eles, Ele lhes ensinou muitas lições para que as usassem depois
de Ele partir.

Em Marcos 10,42-45 Jesus faz exatamente isso.

Jesus reuniu [os discípulos] e disse: “Sabeis que os que são considerados
chefes das nações dominam sobre elas e os seus intendentes exercem poder
sobre elas. Não deve ser assim com vocês. Em vez disso, quem
quiser ser grande entre vocês deve ser seu servidor. E quem quiser ser o
primeiro deve ser escravo de todos. Pois até o Filho do Homem veio, não
para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos.

Há uma pequena frase colocada no meio dessa passagem.Você per-


cebeu isso? “Não deve ser assim com vocês”.

Alguns, como os gentios e os fariseus da antiguidade, utilizam seu


poder para dominar os que estavam ao seu redor. Querem que todos sai-
bam quem é o chefe. Não deve ser assim com vocês. Hoje os países estão cheios
de líderes empresariais que dominam e exploram as pessoas ao seu redor.
E, não poucas vezes, parece que os líderes políticos ao nosso redor estão
buscando poder e influência para usar em seu próprio benefício. Não deve
ser assim com vocês.

Se você tem autoridade sobre alguém e é cristão, você deve servir.


No relato de João sobre a última ceia, Jesus faz algo tão culturalmente ines-
perado que pegou os discípulos desprevenidos. Em João 13,3-5 lemos isso:

...sabendo Jesus que o Pai tudo lhe dera nas mãos, e que saíra de Deus e
para Deus voltava; levantou-se da mesa, depôs as suas vestes e, pegando
uma toalha, cingiu-se com ela. Em seguida, deitou água numa bacia e

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

começou a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com a toalha


com que estava cingido.

Nesse cenáculo, enquanto se prepara para a cruz que lhe é propos-


ta, Jesus torna-se perfeitamente ciente de sua autoridade. Então, o que Jesus
fez? Ele imediatamente se humilhou e serviu.

João 13,12-16 relata:

“Sabeis o que vos fiz?” ele lhes perguntou. “Vós me chamais Mestre e Se-
nhor, e dizeis bem, porque eu o sou”. “Logo, se eu, vosso Senhor e Mestre,
vos lavei os pés, também vós deveis lavar-vos os pés uns dos outros”.
“Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, assim façais também vós...
Se compreenderdes essas coisas, sereis felizes, sob condição de as praticardes”.

E assim deve ser conosco. Sempre que percebemos que recebemos


autoridade devemos servir aos outros de maneira imediata e tangível. Esta
é a ordem para quem se identifica como cristão e marista.

XXII Capítulo Geral e Regra de Vida dos Irmãos Maristas

No XXII Capítulo Geral realizado em Rio Negro, Colômbia, os


participantes foram chamados a viver juntos um novo La Valla, para um
NOVO COMEÇO. La Valla, a casa das nossas origens, nos lembra que
Marcelino Champagnat foi movido pelas necessidades e possibilidades dos
jovens de sua paróquia e das aldeias vizinhas e ouviu com atenção o Es-
pírito para descobrir o que Deus lhe pedia naquele momento no tempo.

De maneira semelhante, os membros do Capítulo realizaram um


cuidadoso exercício de discernimento procurando responder a duas ques-
tões fundamentais:

O Que Deus está nos pedindo para ser neste mundo emergente?
O que Deus está nos pedindo para fazer neste mundo emergente?

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VOZES MARISTAS

As respostas a estas duas perguntas constituíram os cinco apelos


apresentados na Mensagem do Capítulo.

Ao mesmo tempo, cientes de que esses apelos contêm implicações


concretas para todas as dimensões de nossa vida e missão, os participantes
do Capítulo decidiram desenvolver as ideias em cinco áreas: nossa vocação
como Irmãos; nossa missão; o relacionamento Irmão-Leigo, como maristas
de Champagnat; governo e como usamos os nossos recursos. A essência
da liderança do servidor é um elemento transversal, presente de
modo implícito ou explícito em todas as áreas que afetam a vida
e a missão dos Maristas. E, portanto, é um componente fundamental do
carisma de São Marcelino Champagnat.

O recém-lançado “Wherever you go… The Marist Brothers’


Rule of Life (Aonde quer que você vá... A regra de vida dos Irmãos Ma-
ristas) fala sobre isso.

“A principal contribuição de um Irmão para a vida da Igreja é estar em


missão como Irmão. A própria vocação de um Irmão é um ministério dentro
da Igreja, um lembrete à comunidade mais ampla acerca da importância da
fraternidade e (o) apelo fundamental para que seja uma comunidade
de irmãos e irmãs em serviço (diaconia)…

E que o lugar do Irmão em missão é

no banquete do Reino de Deus... (onde) ele... serve à mesa, cuidando


especialmente dos que se julgam os mais insignificantes. Ao vestir o aven-
tal da fraternidade, (a) vestimenta específica da liturgia da vida, (o
Irmão) se une ao (seu) serviço à missão de Deus. (Marist Brothers.
Rule of Life. Irmãos Maristas. Regra da Vida), 02/01/2020, Whe-
rever you go… (Aonde quer que você vá) 02/01/2020, # 70)

É o que Marcelino esperava para seus “pequenos irmãos de Maria”


(e para aqueles que exercessem seu ministério ao lado deles): que servissem

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

à Igreja e à sociedade como evangelizadores e educadores, especialmente


para os marginalizados.

Liderança no Caminho de Maria

Em Água da rocha (2007), nosso recente texto de referência


sobre a espiritualidade marista, lemos:

Os Maristas entenderam que seu projeto era uma participação na obra de


Maria de dar à luz a vida de Cristo e estar com a Igreja quando ela
nasceu. Era uma obra que eles esperavam que atingiria todas as dioceses do
mundo e seria estruturada como uma árvore multifamiliar incluindo leigos,
padres, irmãs e irmãos. (AR 70)

E, posteriormente, no mesmo documento: “Como maristas compartilhamos


da maternidade espiritual de Maria ao tomarmos parte em levar a vida
de Cristo ao mundo daqueles cujas vidas compartilhamos. Alimentamos
essa vida na comunidade eclesial cuja comunhão fortalecemos com a oração
fervorosa e o serviço generoso. (AR 26)

Para os maristas, nosso jeito de ser e de servir está enraizado no


jeito de Maria, a primeira discípula de Jesus e “Nosso recurso habitual”.
O principal documento de referência contemporâneo acerca da educação
marista é conhecido em inglês como In the Footsteps of Marcellin Champag-
nat, A Vision for Marist Education Today (Irmaos maristas, 1998) (em português:
Missão Educativa Marista: Uma Visão para a Educação Marista Hoje). O livro
termina descrevendo um ideal para o educador marista que se baseia nas
imagens bíblicas de Maria e destaca elementos do que significa ser um líder
servidor.

Com Maria da Anunciação (Lucas 1, 26-38), estamos abertos


ao movimento de Deus em nossas vidas, de Deus para quem nada é impos-
sível. Apesar de nossas dúvidas, medos e sentimentos de inadequação, acei-
tamos com fé o convite de Deus para participar da obra de divulgação

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VOZES MARISTAS

das Boas Novas. Como Maria da Visitação (Lucas 1, 39-45), saímos


da nossa comunhão com o Senhor cheios de fé e esperança. Vamos
ao encontro dos jovens nos seus lugares de necessidade oferecendo-lhes o
nosso amor.

Como Maria de Nazaré (Lucas 2,39-52), nós nutrimos, orien-


tamos e cuidamos dos jovens, desenvolvendo neles o conhecimento e
o amor a Deus que atua em suas vidas e o respeito por tudo o que Deus
criou. Como Maria, nós os aceitamos como são, mesmo quando não en-
tendemos totalmente suas decisões. Como Maria de Caná (João 2,1-11),
somos sensíveis às necessidades dos outros. Convidamos os jovens a
fazer tudo o que Jesus manda.

Como Maria do Calvário (João 19,25-27), reconhecemos Jesus


no rosto dos quebrantados e sofredores, doloridos por eles com um coração
de mãe e crendo neles com uma paixão de mãe. E como Maria do Ce-
náculo (Atos dos Apóstolos 1, 12-2, 4), nós construímos uma comunidade
ao nosso redor. Em uma época que está espiritualmente à deriva trazemos
a crença e a visão de uma Igreja nova e cheia do Espírito.

Como maristas, seguimos Jesus no caminho de Maria. Este é o


fundamento carismático do sonho de Marcelino e um elemento central de
sua espiritualidade e liderança.

II. Nosso propósito


Uma liderança renovada

Ao pensar nesta publicação, temos em mente todo o Instituto Ma-


rista que se move em um mundo de mudanças rápidas e emergentes. Essas
transformações afetam importantes aspectos da nossa vida, da nossa auto-
compreensão como comunidade carismática e do nosso serviço apostóli-
co. As mudanças sociológicas, culturais e econômicas emergem com uma

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

evidência cada vez mais clara: estamos vivendo um novo tempo, uma nova
normalidade, uma mudança de época, uma nova era (XXII Capítulo geral,
2017).

Essas alterações nos impulsionam a adotar uma liderança que sir-


va de referência neste contexto. Como vigilantes da história, buscamos
uma compreensão profunda das situações enfrentadas pelo Instituto, pela
Igreja, pelas sociedades e pelas pessoas. O XXII Capítulo geral (2017)
entendeu, com acerto, que essa tarefa requeria um estilo de liderança que
fosse além das competências tradicionais ou dos modelos organizacionais
de desempenho comumente conhecidos. Inerente à essência de um Insti-
tuto religioso e com as chaves de uma eclesiologia de comunhão, de uma
Igreja em saída, a forma de expressar e viver a liderança se inspira em um
modelo com características baseadas na fraternidade, no serviço e na profe-
cia. Esses três valores são próprios da experiência de “ser irmão/irmã”, em
uma família − composta por religiosos, leigos e leigas − que compartilha
a vivência do carisma marista e, ao mesmo tempo, que está unida a muitas
pessoas de boa vontade, de diferentes opções religiosas ou existenciais. Não
queremos eludir nem espiritualizar o que significa organizar, dirigir e ad-
ministrar dentro dos imperativos legais ou trabalhistas nos quais o Instituto
desenvolve sua missão, mas afirmar que isso pode ser feito com uma ênfase
particular nas aspirações nobres que se enlaçam com nosso DNA e com
nossa espiritualidade.Vejamos.

Os séculos XX e XXI mostraram uma sensibilidade e interesse


especial nas teorias de liderança (van Dierendonck & Nuijten, 2011) e
isso produziu novos níveis de reflexão e de prática. A liderança inclui-se
progressivamente como um campo de estudo na preparação de muitos
processos formativos de líderes para a missão, de religiosos em formação,
e em muitas carreiras universitárias. Aprofunda-se de maneira sistemática
na formação contínua. Impulsiona-se tanto em instituições e movimentos
eclesiais como em empresas e organizações sociais. É um componente bá-
sico e aceito em todo tipo de trabalho em grupos ou em estruturas orga-
nizacionais.

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VOZES MARISTAS

Aprofundando nessa mudança, Karsten (Jonsen, 2020), em sua re-


flexão Desenvolvendo líderes holísticos, além do óbvio, afirma que a concepção
de liderança foi marcada pelo romantismo e o individualismo. No entanto,
e atualmente, a liderança tem outras conotações, que pouco a pouco tor-
naram-se mais concretas em todos os sentidos, tanto práticos como con-
ceituais. Assistimos a novos enfoques mais flexíveis, horizontais, comuni-
tários e democráticos. As pessoas progressivamente refinam e melhoram
suas destrezas. É possível observar um incremento nas aptidões, atitudes,
conhecimentos e competências para dirigir grupos, equipes, projetos e or-
ganizações. A liderança tem hoje uma inspiração mais fraterna, mais ser-
vidora. Evolui para coproduzir, cocriar e cogerar conhecimento e prática.
Progride para desenvolver um melhor serviço, particularmente solidário e
socialmente consciente. Isso gera um círculo virtuoso,“porque é dando que
se recebe”. Dessa forma, desenvolve-se um círculo constante de generosi-
dade universal que tem um retorno incremental.

O Instituto Marista, como Família Carismática Global, cresce


quando consolida uma liderança deliberadamente formada, local e global-
mente. Uma liderança que mostre uma sólida identidade marista, que com-
partilhe e aprenda das boas práticas; que viva nossos valores organizacionais
e religiosos comuns. É um serviço que é capaz de evidenciar, concretamen-
te, a necessária resiliência pessoal, a riqueza integrada da espiritualidade na
gestão e o valor central da confiança. Essa visão constitui um fator de êxito
evangélico no mundo atual, diferente do simples êxito social.

Em nossas Unidades Administrativas, instituições, comunidades,


centros educativos ou apostólicos desejamos nos adaptar para responder
ao desafio de um mundo diferente, que é ao mesmo tempo global e fra-
turado. Vivemos em meio a uma constante interação educativa, cultural,
religiosa, política e econômica. A subsistência e sustentabilidade abrem seus
caminhos quando se incrementa uma maior abertura e compreensão dessas
realidades multifacéticas. Por isso, o potencial humano se adapta e melhora
em suas competências para a conquista de metas a longo prazo.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

A liderança servidora e profética demostrou um alto potencial e


um grande valor real para habitar este momento histórico, tanto em nível
pessoal como grupal. Essa convicção é a que orienta a presente publicação:
alcançar a singularidade de uma experiência de liderança servidora que seja
capaz de ajudar a navegar significativamente este momento da história e
fazê-lo com profetismo. Esperamos que todos aqueles que desejam “ser-
vir e servir primeiro”, possam preparar-se e adotar estratégias para fazer a
diferença em suas comunidades, grupos de vida ou de trabalho mediante
valores, atitudes, conhecimentos, capacidades e destrezas específicas.

A conceitualização e articulação da liderança profético-servidora


oferece um enfoque dinâmico para responder às demandas emergentes em
toda a sua complexidade. Por isso, na reflexão destes ensaios, procura-se
destacar:

• Uma liderança, com o valor da integração, que envolve incorporar,


compartilhar e unificar processos para enfrentar os desafios e as ruptu-
ras de nossa realidade social e eclesial.
• Uma liderança, com o valor da geratividade, que ajude a trabalhar em
equipe, visualizar os diferentes significados, expor áreas problemáticas,
encontrar novas soluções, envolver-se em novas oportunidades e adap-
tar-se de maneira flexível aos ambientes emergentes.
• Uma liderança, com o valor global, que facilite os processos em nível
de Instituto, como são o trabalho em rede, a conexão e interconexão, a
inovação, a internacionalidade, a interculturalidade e a corresponsabili-
dade pela vida e a missão maristas.
• Uma liderança, com os valores do serviço e da profecia, que ajude a
servir primeiro e principalmente às pessoas, a partir de um marco de
valores fundamentais, e empoderando comunidades de líderes, por sua
vez, serviçais e proféticos.

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VOZES MARISTAS

Empoderar, crescer, servir e ser plenamente

Progressivamente, nestes ensaios, iremos descobrindo que a lide-


rança de serviço − ético e profético − é uma expressão marista, que se
ajusta a diferentes ambientes e realidades educativas, religiosas ou solidárias.
Caracteriza-se por um cuidado particular no desenvolvimento, crescimen-
to e empoderamento de todas as pessoas. Inclui nas características princi-
pais de seu “estilo”, o altruísmo, a criação de uma comunidade de servi-
dores, a empatia e o sentido ético (Greenleaf, 1977; Liden, Wayne, Zhao, &
Henderson, 2008).

Van Dierendonck e Patterson (2011) reconhecem que a liderança


de serviço é uma aproximação holística para empoderar as pessoas e comu-
nidades, para crescerem e para conseguirem alcançar seu ser em plenitude.
É uma visão integral e altruísta que se centra no compromisso para servir
aos outros. Esta motivação é profunda e é experimentada em um profundo
interesse e compromisso, que se vive desde uma espiritualidade fundante. É
uma convicção de raiz vocacional.

Existem numerosas facetas que podem ser explicadas no amplo


campo da vida e missão maristas. Se conectarmos os fundamentos espiri-
tuais, morais e éticos da liderança aos cenários educativos e evangelizadores
de nossas instituições nos sentimos provocados e desafiados a dar passos
mais valentes. Desejamos marcar uma diferença na vida das crianças e dos
jovens, de suas famílias e comunidades. Desejamos criar as condições para
alcançar transformações em suas pessoas, em suas condições de vida, em sua
educação, em sua fé e em sua espiritualidade.

Vêm a nossa mente algumas preguntas que se tornam importantes:


Que tipo de liderança é necessária para ajudar na solução dos problemas
mais urgentes do mundo? Como contribuímos para o empoderamento das
pessoas ou das comunidades circundantes? O que fazemos para dar prota-
gonismo e “voz aos sem voz”? Como fomentamos uma educação de qua-
lidade para todos e todas? Qual é nossa contribuição aos grandes dilemas

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

de nosso tempo? Como oferecemos soluções frente à mudança climática,


à escassez de recursos, às realidades da pobreza e da periferia? Como refor-
çamos uma cultura de direitos e proteção? Que tipo de virtudes deveriam
acompanhar-nos nessa liderança?

A liderança marista, cada marista, tem um grande propósito por


diante. Comprometemo- -nos com uma liderança profética e de serviço,
que entendemos como um processo contínuo, marcado por uma opção
consciente por “servir e servir primeiro”. Essa liderança nos inspira a criar
comunidade e desenvolver relações; viver e liderar com sentido transcen-
dente; alimentar nossa visão e valores; comunicar-nos; ter flexibilidade e
adaptação; comprometer-nos com as realidades locais (Fratelli Maristi delle
Scuole, 2018). Esta é nossa visão de ser líderes.

Por isso, ao final desta introdução, parece-me oportuno deixar uma


pergunta fundamental, para cada um de nós, e que nos acompanhará du-
rante a leitura de todos os ensaios a seguir:

Que diferença quero marcar e que tipo de liderança desejo viver?

Ao responder a esta pregunta, queremos compartilhar algumas


convicções importantes, que são: você pode fazer a diferença; há assuntos
importantes em si mesmos, não tanto as posições desde as quais você pode
contribuir; sua contribuição é necessária; a comunhão com outros multi-
plica e aumenta a influência, portanto, busca ativamente conversar, dialogar
e propor junto aos demais. Entre todos, será criada uma cultura de serviço
e profetismo em benefício das pessoas, em especial das crianças e jovens.

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VOZES MARISTAS

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que elementos da liderança de serviço considero mais importantes na
prática de minhas funções?
2. Como sinto que as figuras de Jesus servidor e de Maria me ajudam a
viver minha liderança marista?
3. Que aspectos ou características de minha/nossa liderança precisam ser
renovados e revitalizados?
4. Como colaboro para criar as condições para afiançar uma cultura de
empoderamento, crescimento, serviço e pleno desenvolvimento hu-
mano?


REFERÊNCIAS

Greenleaf, R. (1977/2002). Servant-leadership: A journey into the nature of


legitimate power and greatness. (25th anniversary ed.). (L. C. Spears,
Ed.). Paulist Press.
Instituto dos Irmãos Maristas. (1998). Missão Educativa Marista (MEM).
Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2007). Água da rocha. Casa Generalizia dei
Fratelli Maristi.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2017). Mensagem do XXII Capítulo Geral:
Caminhemos como família global! Casa Generalizia dei Fratelli Ma-
risti.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2018). Maristas de Champagnat: Plano Es-
tratégico de Animação, Liderança e Governança da Administração Geral
(2017-2025). Casa Generalizia dei Fratelli Maristi delle Scuole.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Instituto dos Irmãos Maristas. (2020). Para onde você irá: Regra de Vida dos
Irmãos Maristas. Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.
Jonsen, K. (2020). Epilogue: developing holistic leaders – beyond the ob-
vious. En L. Zander, Research handbook of global leadership:
Making a difference (p. 408-418). Edward Elgar Publishing, Inc.
Liden, R. C., Wayne, S J., Zhao, H., & Henderson, D. (2008). Servant lea-
dership: Development of a multidimensional measure and multile-
vel. Leadership(19), 161-177.
Papa Francisco (2014, Mayo 12). Todos somos ostiarios. Homilía matutina
en la capilla de la Domus Sanctæ Marthæ. L’Osservatore Romano,
ed. sem. en lengua española, n. 21, viernes 23 de mayo de 2014.
Van Dierendonck, D., & Nuijten, I. (2011, 09 01). The Servant Leadership
Survey: Development and Validation of a Multidimensional Mea-
sure. Journal of Business and Psychology, 249-267.
Van Dierendonck, D., & Patterson, K. (2011). Servant leadership, recent
development in theory and research. Greenleaf Center’s Annual
International Conference. Springer (Google Scholar).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 2

A relevância da
presença na liderança
marista
Ir. Ernesto Sánchez Barba
Superior-Geral

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VOZES MARISTAS

A presença, o exemplo e o amor são elementos-chave do


nosso estilo educativo. (C. 52)

Tinha seis anos de idade quando ingressei no colégio marista na


cidade de Guadalajara. Com frequência, vem à minha mente o diretor da
escola primária, presente na entrada, sorrindo, cumprimentando-nos, tantas
vezes chamando-nos pelo nosso nome. A mesma pessoa que, poucos minu-
tos depois, no momento de iniciar as aulas, punha-se de pé frente às cente-
nas de alunos, bem formados e em silêncio, para dizer algumas palavras de
ânimo, fazer uma oração ou dar-nos alguns avisos. Sem dúvida, a presença e
a proximidade de cada professor ou professora era importante para nós, mas
era ainda mais quando se tratava do diretor. Nessa idade era difícil imaginar
o grande trabalho que implicava ser líder de um colégio com tantos alunos,
mas éramos sim capazes de sentir os gestos fraternos e de proximidade que
se combinavam com o respeito que sentíamos pela autoridade.

Certamente, em mais de uma ocasião, nossos ex-alunos nos têm


feito notar ou relembrar alguma história ou detalhe que tivemos com eles.
É interessante dar-se conta de que, embora nós não o lembremos ou não
fôssemos conscientes disso, esse detalhe foi muito significativo para essas
pessoas. No estilo marista de liderança, a presença é de uma importância
chave. Eu diria, essencial. É uma das caraterísticas que nos têm marcado
desde as origens de nosso Instituto.

Temos presente o momento histórico no qual o P. Champagnat,


poucos meses depois de encontrar-se em seu primeiro destino ministerial,
em La Valla, iniciava nosso Instituto em 1817. Podemos imaginar esse jo-
vem sacerdote de 27 anos de idade, exercendo seu serviço sacerdotal em
uma extensa paróquia e, ao mesmo tempo, acolhendo e acompanhando
os primeiros maristas na casa de La Valla. Em certo momento, Marcelino
reconhece que, além de absorver-lhe muito tempo, a animação da casa dos
Irmãos com quem passava os recreios e os momentos que lhe permitiam as
tarefas de seu ministério, não era suficiente para acompanhar essa comuni-
dade nascente de religiosos educadores. Daí que, movido pelo grande afeto

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

que sentia por seus Irmãos e pela necessidade de se fazer mais presente para
acompanhá-los, decide ir viver com eles. Quando o manifestou ao senhor
padre pároco, este não poupou esforços para dissuadi-lo… Marcelino era
consciente de que ao viver em comunidade teria que suportar a pobreza, as
privações e os sacrifícios inerentes à vida religiosa, e isso era precisamente o
que mais o impulsionava a viver com eles. Sabia que, ao se tornar mais um
entre eles, praticando primeiro ele o que lhes dizia, era o melhor meio para
apegá-los à sua vocação. Dessa forma, obtida a autorização, deixou a casa
paroquial para estabelecer-se com os Irmãos (Furet, 1989).

Essa ação do nosso Fundador nos tem marcado desde os inícios.


Herdamos um estilo de liderança que, antes de pensar em si mesmo, pensa-
va primeiro no projeto que Deus lhe ditava em seu coração e nas pessoas e
seu cuidado. Este jovem sacerdote nos deixou uma das melhores heranças: a
presença de uma autoridade ao serviço dos outros. Sem dúvida um reflexo
claro do que ele mesmo vivia em seu interior como experiência de Deus,
que colocou sua tenda entre nós (cf. Jo 1,14).

A presença, uma das caraterísticas de nosso


estilo educativo marista
Através de nossa vida e presença,
os jovens, suas famílias e as comunidades às quais pertencem,
percebem que são amados pessoalmente por Deus.
(C. 4)

No documento Misión Educativa Marista (MEM) são mencio-


nadas as caraterísticas particulares de nosso estilo educativo: presença, sim-
plicidade, espírito de família, amor ao trabalho e seguir o modelo de Maria. (n. 98)

O texto apresenta uma explicação simples e completa sobre a


presença: “educamos, sobretudo, fazendo-nos presentes entre os jovens,
demostrando que nos preocupamos com eles pessoalmente” (MEM, n. 99);

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VOZES MARISTAS

“procuramos aproximar-nos das vidas dos jovens… no trabalho escolar nos


preocupamos em prolongar nossa presença, através de atividades de tempo
livre, lazer, esporte e cultura, ou quaisquer outros meios” (MEM, n. 100);
presença que “não significa uma vigilância obsessiva nem um ‘deixar fazer’
negligente” (MEM, n. 101); presença que é preventiva, oferece conselho
e atenção prudente, procuramos ser firmes e exigentes, de uma maneira
respeitosa, e nos mostramos otimistas e interessados em seu crescimento
humano (MEM, n. 101); “através da nossa presença atenta e acolhedora,
caraterizada pela escuta e o diálogo, ganhamos a confiança dos jovens e
promovemos entre eles uma atitude aberta” (MEM, n. 102).

A Regra de Vida dos Irmãos Maristas (RV), intitulada Aonde fores


(2021), expressa-se assim sobre a pedagogia da presença:

[85] “Sai ao encontro das crianças e jovens


ali onde estão.
Aproxima-te, interessa-te por suas vidas e acolhe-os na tua.
Acompanha suas buscas, alegrias e sofrimentos.
Sê verdadeiramente irmão para eles:
humano, próximo e exequível.
Tua presença acolhedora favorecerá sua confiança,
criando um clima adequado
para o diálogo educativo e para seu crescimento integral”.

Nossas Constituições (2021) expressam um matiz importante


com relação à presença: “Através da nossa vida e presença, os jovens, suas
famílias e as comunidades às quais pertencem, percebem que são amados
pessoalmente por Deus” (n. 4). Estamos convidados a ser uma presença que
testemunha e favorece o encontro com Deus.

A presença entre os jovens permite conectar-nos melhor com


os ideais e inquietudes próprios de sua geração e favorece uma relação
próxima e respeitosa. Trata-se de uma presença acolhedora que busca seu
crescimento e seu protagonismo. Uma presença que os empodera, fazendo

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

surgir o melhor de cada um. Quanto favorece às pessoas uma palavra de


agradecimento ou de reconhecimento, sobretudo se vem da parte do líder.

Ao longo da nossa história marista, a pedagogia da presença foi-


-se assimilando e aprofundando por parte dos educadores e daqueles que
prestam um serviço de liderança. É um dos elementos distintivos de nosso
espírito marista e nosso atuar educativo. Uma tradição que recebemos em
escritos e reflexões, mas, sobretudo por meio dos testemunhos de Irmãos
e leigos que no-la têm transmitido a partir da experiência e que nos esti-
mulam a vivê-la.

Presença e liderança
Para oferecer teu serviço na missão de Deus,
só precisas colocar o avental da irmandade
que é teu ornamento específico na liturgia da vida.
(RV, 70)

O XXII Capítulo geral, realizado em 2017 em Rio Negro, Colôm-


bia, convidava-nos a assumir uma liderança profética e servidora, que acompanha
de forma próxima a vida e a missão maristas (Documento do XXII Capítulo
geral) e sugeria fomentar a proximidade e o acompanhamento direto das
pessoas em todos os níveis.

Durante o Sínodo sobre os jovens, a fé e o discernimento vocacional, em


outubro de 2018, percebi claramente na pessoa do Papa Francisco alguns
traços importantes sobre a presença de um líder. Lembro o primeiro dia
de reuniões da Assembleia em que, supreendentemente para mim e cer-
tamente para tantos outros, o papa Francisco se encontrava junto à porta
para acolher e cumprimentar pessoalmente cada um dos participantes: uma
breve saudação com a mão, sorrindo, perguntando a cada um quem era e
de onde vinha (incluindo a foto de lembrança, é claro). E isso não aconte-
ceu somente no primeiro dia, mas, quando havia assembleia geral, o Papa
estava presente na entrada do vestíbulo, disponível para cumprimentar, para

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VOZES MARISTAS

conversar um pouquinho, e o mesmo acontecia durante os recessos da


manhã ou da tarde no grande corredor onde tomávamos o café. Também
era impressionante vê-lo interagir com os quarenta jovens participantes
no sínodo: conversava, cumprimentava-os, brincava com eles, permitia-lhes
fazer “selfies” sorrindo. Ao mesmo tempo, desafiava-os e os motivava a par-
ticipar ativamente, estimulando-os a serem eles mesmos, e a expressarem-se
com clareza.

Nas sessões da assembleia sinodal, procurava-se escutar cada um


dos participantes durante 4 minutos (convém lembrar que éramos mais de
280 participantes, daí a limitação de tempo). O Papa tinha à mão o texto de
cada intervenção, escutava, lia, estava atento em todo momento. Posso dizer
que algumas manhãs ou tardes tornavam-se pesadas com a escuta de tantas
intervenções e tão seguidas (e ainda bem que o Papa indicou que houvesse
três minutos de silêncio a cada cinco intervenções). Em uma das ocasiões
em que conversei informalmente com o Papa, perguntei-lhe, entre outras
coisas, se não era pesado para ele escutar tantas e tão diversas intervenções
durante várias horas seguidas no dia. E respondeu-me com simplicidade:
“Não, absolutamente, interessa-me muito escutar os pensamentos e o que
acontece em tantas partes do mundo tão diversas”. Foi interessante consta-
tar sua energia, disposição e atenção.

Com esses relatos desejo destacar como um líder, como o Papa


Francisco, fazia-se presente mediante gestos de proximidade e de uma
escuta atenta. Ao mesmo tempo, nos momentos formais de intervenção
era impressionante ouvir sua voz profética, direta e desafiadora. Um claro
exemplo de uma liderança profética e servidora, que se fez evidente ao longo
de seu pontificado.

No início, eu disse que as atitudes de Marcelino eram, sem dúvida,


um reflexo claro do que ele mesmo vivia em seu interior como experiên-
cia de Deus, que “pôs sua tenda entre nós” (Jo 1,14). Se olharmos Jesus e as
diversas formas em que sua presença se manifesta no Evangelho, podemos
considerá-las como uma referência para nossa liderança. Fazia-se presente

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

entre as pessoas, com gestos concretos de acolhida e proximidade: com-


padece-se do leproso, tocando-o com sua mão e curando-o (Mc 1,40);
aproxima-se da sogra de Simão, que estava de cama e com febre, toma sua
mão e a levanta (Mc 1,30-31); junto ao poço de Jacó, dialoga com a Sama-
ritana (Jo 4, 1-39); deixa que as crianças se aproximem d’Ele (cf. Mt 19,13);
na casa de Mateus sentam-se à mesa Ele e seus discípulos com publicanos
e pecadores (Mt 9,10); na passagem da tempestade acalmada convida a
ter fé e a não ter medo (Mt 4,40). Sabemos do tempo que passava com
seus discípulos, presente entre eles como aquele que serve (Lc 22,27). Ao
terminar de lavar os pés de seus discípulos, diz: Dei-vos o exemplo, para façais
assim como eu fiz para vós (Jo 13,15). A liderança de Jesus e sua maneira de
fazer-se presente é uma referência contínua para aqueles que são chamados
ao serviço da autoridade.

A liderança marista, com base na liderança cristã, manifesta-se


como uma presença servidora, que cuida das relações com os outros, a
partir da escuta e da compreensão das diversas realidades, sempre colocando
a pessoa na frente. É talvez o que pessoalmente experimentamos na nossa
própria relação com Jesus, sentindo tantas vezes sua presença próxima e
compassiva, particularmente nos momentos difíceis.

Ser presença significativa


(Marcelino) Arregaçou a batina e, com determinação,
cortou a rocha e edificou a casa de L’Hermitage.
Foi um líder carinhoso sem deixar de ser reto,
firme e equânime.
(RV, n. 84)

Como expressei antes, contamos com uma rica tradição maris-


ta relacionada com o tema da pedagogia da presença. É uma prática que
podemos continuar aprofundando e enriquecendo a partir da nossa expe-
riência e reflexão.

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VOZES MARISTAS

Em nossas relações com os outros, compartilhamos os valores não


tanto pelo que dizemos ou fazemos, mas sobretudo pelo que somos. Nossa
presença, por meio das nossas atitudes, traz em si mesma uma grande men-
sagem. Em determinado evento ou situação, perante uma ocasião impor-
tante, ou ainda em um contexto difícil que pede solidariedade, a própria
presença do líder fala por si mesma.

A presença é descrita mediante a linguagem especialmente com


o verbo “estar”. A etimologia do verbo “estar” vem do latim e
equivale a “in stare”, ou seja, “estar aí”, mas estar aí de forma signi-
ficativa. O ato pelo qual se concretiza a presença de alguém ou de
algo é a manifestação do que é. (Martínez, 2014, p. 93)

Em eventos e acontecimentos, são escutadas expressões com refe-


rência ao líder, tais como:“olha, ele veio” ou “que legal que tenha arranjado
tempo para estar com a gente”. Ou ainda, quando não é possível contar
com sua presença: “teríamos gostado que estivesse presente”. Expressões
como estas refletem parte da importância de sentir a presença do líder.

Além de momentos ou eventos importantes, trata-se de se fazer


presentes e mostrar-se próximos com quem está doente ou em dificulda-
de, tempos de crises pessoais ou perante situações de perda de algum ser
querido. Ou ainda, de vez em quando passar o tempo informalmente entre
as pessoas que trabalham conosco e entre os jovens. Há tantas maneiras de
exercer a presença, mesmo quando não se possa estar presente fisicamente:
uma chamada telefônica, uma mensagem escrita de saudação ou felicitação,
um presente, uma saudação por intermédio de uma mensagem de voz ou
de um breve vídeo. O mundo digital nos permite hoje muitas maneiras de
fazer-nos presentes. O tempo da pandemia favoreceu o uso dos meios di-
gitais para comunicar-nos e sentir-nos mais próximos. Esses meios ajudam
a aproximar as distâncias e facilitam a presença do líder.

Observamos também que se nota quando alguém, estando presen-


te, percebe-se ausente…

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

…é possível experimentar ao mesmo tempo a presença e a ausên-


cia, mesmo com diferente alcance. Nem sempre estamos no que
estamos. Nem sempre vivemos no momento presente; há muitos
momentos na vida nos quais se vive preocupado e amarrado pelo
passado, ou ansioso, ou arrastado pelo futuro. Quer dizer que se
vive ausente, já que a presença está vinculada ao presente. (Martí-
nez, 2014, p. 98)

É cada vez maior o número de ideias e estímulos que nos rodeiam,


incluindo o mundo digital. São situações que nos tiram facilmente do mo-
mento presente e não nos permitem prestar o máximo da nossa atenção.

A qualidade da presença que se espera de um líder é aquela que


anima e motiva, que suscita o melhor de cada pessoa e reconhece com
gratidão os esforços e ações dos outros. É uma presença atenta e sensível às
formas de ser e às culturas, que mostra acolhimento, respeito e valorização.
“São importantes os gestos, o sorriso, a linguagem, os sinais de afeto, mas,
sobretudo, é determinante a luz e a ternura que brotam do interior” (Bocos
Merino, 2016, p. 71). Presença, tempo e cordialidade são três dinamismos que
se interrelacionam e qualificam a liderança na vida religiosa. São expoentes
de comunhão, de dedicação e de disposição na ajuda às pessoas em sua vida
e missão (Bocos Merino, 2016).

Começando pelas atitudes que refletimos, é bom olhar se são de


paz e harmonia ou, ao contrário, se transmitimos distração, preocupação
ou inclusive ansiedade. No momento de escutar, ser capazes de deixar de
lado pensamentos, emoções ou preocupações, para oferecer uma escuta
atenta, cordial e empática. Esse exercício sempre é fácil. É necessário ser
conscientes do nosso próprio estado de ânimo e, ao mesmo tempo, colocar
as próprias antenas de recepção em máxima atenção para escutar, acolher e
oferecer uma retroalimentação eficaz.

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VOZES MARISTAS

A importância do contato consigo mesmo...


para poder contatar com os outros
Descobre o valor do silêncio e da interioridade.
Ajudar-te-ão a mergulhar na intimidade com Deus
e no amor autêntico por teus irmãos e irmãs.
(RV, 58)

Para viver a presença de maneira significativa, é importante que o


líder se exercite continuamente na interioridade, na tomada de consciência
do momento presente. Contamos hoje com uma ampla gama de apoios
para trilhar caminho nessa linha. Trata-se de viver a interioridade, que vai
de mãos dadas com o crescimento espiritual. Ser capazes de estar realmente
presentes, no momento aqui e agora, detectá-lo como dom gratuito, como
momento de graça. Experimentar a riqueza do encontro sendo capazes
de perceber nos outros uma presença transcendente. Por tanto, trata-se de
procurar ter um olhar que enxerga além, que enxerga em profundidade.

Caminhar na interioridade e na espiritualidade nos pede mo-


mentos concretos de silêncio. Consiste em uma prática que acaba por se
tornar um hábito de escuta profunda. É necessário exercitar-se, superando
as dificuldades que se apresentarem. Permitir-se ter um espaço regular e
constante para silenciar-se, deixando fluir os pensamentos e sentimentos,
sem se ocupar deles nem preocupar-se. E, nesse silêncio, perceber a voz
profunda de Deus presente em nosso interior. Essa voz, nós a percebemos
às vezes como uma força, como uma energia positiva, que nos estimula, e
que, em muitas ocasiões, é sentida como a brisa que mal é perceptível, mas
profundamente reconfortante (cf. 1Rs 19,12).

Deus é presença. Na espiritualidade que nos legou Marcelino, o


tema da presença de Deus é central. Descobria-o nos acontecimentos, em
qualquer lugar, nas dificuldades, quando orava e quando celebrava a Euca-
ristia com piedade e recolhimento. “O modo como o Padre Champagnat

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

praticava o exercício da presença de Deus, consistia em crer com fé viva e


atualizada em Deus, presente em tudo…” (Furet, 1989, p. 324) e “era-lhe
tão fácil recolher-se e manter-se unido a Deus nas ruas de Paris como nos
bosques de L’Hermitage” (Furet, 1989, p. 325). Como ele, estamos atentos
para reconhecer a presença de Deus e para comprovar seu amor nos acon-
tecimentos de nossa vida (C. 45).

Viver a autoridade como um serviço de liderança traz consigo


momentos de grande alegria e satisfação e, ao mesmo tempo, situações
difíceis que podem afetar facilmente o líder. Com frequência há cargas
emocionais fortes, que se acumulam, e que podem chegar a provocar um
forte estado de estresse. No caminhar da interioridade e espiritualidade, é
importante para o líder identificar o que percebe no mundo emocional e
sentimental. Significa acolhê-lo desde o silêncio, sem julgá-lo, processá-lo
e buscar harmonizá-lo. Em ocasiões, quem se encontra em um serviço de
liderança pode facilmente perceber que algo se dirige a sua pessoa, quan-
do tantas vezes se relaciona com o papel que desempenha. Nesse sentido,
como parte do processo de inferioridade, é conveniente confrontar-se com
alguém que ajude a fazer uma releitura do que acontece. E assim, não
querer caminhar sozinhos, mas com o apoio dos outros.

Um dos pontos-chave para conservar a paz e o equilíbrio interiores


é a contínua consciência de sentir--se enviado na missão de liderança. Jesus
se manifestou sempre consciente de ser enviado: “E aquele que me enviou
está comigo: não me deixou só, porque eu faço sempre o que a ele agrada” (Jo 8,29);
“Aquele que fala por sua conta, busca sua própria glória; mas aquele que busca a
glória daquele que o enviou, esse é veraz, e não há impostura nele” (Jo 7,18). A
contínua referência a quem nos envia nos permite viver em simplicidade,
acolher melhor a própria vulnerabilidade e a dos outros, e reconhecer que
a verdadeira força vem de mais Alguém, que é quem nos envia.

Viver em harmonia interior, em contínuo contato consigo mesmo,


sustentado por uma sólida espiritualidade, permite ao líder ser presença
serena e pacificadora entre os outros. Quantas vezes um olhar amável, um

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VOZES MARISTAS

sorriso, mesmo sem palavras, diz muito a quem rodeia o líder. É um olhar
que expressa uma atitude de discípulo, sentindo-se em contínua apren-
dizagem desde a própria realidade, desde aquilo que observa nos outros.
Sabemos que isso não pode ser improvisado ou fingido, mas é fruto de um
processo de contínua aprendizagem.

Ler o momento presente com vistas ao futuro


Deixa que a sabedoria da Palavra de Deus
ilumine a tua vida pessoal, comunitária e apostólica
e te ajude a discernir os sinais dos tempos.
(RV, 29)

No início do XXII Capítulo general, dedicamos vários dias para


dialogar e imaginar sobre a trajetória presente em diversas áreas da realidade
do mundo atual e pensar como evoluíram de frente para futuro. Nós nos
apoiávamos em alguns dos passos da “Teoria U” (Scharmer, 2016), que não
tento descrever aqui, mas atrair a atenção sobre uma das etapas: presenciar
(“presencing”).

Presenciar é uma combinação das palavras presença e detecção, isto é,


um maior estado de atenção que permite que as pessoas e os grupos mu-
dem o lugar interno desde o qual funcionam, tentar mudar o comporta-
mento futuro e adotar novos enfoques para os desafios que são enfrentados.
Requer ver a partir da fonte mais profunda e tornar-se um veículo para
essa fonte. Quando suspendemos e redirecionamos nossa atenção, a percep-
ção começa a surgir a partir de um processo vivo, conectado com o todo.
Quando presenciamos, nossa percepção se move além, para surgir desde a
possibilidade futura mais elevada que conecta o eu e o todo. Presenciar é
ver desde o interior da fonte da qual emerge a totalidade futura, olhando o
presente desde o futuro, tentando descobrir quem somos realmente como
servidores ou administradores do que é necessário no mundo e então atuar
espontaneamente (Senge et al., 2004).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Lembro que, nessa fase do processo, durante o Capítulo, fomos


convidados a passar uma manhã em silêncio, retiro e recolecção. Nesse
tempo procurávamos perceber e escutar no interior de nós mesmos os
chamados de Deus, fazendo-nos duas perguntas importantes com relação
a nossa presença como Instituto no mundo: O que Deus quer que sejamos
e o que quer que façamos? Procurava-se levar em conta os elementos do
contexto de que havíamos falado nesses dias, descobrir seu significado e
escutar no profundo os possíveis chamados que sentíamos para responder
no futuro. Foi significativo o momento pessoal de silêncio no qual cada um
procurava ouvir em seu interior a voz e os chamados de Deus. Importante
foi o momento de diálogo onde cada um se expressava e nos escutávamos
com atitude de abertura. E foi assim que, nesse processo de silêncio pessoal,
diálogo e escuta, foram identificados os cinco chamados, fruto de uma
reflexão coletiva.

Esta experiência, baseada na fase do presenciar, pode trazer-nos algo


novo com relação ao tema que nos ocupa. Desejamos viver uma presen-
ça que percebe e lê o momento, procurando identificar seu significado
profundo e o chamado que dali se desprende em direção ao futuro. No
momento de encontro e diálogo pessoal ou em grupo, através de uma
escuta empática, é possível tentar ler em tom de presente e futuro aquilo
que percebemos.

É uma maneira de ler os sinais dos tempos procurando entender


o que acontece, seu significado e os chamados que há por trás. Desde
princípios de março do ano 2020 temos vivido uma conjuntura nada fácil
para o mundo, devido à pandemia da Covid-19. Essa situação de pandemia
e de pós- -pandemia, com todas as suas consequências, impele-nos a utilizar
chaves de leitura em profundidade para discernir esses sinais dos tempos,
procurando descobrir a presença de Deus neste contexto e, por sua vez,
perguntando-nos sobre como podemos ser Sua presença em meio a tudo
o que vivemos.

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VOZES MARISTAS

Conclusão: presença com rosto mariano


Ao longo destas linhas, quis apresentar alguns elementos sobre a
presença relacionados com nossa tradição marista e com nossa experiência.
O caminhar mais importante que fazemos a partir do serviço de liderança,
é o que cada um de nós realiza, em contínua aprendizagem, a partir de
nossas próprias forças e debilidades. O tema da presença toca nosso ser e a
maneira de mostrar-nos perante os outros.

Ao longo da história marista, Marcelino, nós, os Irmãos e leigos,


contamos e seguimos contando com a inspiração de Maria. Levamos seu
nome como convite contínuo para imitar suas atitudes: “Buscamos em
Maria inspiração e apoio. Ao acolhê-la em nossa casa, aprendemos a amar a
todos, para tornar-nos sinais vivos da ternura do Pai” (C. 22).

Ela foi presença educadora amável ao longo da vida de Jesus, so-


bretudo em sua infância. Foi presença servidora com Isabel, permanecen-
do com ela por cerca de três meses (Lc 1,56). Quando Jesus realizou sua
missão publicamente, Maria foi presença discreta e silenciosa. Em ocasiões,
foi presença ativa e direta, como no caso das bodas de Caná (Jo 2,3-5).
Foi pacificadora sua forma de estar presente entre os discípulos, depois da
morte e ressurreição de Jesus:

Como a primeira comunidade em Pentecostes, reconhecemos Maria entre


nós. Sua presença nos convoca a viver a fraternidade marista e nos ajuda a
compreender que formamos a comunidade de Jesus. Em torno d’Ela, vamos
construindo uma Igreja com rosto mariano. (C. 35)

Queremos ser uma presença com rosto mariano. Contamos com


a inspiração e a experiência de tantos que assim o viveram e o vivem
atualmente. Que nossa presença como líderes, na escola, na pastoral juvenil,
na comunidade, em nossas famílias, na Província ou Distrito, no Instituto,
seja um contínuo reflexo desse rosto mariano. É nosso dom e nosso com-
promisso ao levar o nome de Maria.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO E O


DIÁLOGO
1. Que experiência pessoal você teve sobre a pedagogia da presença?
2. Que elementos você destacaria com relação à presença e à maneira de
realizá-la como líderes?
3. Como diretor em uma obra, como animador comunitário ou Pro-
vincial, ou em qualquer grupo no qual você presta um serviço de
liderança, como você considera a qualidade da sua presença?
4. O que seria necessário levar em consideração para viver uma liderança
servidora, próxima, compassiva e que, ao mesmo tempo, seja profética
e capaz de desafiar?
5. Como líder, a que você se sente chamado pessoalmente com relação a
este tema da presença?

SIGLAS
C Constituições e Estatutos dos Irmãos Maristas das Escolas
(aprovadas em 2020 e publicadas em 2021).

RV Aonde fores: Regra de Vida dos Irmãos Maristas (2020).

MEM Missão Educativa Marista (1998)

REFERÊNCIAS

Bocos Merino, A. (2016). Liderazgo y proximidad: El valor de la presencia en el


gobierno de la vida consagrada. Ediciones claretianas.

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VOZES MARISTAS

Furet, J. B. (1989). Vida de José Benito Marcelino Champagnat. Casa General


de los Hermanos Maristas.
Instituto dos Irmãos Maristas. (1998). Missão Educativa Marista (MEM).
Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2017). Mensagem do XXII Capítulo Geral:
Caminhemos como família global! Casa Generalizia dei Fratelli Ma-
risti.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2020). Para onde você irá: Regra de Vida
dos Irmãos Maristas. Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.
Instituto dos Irmãos Maristas. (2021). Constituições e Estatutos. Casa Gene-
ralizia dei Fratelli Maristi delle Scuole.
Martínez Estaún, A. (2014, mayo). Reflexiones para una fundamentación
de la presencia marista. FMS Cuadernos Maristas, 2014, 89-117.
Scharmer, C. O. (2007/2016). Theory U: leading from the emerging future. (2nd
ed.). Berrett-Koehler.
Senge, P., Sharmer, C. O., Jaworsky, J., Sue Flowers, B. (2004). Presence: Hu-
man purpose and the field of the future. Crown Business.

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PARTE II

CARACTERÍSTICAS
DA LIDERANÇA
PROFÉTICA E SERVIDORA

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 3

Que tipo de líder você


deseja ser?
Ir. Seán D. Sammon
Superior-Geral
(2001-2009)

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VOZES MARISTAS

Todas as guerras são cruéis, sangrentas e horríveis. A Guerra Civil


dos Estados Unidos não foi exceção. Ao longo de quatro anos, tirou a vida
de quase 750.000 pessoas. No entanto, em meio a essa carnificina, houve
exemplos de compaixão e esperança.

A batalha de Fredericksburg (cidade localizada no estado norte-a-


mericano do Texas, no Condado de Gillespie) foi um exemplo disso. Em 13
de dezembro de 1862 soldados da União, leais ao governo em Washington,
D. C., começaram um ataque desesperado e condenado a um local forte-
mente fortificado conhecido como “muro de pedra da estrada submersa”.
Era uma ação arriscada e incerta, mas, como nesse mesmo dia eles haviam
tomado a cidade vizinha de Fredericksburg, com pouca resistência, o moral
da tropa se mantinha alto.

Entretanto, esses homens não sabiam que membros do exército


rebelde, leais aos Estados Confederados da América, haviam abandonado,
voluntariamente, a cidade para tomar posições naquele muro de pedra,
situado ao pé de uma colina muito inclinada. Aproximando-se do muro,
os soldados da União foram surpreendidos e repelidos sem piedade. Ao
amanhecer de um novo dia, mais de 8.000 deles estavam estendidos no
chão, mortos.

Durante a noite, os dois lados puderam ouvir os gritos escandalo-


sos dos soldados ainda vivos, mas gravemente feridos, atingidos pelo frio e
pela sede. Um soldado confederado, parado perto do muro, testemunhou
mais tarde que era “terrível e fantasioso, ouvir o alarido daqueles homens
moribundos, que jaziam mutilados pelas ladeiras, a muitos quilômetros de
suas casas. Era um imenso clamor doloroso que cortava o ar, rompendo os
corações dos combatentes, de um lado e de outro do campo de batalha”
(Clay, 2010, p. 1).

Em meio a essa matança, Richard Kirkland, sargento de infantaria


e membro do exército confederado, não conseguia descansar nem conciliar
o sono, incapaz de suportar o sofrimento dos soldados da União. Movido

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

de compaixão, perguntou a seu oficial imediato se podia saltar o muro para


levar água aos feridos do outro lado.

No início ele encontrou resistência. O comandante estava preo-


cupado com o perigo que tal intervenção representaria para Kirkland. Por
fim, acabou dando a permissão, e o soldado iniciou sua missão.

Enquanto Kirkland escalava o muro, começaram a soar os disparos,


As tropas da União pensavam que o homem tinha intenção de ataque. No
entanto, depois de perceberem o que realmente, estava acontecendo, ter-
minaram o tiroteio.

Ao longo dos próximos noventa minutos, Kirkland foi atendendo


os soldados feridos, consolando-os da melhor maneira possível, cobrindo
com sua jaqueta a um que tiritava de frio e levando água aos que morriam
de sede. Escalou o muro repetidas vezes, utilizando seu cantil para conti-
nuar a oferecer ajuda, àqueles que eram seus inimigos, em combate. Essa
ação conseguiu interromper, temporariamente, a guerra.

Agora bem, talvez perguntem porque menciono essa história de


Richard Kirkland, no início de um artigo sobre liderança. Certamente não
quero idealizar a realidade da guerra, nem explicar que os simples gestos de
bondade são o melhor meio para erradicar a violência e o ódio que ocor-
rem, quando as pessoas pegam em armas. Sendo honestos, temos que ad-
mitir que a heroica intervenção do sargento Kirkland, por mais admirável
que fosse, não conseguiu modificar os anos de conflito que vieram depois.

Em verdade, conto essa história para ilustrar três características que,


em minha opinião, devem acompanhar os líderes autênticos: confiança,
cuidado, compaixão, e espírito de serviço. Ao refletir sobre a atitude de
Kirkland, poderia haver alguém no campo de batalha de Fredericksburg
que não estivesse disposto a imitá-lo? O soldado inimigo demonstrara ser
o melhor dos homens.

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VOZES MARISTAS

O que entendemos por liderança


Se dedicássemos apenas alguns minutos, procurando na internet li-
vros e artigos sobre liderança descobriríamos rapidamente que seu é inter-
minável. Uns tratam da liderança no mundo empresarial, outros abordam o
tema da liderança no governo; ainda há textos nos quais se analisa o assunto,
na perspectiva da Igreja ou de outras entidades de caridade.

Muitos de nós também já participaram de oficinas e seminários


sobre essa questão; todos tivemos alguma experiência, em primeira mão,
com líderes, seja por associação com os responsáveis por um projeto ou or-
ganização, seja por termos ocupado, nós mesmos, um posto de autoridade.
Todos esses fatores contribuíram para modelar nossa compreensão do que
significa liderar.

Dito isso, é importante lembrar que não existe uma maneira única
de liderar. Os estilos de liderança diferem de uma cultura para outra e di-
ferentes situações suscitam determinadas características num líder. Algumas
culturas, por exemplo, são jerárquicas por de natureza, outras são mais igua-
litárias. As tropas que vão para a batalha, provavelmente, conferirão mais
facilmente autoridade a um líder enérgico e decidido do que a outro com
objetivo de alcançar o consenso dentro do grupo.

Líderes e gestores
A liderança não se confunde com gestão. Os gerentes fazem corre-
tamente as coisas; os líderes fazem as coisas certas. Um gerente tradicional
prioriza projetos e os confia às pessoas. Ele saberá implementar um sistema
que garanta a pontualidade dos trens. Aqueles que precisam chegar ao tra-
balho em determinada hora ficarão tranquilos, sob a supervisão da pessoa
que controla o sistema de trens.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Mas, os gestores, geralmente, não são fonte de novas ideias; os lí-


deres sê-lo-ão. Estes últimos, tendo mentes curiosas, olham para o futuro
e vislumbram o que poderia ser. Um líder eficaz planejará o sistema de
transporte que precisará funcionar dentro de vinte anos.

A estrutura de muitas organizações impede o desenvolvimento da


liderança por não permitir que todos os envolvidos contribuam para o pla-
nejamento e a solução de problemas. As estruturas hierárquicas encontra-
das, nesses grupos, e o status desigual conferido ao membros não favorecem
a expressão e a opinião de todos os implicados.

Robert Sutton, professor de Ciências da Gestão e Engenharia na


Universidade de Stanford, ressalta que os encarregados de liderar um proje-
to ou uma instituição nem sempre são a fonte da inovação ou das melhores
ou mais recentes ideias (Sutton, 2002). Quem entre nós não participou de
alguma reunião em que pessoas poderosas do grupo

discursaram à vontade, embora na sala houvesse outros, com ideias


muito melhores sobre como resolver o problema? Se o ambiente fosse
mais igualitário, teria havido mais possibilidades de as pessoas falarem e
serem ouvidas. Sutton afirmava que uma das tarefas de um verdadeiro líder
é “descobrir como fazer que certas pessoas calem a boca, na hora certa!”

A autoridade moral
A única autoridade real que existe é a autoridade moral. O direito
de liderar deve ser conquistado, não pode ser conferido. Se ganhamos a
confiança dos membros de um grupo eles nos permitirão liderar. No en-
tanto, se é pouca a confiança que merecemos como líderes, nossa autorida-
de será questionada. Assumir a responsabilidade de um projeto e descobrir
que os outros se recusam a unir-se a nós, diminui nossas possibilidades de
liderar.

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VOZES MARISTAS

Os líderes autoritários ou fracos não têm autoridade moral. Os


primeiros chegam ao poder, utilizando a força ou o subterfúgio para alcan-
çar posições. Com o passar do tempo, os líderes autoritários devem criar es-
truturas para ajudá-los a manter seu poder. Governam por meio do medo e
da suspeita, confrontando uns membros contra os outros, dentro do grupo.

Os líderes fracos se encontram na outra extremidade do espectro.


Sua necessidade exagerada de ser estimado ou de que falem bem deles
termina por antepor-se aos objetivos do grupo maior. Trata-se de homens
e mulheres que têm pouco interesse em escutar opiniões diferentes às pró-
prias. Consequentemente, terminam por reunir em torno de si pessoas
excessivamente complacentes e pouco dadas a sustentar critérios contrários
aos do líder. Este pode ser bastante vingativo ante a oposição.

A longo prazo, tanto os líderes autoritários quanto os fracos não


conseguem conquistar a confiança daqueles a quem devem servir. Eles
também não possuem as características próprias dos líderes que têm auto-
ridade moral. Com o tempo, seu comportamento dá origem à resistência e
cria um ambiente de moral baixa.

A confiança
Mesmo com diferenças de cultura e situação, existem certas carac-
terísticas que parecem comuns, entre aqueles que são líderes eficazes. Para
começar, esses homens e mulheres demonstram confiança. Novas ideias
não os ameaçam. Eles são capazes de ver possibilidades que outros não
veem.

Seu sentido de confiança também lhes permite correr riscos. Em-


bora não sejam imprudentes, eles estão abertos para avançar, antes que
todas as peças estejam no lugar e a resposta a todas as perguntas esteja
assegurada. Vários termos são utilizados para descrever os líderes eficazes:
flexíveis, capazes de mudar a marcha, decididos a enfrentar o desconhecido.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Luis Urzúa é um bom exemplo do que afirmamos (Kristof, 2010).


Ele era o capataz dos 33 homens que, em 2010, ficaram presos na mina de
cobre e ouro ‘São José’, no norte do Chile, quando um colapso os prendeu
a 700 metros abaixo da superfície. Sua moderação e seu fino humor aju-
daram a manter os mineiros sob sua responsabilidade enfocados na sobre-
vivência, durante sua provação subterrânea de 69 dias.

Urzúa foi rápido em reconhecer a seriedade do acidente Ele as-


sumiu o comando, examinou várias opções e organizou grupos de guarda,
racionando a comida e mantendo a ordem durante os 17 dias em que fica-
ram sem contato com o exterior.

Mais tarde distribuiu mapas detalhados da área e permaneceu fle-


xível enquanto negociava com a equipe de resgate, localizada na superfície.
Permanecendo calmo e confiante em meio a tanta pressão, foi também o
último homem a ser resgatado. Ao abandonar o local, comentou: “Esta vez,
a troca de turno foi um pouco longa”.

Os líderes eficazes não têm medo de cometer erros; e quando os


cometem, aprendem. E o que é mais importante, eles aprendem com os
erros dos outros. Sua confiança lhes permite animar os demais, convencen-
do-os de que aquilo que parece impossível, à primeira vista, no fim, pode
ser realizado.

Em 15 de janeiro de 2009, o piloto norte-americano Chesley


Sullenberger enfrentou um grave problema. Acabava de decolar do aero-
porto La Guardia, da cidade de Nova York, pilotando o voo 1549 da US
Airways, quando seu avião atingiu um bando de gansos canadenses e per-
deu toda a potência dos motores.

Sullenberger e seu copiloto, Jeff Skiles, rapidamente tomaram a


decisão de que era impossível aproximar-se de qualquer aeroporto local
para um pouso de emergência. Em vez disso, eles planaram seu jato para
um pouso no rio Hudson, próximo ao centro de Manhattan. Todas as 155

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VOZES MARISTAS

pessoas a bordo foram resgatadas por barcos próximos, com poucos feridos
graves.

O feito de Sullenberger e Skiles ficou conhecido como o “Milagre


no Hudson”. Um relatório final sobre o acidente citou a correta tomada
de decisões e o trabalho em equipe por parte da tripulação da cabine e o
desempenho da tripulação de voo durante a evacuação como elementos
importantes para evitar o que poderia ter sido um desastre. A confiança
demonstrada por Sullenberger e Skiles foi contagiante, confortando passa-
geiros e tripulantes e convencendo-os de que conseguiriam pousar e sair
do avião com segurança e sem ferimentos graves (US NTSB, 2010).

Os cuidados e a compaixão
Líderes eficazes também entendem que o grupo é uma fonte de
sabedoria. Por isso, recusam-se de assumir a responsabilidade pela geração
de toda ideia nova, e procuram acolher o melhor que vem dos outros.

Todos admiramos alguém que consegue fazer uma leitura rápi-


da de outras pessoas e identificar seus dons, bem como os aspectos que
diminuem sua eficácia. Em vez de se concentrarem nessas debilidades, os
verdadeiros líderes se baseiam nas habilidades e nos talentos encontrados
nos membros da equipe.

Quando as pessoas se sentem atendidas, estão mais do que dispostas


a dar o seu melhor. Um conto simples ilustra isso. Um dia, um supervisor
estava reunido com um membro da equipe diretiva. Enquanto discutiam
vários assuntos importantes, o telefone tocou.

O supervisor ignorou o chamado. Após três toques, o membro


da equipe diretiva olhou para o supervisor e disse: “Você não vai atender
o telefone?” Este, então, fez uma pausa e comentou: “Não. Não sei se essa
ligação é importante ou não; pode esperar. O que sei é que esta reunião é
importante”.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Existem várias lições a serem aprendidas aqui. Em primeiro lugar,


a atenção que se presta e o modo como se responde interessa muito para as
outras pessoas. Se você se distrai continuamente, quando está reunido com
membros da equipe e outras pessoas com as quais trabalha, as pessoas não
se sentirão valorizadas. Além disso, podem desconfiar de você ou deixar de
chamar a atenção para questões importantes.

Se você se distrai constantemente, enquanto se reúne com mem-


bros da equipe e outras pessoas com quem trabalha, as pessoas não se sen-
tirão valorizadas. Além disso, elas podem começar a desconfiar de você ou
deixar de chamar a sua atenção para questões importantes.

Em segundo lugar, para um líder, não é necessário muito esforço


para que os outros saibam que ele leva em conta seus interesses. Gestos
simples como perguntar às pessoas sobre sua família, sua saúde ou sobre a
melhora de um parente que esteve doente farão com que alguém saiba que
você o valoriza pelo que é e não apenas pelo que faz.

Enfim! Todos cometemos erros. Os líderes farão bem ao admi-


rem suas falhas, quando se equivocam ou tomam uma decisão errada. É
igualmente importante ser compassivo para com os outros, quando lhes
passa o mesmo. Tratá-los com respeito e amabilidade resultará em muito
melhor resultado do que fazer com que se sintam mais culpados do que já
se imaginam.

O espírito de serviço
Líderes genuínos nunca se esquecem de que seu papel é manter
viva a visão que orienta o grupo. Se não fizerem isso, ninguém mais o fará.
O espírito de sacrifício e o desejo de servir são elementos essenciais neces-
sários para se atingir esse objetivo.

A vida de poucos homens ou mulheres personifica melhor o cus-


to do sacrifício e o espírito de serviço do que a vida de Nelson Mandela

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VOZES MARISTAS

(1994), o primeiro presidente eleito democraticamente da África do Sul.


Como Martin Luther King Jr., ele foi um dos grandes líderes de transfor-
mação dos direitos civis do século XX.

Mandela não era político, nem oportunista. Era, no entanto, um


homem profundamente comprometido em melhorar as condições de vida
de seu povo. A história dele é bem conhecida. Embora absolvido da acu-
sação de traição em 1956, ele se convenceu, com o tempo, de que a luta
armada poderia ser necessária para alcançar uma mudança real. Seu en-
volvimento com o movimento MK, um braço armado da Conferência
Nacional Africana, o levou de volta à prisão.

Em 1963 Mandela foi condenado à prisão perpétua por crimes


políticos. Ele passaria os próximos 27 anos na prisão, onde suportou pu-
nições cruéis e contraiu tuberculose. Durante esse tempo foi oferecida a
Mandela sua libertação antecipada, se renunciasse à luta armada – uma
condição que ele recusou e não quis considerar.

Em fevereiro de 1990 o prisioneiro de 72 anos foi libertado sob o


mandato do novo presidente da África do Sul, Frederik Willem de Klerk,
que ajudou a intermediar um acordo para acabar com o apartheid (regime
de segregação racial implementado na África do Sul, em 1948). Um ano
depois Mandela foi eleito líder do Congresso Nacional Africano. Pouco
depois, ele se tornou no primeiro presidente negro da África do Sul, nas
primeiras eleições democráticas do país.

Mandela denominou sua autobiografia de Long Walk to Freedom


(Longo caminho para a liberdade: uma autobiografia). Uma descrição ade-
quada do custo frequentemente exigido por uma vida de sacrifício e espí-
rito de serviço.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Duas questões finais:


Liderar pelo exemplo:

Os líderes eficazes são um testemunho das condutas que intentam


inspirar nos demais. Uma história, frequentemente contada, extraída da
vida de Gandhi, o líder do movimento de independência da Índia, ilustra
esta questão.

Havia um menino viciado em açúcar. Sua mãe decidiu pedir ajuda


a Gandhi. Ela e seu filho viajaram muitos quilômetros, sob o sol escaldante,
para visitá-lo.

Ao chegarem, a mãe pediu a Gandhi que dissesse ao filho para


parar de comer açúcar porque não era bom para sua saúde. Ele respondeu:
“Não posso dizer-lhe isso. Mas se o trouxer de volta, dentro de algumas
semanas, então conversarei com ele.” Confusa, a mãe levou o filho para casa.

Duas semanas depois, ela voltou. Gandhi olhou nos olhos do me-
nino e disse: “Menino, você precisa parar de comer açúcar. Não é bom para
a sua saúde”. O menino concordou com a cabeça e prometeu obedecer-
-lhe. Agora intrigada, a mãe do menino perguntou: “Por que você não disse
isso a ele duas semanas atrás, quando o trouxe aqui?”

Gandhi sorriu e disse: “Mãe, há duas semanas, eu também comia


muito açúcar” (Reilly, 2008, p. 1). Muitas vezes, nos encontramos com
“líderes” que pregam uma coisa e fazem outra. Rapidamente perdemos o
respeito por eles e passamos a questionar a solidez de qualquer conselho
que nos possam dar.

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VOZES MARISTAS

Não se deixe abater pelo fracasso


No mundo dos filmes de animação, o americano Walt Disney é
visto como um gênio criativo. A empresa que ele fundou, a Disney Corpo-
ration, é hoje um gigante internacional do entretenimento, com centenas
de propriedades, incluindo o Marvel Studios e a franquia Star Wars.

Enquanto muitos mencionam o sucesso dos primeiros filmes da


Disney, poucos conhecem as dificuldades que ele enfrentou antes de fa-
zê-los. Seu primeiro estúdio de animação foi dissolvido, porque não con-
seguia pagar o aluguel. Embora o filme Branca de Neve tenha tido uma
estreia de sucesso, clássicos como Pinóquio e Fantasia foram um fracasso
financeiro. Hoje muitos dos primeiros filmes da Disney são considerados
obras-primas, embora tenham sido fracassos financeiros em sua época.

O que podemos aprender aqui sobre liderança? Primeiramente, a


força de uma ideia não pode ser medida por seu sucesso ou fracasso relati-
vo. Em segundo lugar, na próxima vez que você ou eu passarmos por um
revés, devemos nos lembrar de que estamos em boa companhia. Pergunte
aqueles que tiveram sucesso na consecução de seus objetivos, se alguma vez
fracassaram. Invariavelmente, sua resposta será “sim”. Para um verdadeiro
líder o fracasso nunca é o fim do caminho. É, antes, mais um passo na longa
caminhada para a liberdade.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que qualidades você procura em um líder? Por que essas qualidades
são tão importantes para você?
2. Que tipo de liderança é preciso promover para ajudar a criar um fu-
turo para nosso Instituto Marista? Que desafios enfrentarão os líderes
maristas do futuro?
3. Se você fosse convidado a liderar uma comunidade ou um ministério
marista, nos próximos meses, como você abordaria esse ministério?

REFERÊNCIAS

Clay, S. (2010, agosto 4). Compassion for others – Even the enemy (A compaixão
pelos outros – mesmo pelos inimigos). Em http://www.confederate-
colonel.com/2010/08/compassion-for-others-even-the-enemy/
Kristof, K. (2010, outubro 14). Chilean miners: Leadership lessons from Luis
Urzúa (Lições de liderança de Luis Urzúa). CBS News, Moneywatch.
Mandela, N. (1994). Long walk to freedom (Longo caminho para a liberdade: uma
autobiografia). Little Brown & Co.
Reilly, P. (2008, julho 19). Gandhi Story (A história de Gandhi). The tea-
cher’s path: A journey of the mind, the body, and the heart (O caminho
do professor: uma jornada da mente, do corpo e do coração). In https://
preilly.wordpress.com/2008/07/19/gandhi-story/
Sutton, R. I. (2002). Weird ideas that work: 11 and ½ practices for promoting,
managing, and sustaining Innovation (Ideias esquisitas que funcionam: 11
e ½ práticas para promover, gerenciar e sustentar a inovação. (Nova York,
NY: The Free Press, 2002).
United States National Transportation Safety Board (Conselho Nacional
de Segurança dos Transportes dos Estados Unidos)– US NTSB-

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VOZES MARISTAS

(2010). Accident Report (Relatório de acidentes) (NTSB/AAR-10/03


PB2010-910403): Loss of Thrust in Both Engines After Encountering
a Flock of Birds and Subsequent Ditching on the Hudson River US
Airways Flight 1549 Airbus 320-214 (A perda de empuxo em ambos
os motores após o encontro com um bando de pássaros e subsequente fosso
no rio Hudson, voo da US Airways 1549 Airbus 320-214), N106US
Weehawken, Nova Jersey 15 de janeiro de 2009. National Transpor-
tation Safety Board (Conselho Nacional de Segurança dos Trans-
portes), Washington, DC.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 4

A liderança da
empatia, do serviço e
da compaixão
“Filho, eles não têm vinho”
Ir. Óscar Martín Vicario
Conselheiro-Geral

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VOZES MARISTAS

Quando o XXII Capítulo Geral fala de “liderança servidora”, une


essa expressão a uma dinâmica que pode passar despercebida, mas que tem
sua importância… a expressão que se usa é: “uma liderança profética e
servidora, que acompanha de perto a vida e missão maristas”. Falar de uma
liderança que “acompanha de perto” é, de um modo sutil, uma declaração
de princípios e de estilo… Estamos referindo-nos à liderança da proximi-
dade, do acompanhamento direto, das relações interpessoais.

Talvez por isso, os parágrafos seguintes falem de: dar resposta aos
chamados das pessoas, suscitar inclusão, promover a família global… há
aqui, implicitamente, uma definição muito sugestiva do que é liderança
marista, que ilumina nossa forma de exercer esse serviço.

Por isso, agora voltamos nosso olhar para um aspecto da liderança


que tem grande relevância: a dimensão do serviço que se veicula através da
proximidade, da empatia e da compaixão. E nos perguntamos como suscitar
e preparar líderes com este perfil, realmente centrados em servir às pessoas,
em compartilhar de perto os caminhos dos homens, em manifestar empatia
por cada um daqueles que acompanham. E em colocar na liderança essa
“cor” especial que lhe dão várias atitudes que talvez não tenham estado
tradicionalmente unidas a essa função de liderar, como podem ser a com-
paixão ou inclusive a ternura (Papa Francisco, 2020)1.

Efetivamente, ser um líder que decide servir já é um desafio na


própria compreensão da liderança, sobre o que tanto se escreveu e refletiu
(Greenleaf, 2002)2. Mas ser, além disso, um líder empático, próximo, ex-
periente em escuta, atento, e inclusive capaz de expressar afeto… é uma
dimensão muito mais ampla e provocativa da liderança.

E, no entanto, estamos na raiz da liderança, tal como a entendemos


em nossa família global marista, e como queremos desenvolvê-la. Porque
assim a recebemos e herdamos das nossas origens e inclusive do nosso
Fundador. E porque empatia, serviço e compaixão são não somente carac-
terísticas “adicionadas” a nossa compreensão da liderança, mas traços pro-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

fundamente conectados com nosso carisma e com os alicerces evangélicos


nos quais nos assentamos.

Colocar a pessoa no centro, cuidá-la (Prosser, 2007)3, atendê-la


empaticamente, é uma opção de liderança na qual queremos crescer, e
com a qual queremos construir nossas relações, estruturas e projetos: assim
o herdamos, assim tentamos vivê-lo hoje e assim queremos sonhar nosso
futuro.

1. Do líder servidor ao líder empático


Ainda que haja muitas formas de expressar o que entendemos por
empatia, há uma expressão simples e popular que talvez o faça de forma
eloquente: usar os sapatos do outro (Turú, 2011)4.

De fato, o líder que se põe ao serviço está chamado a ser também


um líder empático, dado que sua função está centrada no grupo e nos in-
divíduos aos quais acompanha e serve. No entanto, a empatia é uma cara-
terística que, se bem se dá espontaneamente em algumas pessoas, pode ser
também aprendida e cultivada.

Ao bom líder, que quer servir e não se servir de sua missão, há de


acompanhar não somente uma capacidade “técnica” ou “profissional” para
liderar, mas também um estilo de relações. Efetivamente, entendemos que a
liderança tem essa dimensão relacional que, longe de ser adjacente, hoje se
tornou central para a missão de acompanhar e guiar (Boies, 2020)5.

A liderança é, por sua própria natureza, relacional. Liderar pessoas


e grupos implica estabelecer uma rede relacional com cada um e com o
conjunto, de modo que seja possível propiciar o melhor desenvolvimento
da missão em um clima de interações positivas. Isso, que é evidente nas
lideranças mais simples (desde o tutor de uma aula, até o treinador de uma
equipe esportiva) fez-se também fundamental no âmbito das grandes em-
presas e das instituições.

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VOZES MARISTAS

No entanto, por sua vez, para nós, não somente é uma caraterística
“utilitarista”, mas um traço definidor. Entre as muitas caraterísticas que os
autores atribuem à liderança servidora, quase sempre são incluídos aspectos
como a escuta, a empatia, o conhecimento, a persuasão, a conceitualização,
o compromisso com o crescimento das pessoas ou a construção de uma
comunidade (Spears, 2010)6. Nessa línea, nós tentamos cultivar uma lide-
rança servidora que seja empática e próxima, não para obter maiores frutos
de eficácia, mas porque nasce da nossa cosmovisão, dos nossos valores e da
nossa opção pela pessoa e sua centralidade.

Isso sim, falamos de uma empatia que, colocando-se no papel do


outro, ajuda a aprofundar e a abordar as questões ou problemas em pers-
pectiva humanizadora (Campbell, 2020)7. Ou seja, não se trata de “usar” a
empatia como um instrumento, nem de “fingir” preocupar-se pelo outro,
ou de “aparentar” simpatia.Trata-se de compreender que qualquer institui-
ção ou organismo, formado por seres humanos, somente pode funcionar
bem se as próprias pessoas encontram nesse espaço a possibilidade de ser
elas mesmas, desenvolver suas capacidades e colocar ao serviço comum suas
potencialidades próprias.

Por isso, a empatia significa acreditar na pessoa. E, ao mesmo tempo,


escutá-la e cuidá-la, especialmente em suas fragilidades (Greenleaf, 2002)8.
Sem que isso suponha, de forma alguma, ocultar a verdade, e sim, antes,
ajudar cada um a encontrar sua verdade, seu lugar e seu melhor espírito.

Alguns autores, como Martin Hoffman, falaram de diversos tipos


de empatia: empatia cognitiva, empatia afetiva, empatia motivacional e em-
patia prossocial. Acreditamos que é uma contribuição muito valiosa e escla-
recedora; ainda que mais que como “tipos de empatia”, também possamos
entendê-los como dimensões. Faz-se necessário conectar no âmbito das
ideias e da razão, mas também no mundo dos afetos. A empatia está cha-
mada a se tornar foco de motivação, e construtora de interrelação grupal
e social.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Com tudo isso, surge inevitavelmente a pergunta do como. Como


ajudar os líderes a desenvolver esta dimensão empática em seu modo de ser
e fazer? Como educar em “empatia”? Como transformar nossa instituição
marista e nossas lideranças para tornar-nos “construtores de pontes” que
estamos chamados a ser?

2. A empatia é proativa
A própria etimologia de “empatia” nos dá uma primeira chave
para responder a essas preguntas. Empatia vem do grego “ἐμπάθεια” (em-
pátheia), palavra formada pelo prefixo “em” (dentro de) e a raiz “pathos”
(afeto, sentimento, padecimento). Podemos assim dizer que é algo que se
vive “no sentimento”, ou “no sofrimento”, ou “dentro do afeto”. A em-
patia seria, por isso, algo como “sentir com o outro”, ou “compartilhar o
afeto”.

Como contraste, é interessante ver que a palavra “simpatia” se for-


ma com o prefixo “sim” (que significa “com”) e a raiz “pathos”: ou seja,
equivale quase literalmente a “com-paixão”. E acredito que isso nos dá
uma das chaves para entender o autêntico alcance e a grandeza da empatia.

Escutando em uma conferência um bom e jovem biblista, o capu-


chinho espanhol Vítor Herrero, lembro que ele nos explicou a diferença
entre a compaixão e a misericórdia na Bíblia. Apesar de ambas serem qua-
lidades valiosas e ponderáveis, esse especialista dizia que a compaixão é
reativa, pois surge quando vemos alguém sofrendo ou magoado e, como o
bom samaritano, sentimos pena ou preocupação e reagimos, “nos compa-
decemos”. A misericórdia, muito mais que isso, não é reativa, mas proativa,
faz parte das próprias entranhas (está no próprio ser, na essência de Deus)9
e é uma disposição prévia, inata, inaprendida a atuar com amor, perdão e
compreensão em relação ao outro, antes ou sem necessidade de que faça
ou sofra nada. Nós, os homens, somos compassivos, mas Deus, além de ser
compaixão é, antes de mais nada, misericórdia pura.

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VOZES MARISTAS

Salvando as distâncias, a empatia se situa também na esfera das ati-


tudes proativas. Um líder pode ser ou não simpático, e reagir de um modo
mais ou menos cordial ou amável perante os outros. Mas se é empático, se
proativamente é capaz de colocar-se no lugar do outro, seja como for, sua
liderança se abre a um âmbito mais universal.

Frente aos líderes que querem “manejar” aqueles a quem servem,


ou a modelos manipuladores de liderança (Chul Han, 2016)10, quem na
verdade quer servir às pessoas individuais ou a um grupo está chamado a
fazê-lo desde a escuta, a compreensão da realidade de cada um, e a vontade
de colocar a si próprio e convidar os outros a colocarem-se ao serviço do
bem comum. E, para isso, o primeiro e necessário passo será ser consciente
do potencial individual (Torralba, 2017)11.

Tudo isso faz com que nos aproximemos de uma questão im-
portante: a necessidade de descobrir e cultivar a empatia dos nossos líde-
res, atendendo também, necessariamente, a sua dimensão afetiva (Altuna,
2017)12, como a própria raiz etimológica já nos sugeria.

Seja simpático ou não (e tomara que possa sê-lo), sejam simpáticas


ou não as pessoas que acompanha (tomara que se estabeleçam laços rela-
cionais amáveis e cordiais), por cima disso o líder há de ser sensível a cada
um e estabelecer relações empáticas. Ou seja, colocar-se no lugar do outro
e ser capaz de co-sentir com ele. Isso suporá escutar muito ativamente, en-
tender racionalmente a pessoa e, também, fazer-se partícipe de suas visões
e sentimentos. E de suas necessidades (Murray, 2019)13.

Lembro sempre que, quando foi minha vez de exercer o serviço de


provincial, fui aprendendo com muita humildade a superar minhas tenta-
ções de impor-me, e aprendi a fazer algo diferente: escutar mais e colocar-
-me mais no lugar do outro; abandonar pré-conceitos e descobrir a riqueza
escondida nos valores ou nas fragilidades de cada um. Não sei se ficarão
na lembrança os grandes projetos que abordamos naquele tempo (como o
“Plano de espiritualidade”, ou o programa da “Mudança metodológica”).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Mas o que eu gostaria que fosse lembrado, como alguns Irmãos percebe-
ram, foram as muitas horas ou dias inteiros de escuta pessoal nas entrevistas,
a presença repetida em cada comunidade, o acompanhamento pessoal, ou
a visita a cada um dos que estiveram hospitalizados ou sofreram perdas ou
crises. Mesmo que reconheça que muitas vezes não foi fácil cumprir essa
intenção.

A empatia é proativa. Mas se aprende e se cultiva mediante essas


propostas e dinâmicas. E é fundamental para que a liderança seja na verdade
servidora. Conta-nos a Vida de Champagnat que ele já se aproximava dos
colegas desanimados ou com dificuldades quando era seminarista, com essa
atitude que lhe era conatural. E continuou implementando-a em toda a
sua vida (Furet, 1989)14 com especial sensibilidade a respeito da situação de
cada um, que lhe fazia detectar e atender quem precisava dele.

Constitui-se assim uma liderança “moral” (Sergiovani, 1992)15 e


servidora, mais que institucional, uma liderança desenvolvida na proximi-
dade e na compreensão, que também é muito evangélica. E muito marista.

3. Champagnat era simpático?


Lembro que em minhas primeiras aproximações a Champagnat,
especialmente em meu Postulantado e Noviciado, a figura de Marcelino
me parecia a de alguém cheio de coragem e valentia, mas também sério e
talvez um pouco distante. Provavelmente era uma imagem pouco aprofun-
dada, mas levei tempo e tive que aproximar-me das cartas, escritos e novas
pesquisas sobre o Fundador… para descobrir seu grande coração de pai e
sua liderança compassiva.

Os próprios biógrafos e diversos testemunhos falam de um ho-


mem entregue, guia e referente, que era “carinhoso, sem deixar de ser reto,
firme e equânime” (Regla de Vida, 84).

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VOZES MARISTAS

Logicamente, não é o objeto deste texto aprofundar nessa faceta, e


seria necessário um estudo mais sério e completo para atrever-se a definir
com rigor o caráter de Champagnat. No entanto, parece-me importante
destacar algo que sim é iluminador em nossa reflexão sobre a liderança: não
sabemos com certeza ou rigor se Champagnat era ou não simpático, nem
talvez isso seja muito importante… mas, há várias referências para afirmar
que pode ter sido sim um líder empático (Torralba, 2019)16.

Há vezes em que, ao propor a alguém ser Animador ou Superior


de Comunidade, Diretor de uma obra educativa, ou talvez inclusive Pro-
vincial, encontramo-nos com pessoas (recebi respostas assim) que honra-
damente manifestam não terem qualidades para esse serviço. E, entre suas
supostas deficiências, alguns se referem à falta de simpatia, a não ser os mais
joviais ou os que mais agradam à primeira vista. E, apesar de que realmente
é estupendo que um líder seja simpático, e isto pode ser de ajuda em sua
missão, muito mais importante e decisivo é que seja empático, isto é: com-
preensivo, dialogante, capaz de colocar-se no lugar do outro e, desde aí, tão
capaz de corrigir quando for preciso (Campbel, 2020)17, como de ajudar
cada pessoa a extrair o melhor de si mesma.

Acontece que, como já apontamos, a empatia é proativa, e tam-


bém se cultiva (Prosser 2007)18. Uma leitura atenta da vida de Champag-
nat parece apontar nesse sentido… Se ainda jovem foi ganhando alguma
autoridade moral com seus companheiros, mais e mais tornou-se um líder
empático colocando-se a serviço de seus irmãos, indo viver com eles, escu-
tando-os e entregando- -se a eles com generosidade.

A escuta constante e atenta é um caminho para desenvolver essa


empatia. Como também o são o compromisso de vida e a coerência (Sá-
nchez, 2021)19. Mais que encontrar líderes muito simpáticos, (melhor se o
forem), ao final todos acabamos preferindo pessoas próximas, equilibradas
e em quem se possa confiar.

Não resisto trazer aqui a excelente cena do diálogo entre o Padre


Champagnat e o Ir. Lourenço, quando caminhava em direção à aldeia de Le

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Bessat, onde desenvolvia sua catequese. É admirável ver como Champag-


nat, presumindo as dificuldades do Irmão, aproxima-se dele, vai interpelan-
do-o, vai escutando com atenção seus sentimentos, vai se colocando em seu
lugar e vai compartilhando não somente o caminhar, mas a própria ilusão
e vida de Lourenço. É, a meu entender, um excelente exemplo de empatia
que leva Champagnat às lágrimas (Furet, 1989, p. 65):

“Uma quinta, como de costume, veio a La Valla para se prover


de alimentos e regressou a Le Bessat em companhia do senhor
Champagnat, que tinha que ir confessar um doente que ficava no
caminho. Havia dois ou três palmos de neve e os caminhos estavam
cobertos de gelo. Em um saco, o Irmão Lourenço levava um pão
grande, queijo e batatas para alimentar-se durante a semana. Mes-
mo sendo forte, como os caminhos estavam intransitáveis, suava
com o peso que levava. O senhor Champagnat, ao vê-lo assim,
disse-lhe:
-Irmão, que ofício tão duro é o seu.
-Perdão, Padre, não é duro, mas agradável.
-Não vejo que prazer pode encontrar em subir estas montanhas a
cada oito dias, pisando em neve e gelo, com esse peso ao ombro e
exposto a cair em um precipício.
-Tenho a certeza de que Deus guia todos os meus passos e recom-
pensará com imensa glória os trabalhos e as fadigas suportados por
seu amor.
-De modo que está contente por catequizar e dar aula nesse po-
voado difícil, carregando seu pão nas costas, como um pobre.
-Tão contente, Padre, que não trocaria meu emprego por nada
neste mundo.
-Percebo que estima muito seu trabalho. Mas acredita que o me-
rece?
-Não, certamente. Estou convencido de que não sou digno de ir
dar a catequese em Le Bessat; é um privilégio que me foi concedi-
do por especial bondade de Deus.

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VOZES MARISTAS

-Que verdadeiro é tudo o que diz, mas não poderá pelo menos
admitir que hoje é um dia péssimo?
-Não, Padre, é um dos mais belos da minha vida.
Seu rosto brilhava enquanto dizia essas palavras, e seus olhos nu-
blaram-se de lágrimas de felicidade. O senhor Champagnat, emo-
cionado e confortado perante tanta virtude, pôde, a duras penas,
conter as suas”.

4. A liderança da proximidade e da compaixão


A empatia de Maria em Caná, que se coloca no lugar dos noivos
com dificuldades, toma para si seus “sentimentos” e age com simplicidade
e sem protagonismo… é um exemplo iluminador. Por isso intitulamos este
artigo “Eles não têm vinho” (Jo 2,3), como um exemplo pequeno, mas
expressivo, de liderança servidora, próxima e compassiva.

É muito interpelante a referência a esta mulher empática, sensível


e conhecedora de suas próprias emoções, mas atenta às emoções dos outros
e às suas necessidades. E capaz de confrontar seu filho, com grande liber-
dade e sem protagonismo. Talvez se deva começar cultivando uma atenção
especial em relação ao próprio ser, conhecendo e acolhendo os próprios
sentimentos e abrindo-se para escutar as vozes interiores e a voz de Deus…
E dali aprender a viver pendente do outro, com um exercício de “descen-
tramento” e de superar a autorreferencialidade, para colocar a pessoa a
quem se serve como “aquilo que é importante”.

No entanto, às vezes não é fácil combinar uma proximidade empá-


tica ao outro com a justiça e com a busca dos objetivos comuns, institucio-
nais ou organizativos. De algum modo, uma coisa é escutar e compreender,
e outra bem diferente é conduzir e animar, com profundo respeito, em uma
linha comum ou em uma busca de objetivos grupais que nem sempre são
compartilhados por todos.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Lembro de vários casos nos quais, em posição de líder, tive que


fazer equilíbrios entre o respeito ao que alguma pessoa sentia ou queria, e
o que a comunidade, a obra apostólica ou a instituição tinham projetado.
E não é um equilíbrio fácil, mas muito necessário, para evitar tanto o cair
em uma ação que possa ser manipuladora e não atende às necessidades da
pessoa, como em uma negligência das próprias funções como orientador
ou guia dentro de uma instituição.

Isso nos abre a uma nova dimensão da liderança, que complementa


muito bem o que vamos refletindo: a liderança da compaixão.

Somente um guia ou acompanhante maduro, conhecedor de seus


próprios limites e fragilidades, será capaz de exercer esta liderança compas-
siva… como somente a humildade do samaritano lhe permitiu abandonar
seus próprios planos (coisa que não fizeram os importantes personagens
anteriores), e “descer” da altura de sua cavalgadura, para aproximar-se com-
padecido ao pobre ferido na beira do caminho.

Nesse sentido, o líder que se faz próximo, e que é “proativamente”


empático… poderá também tornar-se “reativamente” compassivo, quando
descobrir ao seu lado as necessidades e as dificuldades daqueles a quem
serve, colocando “todo seu ser ao serviço dos outros” (Regra de Vida, 68).

Poderíamos considerar, seguindo vários especialistas sobre este


tema, que a empatia e a liderança têm aqui uma nova dimensão profun-
damente humana, mas também espiritual. E falamos, certamente, de uma
dinâmica distanciada do paternalismo ou de uma falsa superioridade, e que
não renuncia à correção e o rigor quando são necessários, nem às adequa-
das decisões quando são necessárias (Groeschel, 2018)20.

No entanto, não se deve esquecer que tanto correções como orien-


tações são acolhidas sempre de um modo mais favorável quando chegam de
alguém que age desde a proximidade e o respeito. E, quando é necessário,
com compaixão. Ainda lembro um Irmão que, em uma situação desse tipo

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VOZES MARISTAS

dizia-me algo assim: “Não entendo o que nos propõem, nem compartilho
essa linha moderna da província… mas se a mim me respeitam… aceito,
caminhemos até lá; embora, sim, eu vá no meu próprio ritmo”.

A liderança da proximidade e compaixão também foi exercida por


Marcelino, especialmente com aqueles que tinham mais dificuldades. Foi
firme quando foi preciso sê-lo e tomou decisões arriscadas e inclusive
impopulares (como quando mudou o “método de leitura” ou optou pelo
uso das “meias de pano”). Mas soube combinar isso com a compreensão,
a escuta ou o colocar-se no lugar do outro, inclusive “encobrindo” seus
defeitos quando era conveniente. O final desta cena mostra isso de forma
eloquente (Furet, 1989, p. 326):

Uma noite, o Irmão foi ver o Padre e lhe manifestou que a todo
custo estava decidido a se retirar, e que nem sequer queria conti-
nuar no dia seguinte, que era domingo. Efetivamente, saiu às cinco
da madrugada. (…) Naquela mesma tarde, às seis, o Irmão regressa
à casa…
- Como, querido amigo? Já está de volta? Que alegria! Quem lhe
sugeriu tão boa ideia?
- Padre − respondeu-lhe chorando o Irmão −, andei todo o dia
procurando trabalho… (…)
- Está bem, meu amigo! − respondeu-lhe o Padre −, ninguém na
casa sabe nem saberá que havia partido. Ponha o hábito, seja cons-
tante, e para isso entregue-se com confiança a Deus.

Ser próximo e compassivo é uma faceta necessária na liderança,


especialmente significativa nos tempos atuais. As dificuldades e rupturas de
nossa sociedade e nosso mundo, que muito bem refletiu o Papa Francisco
em suas encíclicas “Laudato Si” (2015) e “Fratelli Tutti” (2020), nos falam
de pessoas, grupos e sociedades verdadeiramente fragmentadas, e muito
necessitadas de afeto e apoio.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Da mesma forma, as brechas que recentemente provocaram em


nossas instituições as distâncias geracionais, a interculturalidade, a veloci-
dade das mudanças… criam insegurança em muitos Irmãos e leigos que
podem sentir-se afastados, incompreendidos ou deslocados. A esses, espe-
cialmente, os que se sentem à beira do caminho, temos de oferecer-lhes
hoje uma liderança com rosto próximo e compassivo, que muitas vezes terá
que reunir “servir e curar”.

5. Com estilo marista


Finalmente, e mesmo que a referência ao carisma marista e a
Champagnat venham acompanhando toda esta reflexão, pode ser útil per-
filar mais detalhadamente a maneira como alguns de nossos traços iden-
titários e da tradição complementam também essa liderança do serviço, a
empatia e a compaixão, com o que podemos chamar um “estilo marista”.

A inspiração mariana do nosso serviço aos outros transpira atitudes


que já foram aparecendo nestas linhas, com expressões ou nomes diversos.
Contemplando Maria na Visitação, na casa de Nazaré ou em Caná… en-
contramos uma referência sugestiva para nossa forma de cuidar, acompa-
nhar o crescimento ou orientar.

A liderança servidora pode ser, em certa medida, enriquecida por


formas de atuar típicas da tradição marista. Sem serem aspectos exclusivos
ou determinantes, podemos sim encontrar correlações entre um estilo em-
pático de exercer a liderança e um estilo marista, que tanto dá potência ao
relacional, à familiaridade, ao fraterno.

• Se observamos a “simplicidade” marista, entendemos que os líderes


empáticos são aqueles capazes de descer, de colocar-se junto ao outro,
e de ser mais servidores que protagonistas. A simplicidade, aplicada à
liderança, fica muito bem explicitada em nossa tradição e em nossos
documentos. Por exemplo, assim diz nossa Regra de Vida aos animado-
res de comunidade: “Serve a teus irmãos com simplicidade a exemplo

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VOZES MARISTAS

de Cristo, quando assumes o serviço da autoridade. Oferece (a teus


irmãos) teu tempo para escutá-los, animá-los e discernir com cada um”
(Regla de Vida, 91).

• Se paramos para pensar no “espírito de família”, vemos que a já desta-


cada dimensão relacional da liderança pode conectar muito bem com
o sentido de familiaridade do carisma marista. Sabemos que combinar
amabilidade com firmeza, correção com assertividade, cura com busca
do crescimento… é algo que se dá naturalmente no contexto fami-
liar, e que sempre foi caraterística notável das relações nos diversos
âmbitos maristas: comunidades, centros educativos, fraternidades, obras
sociais…

• Se nos referimos, finalmente, ao traço marista da “presença”, desco-


brimos que pode ser entendido como explicitação de um modo de
exercer a liderança que privilegia estar perto, estar presentes. As Cons-
tituições relembram aos líderes comunitários, mas pode ser aplicado
para qualquer líder: “O Animador de Comunidade, com sua presença
atenta e disponível, providencia os meios para que a comunidade viva
unida, cada irmão sinta o apoio dos demais, favoreça um clima de
ajuda e entendimento mútuos, e se viva uma espiritualidade que si-
tue Cristo e a paixão pelo Reino no centro da própria comunidade”
(Constituições, 37).

Com tudo isto, a liderança se enriquece e se completa, e os líderes


se tornam, cada vez mais, pessoas inspiradoras, que ajudam no crescimento
de todos e no empenho comum em alcançar os objetivos coletivos (Subira-
na, 2011)21. E, em definitivo, a liderança toma os traços mais humanos, mais
evangélicos, e mais maristas em nosso caso, para melhor servir aos outros.

Saindo de nosso âmbito particular, quero recordar uma cena bem


conhecida da vida da Madre Teresa de Calcutá. Tornaram-se famosas suas
palavras dirigindo-se a um grupo de diretores em um congresso interna-
cional de gestores sobre a arquitetura da mudança em São Francisco. Disse-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

-lhes: “Querem que haja mudança? Querem que sua gente mude? Vocês as
conhecem? Vocês as amam? Se não conhecerem profundamente sua gente,
não haverá entendimento entre vocês, e sem entendimento não haverá
confiança.Vocês amam sua gente? Há amor no que fazem? Se não houver
amor em vocês, não haverá poder nem fortaleza em sua gente. Se não há
fortaleza, não há paixão. Sem fortaleza nem paixão, ninguém se arriscará. E
sem assumir riscos, nada mudará”.

São palavras cheias de sabedoria, e que explicitam vivamente esses


traços de empatia, proximidade e afeto com os quais temos defendido a
liderança servidora. E é interessante ver os acentos dessa intervenção que,
embora dirigida a gestores e líderes de alto nível, conecta com os elementos
essenciais de todo líder servidor: conhecer as pessoas, oferecer entendi-
mento, gerar confiança, compartilhar paixão e, em definitivo, amar.

Assim nós, maristas, entendemos também a liderança servidora,


feita de relações e espírito de família, de simplicidade e presença, como nos
legou aquele homem que, falando a aqueles que lideram a ação educativa
na humildade de cada aula, repetiu-lhes incessantemente que “para educar
é preciso amar”.

Hoje continua sendo válida essa frase, e podemos completá-la ou


recriá-la dizendo que para acompanhar deve-se ser próximo e compassivo,
que para servir aos outros deve-se simpatizar com eles e que, em definitivo,
por que não, “para liderar é preciso amar”.

PREGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. É importante e necessária a dimensão relacional na liderança? Em que
pode contribuir essa dimensão para a liderança atual?
2. Como você entende a diferença entre um líder simpático e um líder
empático? Como cultivar a empatia?

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VOZES MARISTAS

3. A referência a Champagnat como líder empático: O que te sugere ou


te provoca para iluminar a liderança marista de hoje?
4. Quais seriam as aplicações concretas que você sugeriria… para que
possa dar-se uma “liderança da proximidade”?
5. Que alcance tem para você a “liderança da compaixão”? Qual é o pa-
pel dos sentimentos na tarefa de liderar?
6. Uma liderança proativa, que tipo de relações precisaria estabelecer? E
que estilo de acompanhamento?
7. A liderança de Maria em alguns episódios é silenciosa, de poucas pala-
vras… mas muito eficaz, (como em Caná). O que te sugere essa atitude
para a liderança de hoje?
8. Como viver uma liderança no contexto da Família global… que man-
tenha o espírito de família na proximidade, mas que tenha esse hori-
zonte de globalidade?

REFERÊNCIAS

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Torralba, F. (2017). Liderazgo ético: La emergencia de un nuevo paradigma. PPC
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Turú, E. (2012). Nos dio el nombre de María. Circular 412, XXXII(1). Casa
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Notas
1 Inclusive referindo-se a líderes políticos, o Papa Francisco (2020) diz que uma de
suas missões é cuidar ternamente a fragilidade: “Cuidar a fragilidade quer dizer força e ter-
nura, luta e fecundidade” (Fratelli tutti, n. 188). Mais adiante, acrescenta: “O que é a ternura?
É o amor que se torna próximo e concreto. É um movimento que procede do coração e
chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (Fratelli tutti, n. 194).
2 Um dos maiores especialistas neste âmbito, após muitíssima reflexão e estudos,
ainda se pergunta: “Servo e líder, podem estes dois papéis fundirem-se em uma pessoa real?”
(Greenleaf, 2002, p. 21).
3 Um líder é “alguém que exercita tanto o cuidar como o guiar” (Prosser, 2007, p.
13).
4 “Olhar o mundo da perspectiva de outra pessoa significa que se é capaz de colo-
car-se nos sapatos dessa outra pessoa; de se deixar tocar por ela; de compreendê-la, mesmo
que nem sempre sejam aprovadas as suas ações” (Turú, 2012).
5 Mario Boies reflete sobre a empatia no contexto da pandemia: “A empatia é a
capacidade de identificar-se com alguém e compartilhar seus sentimentos, colocar-se no
lugar do outro em suas circunstâncias pessoais…” (Mario Boies, 2020, 121)
6 É parte da lista de Larry C. Spears em “A Liderança servidora”, p. 36 (Ed. Blan-
chard e Roadwell). Esse autor acrescenta, além disso, que o líder deve ser um “ouvinte
competente e empático”. (Spears, 2018, p. 36)
7 “Enquanto a empatia pode ser paralisante para alguns (por exemplo, impede-lhes
de tomar decisões), o líder-servo não está à mercê da empatia, mas a utiliza para não fazer
juízos precipitados sobre as pessoas. A empatia permite passar dos assuntos superficiais ao
que realmente está acontecendo” (Campbell, 2020).
8 “A aceitação das pessoas requer a tolerância da imperfeição” (Greenleaf, 2002, p. 34).
9 É não somente um primeiro sentido da compaixão hebreia (“rajum”), mas tam-
bém bondade, amor constante, graça (“jesed”), arraigada nas próprias entranhas (“rehamîm”).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

10 Em sua clássica obra “Psicopolítica”, o pensador de origem coreana e professor


na Alemanha, Byun Chul Han (2016) reflete com lucidez sobre nossa sociedade e sobre as
novas técnicas de poder do neoliberalismo para dominar e usar a psiquê. Segundo ele, “esta-
mos submetidos por um poder inteligente sem ser conscientes disso… o poder inteligente
dirige a vontade dos sujeitos a seu favor”.
11 “Os valores estão no interior da pessoa, e somente crescem e se desenvolvem
quando se tem consciência do que há dentro de seu ser, quando se capta esse potencial
escondido nele” (Torralba, 2017, p.137).
12 Muitas definições da liderança “implicam uma dimensão afetiva, além da pro-
priamente cognitiva: falam de experimentar uma emoção congruente em relação ao estado
percebido no outro, embora não tenha que ser a emoção exata do outro, nem, é claro, do
mesmo grau de intensidade” (Altuna, 2017).
13 A Irmã Pat Murray, Secretária da UISG, considera-o uma aplicação de “a igreja
em saída” do papa: “Ver através “dos olhos dos outros” é essencial para obter uma compre-
ensão mais profunda, empatia e compaixão mais profunda do que se pode conseguir ao
permanecer dentro do próprio entorno social” (Murray, 2019).
14 “Assim que via um Irmão jovem, triste e abatido, fazia todo o possível para aju-
dá-lo a combater essa tentação. Muitos Irmãos têm comprovado, por experiência própria,
que bastava um tempo de conversa com ele para que se desvanecessem seus pensamentos de
tristeza e desalento” (Furet, 1989, p. 192).
15 Sergiovani, ainda que centrado na escola, diz que alguns diretores praticam um
modelo de liderança que se baseia na autoridade moral… embora às vezes esta prática não
seja reconhecida como uma liderança. No entanto, para ele “a liderança que conta, ao final,
é o que “toca” ou afeta as pessoas de um modo diferente” (Sergiovani, 1992, p. 120).
16 “A empatia é mais que a amabilidade” (Torralba, 2017, p. 96).
17 Uma linha interessante de liderança é “Esforçar-se para aceitar e compreender
outros, sem rejeitá-los nunca, mas às vezes negando-se a reconhecer que sua atuação é boa
o suficiente” (Campbell, 2020).
18 “Embora a prática da liderança servidora possa ser aprendida, há alguns que têm
as vantagens de terem nascido com muitas das qualidades necessárias” (Prosser, 2007, p. 21).
Também: “Un não-servidor que quer se tornar servidor pode transformar-se em um servi-
dor genuíno mediante uma longa e árdua disciplina de aprender a escutar” (Greenlaf, 2002,
p. 31).
19 O Ir. Ernesto Sánchez, S.G., conta que teve a oportunidade de perguntar ao Papa
Francisco: “O que recomenda a nós, os líderes de nossas Congregações?” a resposta foi: “É
muito ampla a pergunta, e não saberia como abordá-la. Mas me saltava uma palavra enquan-
to você falava: coerência… sim, algo que me vinha: coerência” (Sánchez, 2020, p. 63).
20 “A compaixão não é o sentimento de lástima nem é o falso paternalismo” (Tor-
ralba, 2017, p. 171). A isso podemos acrescentar outra sábia opinião: “O que é a compaixão
para um líder servidor? A compaixão não é só um sentimento, é uma ação. É permitir que
a emoção que sentimos acenda o fogo interior para atuar, e motivar os outros para que
também atuem.” (Groeschel, 2018, p. 125)

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VOZES MARISTAS

21 A professora Miriam Subirana escreve: “Há pessoas que quando se cruzam em


nosso caminho nos inspiram. Sua presença nos abre a olhar a outra forma de ver, seu exem-
plo nos dá esperança de que a mudança positiva é possível e suas palavras nos dão forças
para não jogar a toalha”. E acrescenta: “Um trabalho importante a desenvolver pelos líderes
organizativos é gerar culturas nas quais os membros possam explorar, experimentar, ampliar
suas capacidades, improvisar…” (Subirana, 2011, dic 4).

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CAPÍTULO 5

Liderança e cura
Ir. Peter Carroll
Provincial da Austrália

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VOZES MARISTAS

Transforme-nos, Jesus, e envie-nos como uma família carismática global,


um farol de esperança neste mundo turbulento, para sermos o rosto e as
mãos de sua terna misericórdia. Inspire nossa criatividade para sermos
construtores de pontes, para caminharmos com crianças e jovens margina-
lizados da vida, para respondermos com ousadia às necessidades emergen-
tes. (Irmãos Maristas - XXII Capítulo-Geral, 2017)

Este é o momento
Nos últimos doze meses, assistimos à oscilação da pandemia em
todo o mundo. Evoluiu entre calmarias e picos. Mesmo quando tudo pare-
cia estar sob controle, aparecia novo surto. Inclusive, quando já havia cam-
panhas de vacinação, declarava-se, aqui e ali, um estado de emergência, em
diversas partes do mundo. As estatísticas apontam que o número de mortes,
causadas pelo coronavírus, supera os três milhões.

Esta experiência confirma uma realidade evidente: somos vulnerá-


veis, divididos e prejudicados. Isso ocorre não somente às vezes, mas sem-
pre, porque faz parte da nossa condição humana. Todos nós precisamos de
alimento e cuidados.

Seamus Heaney (poeta e escritor irlandês) é autor de um poema


intitulado “A Cura em Tróia” (Cure at Troy) que ressoa como um hino
de esperança. Esses versos nos lembram que “as pessoas se queixam e se
obstinam”, mas têm à disposição a justiça e o restabelecimento; “acreditam
em recuperação e em poços de cura”; sabem que daqui se pode chegar a uma
margem mais longínqua”. O “grito do nascimento de uma nova vida” está ao
alcance de nosso ouvido. Mas agora é a hora de agir. Pode não haver outra.
Agora é a hora para “a esperança e a história” rimarem. Agora é o momento
para os povos estenderem a mão, abordarem as situações e as relações que
necessitam de nosso contato sanador.

As pessoas sofrem,
Torturam-se umas às outras.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Lamentam-se e tornam-se duros de coração.


Nenhum poema, drama ou canção
Pode corrigir totalmente um erro
Infligido e suportado.

A história diz: “Não esperes


À beira da sepultura”,
Mas, estando em vida,
Sem demora, pode chegar
A almejada maré de justiça:
A esperança e a história rimam.

Então, espera uma grande mudança de mar,


Na margem distante da vingança.
Acredita que, a partir daqui,
Pode-se alcançar outra margem mais distante.
Acredita nos milagres,
Nas recuperações e poços de cura.

Chama de milagre a autocura,


E de auto-revelação total
A dupla invasão de sentimento.
Se há fogo na montanha,
Relâmpagos e tempestade,
E se um deus fala do céu,

Isso significa que alguém está escutando


O clamor e o grito do nascimento
De uma nova vida em seu término.
Significa, uma vez na vida,
Que a justiça pode surgir
E que a esperança e a história rimam.

O que, em teu mundo, mais precisa de cura?

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VOZES MARISTAS

Liderança espiritual
Não sei se nosso mundo é mais turbulento agora do que em ou-
tras épocas da história, mas certamente é turbulento. Há conflitos entre
nações e entre diferentes grupos das nações. Há rivalidades e desencontros
internacionais. Opressão das minorias. Crescente desigualdade econômica.
Mudança climática. Degradação do meio ambiente. Mudanças incessan-
tes. Estas são apenas algumas características do nosso mundo. A renomada
pensadora Margaret Wheatley (2007), especialista em teoria organizacional,
disse que, em tempos turbulentos, a liderança necessária é espiritual.

Ninguém pode criar suficiente estabilidade e equilíbrio para que


as pessoas se sintam seguras. Em vez disso, como líderes, devemos
ajudar as pessoas a se relacionarem com a incerteza e o caos. Os
mestres espirituais têm feito isso,

ao longo dos séculos. Por isso, acredito que as circunstâncias con-


duziram os líderes a um limiar espiritual. Precisamos entrar no do-
mínio das tradições espirituais, se quisermos ter êxito, enquanto
bons líderes, nestes tempos difíceis (p. 126).

Vamos, então, iniciar pela fonte mesma de nossa tradição religiosa.

Jesus como líder


Jesus foi um líder extraordinário. Era uma pessoa perspicaz, falava
com profundo conhecimento e compreensão e agia com integridade. Essa
era a base de sua atração, a razão pela qual as pessoas o seguiam. Mateus nos
diz: “Quando Jesus acabou de dizer essas coisas, a multidão ficou impressionada
com a sua doutrina. Com efeito, ele ensinava como quem tem autoridade e não como
os seus escribas” (Mateus 7, 29). Jesus era visto como um profeta, uma “figura
reveladora” com “acesso mais imediato ao Pai e à realidade vivida” (Brown, et
al., 2000, p. 647) do que seus mestres habituais. Na linguagem de hoje di-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

ríamos que Jesus foi um líder ético. Ele não pregava uma coisa e para logo
fazer algo diferente. Ele tinha um comportamento igual ao que propunha
aos demais. Quando Pedro lhe perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar
a meu irmão, quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu:
“Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete”. (Mt 18, 22). Quando
Jesus recebe os mais graves ultrajes, como responde? “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem” (Lucas 23, 34).

Inclusive – e particularmente – em seus momentos de agonia, Jesus


abraça e põe em prática seus ensinamentos mais desafiadores. Como diría-
mos hoje, Jesus era daqueles que pregam com o exemplo.Também não teve
dúvidas ao mostrar uma justa ira, no momento apropriado. Sua reação no
Templo demonstra isso.

Jesus era um líder próximo a seu povo. Ele não vestia roupas ele-
gantes, isolando-se no Templo ou na Sinagoga. Literalmente, caminhava
com as pessoas simples. Falava de assuntos importantes, com os pés no chão.
Valia-se de situações cotidianas para explicar seus ensinamentos. Comemo-
rava, ria e chorava com o povo. Era pessoa acessível e sua mensagem era
acessível. Parece que a casta sacerdotal não via bem seu sucesso e pergunta-
vam aos seguidores de Jesus: “Por que Ele come com os publicanos e pecadores?”
(Marcos 2,16), enquanto outros o acusavam de ser “um comilão e beberrão”
(Mt 11,19). Mas a resposta de Jesus foi cortante e direta: “A sabedoria foi
justificada por suas obras” (ibid.).

Seu ensino sobre a liderança era específico e claro:

Jesus chamou-os e lhes disse: “Sabeis que os chefes das nações as subjugam
como senhores absolutos, e os grandes as oprimem com seu poder. Não seja
assim entre vós. Todo aquele que quiser tornar-se grande entre vós, faça-se
vosso servo. E quem quiser tornar-se o primeiro, entre vós, seja vosso escravo;
da mesma maneira como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas
para servir e dar sua vida em resgate por muitos (Mt 20,25-28).

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VOZES MARISTAS

O capítulo 13 do Evangelho de João expressa a mesma doutrina


de forma muito sugestiva. O “lava-pés” deixa muito claro que a liderança
cristã é uma liderança de serviço.

Qual é a característica do Jesus humano que mais o atrai?

Jesus como aquele que cura


Na missão de Jesus revela-se um profundo reconhecimento da ne-
cessidade de alimento e de cuidado que a humanidade apresenta. Isso é o
que ele ofereceu às pessoas de seu tempo e continua a oferecer ao mundo
hoje. Por isso seus discípulos deixaram sua família e seu trabalho para se-
gui-lo. O que Jesus propunha era muito valioso e atraente.

João Batista preso enviou alguns de seus discípulos a Jesus para per-
guntar-lhe se realmente era o Messias. Jesus resumiu seu próprio ministério
em sua resposta a João: “Ide e contai a João o que ouvis e vedes: os cegos veem,
os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a
Boa-nova é anunciada aos pobres’’ (Mt 11, 4-5).

Entre seus contemporâneos, Jesus era conhecido como exorcista e


curador. Todas as fontes cristãs atestam isso. Os quatro Evangelhos contêm
narrativas acerca das curas de Jesus. Se examinarmos alguns desses textos,
podemos conhecer seu estilo único de cura.

Em primeiro lugar, está o encontro, muitas vezes acompanhado de


um pedido. “

”Nisso um leproso se aproximou e prostrou-se diante dele, dizendo: “Sen-


hor, se queres, podes curar-me” (Mt 8, 2). Jesus nunca recusa um pedido. Ele age
com compreensão e compaixão. Era esse amor compassivo que inspirava
Jesus e o que os aflitos encontravam em seus encontros com ele. De uma
forma muito real e explícita a cura era a maneira como Jesus amava. E sua
cura era totalmente gratuita: ele nunca pediu nada em troca, nem mesmo

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

que o beneficiado o seguisse. Na maioria das vezes, a ordem de Jesus, para


um curado, era de ir para casa e de não contar a ninguém.

Em segundo lugar estão as palavras de cura; frequentemente, eram


ordens. Sempre com palavras simples. Ele não utilizava exóticas expressões
mágicas, usadas por muitos outros curandeiros da época. Suas palavras iam
diretamente ao problema: “Sê curado”. Ao paralítico diz: “Levanta-te, toma a
tua maca e vai para tua casa” (Mt 9, 6). Com os exorcismos sucedia o mesmo:
“Espírito surdo e mudo, eu te ordeno: deixa-o e nunca mais tornes a entrar nele”
(Mc 9, 26). As palavras de Jesus davam esperança e orientação. Animavam as
pessoas e removiam barreiras.

Em terceiro lugar estava o gesto – geralmente, um contato físico.


“Jesus, porém, tomando-o pela mão, ergueu-o e ele se levantou” (Marcos 9, 27).
“Tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia e, pondo-lhe saliva nos olhos,
impôs-lhe as mãos e perguntou: “Vês alguma coisa?” (Mc 8, 23). Esta era a chave:

As mãos de Jesus traziam bênçãos para pessoas que se consideravam amal-


diçoadas; tocavam os leprosos que ninguém tocava; transmitiam poder a pes-
soas que se anulavam na impotência; inspiravam confiança àqueles que se
sentiam abandonados por Deu e, acariciavam pessoas excluídas do contato
humano. Foi seu modo de curar. (Pagola, 2002, p. 167)

Embora esses fossem três aspectos físicos das curas de Jesus, havia
outros fatores em ação. Ele não estava preocupado apenas com o mal es-
pecífico que os afligia, mas também, numa perspectiva mais ampla, pelas
condições em que viviam. A maioria das narrativas de cura aborda questões
que transcendem o físico e nos apontam que a intenção de Jesus era de
restaurar a pessoa em sua totalidade. Isso se observa pelo fato de a maioria
das narrativas de cura tratarem dos marginalizados da sociedade daquela
época. Jesus curou possessos do demônio, mendigos, leprosos, mulheres que
sofriam de doenças incuráveis e aqueles que eram objeto de discriminação
racial da parte dos judeus. Outras narrativas de cura tratam da compreensão
da fé, da mensagem do perdão e do significado do sábado. O ministério de

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VOZES MARISTAS

cura de Jesus evidencia seu compromisso em restaurar a plenitude da pessoa


face a Deus, não se concentrando apenas em uma dimensão da cura.

Jesus oferecia algo mais do que uma melhoria física. Sua ação curativa ia
além da eliminação de um problema orgânico. Curar o organismo fazia par-
te de uma recuperação mais integral da pessoa. Ele restaurava os enfermos a
partir da base: construindo sua confiança em Deus, tirando-os do abandono
e do desespero, libertando-os do pecado, devolvendo-os ao seio do povo de
Deus e oferecendo-lhes uma vida mais plena e saudável. (Pagola, p. 167).

As curas de Jesus não eram atos isolados. Elas faziam parte de sua
mensagem geral – a proclamação do Reino de Deus. Deus está aqui, neste
momento! A misericórdia de Deus está disponível, agora mesmo! Isso era
uma novidade e as curas de Jesus davam testemunho disso.

Os relatos de cura indicam que havia uma condição primordial para


que a cura de Jesus fosse eficaz: uma relação de confiança. Sem confiança
a cura de Jesus era frustrada. Isso está evidente no Evangelho de Marcos,
onde nos dizem que Jesus pôde fazer bem poucos “atos de poder”, em sua
aldeia natal, Nazaré, por causa da falta de fé que ali encontrou (Mc 6, 2-6).
No entanto, quando confiaram e foram curados, Jesus, abertamente, atri-
buiu isso à sua fé: “Vai, a tua fé te salvou” (Mc 10, 52).

Em sentido mais amplo, Jesus curou despertando a fé. Trouxe o


amor e a bênção de

Deus, o perdão e a misericórdia para a vida dos aflitos. Abriu-lhes


a possibilidade de viverem com um coração novo, reconciliado e em paz
com Deus.

A cura por Jesus incluía que os enfermos retornavam a suas comu-


nidades, donde tinham sido afastados, eliminando as barreiras que os man-
tinham isolados da sociedade. A cura deles se tornava completa, quando
eram reintegrados na comunidade. Essa dimensão social da cura de Jesus
foi muito significativa.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Qual é tua história evangélica favorita com Jesus curador? Por quê?

Uma vida indivisa


Jesus deixou claro que seus discípulos também deveriam curar:
“Reunindo os doze apóstolos, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios,
bem como para curar doenças. Depois, enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a
curar” (Lucas 9,1-2). Mais tarde, ordenou aos 72 discípulos de curarem os
enfermos que encontrassem nas aldeias e lhes dissessem: “O Reino de Deus
está próximo” (Lc 10, 9).

Da mesma forma, seguidores de Jesus hoje, devemos preocupar-nos


com a cura. Somos chamados a ser agentes de cura e a facilitar a cura sem-
pre que pudermos. Em nosso contexto, a cura física não é, necessariamente,
nosso objetivo principal, mas pode ser parte dele.

Jesus podia curar porque ele mesmo estava são. Portanto há um tra-
balho significativo a ser realizado pelo cristão para assegurar-se de que vai
dando passos rumo à integridade. Costumamos dizer, familiarmente, “nin-
guém dá o que não tem”. É preciso começar a partir de nossa ruptura e fra-
gilidade, tomando a sério o caminho que nos conduz a uma vida indivisa.

Thomas Merton (escritor e monge trapista) insistia na ideia de


que somos cocriadores de nossa identidade com Deus. “Nossa vocação não
é simplesmente ser mas, outrossim, trabalhar com Deus na criação de nossa própria
vida, nossa própria identidade e nosso próprio destino” (Merton, T., 1961). Ele
também escreveu extensamente sobre nosso eu verdadeiro e nosso falso eu:

Cada um de nós está ensombrado por uma pessoa ilusória: um falso


eu. Este é o homem que eu quero ser mas, não pode existir porque
Deus nada sabe sobre ele. … Meu eu falso e privado é aquele que
deseja existir fora do alcance da vontade de Deus e do amor de
Deus, fora da realidade e fora da vida. Vida assim não pode deixar
de ser uma ilusão. …O segredo da minha identidade está oculto

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VOZES MARISTAS

no amor e na misericórdia de Deus. …Portanto, não posso esperar


encontrar a mim mesmo em lugar nenhum a não ser nele. ... Por
isso mesmo, há apenas um problema do qual depende toda a minha
existência, minha paz e minha felicidade: descobrir-me ao desco-
brir a Deus. Se encontro a Ele, encontrar-me-ei a mim mesmo; e,
se encontro meu verdadeiro eu, encontrarei a Ele (p. 34-36).

Para conhecer essa verdade, escreveu Merton, devemos “rezar pelo


descobrimento de nós mesmos”. São Boaventura opinava que a falta de auto-
conhecimento leva a um conhecimento distorcido em outras áreas. Por-
tanto, a busca da plenitude começa com o autoconhecimento. Do mesmo
modo, Parker J. Palmer (autor, educador e ativista americano) (1998) es-
creve que um líder “deve assumir uma responsabilidade especial pelo que ocorre
dentro de seu próprio eu, dentro de sua consciência, para que o ato de liderança não
crie mais dano do que bem” (p. 187-208).

Já foi dito que “nós curamos de dentro para fora”; mas, pode ser um
processo lento. Trata-se de uma viagem profundamente espiritual que deve
ser empreendida com honestidade e confiança em Deus. A solidão, o silên-
cio, a oração e a reflexão são essenciais. Jesus nos guia no caminho. Às vezes,
talvez, teremos que voltar a esses momentos de nossa vida que ainda são
fonte de angústia ou dor. Pode ser que necessitemos embarcar num pro-
cesso de cura de lembranças concretas ou devamos abordar questões que
surgiram e continuam surgindo em torno de acontecimentos passados. É
quando teremos que contar com um guia externo que sirva como super-
visor ou companheiro espiritual (diretor).

Que atenção dás a tua ruptura pessoal?

Curadores ou sanadores feridos


A cura é definida como restauração da integridade, do bem-estar
e da segurança. Visto que somos humanos imperfeitos e nossas relações e
comunidades são compostas de seres humanos imperfeitos e frágeis, a cura

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

é um processo constantemente necessário. Os líderes têm um papel especial


a desempenhar para facilitar a cura. Robert K. Greenleaf (fundador do mo-
derno movimento de liderança de servidores) (2002) escreveu muito sobre
a liderança do servidor e observou que tais líderes são “curadores no sentido
de fazer com que os outros alcancem uma visão e objetivos maiores e mais nobres do
que aqueles que, provavelmente, atingiriam por si mesmos” (p. 240). Na mesma
tradição, Shann Ray Ferch (2011) enfatiza que “um fato notório dos líderes
servidores é que eles curam os outros e fazem-no por meio de um relacionamento
maduro consigo mesmos, com os outros e com Deus” (p. 72).

Assim, pois, a cura é o compromisso e a capacidade de recuperar


a si mesmo e os outros, incluindo as organizações e os relacionamentos.
Utilizando o termo que o tornou famoso, Henri Jozef Machiel Nouwen
(1979 - teólogo, padre e escritor holandês) escreveu que os líderes cristãos
são curadores feridos, “que não devem ocupar-se apenas com as próprias feridas
mas, ao mesmo tempo, devem estar preparados para curar as feridas dos outros” (p.
88).

A “Regra de Vida dos Irmãos Maristas” – Aonde quer que você vá –


(Irmãos Maristas, 2020, n. 46) exprime com beleza a necessidade de cuidar
das próprias feridas.

Com as tuas boas disposições


de amar e construir a fraternidade,
dar-te-ás conta de que há fraturas em teu interior
que te levam ao individualismo e à rivalidade.

Cura tuas feridas, aceita teus limites e purifica teus desejos.


Supera o egoísmo e a susceptibilidade;
trata de eliminar todo ressentimento do teu coração (Mt 5,23-24).
Jesus observa tua fragilidade e te repete sem cessar: “Minha graça
te basta.
Minha força se manifesta em tua debilidade” (2 Cor 12,9).

Que qualidades o curador ferido traz à liderança?

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VOZES MARISTAS

Ele facilita a cura


Se voltarmos ao modo de curar, próprio de Jesus, podemos identi-
ficar algumas disposições que são úteis para facilitar a cura.

A primeira é o amor. É fundamental. Jesus curava porque amava.


Do mesmo modo, para facilitar a cura, para ser um agente de saúde, é pre-
ciso querer o melhor para o outro. Às vezes, isso exigir-nos-á olhar além do
comportamento externo e deixar de lado nossos preconceitos. O que deve
mover-nos é o respeito por cada pessoa, independentemente de seu modo
de ser ou sejam quais forem suas atitudes ou ações.

A segunda disposição é a confiança. As relações baseadas na mútua


confiança ornam o contexto, em que a cura é possível. Cultivar a confiança
exige tempo e esforço. Enquanto seres humanos temos predisposição à
confiança, mas há sinais de que isso está corroendo nosso mundo contem-
porâneo.

Nestes tempos de ‘notícias falsas’ e ‘fatos alternativos’ estamos nos


afastando dessa atitude predeterminada de confiança e tornamo-
-nos, intrinsecamente mais desconfiados. Por isso, os líderes pre-
cisam trabalhar mais para merecer a confiança. (Dolan, G., 2019).

A honestidade, a franqueza, o respeito e a tolerância contribuem


para sustentar as relações de confiança. Logo teremos o encontro; encontro
de pessoas de forma confiada e respeitosa. Em Fratelli Tutti, o Papa Francis-
co (2020) propõe o encontro como remédio para muitos males de nosso
mundo. Ele escreve:

A vida é a arte do encontro, ainda que haja tanto desencontro pela


vida. Repetidas vezes, convidei a desenvolver uma cultura do en-
contro, que vá além das dialéticas que enfrentam. Falar de “cultura
do encontro” significa que nós, como povo, devemos ter paixão
pelo encontro, pela procura de pontos de contato, pela construção

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de pontes, planejando algo que inclua a todos. Isso converteu-se


em desejo e em estilo de vida. (nº 215-216)

Esses encontros são um meio de cura em si mesmos. A abertura ao diálogo


e a capacidade de escuta são requisitos prévios para que o encontro seja
significativo. O Papa continua:

Em muitas partes do mundo são necessários caminhos de paz para


cicatrizar as feridas. São necessários artesões de paz, dispostos a criar
processos de cura e de reencontro com criatividade e audácia (nº 225).

Quais são as palavras de cura que precisam ser ouvidas, hoje? Sa-
bemos que as palavras são poderosas; com elas pode-se construir ou mi-
nar; pode-se animar ou dissuadir, afirmar ou magoar. Precisamos selecionar
nossas palavras com cuidado; não podemos permitir-nos ser insensíveis. Faz
alguns anos, o Papa Francisco (2014, 22 de dezembro) alertou-nos contra
a enfermidade da fofoca, das murmurações e queixas. Ele disse o seguinte:

Já falei muitas vezes sobre essa doença, mas nunca será suficiente.
É uma enfermidade grave que começa simplesmente, na conversa,
mas se apodera depressa da pessoa, até convertê-la em “semeado-
ra de joio” e, muitas vezes, em homicida, a ‘sangue frio’, do bom
nome de seus colegas e irmãos. É a doença dos covardes que, não
tendo coragem para dizê-lo diretamente, falam pelas costas... Pre-
servemo-nos do terrorismo da fofoca!

A literatura contemporânea, que trata da liderança em empreen-


dimentos, nos fala da necessidade de ‘conversas desafiadoras’, em que surgem
questões importantes e potencialmente delicadas, e se pede aos funcio-
nários de identificarem as áreas que precisam ser aprimoradas. Essa sin-
ceridade é necessária, todavia essas conversas não precisam ser agressivas.
Elas podem ser conduzidas de maneira que as necessidades do grupo e o
bem-estar do indivíduo sejam a prioridade. As palavras que encorajam e
suscitam a disposição dos demais são as que têm o poder de curar.

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VOZES MARISTAS

Finalmente, temos os gestos de cura. Podemos falar tudo o que for


preciso, mas enquanto não seguirmos os passos de Jesus e não pusermos
nossas ações a par de nossas esperanças e palavras, não seremos facilitadores
da cura. A ciência da saúde tem algo a nos ensinar sobre isso. Um bre-
ve artigo de Advocate Health Care (Organização sem fins lucrativos e com
base na fé) (2017) intitulado When Trauma Happens, Love Heals (Quando o
Trauma Acontece, o Amor Cura) nos lembra o poder das relações humanas
calorosas:

As pesquisas mostram que atos simples de bondade e de carinho


podem curar nossos cérebros, corpos e espíritos e até mesmo pro-
teger-nos do estresse. A bondade amorosa, as relações de confiança,
o sentido do significado e o propósito, o ritmo e os rituais real-
mente ajudam a conectar nossos cérebros e a facilitar a liberação de
hormônios tóxicos que podem originar enfermidades crônicas...
Promover a cura e proteger nossos filhos dos efeitos da violência,
do abuso, da negligência e de outros traumas pode ser uma questão
bastante simples.

A escuta respeitosa, a colaboração genuína, as ações reconfortantes,


a celebração apropriada e a simples afirmação são alguns dos gestos que
podem ajudar a restaurar a confiança e a melhorar as relações.

Podes identificar um relacionamento que necessita de cura?


Como poderias facilitar a tua cura?

O dom do perdão
Ser um líder cristão é promover a cura e trabalhar pela paz; o per-
dão é um elemento essencial nesse processo. Existem histórias maravilhosas
de perdão que acentuam a cura que ele traz. Quando Martin Luther King
Jr foi esfaqueado por uma mulher desequilibrada, ele disse àqueles que
a seguravam: “Não façam nada contra ela; não a persigam; apenas, curem-na”.
Ele reconhecia que essa violência é uma manifestação de doença e que a

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melhor resposta seria ajudar a mulher a recuperar seu senso de dignidade.


Após o colapso do regime do Apartheid (regime de segregação racial) na
África do Sul, o governo democrático de Nelson Mandela (advogado, lí-
der rebelde e presidente da África do Sul) criou a Comissão da Verdade e
da Reconciliação. O objetivo da Comissão era testemunhar, inventariar e,
em alguns casos, anistiar os autores de crimes relacionados à violação dos
direitos humanos, oferecendo ao mesmo tempo reparação e reabilitação às
vítimas. O arcebispo Desmond Tutu (arcebispo da Igreja Anglicana), que
sofrera em sua carne os anos do Apartheid, foi com Nelson Mandela um
firme defensor dessa opção. Ele dizia que o país precisava passar da justiça
retributiva à justiça reparadora, dando passos ao encontro do perdão, porque
sem este não haveria futuro. Ele argumentou que o perdão era necessário
não somente para o bem dos perpetradores, mas também para o próprio
interesse daqueles que sofreram danos. “Somos a humanidade em um. Sempre
que desumanizamos os outros, desumanizamos a nós mesmos”’ (Tutu, 1999).

Em Fratelli Tutti, o Papa Francisco (2020) fala sobre a importância


e o desafio do perdão. De todo modo, lembra-nos ele que perdoar não é
esquecer:

Os que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a ser possuídos


por essa mesma força destrutiva que os prejudicou. Rompem o círculo vi-
cioso; detêm o avanço das forças de destruição. Decidem por não continuar
a inocular, na sociedade, a energia da vingança que, cedo ou tarde, termina
recaindo sobre eles mesmos. A vingança nunca sacia, verdadeiramente, a
insatisfação das vítimas. (nº 251)

Se queremos servir de verdade e curar os outros, precisamos apren-


der a perdoar e a pedir perdão aos outros.

Nos últimos meses de sua vida, antes de sucumbir ante o câncer de


pâncreas, o Cardeal Joseph Bernardin (prelado norte-americano da Igre-
ja Católica Romana) escreveu algumas reflexões sobre seus últimos anos
vividos que incluíram alguns eventos pessoais traumáticos. Essas reflexões

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VOZES MARISTAS

foram publicadas postumamente como The Gift of Peace (O Dom da Paz).


São memórias pessoais em que o Cardeal dá testemunho do poder curativo
da paz e do perdão. Ele via nessas experiências um poderoso dom do amor
de Deus.

No livro Bernardin descreve sua reconciliação com Steven Cook,


o homem que o acusara falsamente de abusos sexuais. Steven estava mo-
rrendo de AIDS e Bernardin foi visitá-lo. Naquele encontro, o doente lhe
pediu desculpas de uma maneira que o cardeal descreveu como simples,
direta e muito comovedora. Por sua vez, Bernardin ofereceu a Steven um
presente, uma Bíblia na qual havia escrito uma dedicatória com palavras
afetuosas de perdão. Em seguida mostrou-lhe um cálice de cem anos, pre-
sente de um homem que ele nem conhecia, mas que enviara o cálice,
pedindo-lhe que, em algum dia, celebrasse a missa por Steven Cook. Este
seria o dia.

A palavra e o sacramento abriram os olhos de ambos para o signi-


ficado mais profundo dos dons da paz e do perdão. Bernardin des-
creveu aquele encontro como a experiência de reconciliação mais
profunda e inesquecível de toda sua vida sacerdotal. (Holyhead,
2008, p. 69)

Muitas outras testemunhas nos mostram que o perdão é possível;


difícil, confuso, mas possível.

Não somente precisamos perdoar mas também precisamos pedir


perdão. Muitas vezes, essa é a tarefa mais difícil, mas pode transformar-se
numa intensa experiência interior. Como líderes nenhum de nós tem um
registro perfeito de ações e decisões. Cometemos erros. Não consultamos
como deveríamos. Talvez, somos parciais e pouco equilibrados em nossas
considerações. Nosso ego pode, facilmente, embaraçar as coisas. Se quiser-
mos ser agentes de cura devemos buscar o perdão daqueles a quem trata-
mos injustamente ou com pouca delicadeza. Um líder que pede perdão
pode causar uma impressão significativa e gratificante.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Recorda uma ocasião na qual perdoaste alguém. E lembra outra


oportunidade em que pediste perdão. Como se diferenciam essas duas expe-
riências?

Uma história com lição de vida


Muitos de nós testemunhamos as trágicas consequências do abuso
sexual infantil. Muitos de nós fomos envolvidos em casos ocorridos na
Igreja e em nosso Instituto, nas últimas décadas. Muitos de nós se viram
envolvidos em acontecimentos ocorridos na Igreja e em nosso próprio
Instituto, nas últimas décadas. Muitos se encontraram com vítimas sobrevi-
ventes para escutar o relato de abusos sofridos e os efeitos devastadores que
ocorreram em suas vidas, em seus relacionamentos e entes queridos. Uma
dificuldade específica é equilibrar nosso desejo de sermos compassivos para
com o sobrevivente e a necessidade de oferecer apoio a um de nossos
Irmãos que cometeu o abuso ou é acusado de tê-lo cometido. Frequente-
mente, enfrentaremos críticas de uma das partes, ou mesmo de ambas. O
que é mais difícil é que a verdade, com o material comprovante utilizado
para estabelecer os fatos, é muitas vezes difícil de discernir. Não há resposta
simples nem manual de instruções. Aprendemos somente percorrendo o
caminho, refletindo sobre a experiência, buscando conselho e orando para
que alguém nos guie. Finalmente, é o líder que deve tomar as decisões.

A Igreja e nosso Instituto aprenderam, dolorosamente, que preci-


samos quebrar o silêncio que envolveu esses eventos. Temos que ouvir as
vítimas sobreviventes. Precisamos escutar as vítimas sobreviventes; acolher
seu sofrimento e, muitas vezes, sua ira. Também precisamos superar as ten-
dências do passado que procuravam minimizar esses abusos ou, pior ainda,
negar que tivessem ocorrido. Se nos comprometermos a olhar os proble-
mas através dos olhos dos sobreviventes, veremos as coisas de forma muito
diferente. Romper o silêncio e a negação é essencial para a cura. No entan-
to, não podemos obter a cura por mandato. Podemos esperar que ocorra
e orar para que assim seja. Podemos promover ambientes que conduzam

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VOZES MARISTAS

à cura. No entanto, não podemos ditá-la, nem exigir o perdão do outro.


Por mais que desejemos que as vítimas de abuso experimentem a cura, isso
escapa do nosso controle. As pessoas sadias têm seu tempo e sua maneira. O
Papa Francisco o comenta de forma muito realista:

A quem sofreu muito e de modo injusto e cruel, não se pode


exigir uma espécie de “perdão social”. A reconciliação é um fato
pessoal e ninguém pode impô-la ao conjunto de uma sociedade,
mesmo quando deva promovê-la. No âmbito estritamente pessoal,
com uma decisão livre e generosa, alguém pode renunciar a exigir
um castigo (cf. Mt 5,44-46), mesmo se a sociedade e sua justiça
o busquem, legitimamente. Também não é possível decretar uma
“reconciliação geral” pretendendo sanar as feridas por decreto ou
cobrir as injustiças com o manto do esquecimento. Quem pode
reivindicar o direito de perdoar em nome de outras pessoas? É
comovente ver a capacidade de perdoar de algumas pessoas que
souberam ir além do dano sofrido; no entanto, também é humano
compreender aqueles que não podem fazê-lo. Em todo caso, o que
nunca se deve propor é o esquecimento. (FT 246)

Precisamos trabalhar pela reconciliação; devemos promover co-


munidades de aceitação e de recuperação. No entanto, pode suceder que
nossos esforços não produzam os resultados positivos que desejamos; ou, ao
menos, não no prazo que desejaríamos. Só podemos trabalhar para restaurar
a liderança de serviço de Jesus e utilizar o poder para os outros não sobre
eles.

O que aprendeste falando com alguma pessoa sobrevivente ao abuso?


Que sentimentos te provocou esse encontro?

A primazia da humildade
Se quisermos ser Líderes de Cura, precisamos ter a disposição que
parece faltar em nosso mundo contemporâneo barulhento, acelerado e

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

orientado pelo poder da imagem: a humildade. A raiz latina da palavra su-


gere força e fertilidade, pois é derivada de humus - terra.

Ser humilde é aceitar que não temos todas as respostas e nem sem-
pre temos a razão no que pensamos, fazemos e decidimos. Sabemos que
existe espaço para o fracasso e que existe espaço para aprender. No Livro da
Alegria, Dalai Lama (líder espiritual do Tibete) diz:

… Quando chega a floração primaveril, onde ela começa? Nas


montanhas ou nos vales? O crescimento começa primeiro nos lu-
gares baixos. Da mesma forma, se permanecemos humildes, existe
a possibilidade de continuarmos a aprendizagem. Por isso, costumo
dizer que, mesmo tendo oitenta anos, ainda me considero um es-
tudante. (Dalai Lama, 2016)

A humildade ocupa um lugar privilegiado em nossa tradição cristã.


Ninguém foi mais humilde do que Jesus, que aceitou a morte na cruz ao
lado de dois criminosos. Ensinava-se aos primeiros monges da história cris-
tã a abraçar a humildade como uma forma de superar a natural tendência
humana que conduz a atitudes egocêntricas. Também foi lhes ensinado
que se trata de um meio poderoso de harmonização com a criação. Santo
Agostinho de Hipona (importante teólogo e filósofo dos primeiros séculos
do cristianismo) escreveu a respeito:

“Desejas ser grande? Então começa a ser pequeno. Desejas cons-


truir um edifício grande e alto? Pensa primeiro no fundamento da
humildade. E quanto maior volume queiras dar ao edifício, quanto
mais elevada sua estrutura, tanto mais profundos devem ser os seus
alicerces.” (Agostinho, Sermão, 69)

O humor é um útil aliado para a humildade. O Papa Francisco


alertou sobre o perigo de andar pela vida como uns “aflitos”. Até o título
de sua Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium, é um lembrete de que,
como povo da Ressurreição, devemos ser alegres. Precisamos, antes de mais

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VOZES MARISTAS

nada, transpirar o calor da salvação. Os locais de trabalho, as famílias e as


comunidades se beneficiam com a alegria e o bom humor.

São Marcelino conhecia o valor da humildade. É uma das três


virtudes características que desejava ver em seus Irmãos: modéstia, simplici-
dade e humildade. Ele mesmo foi uma testemunha viva de humildade. Ele
não se distinguia daqueles que vinham tomar parte em sua missão. Embora,
como sacerdote, pudesse exigir um tratamento diferente, queria estar com
seus Irmãos. Viajava com eles, trabalhava com eles, partilhava as refeições
com eles. Esta era uma oportunidade que tinha para exercer sua influência.
Assim formava e preparava seus Irmãos.

O documento “Água da Rocha” (Water from the Rock) explicita o lugar


primordial que a humildade ocupa na espiritualidade marista da simplici-
dade:

“Com humildade procuramos conhecer-nos, em nossos pontos


fortes e fracos, e aceitar prontamente a ajuda de que necessitamos.
Sentimo-nos em paz conosco mesmos, tal como Deus nos criou.
Chegando aos outros, com transparência e gratidão, aceitamo-los
como são e nos sentimos dispostos a conhecer a imagem que eles
têm de nós. Oferecemos de boa vontade o perdão e damos o pri-
meiro passo em favor da reconciliação”. (Irmãos Maristas, AR,
2007, nº 36- 37)

A liderança baseada na humildade é aberta e acolhedora. Com-


promete-se a trabalhar pelo que é melhor para os outros. Ela prioriza as
necessidades daqueles que lideramos.

Identifica uma pessoa que, em tua experiência de vida, consideras


autenticamente humilde. Que qualidades evidenciam e apoiam a
humildade dela?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Este é o momento
Ainda há muito a ser escrito sobre a questão da cura e o papel
de um líder, na missão de facilitá-la. No mundo turbulento de hoje é
vital, para aqueles que assumem alguma função de liderança, serem eles
capazes de responder às necessidades reais e aos gritos interiores dos que
são orientados e guiados. Certamente isso acontecerá diariamente, se am-
pliarmos nossa visão de liderança, incluindo nela também a exercida pelos
pais e professores. Também se adotarmos uma interpretação mais estreita
para aplicá-la àqueles que administram e dirigem empresas, oficinas ou
ministérios da Igreja, essa liderança será visível. Não é fácil, mas é preciso
fazê-lo. Consegui-lo-emos se nos comprometermos firmemente com isso
e renovarmos o compromisso com regularidade. Vamos consegui-lo ainda
se nos envolvermos com os outros, de modo sério e não de forma superfi-
cial, atentos a suas situações e reconhecendo suas feridas e incertezas. Agora
é o momento de nos empenharmos nessa liderança e se o fizermos...

Isto significa que alguém está ouvindo


O clamor e o choro do nascimento
De uma nova vida em seu termo.
Significa, ao menos uma vez na vida,
Que a justiça pode surgir
E que a esperança e a história rimam.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Qual é tua reação à leitura do poema de Seamus Heaney - Cure at Troy
(A Cura em Troia)? Que palavras ou frases te falam mais claramente?
2. Quem foram teus anjos de cura, aqueles que te tocaram e ajudaram a
melhorar?

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VOZES MARISTAS

3. As palavras podem ferir ou curar. Que palavras tua comunidade neces-


sita ouvir para curar?
4. Enquanto irmãos, como podemos facilitar a caminhada dos outros
rumo à plenitude?
5. Os líderes cristãos têm um papel especial a desempenhar, na promoção
da cura e da integridade. Consegues identificar alguns líderes que são
bons exemplos disso? O que fizeram para facilitar a cura?
6. Enquanto líder, como podes facilitar a saúde em tua comunidade ou
lugar de trabalho? Que habilidades específicas necessitas, particular-
mente?
7. A pandemia da COVID – 19 revelou vulnerabilidades e fragilidades.
Quais são as mais evidentes para ti? Como podes cooperar na supera-
ção?
8. Os jovens continuam a sofrer de maneiras diferentes em nosso mundo,
desde abusos físicos e sexuais até depressões e doenças mentais. Que
medidas concretas estás tomando para ajudar uma área ou idade pre-
judicada?
9. Podes indicar como e quando Champagnat foi agente de cura ou de
saúde?
10. Como Jesus te ajudará a ser um líder de cura ou de recuperação?


REFERÊNCIAS

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 6

A Consciência
Ir. Ken McDonald
Conselheiro-Geral

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VOZES MARISTAS

Querer ver com clareza é um verdadeiro ato de coragem. Abrir


nossos corações e mentes e estar abertos para o que a vida nos
oferece, neste momento, requer excepcional coragem e firmeza.
(Wheatley, 2010, p. 121).

A consciência é uma das características da liderança de serviço.


Como Robert K. Greenleaf observou em seu livro Servant-Leadership:
A journey in the nature of legitimate power and greatness (A Liderança do
Servidor: Uma jornada na natureza do poder e da grandeza legítimos): “O co-
nhecimento não traz consolo; muito ao contrário, serve para perturbar e
despertar. Líderes hábeis costumam estar formalmente acordados e razoa-
velmente perturbados. Eles não estão em busca de consolo; mas têm sua
própria serenidade interior” (Greenleaf, 1998, p. 6). A liderança em todos
os níveis – seja dentro da comunidade local, no âmbito ministerial ou pro-
vincial –, pode trazer certos riscos. É preciso conhecer a complexidade da
situação em que a liderança é exercida. Desenvolver essa consciência pode
constituir um desafio pessoal, mas com resultados surpreendentes.

Frequentemente, aqueles que exercem a liderança enfrentam si-


tuações complexas. Ao lidar com essas situações, a tentação é de continuar
a confiar em premissas anteriores, perspectivas desatualizadas e formas de
atuar rotineiras, sem prestar atenção ao que acontece ao redor. Os líderes
com vocação de serviço, por outro lado, assumem sua liderança com âni-
mo indagador: preocupam-se com a organização que administram, desejam
compreender o contexto em que exercem sua função de liderança; são
curiosos, dispostos a escutar os outros e a aprender; não julgam, estão aber-
tos a novas soluções e são pacientes.

Em seu livro Let us dream, A path to a better future, (Sonhemos


juntos. Um caminho para um futuro melhor), o Papa Francisco se pergunta:
“Qual é o resultado de olhar constantemente para um lado, dizendo-nos
que, por não haver uma solução imediata ou mágica, é melhor nada sentir
ou fazer?” (Ivereigh, 2020, p.18). Olhar constantemente para o outro lado
é o oposto a tentar conhecer. Chegar a conhecer o funcionamento interno

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de uma organização – as normas orais, os comportamentos não discutidos


e as relações de poder não reconhecidas –, leva seu tempo.

São elementos que existem em qualquer cenário e não são neces-


sariamente ruins; mas, sempre ocorrem. Trata-se de um processo gradual:
é preciso prestar atenção ao funcionamento da missão ou da comunidade;
permitir que se vá gerando essa consciência, fazer perguntas abertas e ade-
quadas ao contexto, escutar outros pontos de vida e refletir sobre o apren-
dido. E, o que é ainda mais importante, requer tempo cultivar a habilidade
de renunciar aos julgamentos e premissas anteriores e surpreender-se ante
as descobertas. Inclusive, depois de exercer a liderança, durante anos, con-
tinua sendo necessário estar aberto a novas possibilidades e à oportunidade
de conseguir uma perspectiva criativa.

A melhor forma de descrever essa consciência e o impacto que


ela pode ter em um líder vem a ser a vivência pessoal. Com mais de vinte
anos de experiência, em Papua Nova Guiné, fui nomeado líder distrital da
Melanésia, em 2005. Eu não era novo na liderança e, estive à frente, tanto de
um ministério como de uma comunidade. Foi um privilégio contar com
um Conselho forte, formado por vários Irmãos mais jovens da Melanésia,
entre os quais havia muito entusiasmo e motivação. Como a maioria dos
Conselheiros assumia pela primeira vez essa função, pedimos a um facilita-
dor que nos ajudasse a formar o Conselho e a desenvolver a forma em que
trabalharíamos. Pareceu funcionar. As reuniões do Conselho distrital eram
conduzidas de uma maneira que eu acreditava ser a mais eficaz e eficiente:
publicávamos um programa, sobre o qual o Conselho trabalhava de modo
quase clínico, centrando-nos nas tarefas e levando o trabalho adiante. Logo
percebi que, embora tivesse feito todas as coisas certas, o Conselho do Dis-
trito não estava funcionando como eu esperava. Nas reuniões do Conselho
faltava participação e criatividade; resultavam muito mecânicas. As coisas
precisavam mudar. Tive dificuldade em entender como aprimorar o traba-
lho do Conselho para obter o melhor resultado possível e, assim, ser eficaz
na liderança do Distrito. Refletindo bem, percebi que não havia aprovei-
tado minha própria experiência e a compreensão da cultura da Melanésia.

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VOZES MARISTAS

Durante meu tempo em Papua Nova Guiné, eu me empenhara


em conhecer a cultura da Melanésia tanto quanto pode fazê-lo alguém
que não pertence a ela. Participei de um programa de orientação cultural,
li material apropriado e explicativo da cultura, perguntei e escutei os mela-
nésios. Consegui compreender os aspectos básicos da cultura, sua natureza
comunitária, seu estilo comunicativo e seu conceito de tempo: tudo muito
distinto de minha cultura australiana, anglófona de origem. Depois de tanto
trabalhar para familiarizar-me com a cultura melanésia, não pus em prática
esses conhecimentos que adquirira. Obviamente, eu estava coordenando
reuniões do Conselho mais adequadas à cultura anglófona australiana e
menos ao estilo das reuniões da Melanésia.

Para aprimorar as reuniões do Conselho distrital, algumas coisas


precisariam mudar. Eu estava ciente do problema mas ainda procurava uma
solução. Em conversas com alguns membros do Conselho, percebi que, de
novo, voltara a conduzir as reuniões do Conselho distrital de uma maneira
culturalmente inadequada. Se quisesse mudar o resultado das reuniões, te-
ria que aproximá-las à cultura deles. As mudanças necessárias eram muito
simples. A Melanésia tem uma cultura oral. Eles preferem contar histórias
em vez de ler e responder a documentos. Passamos a reservar um tempo
para contar histórias, no início de cada reunião do Conselho: perguntava a
cada membro do Conselho o que havia acontecido, desde a última reunião
do Conselho e, a partir dessa “narrativa de histórias”, eu acrescentava temas
à agenda da reunião. Descobri que, ao ouvir as histórias, surgiam pontos
importantes que haveria de tratar. Além disso, aprendi a trabalhar com um
conceito muito diferente de tempo. Eu precisaria ter certeza de que des-
tinava tempo suficiente aos membros do Conselho para responderem às
questões; e estar disposto para voltar a uma questão, ainda que pensasse já
ter tomado uma decisão a respeito. Isso mudou o estilo das reuniões. Au-
mentou o tempo de cada reunião, flexibilizou a agenda, permitiu momen-
tos de silêncio durante as discussões e deu oportunidade de voltar a tratar
assuntos, ainda que uma decisão já tenha sido tomada. Mudou o ambiente
dentro do Conselho e este se tornou mais produtivo.

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Dedicar mais tempo para conscientizar-me da complexidade de


duas culturas profundamente diferentes, colaborando em benefício de to-
dos; compreender as diferenças entre as culturas, estar disposto a dialogar
com os membros melanésios do Conselho Distrital e não manipular o
resultado, foram medidas que ajudaram a melhorar os debates dentro do
Conselho e os processos de tomada de decisões. Conscientizar-me da com-
plexidade da situação e dar tempo para que minhas ideias amadurecessem
desafiou as premissas que eu tinha sobre a eficácia desse tipo de reuniões
do Conselho e levou a um resultado surpreendente. Aprendi algo muito
importante: Precisava estar ciente da complexidade de liderar em outra
cultura. Quanto mais atenção eu prestasse às realidades da cultura melanésia
e mais disposto me mostrasse para aprender com isso, mais preparado eu
estaria para encontrar as soluções que apareciam.

Consciência de si mesmo
“Se você deseja exercer uma liderança que produza mudanças,
deve estar disposto a mudar a si mesmo” (Kahane, 2010, p. 22). Estando
atentos às emoções, aos comportamentos e às reações, nós, líderes servido-
res maristas, conhecer-nos-emos mais, e isso nos ajuda a amadurecermos
em nossa função.

A autoconsciência é a capacidade de olhar para nosso interior,


refletir profundamente sobre nossas emoções, valores, comportamentos e
preconceitos, para considerar como eles nos afetam em nosso papel de
líderes, bem aqueles que lideramos. Tornamo-nos mais autoconscientes ao
reconhecermos os pontos fortes e as capacidades que trazemos à lideran-
ça, tentando compreender nossas premissas ocultas, nosso comportamento
habitual e os preconceitos involuntários. Parte desse crescimento na auto-
consciência é a compreensão de nossas reações em várias situações. Uma
das lições mais significativas aprendemos é estarmos conscientes de como
lidamos com o conflito e a tensão que surgem no exercício da liderança.
Quando submetidos a esse tipo de pressão, há uma tendência de recorrer-

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mos a nossas suposições subjacentes e aos comportamentos habituais, sem


ter em conta a repercussão que podem ocorrer, sobre nossa capacidade de
sermos líderes eficazes.

Nem sempre é possível que um líder seja totalmente objetivo. Por-


tanto o líder precisa entender o papel crucial que suas próprias perspectivas
e percepções desempenham, no momento de ser consciente. A experiência
vivida influencia as perspectivas e percepções e, vice-versa, estas perspec-
tivas e as percepções impactam a experiência vivida. Duas pessoas podem
estar conscientes da mesma situação de duas maneiras completamente dis-
tintas.

Como líderes, é vital empreender um processo para chegar a co-


nhecer a si mesmos. O autoconhecimento não é um processo estático;
evolui com o tempo e a experiência não termina nunca. Na liderança, as li-
ções mais importantes se aprendem, especialmente, no respectivo exercício:
“Como estou reagindo enquanto líder e o que está em jogo dentro de mim?” Esta
é uma pergunta crucial para todos os líderes. Em parte, se trata de conhe-
cer nossa competência e capacidade para realizar as tarefas que a liderança
requer e como melhor compensar as áreas mais fracas. É também a capa-
cidade de refletir sobre si mesmo e de identificar os aspectos mais pessoais
que influem no modo de liderar. É, pois, vital refletir sobre o que fazemos
na liderança, por que o fazemos e com que efeito.

Esta não é somente uma reflexão pessoal mas requer relações pro-
fissionais com outras pessoas. É benéfico encontrar pessoas sábias que nos
ajudem a explorar o mundo da liderança e a comentar nossa experiên-
cia; isso pode tornar-se muito benéfico. Ajuda, igualmente, a ter vontade
de aprender, de ouvir os outros e aprender de suas opiniões sobre nós
(Kahane, 2010). Mais do que um desejo de conhecimento, é um desejo de
compreender a nós mesmos bem como os efeitos que nosso estilo pessoal,
nossas suposições, perspectivas e comportamentos têm sobre o modo de
exercermos a liderança.

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Nada disso é fácil. Reservar um tempo para refletir sobre como


exercemos a liderança, estar abertos para ouvir os pontos de vista dos ou-
tros, abandonar as formas convencionais de entender uma situação e iden-
tificar nossas próprias capacidades: tudo isto é um desafio. No entanto, ao
tomar consciência de nossas suposições não questionadas, de nossos pre-
conceitos e nossas formas rotineiras de atuar, poderemos ver esse múnus
com novos olhos, prontos para responder com maneiras inovadoras e ser
mais criativos em nossa liderança.

Consciência da presença de Deus no mundo


O Instituto, há muito, nos encoraja a tomar consciência do Espíri-
to de Deus em ação no mundo. Dar atenção à presença de Deus é algo fun-
damental em nosso modo de vida como maristas. Esta consciência de Deus
se reflete nas palavras do Papa Francisco: “Confiamos em que o Senhor nos
abrirá portas que nem sequer imaginávamos existirem aí” (Ivereigh, 2020,
p. 21). Essa confiança sustenta nossa vida como maristas e é fundamental
para nossa liderança. No 22º Capítulo-Geral de 2017, começamos com
duas perguntas: O que Deus quer que sejamos? e O que Deus quer que faça-
mos? Ambas as perguntas nos incentivam a estarmos atentos à presença de
Deus no mundo e em tudo o que fazemos.

Com o tempo, o Padre Champagnat desenvolveu uma profunda


consciência da presença de Deus. Em sua Circular Uma Revolução do cora-
ção (A revolution of the heart) Sean Sammon (2003) afirmou que a prática da
presença de Deus se tornou o centro da vida espiritual de Marcelino.“Mar-
celino tinha certeza de que Jesus estava por perto, sempre presente em suas
interações e nos acontecimentos de sua vida” (p. 49). “Marcelino descreveu a
espiritualidade que recomendou a seus Pequenos Irmãos, em seu último Testamento;
era como um espelho da espiritualidade dele: Praticai a presença de Deus; ela é a
essência da oração, da meditação e de todas as virtudes” (p. 24).

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As intuições originais de Marcelino foram ampliadas com Supe-


riores-Gerais sucessivos, incentivando-nos a empreender uma jornada in-
terior, inicialmente recomendada por Marcelino. Reservar tempo para um
relacionamento com Deus por meio da prática da contemplação faz-nos
adquirir consciência de sua atividade no mundo. A prática da presença de
Deus, estar atento às suas ações no mundo e estar ciente da ação do Espí-
rito Santo são importantes para todos aqueles que exercem a liderança de
servidor marista.

Os escritos de Emili Turú, Superior-Geral de 2009 a 2017, são um


exemplo convincente desse incentivo. Em sua Circular, La Valla: Casa da
Luz (La Valla the lighthouse), o Ir. Emili Turú (2017) escreve:

O Deus que está dentro e não fora, que está presente em cada
realidade e em tudo o que existe, que nos abraça por dentro e por
fora, denominamos de Espírito Santo. Portanto, não há nada fora
de Deus, nada acontece fora de Deus. Nunca estamos longe ou
fora, mas sempre diante de, em e com Deus. (p. 303)

Emili desenvolve essa ideia, afirmando:

Se Deus não está fora mas dentro de nós, abraçando e penetrando


com amor toda a realidade, a oração muda muito. Já não se trata de
falar com alguém de fora, distante, mas de me abrir, de estar atento
e ouvir. Ou então, simplesmente ficar com essa Presença que me
habita. (p. 303)

Emili também escreveu sobre a importância de desenvolver uma


postura contemplativa para cultivar nossa atenção a Deus. Em seus escritos
ele nos incentivou a introduzir o silêncio em nossa vida diária.

Sem silêncio é muito fácil desperdiçar nossas vidas com triviali-


dades, ser empurrado e puxado pelas circunstâncias da vida, tomar
decisões precipitadas. Sem silêncio, como pode haver um encontro
autêntico com outras pessoas ou com o Deus vivo?. (p. 300)

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O silêncio e a prática contemplativa asseguram as condições para


tomarmos consciência da atividade de Deus, no mundo. Certamente Emili,
aqui, nos encoraja a dedicar tempo e a abrir-nos ao conhecimento da pre-
sença de Deus e de sua atividade no mundo.

Ficar em silêncio e cultivar uma postura contemplativa, em nossa


liderança, nos põem em alerta para o que acontece em nosso interior e no
mundo que nos rodeia. Predispõem-nos para uma consciência com raízes
profundas, ajudam a entender melhor nossas premissas não questionadas,
nossos preconceitos e maneiras profundamente rotineiras de agir, que in-
fluem nossa função de líderes. Permitem-nos viver intensamente o mo-
mento atual, abrem-nos ao novo que é proposto e surpreendem-nos com
a criatividade que surge.

Consciência de nossa conectividade


Hoje vivemos em um mundo interconectado e fazemos parte de
vários sistemas. Para os que exercem a liderança a partir de um ministério,
a responsabilidade principal está em trabalhar dentro da realidade que a
emoldura. No entanto, os líderes costumam fazer parte de uma rede de
ministérios provinciais e alguns respondem ante um departamento de go-
verno ou uma Diocese. Há outros modos de liderança, contando cada um
com uma série de sistemas entrelaçados que afetam de alguma maneira a
forma de agir dos correspondentes líderes. É crucial para um líder conhe-
cer os sistemas em que trabalha e os demais sistemas interconectados que
exercem influência em sua liderança.

Os líderes servidores maristas se preocupam, profundamente, pelo


bem-estar e o crescimento pessoal e profissional de seus liderados. Conhe-
cer aqueles que atendemos em nosso ministério é primordial, tanto se trate
dos alunos e do pessoal de uma escola, como dos Irmãos que vivem em
nossa comunidade ou ainda dos que trabalham no escritório provincial.
É um aspecto básico de nossa missão. É vital que aprendamos a ser mais
atenciosos e genuinamente curiosos em relação àqueles que se encontram

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sob nossa liderança. Em uma reunião, em Roma, o Ir. Emili, então Supe-
rior-Geral, entregou a cada um dos participantes uma transparência com
os olhos de uma criança. Ao apresentar-nos esse símbolo, insistia em ver o
mundo com os olhos de uma criança. Para estar preparado a ver o mundo,
através dos olhos de outros, é preciso que conheçamos realmente o seu
mundo. Esta compreensão mais profunda ajuda a desenvolver respostas ino-
vadoras às necessidades daqueles que se encontram em nossas obras.

A caminho para converter-nos em família global, é oportuno


mencionar a consciência da cultura daqueles com quem trabalhamos. Mar-
celino sonhava em estar a serviço de todas as dioceses do mundo, como
comentou em carta que escreveu a monsenhor Philibert de Brouillard, em
15 de fevereiro de 1837: “Todas as dioceses do mundo entram em nossos planos”
(Sester, 1991, n. 93).

Desde as nossas origens sempre existiu a possibilidade de trabalhar


com outras culturas e, na aldeia global de hoje, isso adquire um novo sig-
nificado. Há um número crescente de culturas entrando em contato umas
com as outras e crescem sem parar as oportunidades para pessoas de dife-
rentes culturas interagirem. Essa diversidade de culturas e essas relações in-
terculturais se refletem em muitas de nossas obras. Ali reside a importância
de conhecer as culturas daqueles que pertencem à nossa missão. Para todos
os chamados a trabalharem imersos em outra cultura, é essencial chegar a
conhecê-la, em particular os que exercem funções de liderança.

Todos nós temos a tendência de excluir os outros, somente porque


são diferentes (Law, 2000). Pessoalmente, é útil refletir sobre como reagi-
mos ante aqueles que têm um aspecto ou um comportamento distinto
do nosso. Em alguns casos, isso requer que conheçamos nosso temor ante
aqueles que são diferentes. Passa-se o mesmo em nossos ministérios e co-
munidades. Todas as organizações criam barreiras que excluem os que são
vistos como diferentes. Precisamos estar cientes desses limites e entender
quanto estes são poderosos e como custa rompê-los (Law, 2000). Inclusive,
mesmo quando incluímos os que são diferentes, nem sempre estamos pre-

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parados para aceitá-los como verdadeiramente iguais. Acolhemo-los, mas


nunca acabamos por aceitá-los como membros plenos da comunidade.

Estar cientes das diferenças, aprender a aceitá-las e apreciá-las é o


cerne da liderança servidora marista. Aprendemos muito mais sobre cul-
tura, por meio de observação atenta e participação reflexiva, do que lendo
sobre ela (Senge, 2004). Isso leva tempo e se baseia em nossa capacidade
de ser abertos e curiosos, além de exigir que aprendamos novas formas de
conduta. Nossas instituições também precisam estar cientes de como lidam
com as diferenças e encontrar maneiras novas e criativas para incluir aque-
les que são diferentes.

Um verdadeiro líder não está alheio ao que pensam os outros,


dentro de sua missão, comunidade ou Província. É de máxima importância
compreender em profundidade a realidade local na qual se vai exercer a li-
derança. Esta consciência inclui também o levar em conta as consequências
das decisões da liderança, sobre os demais e sobre a instituição. Este não é
um projeto solitário reservado ao líder. É função de um líder de serviço
ouvir os outros, estar aberto a novas perspectivas e preparado para escu-
tar as vozes que, normalmente, não são ouvidas. O desejo de Marcelino
Champagnat de chegar a conhecer mais profundamente a realidade que
experimentavam seus Irmãos fez com que fosse viver com eles, em La Valla.

Os líderes maristas estão cientes dos sistemas interconectados mais


amplos com os quais se envolvem. Nossos ministérios, comunidades e
unidades administrativas não trabalham isoladamente. As perspectivas e as
regras das Províncias, dos departamentos governamentais e das Dioceses
têm repercussões; e conhecê-las é responsabilidade da liderança. As relações
entre as diversas entidades devem desenvolver-se, o que requer o conhe-
cimento do que isso implica. Essas relações também nos chamam para o
diálogo, para ouvir outras perspectivas e para estarmos abertos às opiniões
dos outros.

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Uma observação sobre a liderança profética e a


consciência
Em seu livro The liberating path of the hebrew prophets then
and now (O caminho libertador dos profetas hebraicos de então e agora),
Nahum Ward-Lev descreve três qualidades que são inerentes a todo pro-
feta: “Um encontro com o amor divino e a preocupação com o mundo,
coragem para denunciar a opressão e imaginação moral para articular um
futuro alternativo cheio de esperança” (Ward-Lev, 2019, p. 11).

Trata-se de um modelo simples, que se adapta facilmente à natu-


reza profética da liderança marista. Em primeiro lugar, o encontro com o
amor divino e a preocupação pelo mundo pressupõe ter consciência do
espírito de Deus vivo e ativo no mundo. Encontrar a presença de Deus
era um aspecto central da espiritualidade pessoal de Marcelino e reflete
seu desejo para os primeiros Irmãos do Instituto. Ele ensinou seus Irmãos
a praticar a presença de Deus. Ele usou as imagens simples do presépio, da
cruz e do altar para lembrar aos Irmãos os lugares onde encontramos Cristo
no mundo. Valia-se do som de um sino, algo habitual nos vales, ao redor
de La Valla. Quando um sino tocasse, o Irmão deveria parar e lembrar que
estava na presença de Deus.

Coragem para denunciar a opressão – entendida como os fatores


que dificultam o crescimento das pessoas –, é uma qualidade essencial da
Liderança Marista. Todas as instituições têm elementos que devem con-
frontar-se e transformar-se. Ter consciência desses componentes da opres-
são é importante para os líderes maristas. A coragem de identificá-los e a
determinação para provocar uma mudança são partes da liderança marista.
Isso supõe a articulação esperançosa de um futuro alternativo, um futuro
em que todos aqueles que estão sendo atendidos pelo ministério ou pela
instituição possam crescer.

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O que isso significa para aqueles que exercem


a liderança?
O oposto da consciência é a indiferença. Um dos perigos dessa
indiferença é que ela pode converter-se em algo habitual, infiltrando-se
silenciosamente em nosso estilo de vida e nossos juízos de valor. Não po-
demos acostumar-nos à indiferença (Ivereigh, 2020). A melhor maneira de
lutar contra a indiferença é atuar com modos específicos para desenvolver
nossa consciência. O autoconhecimento é importante para todas as pessoas
e, no caso dos líderes, ajuda a aprimorar nosso ofício. Refletir sobre nossas
experiências, falar com outros líderes experientes e beber da sabedoria dos
demais integrantes da missão ajuda-nos a aumentar nossa compreensão da
prática da liderança. Reservar-nos tempo para ler e refletir, encontrar um
bom mentor com o qual possamos falar em torno da prática da liderança e
ter conversas periódicas com os membros de nosso ministério fornecem as
ferramentas para desenvolver o autoconhecimento de que precisamos para
tornar-nos melhores líderes servidores.

Como líderes de comunidades cristãs reconhecemos que Cristo


está no centro de tudo o que fazemos. A prática da presença de Deus, in-
centivada por Marcelino, é indispensável na liderança marista. Estar abertos
e conscientes da atividade de Deus em nossas vidas e nas vidas das pessoas
com as quais trabalhamos exige tempo e paciência. Isso significa reservar-
-nos um espaço de contemplação, estar abertos para sermos surpreendidos
por Deus e dispostos a abandonar alguns pressupostos e preconceitos.

Nossa missão como maristas é centrada nas crianças e jovens, assim


como naqueles com os quais trabalhamos. Por isso, é indispensável conhe-
cer as experiências que tiveram, sua cultura, suas esperanças e sonhos. No
22º Capítulo-Geral de Rionegro, os jovens exortaram os Irmãos a dei-
xarem seus escritórios, a estarem em contato com a juventude, presentes
entre eles para ouvi-los. Isto está no cerne do que significa desenvolver a
consciência. Somente através do contato com as pessoas, a curiosidade, a

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escuta do que têm a dizer e refletindo sobre o que contam é possível chegar
a conhecer suas esperanças e seus sonhos.

Tudo isso requer tempo, paciência e senso de humor. Como líde-


res precisamos “perder tempo” com aqueles que lideramos, as crianças e os
jovens, os funcionários e os próprios Irmãos. Precisamos permanecer com
eles, ouvi-los e estar dispostos a que provoquem uma mudança em nós.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Refletindo sobre a própria experiência, como você se deu conta da
complexidade da situação em que exerce a liderança?
2. Como suas premissas e percepções anteriores foram desafiadas por sua
experiência de liderança? Como esses desafios impactaram seu estilo
de liderança?
3. Refletindo sobre sua experiência de liderança, o que você aprendeu
sobre si mesmo e sobre a maneira como reage, face a situações e desa-
fios complexos?
4. Você está atento à presença de Deus em seu trabalho de líder?
5. Durante o tempo em que exerceu a liderança, como você usou sua
compreensão do contexto em que trabalha para articular um futuro
promissor?

REFERÊNCIAS

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do servidor). Barrett-Koehler Publishing.
Ivereigh, A. (2020). Let us dream: Pope Francis in conversation with Austen Ive-
reigh (Vamos sonhar juntos: O Papa Francisco em conversa com
Austen Ivereigh). Simon and Schuster.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Kahane, A. (2010). Power and love: A theory and practice of social change (Poder
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Publishing.
Law, Eric. H. F. (2000). Inclusion: Making room for grace (Inclusão: abrindo espaço
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Sammon, Sean. D. (2003). A Revolution of the heart (Uma revolução do coração).
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lishing.

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VOZES MARISTAS

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 7

Liderança e Persuasão
Ir. Vincent de Paul Kouassi
Província da África Ocidental
Reitor do MIUC

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Apresentação
Nossas diferentes culturas não consideram o servidor como al-
guém que lidera, mas como uma pessoa que serve e executa o que o líder
ordena. No entanto, Greenleaf (2008) considera que esses dois papéis – ser-
vidor e líder –, podem “ser fundidos em uma só pessoa real, em todos os
níveis de posição ou vocação” (p. 2). Para os cristãos a palavra cunhada por
Greenleaf “liderança de serviço” faz muito sentido porque Cristo, nosso
líder, passou toda a sua vida terrena mostrando-nos que ele “não veio para
ser servido, mas para servir” (Mateus 20, 28; Marcos 10,45).

No entanto, persuadir seus discípulos a aceitar que um líder deve-


ria servir não foi fácil. No exemplo mais pungente de liderança de serviço
que o Senhor deu, Pedro recusou que Cristo lavasse seus pés: “Senhor,
não me lavarás os pés!” (João 13,6) foi o que ele disse a Cristo. Em outras
palavras, aos olhos da maioria do povo, mestres ou líderes não estão para
servir, mas para que sejam atendidos ou servidos. Cristo sabia o quanto
seria difícil, e ainda o é, as pessoas entenderem logo essa mudança, seja no
conceito seja na prática da liderança. Há uma aparente contradição na ex-
pressão “liderança de serviço”, no contexto sociopolítico atual. A pergunta
que podemos fazer é a seguinte: Como um líder que é normalmente – e,
em minha opinião, infelizmente –, considerado como o chefe, a quem se
deve servir, pode converter-se em servidor?

O Senhor está ciente dessa ideia equivocada e de que é difícil


compreendê-la, mas ele continua sendo paciente. Ele diz a Pedro e a cada
um de nós, hoje: “O que faço não compreendes agora, mas irás compreen-
dê-lo, mais tarde” (João 13,7). A tentativa do Senhor de persuadir Pedro é
uma das características mais significativas da liderança do servidor: a per-
suasão. Na última parte desta reflexão prática, retomaremos o lava-pés, para
mostrar o que deveria significar a persuasão, a partir de uma perspectiva
cristã e marista, para os líderes servidores.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Na lista de características da liderança do servidor elaborada por


Greenleaf (2008) a Persuasão parece estar fora de lugar; Collins (2015) até
a qualificou como “inclusão estranha”. No entanto, essa mesma ‘anormali-
dade’ é o que traz à tona o aspecto religioso da liderança do servidor. Mui-
tos autores, particularmente Spears (2002) e Gordon e Xue Xing (2020),
ficaram convencidos de que a proximidade de Greenleaf com os Quakers,
um grupo religioso, explicou por que ele promoveu a persuasão em vez
da coerção. Como Marista de Champagnat, líderes, evangelizadores e se-
guidores de Cristo esta reflexão deve nos ajudar a explorar, compreender e
praticar a Persuasão como uma qualidade crucial da liderança do servidor.

Nossa reflexão guiar-se-á pelas seguintes perguntas:

• O que é persuasão?
• Como um verdadeiro líder servidor convence seus seguidores?
• Como o exemplo dado por Cristo se torna, para nós, um barômetro de
persuasão autêntica e bem-sucedida e, em última instância, se torna em
uma verdadeira liderança profética?

O que é a persuasão?
A persuasão é, simplesmente, uma tentativa de levar os outros a
aceitar uma mudança. A persuasão faz parte do trabalho de um líder pois
ele está, continuamente, tentando convencer seus seguidores a abraçar uma
mudança que ele deseja implementar. A definição de Northouse (2016) é
um excelente resumo do que deveríamos entender por persuasão. Ele a
definiu como a “comunicação clara e persistente que convence os outros a
mudar” (p. 225). Ele a explicou ainda mais, contrapondo-a à coerção. Este
contraste elucida a compreensão da persuasão como traço ou qualidade do
líder servidor. Enquanto a coerção “utiliza a autoridade de sua posição para
forçar a cumprimento, a persuasão consegue mudanças por meio do uso de
argumentos gentis, sem crítica” (p. 225). Na linha da liderança de serviço,
um exemplo contrário à persuasão seria um líder que ameaça demitir seus

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VOZES MARISTAS

trabalhadores se eles não aceitarem uma mudança que a organização deseja


implementar.

A mudança, de fato, faz parte da vida. Mas também é verdade que


a resistência à mudança, como destacou Michelman (2007), é uma parte
essencial da vida das pessoas e das organizações. Curiosamente, mesmo
quando suas vidas estão em jogo, algumas pessoas que opõem especial resis-
tência, não se deixam persuadir em favor da mudança. Em seu livro Change
or Die (Mude ou morra), Deutschman (2007) explicou que, às vezes, mes-
mo quando as pessoas conhecem a mudança que precisam abraçar para
permanecer vivas, elas continuam a resistir e se recusam a ser persuadidas
por ninguém, nem pelos líderes. Diante de tal rigidez, como pode um au-
têntico líder servidor persuadir seus seguidores?

A persuasão gentil do líder servidor


Na obra Ética a Nicômaco (I.13), o filósofo grego Aristóteles definiu
o ser humano como um animal racional. Isso significa que todos nós po-
deríamos e deveríamos entender os motivos que justificam uma mudança
ou algo que vá aplicar-se para poder aceitá-la Se devemos ser persuadidos e
convencidos por um líder, este deve expor a lógica que fundamentam suas
ideias. A parte do raciocínio é essencial; no entanto, Aristóteles não limi-
tava a persuasão apenas ao logos. Ao argumento lógico ou logos o filósofo
acrescentava pathos e ethos. Pathos apela às emoções e ethos à personalidade
ou ao caráter do persuasor ou líder. O mais importante dos três, segundo
Aristóteles, é e deveria ser sempre o ethos. Em sua opinião, a personalidade
do líder é prejudicial ou favorável à persuasão.

Em resumo, um líder sempre deveria explicar qualquer processo de


mudança para as pessoas interessadas, porque elas são seres racionais. Além
disso, deveriam sentir que seu líder lhes propõe algo para seu próprio bem
ou pelo bem comum. Consideradas essas duas condições, a personalidade
do líder determinará o sucesso ou o fracasso da persuasão: se o líder for rude
ou descortês em sua comunicação, a persuasão falhará. Ante a grosseria, as

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

pessoas podem agir e obedecer, mas somente porque se sentem coagidas


ou forçadas a isso. É aqui, na tentativa de persuadir gentil ou rudemente,
que está a diferença entre um líder comum e um líder servidor. Segundo
Collins (2015), outros líderes, ao contrário dos líderes servidores, utilizam
a coerção para persuadir. A coerção viola a liberdade e humilha as pessoas
porque, à medida que os líderes utilizam sua condição de autoridade para
conseguir a concordância, eles não deixam espaço para uma comunicação
genuína e honesta.

Essa forma perversa e distorcida de entender a liderança, infeliz-


mente, atingiu nossa esfera marista e religiosa. Seja por falta de formação
adequada, ou de personalidade ou por outra limitação, não podemos des-
prezar nossos colaboradores, em nossas obras, apostolados, locais de tra-
balhos, comunidades e famílias. Precisamos encontrar uma maneira mais
cristã de persuadir ou lidar com aqueles que resistem à mudança que que-
remos iniciar. Os líderes maristas, em escolas, obras sociais, comunidades ou
famílias, não devem cair na armadilha de tantos líderes, de hoje em dia, que
“confundem persuasão com manipulação e coerção” (Van Dierendonck
& Patterson, 2018, p. 22). Os líderes maristas devem ser líderes servidores
que persuadam gentilmente, criando entre as pessoas aquele “sentimento
de que assim é correto”. O próprio Greenleaf (1996) foi absolutamente
claro, no que se refere à liberdade da pessoa que se intenta persuadir, quan-
do escreveu que “a pessoa persuadida deve dar esse passo intuitivo por si
mesma, livre de estratagemas coercitivos ou manipuladores de qualquer
tipo” (p. 129). Mesmo quando a pessoa que está sendo persuadida resistir a
qualquer mudança, nada pode justificar o uso de uma técnica de persuasão
distorcida e antiética. Os líderes maristas devem ficar longe do falso princí-
pio, pouco ético – “o fim justifica os meios” –, que o filósofo N. Maquiavel
(1469/1527) recomendou a todo líder. Como Cristo, os líderes maristas
devem manter a amabilidade e o altruísmo, em seu modo de persuadir,
mesmo em momentos de resistência.

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A persuasão em momentos de resistência


Os líderes maristas devem utilizar maneiras diferentes, mais cris-
tãs, de persuadir, em momentos de resistência à mudança. A resistência à
mudança sempre fez parte da sociedade humana (Michelman, 2007), espe-
cialmente quando não há motivos expressos para a mudança em questão.
Trabalhei, alguns anos, como tesoureiro em uma de nossas escolas, onde
a maioria dos professores e funcionários não tinha conta bancária e nem
pretendia abri-la. Alguém poderia pensar que é algo muito estranho, neste
século XXI; mas, eles queriam receber seus salários em dinheiro. Sem en-
tender os motivos para isso, a direção da escola decidiu mudar e pagar todos
os salários diretamente em contas bancárias. Apenas foram informados e
obrigados a abrir contas, em um estabelecimento sugerido pela escola. As
razões eram perfeitamente legítimas e inclusive lucrativas para os profes-
sores, os trabalhadores e toda a escola. Infelizmente, os dirigentes da escola
não explicaram essas razões aos professores nem aos trabalhadores; conse-
quentemente, estes comunicaram com clareza que preferiam receber seus
salários na escola. Depois de certo tempo, todos chegamos a um acordo; e
eu aprendi, com essa experiência, a maior lição de minha vida.

Um aspecto importante que ajudou a superar a resistência foi a


comunicação aberta que tivemos. Ouvi as suas razões e pedi desculpas, em
nome de toda a administração, por não tê-los consultado, antes de tomar
aquela decisão, que julgávamos seria apreciada por eles. Então apresentei
a eles a justificativa dessa decisão, o que, acredito, foi crucial na hora de
persuadi-los a aceitar a mudança. Quando a escola decidiu dar atenção ao
aspecto humano e considerou seus sentimentos e motivos, imediatamente
se flexibilizou para essa nova forma de agir. Dei-lhes tempo para expressar
seus motivos de resistência à mudança que os líderes queriam implantar.
Passei a entender que o processo de persuasão deveria basear-se em uma
comunicação honesta e na consideração dos aspectos humanos. Estes são
elementos-chave na hora de implantar qualquer mudança ou nova ideia
(Bolman, 2013). Nesse caso, como o diálogo foi respeitoso e verdadeiro,
quase todos suavizaram suas posições e resistiram menos.

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Essa experiência não foi inteiramente bem-sucedida porque al-


guns poucos trabalhadores continuaram a recusar o pagamento em Banco,
apesar de todas as explicações que demos. Mesmo quando colocamos essa
decisão específica, dentro da visão mais ampla de uma tentativa da escola
para sermos sistemáticos na maneira de operar, eles continuaram a resistir.
Esse pequeno fracasso foi, ao mesmo tempo, um grande aprendizado para
mim: entendi que tínhamos criado uma profunda desconfiança entre nós,
porque a administração se comunicara mal com eles. Consequentemen-
te, começaram a rejeitar e resistir a todas as iniciativas. Além da perda de
confiança, também acreditavam que o Banco lhes faria perder dinheiro.
Essa desvantagem econômica, na opinião deles, justificava inteiramente a
resistência.

A partir desta e de muitas outras experiências parece que qualquer


processo de mudança deve implicar a todos, principalmente os mais afe-
tados por ele. A partir do mesmo princípio, os líderes devem comunicar o
máximo possível a todos, para que se sintam incluídos no processo global.
No exemplo acima, para restabelecer a comunicação prejudicada, convidei
o diretor do Banco para falar com os trabalhadores e responder a suas dú-
vidas e preocupações. Ele conseguiu convencer a todos; aceitaram o prin-
cípio e abriram uma conta.

O que devemos concluir disso é que a habilidade do líder resulta


crítico, na hora de persuadir os outros a superarem suas resistências e acei-
tarem a mudança. De acordo com Ford (2008), a postura é que os Líderes
não devam aferrar-se à ideia de que a resistência é culpa apenas da pessoa
que é atingida pela mudança. Em outras palavras, os líderes servidores pre-
cisam ser otimistas e confiar em que, apesar da resistência, qualquer pessoa
é capaz de abraçar uma mudança, se ela for explicada de maneira adequada.
Champagnat tinha essa confiança nas pessoas. Ele estava persuadido de que
todos têm o bem em seu interior e têm a capacidade de mudar, conver-
tendo-se em cristãos ou cidadãos melhores. Nosso fundador queria que os
líderes, especialmente os líderes de escolas, tivessem essa mesma esperança
e fé em seus alunos. Em sua carta ao Irmão Barthélemy Badard, em 21 de

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VOZES MARISTAS

janeiro de 1830, pedia: “Digam a seus filhos que Jesus e Maria os amam
muito e a todos: os que são bons porque se assemelham a Jesus Cristo, que
é infinitamente bom; os que ainda não são bons porque chegarão a sê-lo”
(Circular I, p. 153). Champagnat aconselha os líderes que tratem a todos
com dignidade e respeito, porque cada indivíduo, como criatura de Deus,
é capaz de mudança e conversão. Os líderes, na palavra de Gandz (2008,
p.1) devem ser suficientemente “inteligentes” e “valorizar os que resistem”
porque esta é a única maneira de persuadi-los. De fato, é assim que, como
cristãos e líderes maristas, deveríamos compreender o desafio de Cristo –
“amai vossos inimigos” (Mateus 5,44). Isto requer muita paciência e con-
fiança porque a persuasão e a mudança não acontecem da noite para o dia.

Quando um líder tenta persuadir os outros, por meio de ameaças


e manipulações, consegue apenas que as pessoas se conformem e sejam
menos produtivas. As pessoas ficam ressentidas e com raiva em relação a
esse tipo de líderes. O pior é que, quando os que estão sob o comando de
tais líderes se tornam líderes também eles, passam a multiplicar por dois
esse comportamento errado. Começam a se utilizar de ameaças e intimi-
dações para obrigar os demais a fazerem o que eles desejam. Em vez de
manipulações e ameaças, Cristo se valeu de suas ações, de seu exemplo,
para persuadir seus discípulos. Como cristãos e líderes servidores maristas,
como o exemplo de Cristo ilumina e guia nossa prática de persuasão? Em
outras palavras, como um verdadeiro líder servidor marista convence seus
colaboradores?

Persuadir com ações e com serviço


A maioria das pessoas coloca o serviço no coração mesmo da li-
derança. Infelizmente, poucos o traduzem em ações concretas. Os líderes
recém-nomeados costumam utilizar expressões como “feliz em servir”,
“servidor humilde” ou “seu servidor” sem compreender totalmente o sig-
nificado desse serviço. Muitos líderes utilizam a palavra serviço e nunca
perguntam às pessoas que desejam servir o de que realmente precisam. Sem
querer soar muito ‘político’ ou parcial, minha pergunta a alguns políticos

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

sempre foi esta: Como você serve as pessoas se nem mesmo lhes perguntou
de que precisam? Northouse (2016) enfatizou que na prática da liderança
autêntica os líderes facilmente persuadem as pessoas quando, como líderes,
eles entendem sua “responsabilidade ética de tratar os seguidores com dig-
nidade e respeito – como seres humanos e identidades únicas” (p. 336). Esse
compromisso ético move o líder a estar atento às necessidades das pessoas.
Northouse acrescentava ainda que os líderes devem ter em conta as neces-
sidades das pessoas, para poderem influir de modo significativo e persuadir
qualquer grupo a executar a mudança proposta.

Mais simples ainda: as pessoas ouvirão um líder que se preocupa


com suas necessidades mais do que outro que não sabe nem se importa
com o que desejam. Isso explica por que, desde sua introdução, Northouse
(2016) considera a responsabilidade ética como um chamado para “atender
as necessidades e as preocupações dos seguidores” (p.7). No entanto, cuidar
das necessidades das pessoas não se faz somente com palavras ou princípios
vazios, mas com ações e verdade, como Cristo nos mostrou ao longo de
sua vida. O Senhor dá o exemplo de serviço, cuida de nossas necessidades
e ama seus seguidores. Esse amor, traduzido em ação, é o exemplo final
que persuade seus seguidores a confiar nele e a seguir seus ensinamentos.
A lavação dos pés (Jo 13, 1-17) significa que, para o líder poder ensinar a
servir, deve servir os outros com humildade e amor. O líder servidor pode
persuadir os outros a servirem, somente se o servidor deles, os serve de
verdade e, portanto, os educa no serviço. Cristo convencia seus seguidores
com sua ação. Seu serviço amoroso como líder é descrito, nos últimos mo-
mentos com seus discípulos, conforme escreve João: “Como amasse os seus
que estavam no mundo, até o extremo os amou” (Jo 13,1). É a ação do líder
que persuade; as palavras vazias não. Nesse sentido, a liderança do servidor
é como o amor a serviço dos outros. As ações do líder transformam e le-
vam outros a se tornarem servidores como seu líder. Jesus explica tudo isso
aos seus discípulos e a nós: “Vós me chamais “Mestre” e “Senhor”, e dizeis
bem, porque eu o sou. Logo, se eu, vosso Senhor e Mestre, vos lavei os pés,
também vós deveis lavar-vos os pés uns dos outros: Dei-vos o exemplo para
que, como eu vos fiz, assim façais também vós” (Jo 13,13-15).

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Essa explicação e o amor manifestado por meio do serviço foram


as ferramentas de persuasão que Cristo utilizou. O Senhor não forçou,
intimidou ou ameaçou seus seguidores a se tornarem servidores como ele.
Mostrou-o a eles, fazendo-o ele mesmo, porque sabia que, como dirá Nor-
thouse (2016), ao influenciar as pessoas, no sentido de alcançar objetivos
comuns, “os líderes que utilizam a coerção estão interessados em seus pró-
prios objetivos e raramente estão interessados nos desejos e necessidades
dos seguidores. O uso da coerção vai contra trabalhar com

os seguidores para atingir um objetivo comum” (p.13)” (p.13). Os


seguidores apoiarão totalmente uma iniciativa de seu líder, se essa iniciativa
expressar o cuidado que ele lhes tem. Um líder atencioso como Cristo, fa-
cilmente persuade seu povo. Concordo totalmente com Northouse (1996),
quando afirma que a liderança de serviço é o “único enfoque que propõe
o processo de liderança, em torno do princípio da preocupação pelos de-
mais” (p. 240).

Conclusão
Este ensaio enfocou a persuasão como uma característica essencial
da liderança do servidor. A liderança autêntica, ou liderança de serviço,
consiste basicamente em cuidar dos outros como o centro da persuasão. O
logos, o pathos e o ethos deveriam ter como fio condutor o amor incondicio-
nal e desinteressado do líder. O exemplo de nosso Senhor, que nos amou
até o fim, morrendo por nós, mostra que qualquer tentativa de persuadir ou
convencer os outros é sempre possível, quando o amor a rodeia. O amor é o
que leva as pessoas a seguir o que dizem seus líderes. Os discípulos obede-
ciam a Cristo porque o amavam. Os Irmãos amavam Champagnat e faziam
o que ele pedia. Como Cristo, Champagnat ou qualquer líder autêntico,
os líderes servidores sabem que existem boas sementes em cada criatura de
Deus. Regam-nas e esperam, pacientemente, que cresçam e deem frutos de
amor e serviço.

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PERGUNTAS PARA REFLEXÃO


O exemplo de Cristo nos deixa com algumas questões que podem
guiar nossa maneira de utilizar a persuasão, enquanto líderes maristas, em
nossas comunidades, famílias, escolas e outros locais de trabalho.

1. Qual deveria ser o nosso estilo de persuasão marista, na prática da lide-


rança? Coação ou ponderável persuasão?
2. Qual é a importância dessa maneira marista de persuadir em nossa
liderança?
3. Como os líderes maristas colocam em prática esse estilo de persuasão?
4. Existem exemplos desse estilo de persuasão marista, em nível local,
provincial ou congregacional?
5. Quais são os desafios e as vantagens desse estilo de persuasão marista,
numa família multicultural e internacional ou global como a nossa?


REFERÊNCIAS

Bolman, L. G., & Deal, T. E. (2017). Reframing organizations (A reestruturação


das organizações). Jossey-Bass.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 8

Um líder que escuta


Ir. Norbert Mwila
Provincial da África Austral

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VOZES MARISTAS

Um verdadeiro servidor natural responde automaticamente a qual-


quer problema, escutando primeiro. Quando se é um líder, esta cir-
cunstância faz com que a gente seja considerado como um servi-
dor em primeiro lugar. (Greenleaf, 1998, p. 17).

O XXII Capítulo Geral de 2017 pede que assumamos uma lide-


rança profética e de serviço que acompanhe, em todo momento, a vida e
a missão maristas. Ser um líder de serviço implica em atuar como uma luz
que guia os outros para que as decisões sejam tomadas conjuntamente e
estejam centradas e motivadas em Cristo. « Cristo que recebeu toda a au-
toridade do Pai, converteuse em servidor, ao lavar os pés a seus discípulos,
tornandoos participantes de um novo modelo de autoridade, em forma de
serviço (C 87).

Os personagens bíblicos mencionados, em continuação, consti-


tuem exemplos de liderança servidora ou de serviço. Ilustram o tipo de
pessoas que somos chamados a ser e o que somos chamados a fazer.

João Batista
A vida e a missão de João Batista (2 a.C.–28 d.C.) oferecem uma
lição essencial para todo o líder profético com vocação de serviço e de
escuta. « Houve um homem enviado por Deus. Seu nome era João. Ele
vinha como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos cres-
sem por meio dele » (Jo 1, 67). Era um mensageiro e profeta enviado por
Deus para preparar o caminho do Senhor, endireitar seus caminhos. Era
plano de Deus revelarse através de seu Filho encarnado, do qual João dava
testemunho.

A mensagem inspiradora fundamental de João era que a luz verda-


deira, que ilumina todo homem, vinha ao mundo (ver Jo 1, 67). João estava
atento à mensagem e à missão de Jesus. Dava prioridade às instruções de
Jesus e não à sua própria opinião. Quando Jesus se dirigiu a João para que

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

batizasse, o próprio João se questionou se era correto que ele batizasse a


Jesus. João percebia que Jesus era um ser superior.

João era muito franco sobre sua identidade em relação a Jesus. Os


judeus de Jerusalém enviaram sacerdotes e levitas para perguntarlhe quem
ele era. Principalmente porque ele batizava, fato pelo qual suspeitavam que
poderia ser o Messias. Com toda humildade e franqueza, respondeu: «Eu
batizo com água; no meio de vocês há alguém que não reconheceis, ele
vem depois de mim, e não sou digno de desatarlhe a correia das sandálias»
(Jo 1, 2627).

João também se referia a Jesus como aquele que deveria crescer,


enquanto ele mesmo teria que diminuir. A liderança nem sempre se baseia
na autoridade: os líderes servidores centramse nas pessoas que lhes são con-
fiadas e se esforçam por ajudálas.

Eles têm sentido ou senso comum e sabem o que é prioridade.

Ante a serena insistência de Jesus para que fosse João quem o bati-
zasse, este aceitou o pedido sem objeção. A vontade de Jesus, na vida de um
discípulo, deve primar sobre a vontade e o desejo de quem quer que seja.

Em outra ocasião, João viu Jesus passar e indicou a seus discípulos


que deviam seguir a Jesus: « Este é o Cordeiro de Deus » (Jo, 1,35). Sua
visão e seu foco centravamse no essencial. Aqui, João mostra honestidade
e integridade. Indicando o Cordeiro, arriscavase a ‘perder discípulos’ Os
líderes de serviço têm um sentido do dever, em relação às pessoas confiadas
a seu cuidado. As decisões são tomadas em favor do bem comum e não por
interesse próprio e egoísta.

Foi graças à sua integridade, que João disse sem temor a verdade
ao rei Herodes o que lhe valeu a prisão e, finalmente, a morte. João disse a
Herodes: « Não te é lícito ter a mulher de teu irmão » (Mc 6,18).

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VOZES MARISTAS

Os líderes servidores devem escutar e expressar a verdade que deve


ser dita, mesmo que doa, que seja difícil e custe a própria vida. Nossas vidas
começam a terminar, no dia em que guardamos silêncio sobre as coisas que importam,
dizia Martin Luther King Jr. (19291968).

João Batista, conhecendo perfeitamente a verdade, foi capaz de


questionar o status quo : tinha que ser feito. Ele liderou mediante o exemplo:
as pessoas puderam imitar os valores pelos quais ele lutava, isto é, a integri-
dade, o respeito e o compromisso. João ensinou a seus discípulos não apenas
pelo que dizia, mas pela coragem à toda prova, que testemunhou embora
lhe tenha custado a vida.

Maria, a mãe de Jesus


Era uma jovem que escutou a mensagem do anjo e acedeu com
humildade, fé e com corajosa generosidade. « Eis aqui a escrava do Senhor;
façase em mim, segundo a tua palavra » (Lc 1,38). Maria é uma mulher
inspiradora: escuta e tenta entender, para depois aceitar com absoluta liber-
dade, que se fizesse a vontade de Deus, em sua vida. Sua receptividade e
disponibilidade para executar a missão que lhe fora confiada devem influir
em nossas atitudes e valores, com respeito à vida e à missão maristas.

Servimos os demais, quando encorajamos a prática da atenção e


a escuta dos demais, tal como fez Maria. » Nossas vidas, enquanto líderes
serviçais, começam quando sintonizamos uns com os outros e partilhamos
uma comunicação, num espaço de reciprocidade » (Zisa, 2013).

Os líderes servidores nos recordam a importância de escutar e de


prestar atenção a toda mensagem que se lhes comunica. Em Maria, é possí-
vel ver com clareza que conservava as coisas e as ponderava em seu coração.
Tratase de uma atitude vital em que a escuta nos permite olhar para nosso
interior e adquirir maior consciência da forma correta a seguir, bem como
evitar barreiras que inibem a capacidade de escutar efetivamente.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Nas bodas de Caná, quando Maria ordena aos serventes de fazer


o que Jesus dissesse, atua como Mãe sensível e compassiva, ante as necessi-
dades dos demais. Sua intervenção e sua liderança se baseiam em sua capa-
cidade de escutar e de perceber as necessidades de outros, que estão além
dela. Com essa sensibilidade positiva, lidera mediante seu exemplo.

« Quando chegaram, subiram para a sala superior, onde se aloja-


vam [...]. Todos eles perseveravam unânimes na oração, junto com algumas
mulheres e Maria, a Mãe de Jesus, e com seus irmãos » (At 1,13 s.). Os
líderes de serviço priorizam os momentos de oração diária, seja de forma
individual ou em comunidade. Sob a influência do Espírito e em presença
de Maria, que é a primeira Superiora do Instituto, somos capazes de fazer
um grande bem e de oferecer apoio e encorajamento, em nossa missão na
Igreja. Desempenhamos o papel de farol: um modelo de esperança na so-
ciedade, nestes tempos difíceis e momentos de incerteza.

Marcelino
Como Maria, na Igreja primitiva, Marcelino acompanhou os pri-
meiros Irmãos com atenção, sensibilidade e equanimidade. Irmãos entre
seus Irmãos, os chamados a exercerem o serviço da autoridade, buscam,
como o próprio Senhor, « servir mais do que ser servidos », de acordo com
os propósitos do Instituto. É com este espírito que assumem a responsa-
bilidade de mandar, quando seja necessário. No entanto, acima de tudo,
encontrase o convite de fomentar a escuta e o diálogo fraterno, promover
o discernimento e construir uma fraternidade autêntica, uma semente da
Boanova (C 87).

Quando a nova comunidade de La Valla foi tomando forma, Mar-


celino deixou a paróquia para unirse à comunidade dos Irmãos, em seus
humildes aposentos. Foi um gesto muito significativo: desejava estar com
eles, partilhando sua vida, como líder de serviço. Compartilhou sua exis-
tência tanto em La Valla como em L’Hermitage e dedicouse a serviço dos
Irmãos. Para eles, dizia:

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VOZES MARISTAS

Vivo só para vós; cada dia, peço a Deus darvos tudo o que seja
verdadeiramente bom para vós; eu daria tudo, inclusive, a custo dos
maiores sacrifícios, para conseguilo para vós. (Furet, 1989, p. 460).

Marcelino cultivava o diálogo fraterno com os Irmãos. Em março


de 1822, um antigo aspirante de La Salle pediu para ser admitido, no grupo
marista com Champagnat. O fundador teve suas dúvidas, mas, finalmente,
acedeu com reticências, quando o jovem lhe prometeu trazer outros aspi-
rantes a La Valla. Depois de algumas semanas, voltou com um grupo (que
ele enganara dizendo que os levava ao noviciado de La Salle), pedindo,
novamente, a admissão, tanto para si como para o resto do grupo. Nesse
momento, Marcelino estava sofrendo gravíssima falta de vocações e viuse
sumamente tentado de aceitálos. Não estava seguro sobre o que fazer, nessa
situação, pelo que reuniu os Irmãos mais idosos da comunidade para pe-
dirlhes conselho. Um líder servidor dá valor às opiniões daqueles que estão
a seu encargo.

Uma escuta atenta e a capacidade de interpretar os sinais dos tem-


pos caracterizaram a vida de Marcelino. Estando consciente da falta de
escolarização, em sua região rural, « preocupouse por oferecer melhores
oportunidades educativas às crianças e aos jovens. Interessouse também
por ajudar e fomentar seu desenvolvimento religioso e sua experiência do
amor de Deus » (Sammon, 2013).

Um ouvido atento e humildade na liderança de


servidor
A escuta é também a clave através da qual os líderes mostram res-
peito e apreço para com os demais. (Russell, 2001, p. 80)

Jesus amava a quantos o seguiam. Foi Salvador e líder de serviço,


por excelência. Estava entre seus discípulos não para ser servido, mas para
servir (Lc 22, 27). O enfoque, com que Jesus afrontava a liderança, questio-
nava e perturbava as consciências dos líderes religiosos de seu tempo.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Para nós, maristas, o avental é um símbolo adequado de nosso ser-


viço missionário. Na carta aos Filipenses, podemos ler: « O Senhor despo-
jouse de si mesmo, tomando a condição de escravo, e assim, humilhou a si
mesmo, feito obediente até a morte, e morte de cruz « (Fl 2,78).

Cristo deu um impressionante exemplo de serviço, ao lavar os pés


de seus discípulos, na Última Cena:

Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse:
« Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o Mestre e o Senhor e di-
zeis bem, pois eu o sou. Se, portanto, eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os
pés, também deveis lavarvos os pés uns aos outros. Deivos o exemplo para
que, como eu vos fiz, também vós o façais » (Jo 13, 1215).

O Plano estratégico da Administração Geral (20172025) afirma: «


Procuramos crescer nas seguintes qualidades: serviço, alegria, simplicidade,
respeito, compaixão e integridade. Junto com elas, reservamos um lugar
privilegiado ao acompanhamento, ao espírito de equipe, à inovação e ao
diálogo ». Nesta linha, Russel e Stone (2002) afirmavam que a escuta é o
componente essencial de qualquer outro atributo de um líder de serviço,
incluída a demonstração de respeito, o apreço aos demais, o desenvolvi-
mento da confiança, a delegação de autoridade e a responsabilização dos
outros.

A arte da escuta na liderança de serviço


Segundo minha experiência, na função da liderança, ter um ouvi-
do atento traz um enorme valor ao reconhecimento da dignidade da outra
pessoa.

« De acordo com os escritos de Greenleaf, um líder de serviço deve


mostrar diversas qualidades especiais, como a escuta receptiva, a persuasão, a
articulação e a comunicação de ideias de modo efetivo » (Rennaker, 2008,

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p. 82). Greenleaf continua indicando que a disposição para a escuta de um


líder faz com que seus seguidores o identifiquem como um líder servidor.

Em sua obra Empowerment of others (O empoderamento dos ou-


tros), Kiechel (1995) citando uma entrevista com Rosenblum, escreve o
seguinte: “No coração da liderança de serviço encontrase uma atitude re-
ceptiva e uma capacidade de escutar e falar que torna participantes as pes-
soas diretamente afetadas pelas decisões a serem tomadas” (Rennaker, 2008,
p. 125).

Gostaria de concluir com as palavras inspiradoras do Papa Francis-


co, em 24 de janeiro de 2016, sobre a escuta e seu papel fundamental, em
todos os processos humanos, comunicativos e de liderança:

...É fundamental escutar. Comunicar significa partilhar, e para parti-


lhar é necessário escutar, acolher. Escutar é muito mais do que ouvir. Ouvir
referese ao âmbito da informação; escutar, no entanto, evoca a comunica-
ção e necessita proximidade. A escuta nos permite assumir a atitude justa,
deixando para trás a tranquila condição de espectadores, usuários e consu-
midores. Escutar significa ainda ser capazes de trocar perguntas e dúvidas,
de percorrer um caminho ao lado do outro, livrarse de toda presunção de
onipotência e de pôr, humildemente, as próprias capacidades e os próprios
dons a serviço do bem comum.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


As perguntas que seguem podem ser uma ferramenta útil para
conseguir uma relação mais harmoniosa e interpessoal entre um líder ser-
vidor e um seu seguidor.
1. Que razões nos levam a cultivar, conscientemente, um ouvido mais
atento, aberto e disposto a escutar?
2. Que efeitos produz um ouvido atento e aberto, na liderança de ser-
viço?
3. Finalmente, que efeitos produz uma escuta atenta e acolhedora, sobre
as pessoas que servimos ou com as quais trabalhamos?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

REFERÊNCIAS

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do abençoado Marcellin Champagnat 17891840) [Bicentenary Edi-
tion (Edição bicentenária)]. Casa Generalizia dei Fratelli Maristi:
Rome.
Greenleaf, R. K. (1998). The power of servant leadership (O poder da liderança
servidora) (L. C. Spears, Ed.). BerrettKoehler.
Kiechel, W., III. (1995). The leader as servant (O líder como servidor). Em
L. C. Spears (Ed.). Reflections on leadership: How Robert K. Greenleaf’s
theory of servantleadership influenced today’s top management thinkers
(Reflexões sobre a liderança: Como a teoria de liderança de servidor de
Robert K. Greenleaf influenciou os pensadores da alta administração de
hoje) (pp. 121125). Wiley & Sons.
Marist Brothers (Irmãos Maristas). (2019, outubro). Strategic plan of the
General Administration 20172025 (O plano estratégico da Ad-
ministração Geral). FMSMensaje, 49, (XXXIII).
Marist Brothers (Irmãos Maristas). (2020). Constitutions (Constituições). Casa
Generalizia dei Fratelli Maristi.
Pope Francis (Papa Francisco). (2016, janeiro 24). Communication and Mercy:
A Fruitful Encounter (Comunicação e misericórdia: um encontro frutífero).
Message of his holiness Pope Francis for the 5th World Commu-
nications Day (Mensagem de sua santidade o Papa Francisco para
o 5º Dia Mundial da Comunicação). Em: https://www.vatican.va/
content/francesco/en/messages/communications/documents/
papafrancesco_20160124_messaggiocomunicazionisociali.html
Rennaker, M. (2008). Listening and persuasion: Examining the communicative
patterns of servant leadership (A escuta e a persuasão: um exame dos
padrões comunicativos da Liderança Servidora). Unpublished Dissertation
(Dissertação não publicada). (Publicação UMI N° 3309285). [Disser-
tação de doutorado, Regent University]. ProQuest LLC.

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VOZES MARISTAS

Russell, R. F. (2001). The role of values in servant leadership (O papel


dos valores na liderança de servidores). Leadership & Organization
Development Journal (Jornal de Desenvolvimento e Organização de Lid-
erança), 22(2), 7685.
Russell, R. F., & Stone, A. G. (2002). A review of servant leadership attri-
butes: Developing a practical model (Uma análise dos atributos da
liderança servidora: o desenvolvimento de um modelo prático).
Leadership & Organization Development Journal (Jornal de Desenvolvi-
mento e Organização de Liderança), 23(3/4), 145157.
Sammon, S. D. (2013). A Heart That Knew No Bounds:The life and mission of
Saint Champagnat M. J. B. (Um coração sem fronteiras: a vida e a
missão de São Champagnat M.J.B.) [Kindle Edition]
Zisa, J. (2013, June 20). Listen to serve: Servant Leadership and the Practice of Ef-
fective Listening (Escutar para servir: a Liderança Servidora e a prática da
escuta efetiva). Marylhurst Center for Servant Leadership (Centro
Marylhurst para a Liderança Servidora). Em: https://www.green-
leaf.org/listentoserveservantleadershipandthepracticeofeffectivel-
istening/

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 9

Sentinelas da aurora:
Pre-ver: a imaginação
profética
Ir. Emili Turú
Superior-Geral
(2009-2017)

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VOZES MARISTAS

Era o ano de 1993. No final do Capítulo Geral, fui convidado a


gravar algumas palavras para um vídeo para as comunidades Maristas de
língua espanhola. Não me lembro de nada que disse naquela gravação. Mas
até hoje continua a ressoar em mim a mensagem do Irmão que gravou
antes de mim e que pude ouvir ao vivo: Irmão Basílio Rueda.

Lembro-me que naquela época fiquei muito surpreso quando ele


disse - com a serenidade que o caracterizava, mas com equilíbrio - que
profundas mudanças estavam ocorrendo no Instituto. Da minha falta de
experiência e ingenuidade, perguntei-me do que exatamente ele estava
falando ...

Em 2017, 24 anos depois daquela gravação, já tive tempo de enten-


der o alcance das palavras do Irmão Basílio. Em preparação para a festa de
São Marcelino, quis recuperar aquele vídeo, que incorporamos na minha
própria mensagem. É assim que começam as palavras do Irmão Basílio:

Creio que a mensagem que se deve transmitir aos Irmãos, espe-


cialmente o coração da mensagem, é dizer-lhes que o Instituto
está passando por uma espécie de virada na história. Uma virada
que será marcada por uma fidelidade mais profunda e, ao mesmo
tempo, por mudanças muito importantes. (Citado por Turú, 6 de
junho de 2017)

Creio que o Irmão Basílio encarnou muito bem uma característi-


ca da liderança profética e servidora da qual trataremos nas páginas que se
seguem: a previsão. Como veremos, é uma habilidade difícil de ser expressa
em uma única palavra1, pois é uma experiência que vai muito além das
definições do dicionário2.

Quando muitos de nós no Instituto não enxergavam além de nossa


limitada área de missão, com pouca visão global e de futuro, o Ir. Basílio
antecipou um momento de grandes mudanças e lembrou a todos “a neces-
sidade de dar uma virada muito importante em nossas vidas, nossas comu-
nidades, nossas obras. ”

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

A capacidade de previsão acompanhou o Irmão Basílio, de manei-


ra muito clara, ao longo de seus 18 anos, como Superior Geral. Mas tam-
bém se manifestou antes, o que sem dúvida influenciou sua eleição como
líder do Instituto, na turbulenta década de 1960.

Mais de uma vez me perguntei como o Irmão Basílio conseguiu


preservar sua serenidade e clarividência (outro sinônimo de previsão),
quando aparentemente o Instituto estava afundando. Em 1985, quando ter-
minou seu mandato, havia 3.594 Irmãos a menos do que quando começou
em 1967. Como pôde manter o ritmo por tantos anos, em meio a vozes de
desconfiança e resistência? Como não desanimar e se perguntar se a direção
tomada foi a certa?

É sobre essa capacidade que queremos falar nas páginas que se se-
guem. Uma habilidade muito importante, difícil de conviver e certamente
não fácil de descrever. É provavelmente por isso que é uma característica
pouco estudada, como Larry Spears (2000), um grande estudioso da obra
de Greenleaf, reconheceu: “A prospectiva continua sendo uma área am-
plamente inexplorada nos estudos de liderança, mas que merece atenção
especial” (p. 4).

1. A previsão como uma dinâmica estrutural


essencial da liderança
Faremos nossa primeira abordagem sobre o significado dessa habi-
lidade de liderança da mão de Greenleaf (2002). De acordo com este autor:

a) A previsão é o que guia o líder

Muitos que estão em uma posição de liderança não lideram real-


mente, eles apenas reagem aos eventos conforme eles se desenvol-
vem. Mais de uma vez, ouvi líderes dizerem que se sentem bom-
beiros, correndo e apagando incêndios, sem tempo para reflexão
silenciosa.

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VOZES MARISTAS

Existem abundantes exemplos atuais de perda de liderança


decorrente da falta de previsão do que poderia ter sido
razoavelmente previsto e da falta de ação baseada nesse
conhecimento, enquanto o líder ainda estava livre para
agir. (p. 40)

Greenleaf (2002) viu a previsão como parte do compromisso ético


do líder. E, portanto, segundo ele, não ser capaz de prever eventos ou recu-
sar-se a fazê-lo, deve ser considerado antiético.

b) O líder visionário: historiador, analista, profeta

“O Líder é ao mesmo tempo, historiador, analista contemporâneo


e profeta, não três papéis separados. Assim é o líder quando age, to-
dos os dias de sua vida” (p. 39). Historiador, porque aprende com o
passado; analista porque estuda em profundidade o momento atual;
profeta porque intui o futuro.

O prudente é aquele que pensa constantemente no agora


como um conceito em movimento em que o passado, o
presente e o futuro são uma unidade orgânica. E isso re-
quer viver com um tipo de ritmo que promove um alto
nível de percepção intuitiva em toda a gama de eventos,
desde o passado indefinido, passando pelo momento pre-
sente, até o futuro indefinido (p. 39).

c) Prospectiva, uma questão de confiança

Como manter a calma - Greenleaf pergunta - quando abunda


incerteza neste mundo turbulento em que temos vivido? É uma
questão de confiança ou fé. Porque o líder que pratica a previsão
acredita que se ele enfrenta uma situação com experiência sufi-
ciente e a percepção necessária no nível consciente, então, no mo-
mento certo, o insight intuitivo necessário para um desempenho
ideal será obtido.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Você tem que passar pelas etapas do processo criativo, o


que requer que você permaneça com a análise consciente
tanto quanto possível, e então se retire, liberando-se da
pressão analítica, mesmo que apenas por um momento,
com plena confiança de que você será capaz de fazer isso
a solução certa virá. (p. 39)

Concluindo, podemos dizer que Greenleaf vê o líder previdente


como alguém que sabe combinar reflexão e estudo com intuição, como
em qualquer arte. A tomada de decisão, por exemplo, é mais do que um
processo lógico, embora não o exclua. “A forma de alguns eventos futuros
pode ser calculada, a partir de dados de tendência. Mas ... geralmente há
uma lacuna de informação que deve ser preenchida e, portanto, as condi-
ções que favorecem a intuição devem ser cultivadas” (p. 38).

Uma vez que os dados foram analisados com cuidado e profun-


didade, não se precipita a tomada de decisão, mas sim tenta ver a realidade
de outro ponto de vista, que podemos chamar de percepção intuitiva, e no
final talvez tome uma decisão que, aparentemente, irá dar errado contra
dados previamente estudados.

Pense no Papa João XXIII quando ele convocou o Concílio


Ecumênico Vaticano II. Um bom grupo de cardeais da cúria romana, mui-
to influente, tentou dissuadir o Papa com todas as suas forças. E certamente
havia dados objetivos que fariam qualquer pessoa duvidar da oportunidade
de tomar uma decisão desta magnitude. O Papa estudou, ouviu, rezou ... e
no dia 25 de janeiro de 1959, três meses depois de sua eleição, convocou o
Concílio em frente ao Colégio Cardinalício, que “o acolheu com expres-
sões de alegria e votos fervorosos” (João XXIII, 1960, AAS 52, p. 433), nas
palavras do próprio Papa, embora suspeitemos que as expressões de alegria
não foram muitas ...

Assim que João XXIII compreendeu que era necessário um Con-


cílio, nada o deteve, apesar de todas as dificuldades, que não eram poucas.

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VOZES MARISTAS

É muito interessante observar as palavras que usou para se referir a essa de-
cisão: “A inspiração do Altíssimo parece-nos o pensamento, que desde
o início do nosso pontificado brotou em nossa mente, como uma flor da
primavera imprevista, de convocar um Concílio Ecumênico” (AAS 53, p.
433). Inspiração do Altíssimo e da flor da primavera imprevista. Uma “in-
tuição profética”, de acordo com o Papa Francisco (2013). Uma bela forma
de definir a previsão: a intuição profética, que surge como um presente
inesperado e é recebida como inspiração.

A capacidade de agir dessa forma é, segundo Greenleaf (2002), “a


dinâmica estrutural essencial da liderança” (p. 39). Qualidade que reconhe-
cemos no Papa João XXIII quando convoca o Concílio, ou em Marcelino
Champagnat quando decide iniciar o Instituto Marista em 2 de janeiro de
1817. Mas é importante esclarecer que a firmeza destes dois homens de
Deus não deve confundir-se com o orgulho de quem acredita ter todas as
respostas ou com a teimosia de quem vai em frente com suas ideias sem
ouvir ninguém.

Peter Senge (2002) nos lembra disso no epílogo que escreveu para
a edição do 25º aniversário do livro Greenleaf, ao qual temos nos referido
repetidamente. Citando o filósofo Eric Hoffer, ele enfatiza que a distinção
fundamental entre compromisso e fanatismo é a incerteza.

Um fanático está seguro. Um fanático tem a resposta. Um fanático


sabe o que realmente está acontecendo. Um fanático tem o plano.
Quando você entende isso, percebe que o preconceito não se limi-
ta apenas às franjas extremas da sociedade civilizada. O fanatismo
está vivo e atuando na sociedade em geral. Surge em todos os tipos
de posições de autoridade. Na verdade, eu diria que é o primeiro e
mais fundamental abuso de todas as posições de autoridade. (Senge,
2002, p. 353)

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

E prossegue:

Greenleaf também entendeu isso. Em sua discussão sobre compro-


misso, ele afirma: “Em última análise, é preciso tomar decisões. Tal-
vez alguém escolha o mesmo objetivo ou hipótese repetidamente.
Mas é sempre uma escolha nova e aberta, e sempre sob a sombra de
dúvidas.” Está sempre sob uma sombra de dúvida. Do meu ponto
de vista, todo compromisso verdadeiro vive no domínio da dúvida.
(Senge, 2002, p. 354)

Haveria inúmeros exemplos tirados da vida do Padre Champagnat


que nos mostrariam aquela abertura de espírito do nosso fundador. Uma
serena certeza interior de que estava seguindo a vontade de Deus, mas
aberto à possibilidade de estar errado.

2. Presencing
Além dos estudos feitos por Greenleaf sobre essa habilidade de
liderança chamada previsão, houveram outras abordagens para o conceito,
embora usando outros termos.

Considero particularmente significativa a contribuição de um


grupo de estudiosos do desenvolvimento organizacional, que publicou em
conjunto um livro intitulado “Presença”, em 2004 (Senge et al.).

Na origem dessa reflexão está a observação de Peter Senge a pro-


pósito de seus alunos no MIT. Ele ofereceu a todos eles os mesmos instru-
mentos e métodos de mudança organizacional, muitos deles reunidos em
seu famoso livro “A Quinta Disciplina” (Senge, 1990/2006), mas os resulta-
dos foram muito diferentes, dependendo da pessoa que os aplicou. Por que
os mesmos instrumentos foram eficazes nas mãos de alguns e totalmente
ineficazes nas mãos de outros?

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Otto Scharmer aceitou o desafio de responder a essa pergunta e


realizou pesquisas, entrevistando 130 líderes, empreendedores e inovadores,
além de participar ativamente de processos de mudança em empresas, go-
vernos e comunidades. O resultado do estudo encontra-se no livro coletivo
Presença e em outro livro, escrito apenas por Scharmer (2009), intitulado
Teoria U.

Uma conclusão importante a que chegou o autor da Teoria U foi


que a liderança teve sucesso ou não dependendo da qualidade da atenção e
da intenção que o líder deu à situação na qual ele teve que intervir.

Dois líderes nas mesmas circunstâncias, fazendo a mesma coisa, po-


dem produzir resultados completamente diferentes, dependendo
do local interno a partir do qual cada um opera. Aprendi isso com
o falecido Bill O’Brien, que era o CEO da Hanover Insurance.
Quando lhe pedi para resumir sua experiência de aprendizado
mais importante para liderar uma mudança profunda, ele respon-
deu: “O sucesso de uma intervenção depende da condição interna
da pessoa que intervém.” A natureza desse lugar interno nos líderes
é um mistério para nós. (Scharmer, 2008, pp. 52-59)

O que faz a diferença em qualquer intervenção, então, não é o que


é feito ou como é feito, mas quem age: “quem somos e o lugar ou fonte
interna a partir da qual operamos, tanto individualmente quanto coletiva-
mente” (Senge et al., 2004, p. 5). Isso é o que Scharmer chama de “ponto
cego”, porque a maioria dos líderes ou estudiosos param no que fazer ou
como fazer, mas ignoram esse “lugar ou fonte interna” a partir da qual
agem, e isso os torna muito ineficazes para alcançar profundidade e mu-
danças duradouras.

Greenleaf destacou a importância fundamental da previsão para a


liderança; a nova perspectiva desenvolvida pelos autores de Presença consiste
na atenção que deram à origem dessa habilidade e, portanto, a como culti-
vá-la. Na verdade, o título do livro já indica a forma de o fazer: a presença.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Uma palavra muito querida pela tradição Marista, e que se refere tanto a
viver conscientemente o momento presente (“viver na presença de Deus”),
quanto a estar perto das pessoas, especialmente das crianças e jovens que
nos sãos confiados (“estar presente”).

Quando essa presença é vivida de forma profunda, conduz a uma


experiência profunda que é muito difícil de exprimir em palavras, como já
dissemos, quando se fala de previsão. Por isso se inventou a palavra “presen-
cing”, que não existia na língua inglesa, e que é a soma das palavras “pre-
sence” (presença) mais “sensing”. Em espanhol acho que a combinação dos
verbos testemunhar e pressentir poderia captar o significado do que está
sendo expresso, mas neste texto usaremos a palavra inglesa.

“O verdadeiro desafio para entender ‘presencing’ não está no fato


de ser uma palavra abstrata, mas na sutileza da experiência” (Senge, et al.,
2004, p. 89).

Que experiência é essa? Os autores de Presença passam a identi-


ficá-la com a experiência mística, que se expressa de diferentes formas,
de acordo com as diferentes tradições religiosas (Senge et al., 2004, p. 14),
mas que também têm em comum um processo de abandono como uma
experiência de presença ou comunhão profunda, que nos permite ver a
realidade como ela é e o futuro como ele emerge.

Escolhemos o termo “presencing” para descrever esse estado por-


que se trata de tornarmo-nos totalmente presentes, tanto para o
espaço ou campo maior ao nosso redor, quanto para uma com-
preensão mais ampla de si mesmo e, em última análise, para o que
está emergindo por meio de nós. (Senge et al., 2004, p. 91)

Dung Q. Tran e Larry C. Spears (2019) questionam, em um artigo


escrito em conjunto se, considerando as características da previsão, não é
uma habilidade com a qual deve nascer, deixando entender que se você
nascesse com isso seria melhor para você e que, se não, você não pode fazer

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nada. Na verdade, eles afirmam que “todas as outras características podem


ser desenvolvidas conscientemente” (p. 80), da qual se deduz que a previsão
não pode ser desenvolvida: você tem ou não tem.

É muito difícil para mim aceitar essas afirmações, pois estou con-
vencido de que todas as pessoas nascem com essa capacidade potencial e
que, como todas as outras, a pessoa pode favorecer ou bloquear seu desen-
volvimento.

Como cristão, acredito que todos somos habitados pelo Espírito


de Deus e que todos podemos ser guiados por seu sopro, se permitirmos.
É só estabelecer as condições de vida para que possamos acessar aquele
lugar íntimo e sagrado, o “ponto cego” de que fala Otto Scharmer. E, para
isto, é necessária uma certa disciplina pessoal permanente no exercício das
práticas contemplativas, a começar pela meditação.

Presencing é para nós, no meu ponto de vista, um convite a viver


o máximo possível no aqui e agora, e assim poder ter acesso a Deus que é
presença, fonte de toda criatividade, visão, energia.

O momento atual de transição que vivemos globalmente em to-


dos os níveis - sociedade, Igreja, Instituto -, precisa de pessoas que assu-
mam com coragem sua própria liderança e se comprometam a criar em si
mesmas as condições necessárias para que surja a clarividência, a intuição
profética a serviço do outro.

3. Sentinelas da aurora
Tão importante quanto cultivar a previsão ou a intuição profética
é a habilidade de compartilhá-la e comunicá-la apropriadamente ao outro.

Nesse sentido, a tradição profética do Povo de Deus nos ilumina


sobre como exercer este tipo de liderança, quando se trata de iluminar o
futuro e despertar esperança. De maneira particular, os profetas que surgi-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

ram em torno do exílio são tremendamente atuais, pois acompanham o


povo em momentos muito importantes de transição antes, durante e depois
do exílio. Tanto Jeremias quanto o segundo Isaías usam linguagem poética
porque é mais adequada para expressar suas intuições.

A linguagem de Jeremias é livre, porosa e impressionista: ele é um


poeta .... Os poetas não têm conselho para as pessoas. Eles apenas
tentam fazer com que as pessoas vejam a vida de forma diferente.
Eles não são coercitivos. Procuram apenas estimular, surpreender,
sugerir e oferecer nuances, nada mais do que isto. Eles não podem
fazer mais, porque estão disponibilizando um mundo que não exis-
te além de sua imaginação; mas sua oferta desse mundo imagina-
tivo é necessária para dar liberdade de ação. (Brueggemann, 1986,
p. 23-24)

Os profetas, como poetas que são, falam de maneira porosa. Eles


usam um tipo de linguagem que não se esgota depois de ouvi-la pela pri-
meira vez. Eles deixam muitas coisas em aberto, ambíguas, que precisam ser
discernidas após muita reflexão. O objetivo da linguagem porosa é deixar o
poema e a realidade a que ele se refere abertos à experiência do ouvinte. Os
poetas acreditam na capacidade das pessoas de dar continuidade à imagem,
de finalizar o seu pensamento a partir de sua própria experiência. Não são
as parábolas de Jesus um testemunho claro de que o Reino nos é oferecido
por meio da imaginação, do discurso poético?

Brueggemann (1986), falando do segundo Isaías, afirma que é “o


exemplo supremo de imaginação poética desencadeada no Antigo Testa-
mento” (p. 96). E acrescenta:

A prática da imaginação poética é o ato mais subversivo e reden-


tor que um líder de uma comunidade de fé pode realizar entre os
exilados... porque tem o potencial de empoderar uma comunidade
para uma ação que não será limitada por qualquer restrição impe-
rial ou definição de realidade (p. 96).

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VOZES MARISTAS

A poesia não descreve o que acontece. Evoca imagens e sugere


percepções em Israel que só estavam disponíveis naquela poesia. Assim, a
esperança é gerada. Uma esperança que permite à comunidade partir e
abandonar o império dominante. Sabemos que, como diz Paul Ricoeur, “as
pessoas mudam não por impulsos éticos, mas por causa de uma imaginação
transformada.” (Brueggemann, 1986, p. 25).

Vamos nos lembrar do uso da imaginação profética exercida por


outros profetas mais próximos de nós na história. Por exemplo, Martin
Luther King, quando convoca e põe em movimento milhares de pessoas
proclamando que I have a dream. Não foi um plano de ação, mas um sonho
que se conectou com as aspirações de muitos outros milhares de pessoas.

Ou vamos nos lembrar das palavras poéticas do Papa João XXIII


quando inaugurou o Concílio Vaticano II: “Começa o Concílio, adolescên-
cia de um exuberante dia de luz para a Igreja. Mal amanhece, e com que
suavidade os primeiros raios do sol nascente acariciam nossos corações! O
ar é sagrado aqui, trespassado por estremecimentos de alegria”3. Não só
a própria convocação acendeu a esperança em muitas pessoas em todo o
mundo, mas também a sua linguagem evocativa e poética, lembrando-nos
que a transformação da Igreja demoraria: é só madrugada!

A imagem da alvorada também foi repetida pelo Irmão Basílio


e depois dele por outros Superiores Gerais, reacendendo nossa esperança
diante de uma realidade transfigurada, que a intuição profética já vê realiza-
da, mas que só pode ser descrita com a sugestiva linguagem poética.

Todos os Maristas de Champagnat, a partir da liderança que nos


corresponde – e isso vale absolutamente para todos – sentimo-nos cha-
mados a deixar brotar em nós a previdência, aquela intuição profética que
nos permite estar – com tantas outras pessoas no mundo - sentinelas da tão
desejada alvorada de um mundo onde todos podemos viver como irmãos
e irmãs.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Saber esperar, sabendo,


ao mesmo tempo, forçar
as horas daquela urgência
que não permite esperar ...

Pedro Casaldáliga (1984, p. 95)

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Certamente conheceu alguém que encarna ou encarnou a capacidade
de previsão e que, de alguma forma, tem sido uma inspiração para você.
Quais características desta pessoa você acha que mais o inspiraram? O
que você pode aprender com isto para sua própria vida?
2. Se você tivesse que descrever “previsão” ou “visão profética” com suas
próprias palavras, o que diria?
3. Que práticas você pode aplicar - ou continuar a aplicar - em sua vida
que favorecem o desenvolvimento da previsão?
4. Do seu serviço ou responsabilidade, em que aspectos ou áreas você
considera importante ser uma pessoa visionária?
5. Como você pode diversificar intencionalmente suas perspectivas e ma-
neiras de ver o mundo ou sua instituição?
6.

REFERÊNCIAS

Brueggemann, W. (1986). Imaginação esperançosa: vozes proféticas no exílio.


Fortress Press.

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VOZES MARISTAS

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volta muito importante em nossas vidas. In: https://champagnat.org/
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A tecnologia social da presença. Editores Berrett-Koehler.
Scharmer, CO (2008). Descobrindo o ponto cego da liderança. Leader to
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versário). Liderança servil: uma jornada para a natureza do poder e gran-
deza legítimos. Paulist Press. [Edição Kindle].
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ção de Nicholas Brealey.
Spears, LC (2000). Sobre caráter e liderança servil: Dez características de
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Turú Rofes, Emili. (6 de junho de 2017). Mensagem do Superior Geral

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

para a festa de São Marcelino. Dentro: https://champagnat.org/


es/dar-un-giro-muy-importante-a-nuestras-vidas

Notas
1 Previsión é a palavra normalmente usada em espanhol para traduzir pre-
visão nas obras de Greenleaf. Mas, na verdade, o próprio Greenleaf usou as palavras
foresight (previsão) e prescience (presciência). (Cambridge Dictionary & RAE, 2021).
2 Dicionário Cambridge. A previsão é a capacidade de julgar corretamente o que
vai acontecer no futuro e planejar suas próprias ações com base nesse conhecimento. O Di-
cionário da Real Academia Espanhola dá diferentes significados para a palavra previsão: ver
com antecedência; saber, conjeturar por alguns sinais ou indícios o que deve acontecer; arranjar
ou preparar meios contra futuras contingências.
3 A Gaudet Mater Ecclesia foi totalmente redigida pessoalmente pelo Papa,
segundo Dom Loris Capovilla, que foi seu secretário pessoal. O texto que aqui
trazemos é o oferecido pelo Bispo Capovilla, que preserva o tom poético original,
e que se perdeu quando foi traduzido para o latim (a única língua oficial na épo-
ca), e novamente traduzido para o italiano e outras línguas. Cf. Tantum aurora est.
Conversazione dell’arcivescovo Loris Francesco Capovilla na Basílica de Sant’Eufemia di
Piacenza. (28 de outubro de 2009).

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VOZES MARISTAS

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 10

Administração e
gestão na liderança
servidora
Ir. Libardo Garzón Duque
Ecônomo-Geral
(2015-2021)

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VOZES MARISTAS

Os responsáveis pelos bens a serviço do Instituto cuidam deles, inspirados


na missão que assumem no seio da Igreja. Na sua gestão, preocupam-se
com o bem comum, a justiça, a pobreza, a caridade e a missão do Instituto.
(C 101)

Introdução
Esta reflexão pretende ser um retrato da ampla esfera da prática
da administração, sob a ótica da liderança servidora. Para isso, são tomados
elementos do Evangelho, alguns documentos atuais da Igreja, da tradição
Marista, da própria experiência e algumas contribuições sobre a forma de
recriar a arte da administração a serviço das necessidades dos outros.

Uma das características de um bom líder é sua visão administrativa.


Quando o líder de uma Instituição, apesar de possuir excelentes aptidões
pastorais, carece de elementos administrativos, cria-se uma grande confusão,
por vezes com profundas repercussões na gestão, tanto do talento humano
como dos restantes recursos a serviço da Instituição. A maneira como você
exerce liderança tem um forte impacto em todas as organizações, portanto,
requer muito mais do que boa vontade. Todas as formas de liderança são
baseadas em três ingredientes básicos: caráter, gestão e experiência (Gini &
Green, 2014).

Por falar em administrar…


A palavra “administrar” é composta de duas partes: “ad” e “mi-
nistro”. O prefixo “ad” significa “para”, e a raiz “ministrando” significa
“servindo” (Taylor, 2012). Quem gerencia, concentra sua vida no servi-
ço, atende às necessidades dos outros, compartilha sua responsabilidade e
multiplica sua liderança, potencializando a liderança dos outros. Em inglês
antigo, a palavra steward (stiward) significa “governanta”, pessoa encarregada
de administrar a casa de outra pessoa. “Atuar como gerente é atuar como
“agente” de outra pessoa. A administração, portanto, sugere ser “dirigida

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

por outros”, ser “responsável pelos outros”, estar ao “serviço dos outros”.
Administração sempre tem a ver com os outros (Gini & Green, 2014).
Como diz Richard Waters (2013) em sua pesquisa sobre o papel da admi-
nistração na liderança, a relação entre o gestor de uma organização e seus
destinatários é muito importante, uma vez que suas ações têm impacto no
bem-estar econômico, social, cultural ou político, o que requer responsa-
bilidade, prestação de contas e promoção de relações transparentes entre as
partes interessadas, a fim de garantir o sucesso a longo prazo da organização.

O administrador, com uma abordagem de liderança de serviço,


atende às necessidades dos outros, dando atenção especial aos mais vulne-
ráveis. Busca o bem comum e se preocupa em cuidar do que lhe foi con-
fiado, promovendo o desenvolvimento da instituição com uma perspectiva
de futuro. Como diz o Papa Francisco, o administrador fiel e prudente
tem a tarefa de cuidar atentamente daquilo que lhe foi confiado, ciente da
responsabilidade que tem de salvaguardar e administrar com diligência os
próprios bens, à luz da sua missão evangelizadora e com particular atenção
aos mais necessitados (Francisco, 2014).

Organizações são sistemas dinâmicos, nos quais cada um dos mem-


bros contribui para o desenvolvimento da missão, a partir de funções es-
pecíficas. O exercício da liderança é fundamental para ajudar a harmonizar
esses papéis, dependendo da visão da organização. O líder do ponto de vista
administrativo motiva e impacta a organização, favorecendo a proatividade,
o bom desempenho e o bem-estar social. Seu papel vai além de números,
além de contabilidade, além de gestão de negócios. É inclusivo na forma de
viabilizar a missão e a visão do trabalho e da organização como um todo.

O líder servo, administrador


Cuida dos outros

Uma das características mais importantes do gerente numa pers-


pectiva de liderança servidora é a capacidade de cuidar das pessoas das quais

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VOZES MARISTAS

se faz responsável. Como diz Morela Hernández, os líderes têm uma enor-
me responsabilidade de agir não apenas como cuidadores, mas também
como modelos para as gerações futuras. Seu comportamento tem grande
influência no desenvolvimento de futuros líderes (Hernandez, 2009).

Taylor (2012) em seu artigo El líder siervo: Un nuevo paradigma afir-


ma que “o estilo de liderança que se adota é baseado em sua visão de mun-
do, em sua perspectiva de vida” (p. 10). Da mesma forma, analisa a partir
de uma perspectiva cristã, algumas características do líder-servo: primeiro,
compartilha sua visão e liderança com sua equipe, ele dá o exemplo e
promove o esforço coletivo. Está atento às necessidades dos outros, valori-
za-os e forma a sua capacidade de liderança, por meio da distribuição de
processos e da tomada de decisões participativas; promove a liderança de
cada um em suas próprias áreas de habilidade e destreza para a realização da
visão comum; promove o desenvolvimento de sua equipe, estimula sua
criatividade e ajuda a realizar seus sonhos. Desta forma, as pessoas sob sua
responsabilidade sentem-se satisfeitas e fortalecem suas habilidades de lide-
rança. Lambert (2000) citado por Taylor (2012), expressa que as pessoas em
uma organização têm o direito, a habilidade e a responsabilidade de serem
líderes. Por fim, cria comunidade, enriquece a vida dos outros e constrói
melhores ambientes sociais, promove a comunicação saudável da vida, au-
tonomia e liberdade; conceitos que Mateos e Camacho (2000) ampliam
ao afirmar que essa liderança não cria dependência ou subordinação, não
confere superioridade, nem cria patentes.

Para além do cuidado com os recursos econômicos e financeiros

O líder na perspectiva da administração gere os ativos à disposição


da organização com sentido de responsabilidade, pensando no bem comum
e procurando a sustentabilidade ao longo do tempo. Sente-se chamado a ir
além da “simples administração”, além de si mesmo, do próprio conforto e
segurança (Francisco, 2013). Gerencia a economia de uma perspectiva hu-
mana, uma economia que serve e não que governa (Lluch Frechina, 2015);
onde existe a preocupação de ajudar os pobres na solidariedade, onde a

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

ninguém falta o que é necessário, onde todos são respeitados e valorizados.


É fundamentalmente promover uma economia ética e finanças para a vida.
Em uma sociedade onde dinheiro e poder se tornaram quase o objetivo
fundamental de muitas pessoas, o Papa Francisco (2013) nos questiona:

É impressionante que mesmo aqueles que aparentemente têm só-


lidas convicções doutrinárias e espirituais tendem a cair em um
estilo de vida que os leva ao apego à segurança econômica, ou a
espaços de poder e glória humana que sejam buscados por qual-
quer meio, em vez de dar a vida pelos outros na missão. (EG, 80)

A Igreja nos desafia


O Papa Francisco é hoje uma das figuras mais influentes do mun-
do. Reconhecido como um líder participativo, ele se adapta aos contextos,
reconhece as necessidades dos outros e se sente necessitado aos demais.
Seus escritos são simples, compreensíveis e capturam profundamente o cla-
mor do mundo de hoje. Ele se apresenta não tanto como alguém com
autoridade, mas como alguém que precisa de ajuda: “Rezem por mim”
(Osorio Cuervo, 2019).

A Igreja convida as instituições de vida consagrada e as sociedades


de vida apostólica (CIVCSVA, 2018) a gerir as obras com uma visão de
futuro, fiéis à intuição carismática inicial e com significado evangélico. Isso
requer pessoas com liderança, capazes de discernir e se deixarem ajudar
por especialistas externos, de trabalhar com outras instituições e combinar
competências e habilidades para trabalhar em rede. Nesta perspectiva, ele
nos chama a promover relações baseadas em princípios de comunhão e
fraternidade que nos permitam trabalhar em ações conjuntas. Isso significa
coordenar e compartilhar, em nível de projeção e gestão, uma cultura e
uma práxis que garantam a perenidade das obras, bem como sua eficácia
evangélica e sustentabilidade econômica (CIVCSVA, 2018).

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VOZES MARISTAS

A experiência marista
O Padre Champagnat teve o apoio de outros sacerdotes. Depois
que dois deles deixaram o Hermitage, após reflexão cuidadosa e longa
oração, ele decidiu escrever ao arcebispo para implorar-lhe que enviasse
alguém que pudesse ajudá-lo na administração dos assuntos da congrega-
ção. Ao mesmo tempo, foi ao encontro do Sr. Gardette, reitor do seminá-
rio maior, para informá-lo de sua situação e pedir-lhe que mediasse com
o arcebispo para atender ao seu pedido (Furet, 1989). Ele sabia que não
poderia cumprir sua missão de liderança sozinho, que precisava de outras
pessoas para ajudá-lo, pois o número de irmãos e de escolas aumentava no
nascente Instituto.

A experiência do Padre Champagnat e de muitos outros, vivida


ao longo da história do instituto, mostra-nos numerosos testemunhos de
irmãos e leigos que, com seu estilo de liderança, moldaram a vida e a missão
como as temos hoje. A sua visão e sentido de responsabilidade na forma de
cumprir esta liderança face à vida e missão Maristas, nos leva a continuar na
busca dinâmica de respostas aos apelos da Igreja e da sociedade.

Gostaria de destacar a contribuição do Irmão Filogonio, que foi


um excelente líder em seu tempo. Em sua biografia conta-se que ele se
destacou como educador, administrador e organizador, pela maneira como
cuidava de tudo na casa, colocava tudo no seu lugar e fazia com que a
ordem reinasse em tudo. Ele cuidou de seus Irmãos e seus alunos. Ele era
mais que um pai, era como uma mãe, terno, delicado, meticuloso no cui-
dado de cada um, tanto na saúde como na doença. Ao longo de sua vida
como Assistente Geral, soube unir autoridade caracterizada pelo respeito
e pelo amor doado e sacrificado (Petits Freires de Marie, 1900). Isso lhe
permitiu ter frutos excelentes e abundantes. O Irmão foi um promotor do
extraordinário desenvolvimento que sua província teve sob seu governo.
Quando começou, havia quarenta e nove estabelecimentos e duzentos e
cinquenta Irmãos; em sua morte, o número de casas era de noventa e qua-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

tro, e o dos religiosos quase quinhentos e cinquenta. Note-se que a partir


de sua experiência escreveu o Manual Doméstico (Philogone, 1874), uma
espécie de vademecum da economia doméstica para uso das comunidades
(Lanfrey, 2018).

Na história recente, o Irmão Benito Arbués, como Superior Ge-


ral, escreveu uma circular na qual convidava os Maristas a administrar os
bens à disposição da vida e da missão do Instituto, sentindo-se humildes
administradores e a usar métodos renovados que tornam evangelicamente
eficientes a administração de ativos (Arbues, 2000). Essa visão do Irmão
Benito continua sendo muito desafiadora e atual.

O XXII Capítulo Geral nos convida a exercer uma liderança cada


vez mais corresponsável entre Irmãos e Leigos, com uma visão de família
global e que renuncie a estruturas e atitudes que não a favorecem.Também
nos convida a promover estratégias que permitam compartilhar os recursos
humanos e financeiros a serviço da vida e da missão Maristas, especialmen-
te com as realidades emergentes. Neste sentido, o projeto “Em comunhão e
solidariedade” do plano estratégico da Administração Geral, que se realiza a
partir do economato geral, busca otimizar a gestão coordenada de recursos
e a solidariedade interna que levam ao desenvolvimento de um sentido
forte de interdependência e sustentabilidade da vida e missão Maristas (Ir-
mãos Maristas, 2018).

Finalmente, as Constituições dos Irmãos Maristas, recentemente


aprovadas, nos convidam a administrar os recursos Maristas de maneira
transparente, responsável, eficiente, sustentável e confiável. São bens a ser-
viço da evangelização, da solidariedade e da comunhão, segundo o nosso
carisma (C 98).

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VOZES MARISTAS

Desafios para os líderes Maristas na área


administrativa
A experiência do Covid-19, assim como as múltiplas situações vi-
vidas no passado, revela a paixão dos Irmãos e Leigos pela missão, sua capa-
cidade criativa de inspirar, transmitir confiança para o futuro e concretizar
respostas às necessidades, em diferentes contextos.

O XXII Capítulo Geral (2017) nos convidou a tomar consciência


do papel que, como Maristas, somos chamados a assumir hoje, quando nos
questionou: “Quem Deus quer que sejamos neste mundo emergente?” E
“O que Deus quer que façamos neste mundo emergente?” Essas questões
são apelos a continuar a ressoar profundamente, especialmente em quem,
de alguma forma exerce um papel de liderança nas instituições. A liderança
profética e servidora, em grande medida em consonância com os princí-
pios do evangelho, abre uma ampla gama de possibilidades para nós, na ma-
neira de fazer vida estes chamados de Deus em nossa missão. Os parágrafos
a seguir pretendem apresentar alguns desafios, entre muitos outros, para os
líderes Maristas do ponto de vista administrativo.

Integridade pessoal
Uma pessoa é considerada íntegra quando é honesta, age de forma
correta e transparente. Quero dizer, é alguém em quem você pode confiar.
Este líder leva tempo para pensar sobre seus próprios valores, bem como os
da instituição. Essa ideia também é expressa por Siliceo et al. (2001), quan-
do afirmam que o líder dá exemplo dos valores e comportamentos que
deseja ver nos outros. Além disso, estão cientes de suas responsabilidades
para com os outros (Gini & Green, 2014).

O líder é chamado a colocar o serviço acima do interesse próprio.


“O serviço é o melhor professor para aprender a controlar o próprio ego”
(Siliceo Aguilar et al, p. 86). Esta visão coincide com a apresentada por Gini

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

& Green (2014) quando afirmam que a essência da liderança e de todas as


formas de autoridade é a subordinação de si mesmo ou do próprio ego às
necessidades e desejos de uma comunidade. A autoridade e a capacidade
de persuadir os outros são transmitidas pela paixão com que vive os valores
e pela forma como exerce a sua liderança. Em alguns casos, os líderes são
chamados a lidar com o fascínio do poder, a fim de fazer do seu papel uma
missão no sentido espiritual (Murad, 2015).

Visão estratégica
Os líderes da área administrativa são chamados a ter uma orientação
fundamentalmente estratégica, embora, no nosso caso, eles também preci-
sem se equilibrar com uma abordagem operacional do dia a dia (Spears,
2010). Esta gestão diária sem perder de vista a visão de longo prazo exige
disciplina e prática. O Líder-servidor integra o compromisso da instituição
com as expectativas dos diferentes públicos de relacionamento, por meio de
soluções criativas voltadas para a concretização da visão institucional. Gera
relações de colaboração dentro e entre instituições e está atento ao meio
ambiente e suas implicações para a instituição. É leal à visão institucional,
compromete-se com o seu desenvolvimento e influência na forma de tor-
ná-la realidade, ajudando os membros da Instituição a caminharem juntos
para concretizá-la. O empenho de todas as partes na concretização da visão
torna-se um elemento essencial para o futuro de uma Instituição.

É interessante ver como o Papa Francisco reúne diferentes grupos


para abordar questões fundamentais para o futuro da sociedade e transmitir
sua visão da Igreja, bem como a busca de respostas para salvaguardar não só
a sociedade, mas o próprio planeta.

Liderança compartilhada e cultura do cuidado


Cria as condições para que todos se sintam ouvidos com empatia
e corresponsáveis na liderança. Promove relacionamentos saudáveis e di-

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VOZES MARISTAS

nâmicos dentro do grupo. Ajuda cada um a desenvolver a missão que lhe


corresponde. Apoia o crescimento de cada um e da organização e trabalha
para construir uma comunidade de confiança dentro da mesma organiza-
ção. Promove uma cultura de cuidado com as pessoas e com os demais re-
cursos disponíveis para realizar a missão. Ele se preocupa com os interesses
dos funcionários (Caldwell et al., 2008) e cuida deles.

Um aprendizado com a crise gerada pela Pandemia COVID-19


(2020-2021) tem sido a percepção da vulnerabilidade antropológica (pos-
sibilidade de sofrimento com a doença, com dor, com fragilidade, com li-
mitação, com finitude e com morte), também como vulnerabilidade social
(fragilidade em que determinados ambientes ou situações socioeconômicas
colocam as pessoas que sofrem por isso). Isso nos convida a promover uma
gestão solidária em todos os níveis de nossas instituições.

Cultura de confiança
Para promover a sua equipe, o líder deve ser visto como uma pes-
soa aberta ao diálogo, generosa, integrada e competente no seu saber-fazer.
Reinke (2004), citando Greenleaf (1977), propõe que a liderança servidora
melhora o desempenho organizacional porque fomenta relações de con-
fiança. Esta atitude é imprescindível no exercício da liderança, como requi-
sito para o empoderamento, caso contrário o líder acaba assumindo o papel
de outrem, dificultando o fluxo normal dos processos. Caldwell (2002),
citando Senge (1990), observou que “as organizações, em última análise,
dependiam dos comportamentos daqueles em quem confiavam” (p. 157).
É importante que os gestores ajudem a criar um clima organizacional que
o favoreça (Mallen et al., 2019). O maior desafio de um líder é criar um
ambiente, no qual os líderes potenciais prosperem (Maxwell,2008).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Simplificando o complexo
O exercício da liderança em perspectiva administrativa torna-se
cada vez mais complexo. A multiplicidade de fatores que convergem em
organizações como a nossa faz com que não haja respostas únicas. O caráter
de quem lidera, sua segurança pessoal, favorece ou não que os processos
da organização sejam simplificados. A capacidade de simplificar as coisas
complexas é uma arte que requer conhecimento, experiência, empatia e
capacidade de comunicação.

Em uma sociedade em que tudo está em constante mudança, o lí-


der de uma organização é chamado a explorar soluções coerentes e simples.
Essa forma de atuação gera confiança e capacidade de adesão às propostas
apresentadas como forma de contribuir para o desenvolvimento da organi-
zação e da própria sociedade.

Nelson Mandela, um dos grandes inspiradores de liderança, disse


que um líder é como um pastor: fica atrás do rebanho e, sem perceber,
deixa que o mais ágil vá em frente e os outros o sigam. (Mandela, 1994).
Ele, com um firme espírito de liberdade, soube transmitir sua visão, gerou
confiança em seu povo e conseguiu que um tema tão complexo como o
apartheid, como sistema, fosse superado para o bem da África do Sul e de
toda a humanidade.

Conclusões
A liderança servidora envolve, antes de mais nada, o compromisso
de servir às necessidades dos outros. Isso requer atenção, abertura e habili-
dades de escuta. O fundamento e a razão de ser de toda autoridade diretiva
é tornar a condição humana mais segura, mais satisfatória e mais produtiva
(Gini & Green, 2014).

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VOZES MARISTAS

A liderança em uma instituição é mais do que a consequência de


uma posição e tem mais força quando é o resultado da relação entre ca-
racterísticas pessoais, atitudes e necessidades a que responde. O líder nem
sempre substituirá ou mudará comportamentos pessoais por cooperativos,
porém, tratará de maximizar a utilidade para a organização com base em
princípios racionais. Ao se identificar com a sua instituição, você se verá
como administrador, responsável e comprometido com a missão que lhe
foi confiada.

Nesta nova realidade pós-pandêmica, o líder-servidor na área ad-


ministrativa é chamado a repensar sua missão com visão e criatividade.
Da mesma forma, será fundamental administrar os recursos a serviço do
carisma e da missão, de forma responsável e transparente, promovendo a
comunhão, a solidariedade e a sustentabilidade.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que ecos essa reflexão sobre a gestão como liderança servidora des-
perta em você?
2. Quais pensas que devem ser as características de um bom líder admi-
nistrativo a partir da liderança servidora?
3. Com base em sua experiência pessoal, quais são os desafios que um
líder servidor enfrenta na área administrativa hoje?
4. Traga à sua memória alguém que o influenciou por sua maneira de
exercer a liderança servidora, a partir de uma perspectiva administrativa
e gerencial.
5. Que boas práticas podemos aprender da sociedade e da Igreja para
realizar uma administração com a chave do serviço?
6. Nossa forma de gestão, o que ela pode dizer para a sociedade?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

REFERÊNCIAS

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 11

Ir. Gabriel Villa-Real Ir. Pere Ferré


Vigário Provincial Provincial
de L’Hermitage de L’Hermitage

Liderança, um
compromisso prioritário
com as pessoas: crescendo
juntos, acompanhando-nos,
empoderando-nos

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VOZES MARISTAS

1. A experiência de assumir posições de


liderança em conjunto
A configuração atual da província de L’Hermitage começou em
2003. Um mosaico geográfico, cultural e linguístico, formado pela França,
Catalunha, Grécia, Hungria, Argélia e Suíça.

a. Construindo um estilo de liderança

A nova província de L’Hermitage é o resultado da união de três


províncias: Beaucamps-Saint Genis, Midi-Centre-Ouest Notre
Dame de L’Hermitage e Catalunha. Unir três realidades em uma é
uma tarefa delicada porque elas tiveram que ser integradas em um
projeto compartilhado. Sem absorver ou justapor. Sem eliminar as
diferenças históricas e culturais nem as tornar um problema. Uni-
dade na diversidade, mas não necessariamente na uniformidade.
Fortalecer os laços comuns. Todos os níveis são afetados por uma
reestruturação. Também, de forma especial, o exercício da lideran-
ça. Da existência de três provinciais com seus conselhos, passa-se
para um. Desde o início é criada a figura do Vigário Provincial
como Superior Maior. Você sabe aonde quer ir, mas alguns cami-
nhos nunca foram praticados por seus protagonistas. Devem ser
abertos ou, pelo menos, desbravados, respeitando a história, a geo-
grafia, a língua, a cultura e a pastoral de cada pessoa e de cada gru-
po. Pode-se dizer que, de maneira quase imperceptível, o Provincial
e o Vigário vêm construindo nos vários mandatos uma liderança
tándem, como foi reconhecida na prática pelos próprios Irmãos e
Leigos. O tándem é uma bicicleta para duas pessoas, cada uma com
seu selim, cada uma com seus pedais, o que fomenta confiança, co-
laboração, trabalho em equipe, complemento, simultaneidade.

Nós, os dois autores desta contribuição que estamos juntos há anos


no Conselho Provincial, assumimos este estilo de liderança com

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

gratidão pelo trabalho daqueles que nos precederam e com vonta-


de de fazer compromissos. Estamos mais conscientes do significado
da liderança conjunta com base na experiência vivida. Em seguida,
descrevemos algumas características mais significativas deste mode-
lo, com base na prática.

b. Caracterizando essa prática

Esse estilo de governança baseia-se substancialmente na unidade


na diversidade, na atuação em equipe, na comunicação interna e na
consistência emocional.

A unidade na diversidade não obscurece as diferenças, mas as har-


moniza com base em um projeto compartilhado. Nesse caso, dois
papéis diferentes, duas formas de pensar, duas sensibilidades dife-
rentes, permitem um melhor progresso na resolução dos proble-
mas. A pressão é regulada. Leva-se o tempo necessário, sem lentidão
ou precipitação, e a solução é focada com maior abertura. Quando
o confronto é necessário, como em situações complicadas, verbali-
zar é um exercício de grande importância.

A ação em equipe, longe de diluir responsabilidades, pressupõe


decisões conjuntas, cientes de que há questões mais próximas do
papel que cada um desempenha. No entanto, as funções são as-
sumidas de forma intercambiável. Observa-se claramente que há
uma comunicação fluida sobre as questões abordadas entre os dois.
Decidir é uma tarefa que se realiza com equilíbrio e transparência,
quer afete indivíduos quer grupos (instituições, associações ...).

A comunicação interna entre os dois líderes se torna uma oportu-


nidade para repensar e reler como foi transmitida. Assim, a percep-
ção e a objetividade são adquiridas. As tarefas de animação e gover-
nança requerem uma consciência essencial dos limites, sem os quais
seriam geradas interferências que dificultariam seu funcionamento

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VOZES MARISTAS

adequado. Como na bicicleta, cada um possui dois pedais, mas a


trajetória é marcada pelo guidão dianteiro. Portanto, é preciso estar
atento para quem dá a última palavra em determinado momento.

O campo das emoções é extremamente delicado. Ainda mais no


campo das relações humanas.Trabalhar com esse modelo de gover-
nança ajuda a exercer a liberdade e a confiança, ao mesmo tempo
que permite superar medos, indecisões, bloqueios que, de outra
forma, paralisariam o trabalho compartilhado.

2. Atitudes para crescer juntos na liderança


No exercício da liderança, há uma série de variáveis de diferentes
calibres que afetam as pessoas. Alguns aprimoram as linhas de trabalho e
aprendizado. A importância de apenas alguns mais significativos é sublinha-
da, sem a intenção de uma enumeração exaustiva. Outros tornam-se pontos
de atenção que devem ser levados em consideração para não os prejudicar
ou degradar sua qualidade.

a. Linhas de trabalho e aprendizagem

Aqui se destacam a escuta, a abertura, o autoconhecimento, o dis-


cernimento, o serviço e a perspectiva missionária.

Ouvir, é essencial, abre-se à palavra e ao silêncio, favorece a empa-


tia, dispensa complicações psicológicas, acolhe sem prejulgar, res-
peita os ritmos pessoais, toma consciência da mensagem recebida,
enfrenta situações complexas. O rosto da pessoa, a sua linguagem
não verbal, a atenção no seu olhar… são fundamentais para a co-
municação e a sintonização, que nem sempre são automáticas. Em
diálogos interpessoais ou em entrevistas, evita-se qualquer com-
portamento que dê suspeita de desconexão, como parar de olhar
para a pessoa, olhar para o relógio, interromper a intervenção, aten-
der o telefone caso não tenha sido informado previamente de que

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

era esperado uma chamada importante... Esses comportamentos


bloqueiam a comunicação e relegam o interlocutor a um papel
secundário.

A abertura é essencial para propor alternativas que abram perspec-


tivas e caminhos de reflexão, sem levar a soluções e respostas ime-
diatas. Fechar não ajuda. Sim, em vez disso, amplie os horizontes,
seja criativo e tome decisões para o futuro.

O (auto) conhecimento gera consciência dos próprios impulsos e


permite regulá-los de forma construtiva, ao mesmo tempo que se
abre para uma melhor compreensão dos outros. A intervenção de
um interlocutor, indiretamente, pode remover fundos emocionais
e distorcer o relacionamento. A consciência coloca tudo em seu
lugar.

A liderança Marista busca harmonia com a vontade de Deus. Tra-


ta-se de viver em atitude de discernimento para iluminar decisões
importantes ou manter elementos essenciais sem esquecê-los. Uma
sabedoria que deve ser convertida em prática comum, sem se dei-
xar levar pelas pressões e tendências do momento.

É importante perceber que a governança carrega um certo grau de


poder. A maneira mais evangélica de vivê-lo é exercê-lo na pers-
pectiva do serviço. Muita atenção é necessária para que o serviço
não oculte motivações autorreferenciais, ou de qualquer outro tipo,
alheias à sua finalidade. A liderança, em suma, se enquadra no âm-
bito da missão eclesial, Marista e social e se materializa em cada
momento histórico. Está enraizada na tradição, mas cada pessoa a
atualiza e desenvolve à sua maneira.

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VOZES MARISTAS

b. Pontos de atenção

Se as pretensões pessoais não estão a serviço da missão Marista, se


no centro colocamos nosso próprio ego, nossa própria imagem...
a liderança se perverte, perde sua natureza, distorce e degenera.
A mesma missão Marista pode ser invadida por motivações se-
melhantes. Neste caso, perde seu significado e se corrompe.Vários
recursos, estratégias e abordagens podem ser usados, mas nunca
sacrifique seu propósito específico. Por exemplo, um foco priori-
zado em resultados, sem levar em conta outras perspectivas, como
o cuidado com as pessoas, pode ser fatal.

A tomada de decisão requer visão. Quando a direção não tem,


há respostas formais, justificativas vazias, aumento da burocracia,
criação de órgãos de controle, reafirmação de poder... Os medos
paralisam e bloqueiam. As decisões reducionistas são tomadas, sem
perspectiva ou audácia.

3. Um estilo de liderança na diversidade das


missões
As pessoas que exercem a liderança Marista estão imersas na gran-
de diversidade de culturas, de missões confiadas e de situações concretas.
Este fato é tão relevante que deve ser tido em consideração como fonte
de enriquecimento institucional, como desafio para manter a unidade no
essencial e como atitude de inculturação educativa e evangelizadora.

Aqui estão duas reflexões sobre este ponto.

a. Especificidade de uma liderança Marista

Três características se destacam aqui: a dimensão espiritual, a in-


tegração do sentido prático com o espírito reflexivo e as relações
entre carisma e liderança.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

A liderança Marista está essencialmente ligada à dimensão espi-


ritual. Mesmo quando sua aparência é menos explícita, também
é vista e percebida pelo olhar de Deus no contexto da vida. Suas
referências, explícitas ou não, vêm do Evangelho. Nesta perspectiva,
privilegia-se a atenção às pessoas, o enfoque na missão Marista e a
liderança como serviço.

É óbvio que a praticidade, mesmo muito concreta, pode levar ao


pragmatismo sobre a reflexão. Faz parte da cultura institucional
Marista e tem seus prós e contras. A bondade da praticidade não
está isenta de riscos e precisa ser iluminada pela reflexão e pela
dimensão espiritual.

O exercício de uma perspectiva Marista pode ser enriquecido com


o uso de ferramentas de outras áreas que podem ser úteis. No ima-
ginário coletivo, o líder Marista não se fecha em seu escritório, mas
está em contato com as pessoas. No entanto, trata-se de harmonizar
as relações face a face com tempos que favorecem uma reflexão
lenta e serena sobre as coisas.

A interação entre carisma e liderança tem muitos pontos de inte-


resse. Implica beber das origens da própria interioridade, projetan-
do-as hoje e corporificando na própria vida a força das raízes como
forma de enriquecimento do carisma.

b. Diversidade de situações e missões

A liderança é exercida em situações muito diversas. A este fato,


acrescenta-se a dimensão internacional.

Uma comunidade Marista, uma obra escolar, uma obra social, uma
coordenação, uma província ou o próprio Instituto Marista são es-
feras diversas, mas todas requerem uma liderança na missão confia-
da, que atualmente é exercida e compartilhada por Irmãos, Leigas e

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VOZES MARISTAS

Leigos. Todos possuem características que o configuram e influen-


ciam no seu desenvolvimento: a proposta de serviço que recebem,
a relação contratual se for o caso, o equilíbrio pessoal, familiar e
profissional, o nível de responsabilidade, o trabalho em equipe...

Articulação com o Instituto Marista, em muitos casos, significa a


abertura para uma dimensão internacional, tecida a partir de cultu-
ras, idiomas e tradições diversas. O lema para a canonização de São
Marcelino Champagnat foi assim: “Um coração sem fronteiras”.
Esse fato gera a consciência de pertencer a uma entidade que vai
além de seus próprios limites. Envolve passar da esfera local para a
global. Além disso, pensar a esfera local a partir de uma perspectiva
global, aspecto que foi muito enfatizado no XXII Capítulo Geral
(2017), realizado na Colômbia. Essa liderança de longo alcance é
enriquecida por ir além das próprias fronteiras e desempenhar me-
lhor seu papel de serviço.

4. A escolha de líderes
O exercício da liderança em animação e governança requer uma
ampla rede de pessoas comprometidas, cada uma assumindo a liderança em
sua área de confiança em seu próprio nível. Como uma etapa preliminar,
você deve se concentrar na detecção de líderes. Para isso, são apresentadas
três tarefas: o para quê e, o porquê de um líder ser procurado; quais são
suas características, atitudes e habilidades; e como fornecer um acompa-
nhamento.

O primeiro passo é responder a duas perguntas básicas. A primeira


indica, por que um líder é procurado e se move no terreno dos princípios.
O leque de perspectivas abre-se à sua integração numa rede de pessoas em-
penhadas, que representam um enriquecimento da sua vida e missão para a
pessoa escolhida. A segunda, o para quê, passa no campo operacional, para
uma missão e para uma atividade específica.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

No horizonte dessas duas respostas, a escolha de líderes contempla


um perfil de características, atitudes e competências que devem ser levadas
em consideração, a fim de que a seleção seja mais bem-sucedida. Entre elas,
exige o compromisso com a sua missão, por mais simples ou complexa que
pareça, e a criação de uma constelação de forças e sinergias em prol do
bem comum e do trabalho conjunto, sabendo que nem todos querem ser
líderes, nem todo mundo quer ser um líder, nem todo mundo é bom para
isso.Valoriza-se uma lista de qualidades como a atitude aberta, a mentalida-
de sem julgamentos, a capacidade de adaptação e flexibilidade, a convicção
serena de que é impossível agradar a todos...Tudo isto se consegue progres-
sivamente no mesmo exercício. As atitudes da pessoa e sua capacidade de
aprender são uma prioridade. O (auto) conhecimento é uma necessidade
básica e indispensável. A cegueira para consigo mesmo torna a pessoa pro-
blemática. Para evitar a consanguinidade, os responsáveis por esta tarefa de
escolha não devem ser reduzidos ao círculo conhecido.Você tem que abrir
mais o ventilador. Isso permite mais inovação. A predisposição é importan-
te. Pode ser consolidada com uma boa preparação e treinamento específico.

O acompanhamento requer uma pré-condição essencial: confian-


ça. A atribuição deve ser fruto dessa confiança pessoal, que não se opõe a
uma supervisão equilibrada, entendida não como um controle externo, mas
como um elemento de motivação comprovada. Acima de tudo, o exercício
da liderança em seus primeiros passos exige uma atitude de abertura a um
processo gradual sem cair na autossuficiência destrutiva. Todas as partes de-
vem saber estar em seus lugares e ser capazes de se expressar livremente. O
sentido de fraternidade da liderança Marista deve ser compatibilizado com
um exercício objetivo dela. Do contrário, este fator de enriquecimento e
profundidade se tornaria um elemento de distorção.

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VOZES MARISTAS

5. O desenvolvimento do exercício de
liderança
As luzes, que permitem que a liderança cresça e se consolide, e as
sombras, que podem colocar em risco não apenas a liderança, mas todo o
coletivo Marista, são exploradas a seguir. Como nas pinturas de Caravaggio,
a realidade é uma mistura de luz e sombra. Aqui estão algumas pequenas
dicas ou toques simples sobre o exercício de liderança.

a. Luzes

A lista pode ser muito longa, mas são selecionados quatro exemplos
de botões que afetam e se enraízam na pessoa do líder: empode-
ramento, tomada de decisões, geração de entusiasmo e a forma de
enfrentar o fim da liderança em uma missão concreta.

O empoderamento é um elemento chave e fortalece as capacidades


da pessoa. A consistência do líder e a confiança recebida dialogam
em benefício da missão, especialmente em situações complexas,
problemas desconhecidos, momentos de tensão, circunstâncias de
risco e emergências... A confiança é recebida e concedida. Sem ele,
os relacionamentos se deterioram. Sem isso, o líder tende a mono-
polizar responsabilidades, evitar delegações e reduzir a colaboração
de outras pessoas. Com ele, as falhas e erros são melhor enfrentados,
mecanismos de contraste, supervisão e releitura são aceitos sem
problemas, resiliência e atitudes de aprendizagem são favorecidas.
A autoconfiança, alicerçada na humildade, permite assumir melhor
responsabilidades e manter uma visão de objetivos, sem se perder
em aspectos secundários.

O empoderamento está vinculado à tomada de decisões e à as-


sunção de suas consequências. O binômio “autoridade - poder”
merece uma reflexão especial. De certa forma, o poder chega ao
líder para a função confiada, mas a autoridade tem que merecê-lo.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Esta tarefa exige aprendizado e maturidade. Não está disponível


para todos. Ambos estão relacionados à influência, embora tam-
bém exista outras fontes para exercê-la. É conveniente detectar suas
consequências no grupo e em cada um de seus membros para que
tenha um efeito benéfico e não coercitivo. Autoridade é percebida
como serviço. Mais uma vez, o autoconhecimento é essencial. A
decisão leva à solidão, situação que não deve ser desprezada pelo
trabalho em equipe. Nem o grupo deve substituir o líder, nem o
líder deve transferir a responsabilidade para o grupo, deixando de
assumir a sua. Isso não exclui a consulta, mas a coloca em prática.
Equilíbrio e ponderação, ao contrário da angústia e da pressa, são
essenciais em situações de urgência, emergência ou conflito. Isso
evita cair na ansiedade, portanto, distanciar-se do problema é uma
boa medida para evitar ser engolido por ele.

A capacidade de gerar entusiasmo e de unir a equipe num obje-


tivo comum, sabendo para onde se vai, também são elementos de
grande ajuda. Portanto, a visão é a chave, especialmente na área de
missão.Vai além do imediatismo e até se abre para novas perspecti-
vas e pensamentos alternativos. Por meio do entusiasmo, inclui os
aspectos emocionais. O último responsável pode orientar em mo-
mentos de conflito, realizar tarefas de endireitamento, consolidar o
processo evolutivo e realizar tarefas de supervisão.

Um bom líder assume a missão, mas quando termina sabe como


sair dela e proporciona uma excelente transmissão a quem quer
que o suceda. Você tem que se preparar para deixar de exercer as
funções de líder, pode até ser fruto de sua própria iniciativa. Como
diz o Eclesiastes, «há um tempo para tudo o que se faz debaixo do
céu» (3,1). Existem cursos de treinamento para isso. Ficam incor-
poradas na própria bagagem pessoal as aprendizagens realizadas,
as relações estabelecidas, as visões globais, a atitude de serviço, e,
de alguma maneira, a capacidade de contribuir com discrição sua
riqueza em benefício do bem comum...

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b. Sombras

No claro-escuro da vida, as sombras têm uma relação peculiar com


as luzes. Saber interpretá-las abre possibilidades magníficas para o
trabalho pessoal e evita situações problemáticas. Existem realidades
que são mais difíceis de observar porque estão dentro do ponto
cego. Três são destacadas aqui: força do ego, relacionamentos tóxi-
cos e o risco de procrastinação.

A maior dificuldade do líder é que ele não tem consciência de


que está caindo em certas sombras, como no desejo de liderança,
na dependência de sua imagem, na busca pelo sucesso pessoal, na
insegurança interior, no desconhecimento de seus próprios limites,
o desejo de agradar a todos, a fuga do conflito... Seria dramático.
O ego, ainda mais se for superdimensionado, torna difícil para a
pessoa tomar consciência das atitudes que está vivenciando, tor-
nar-se incapaz de reler sua posição e ver como ela age, como se
mostra, como decide, como trata os outros, como gera submissão
ou rebeldia...

Os relacionamentos tornam-se tóxicos e se convertem em terreno


fértil para manipulação, dependência ou apego. Respeito e empatia
são substituídos pelo medo, e a responsabilidade por um jogo de
interesses. Ocorre a perda da comunidade e do sentido missionário.
Cai-se no risco de voar e aumentar uma linha enquanto ignora ou-
tras. Portanto, medidas preventivas (mais complexas de estabelecer)
e corretivas (mais difíceis de aplicar) são necessárias.

Uma liderança passiva, sem atitudes proativas, tende a adiar, adiar


ou deixar sua intervenção para mais tarde. O que não é resolvi-
do continua a ser um problema e às vezes apodrece ou se torna
crônico. Nesse caso, qualquer intervenção nunca chega a tempo. O
preço que você paga é muito alto.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Um líder, vítima de suas sombras, quando acaba, refugia-se nos


méritos acumulados, nos serviços prestados ou nas graças residuais.
Uma frase significativa: “Antes eu era quase tudo e agora sou quase
nada”. Ele anseia pelas cebolas do Egito e afunda na saudade de
que qualquer época passada era melhor. Perde a conexão com o
presente.

6. Lições de uma experiência vivida


A experiência que apresentamos a seguir teve seu início na Cata-
lunha e suas consequências continuam até os dias de hoje. Depois de fazer
uma breve apresentação, pararemos nas dificuldades, nos aprendizados e nos
caminhos para melhorar.

a. Apresentação da experiência

Uma das etapas mais intensas que vivemos é a crise gerada pelos
casos de abuso sexual de menores, já que a pedofilia colide fron-
talmente com a missão Marista No início de 2016, uma série de
denúncias provocou um tsunami na mídia com o envolvimento de
instituições públicas de tal porte que foi denominado de “caso Ma-
rista”. Acusações de abuso, encobrimento, organização criminosa...
abalaram toda a comunidade Marista. Algumas situações remontam
a meados do século passado. Tivemos que enfrentar alguns eventos
que ocorreram, na maioria das vezes, fora do âmbito temporal de
nossas ações e de nosso conhecimento. Sem demora, tivemos que
enfrentar uma ampla gama de situações: as vítimas, os meios de
comunicação, os alunos, as famílias, o corpo docente, os próprios
Irmãos. Uma mudança de mentalidade era inevitável: passando
da perspectiva exclusivamente moral para a perspectiva do crime.
Uma equipe de Irmãos e Leigos conduziu de forma coordenada
o conjunto de respostas que deveriam ser dadas pela instituição
Marista. A pergunta: como corrigir esta situação, sob muita pressão
e com pouco espaço de manobra no início?

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b. Compartilhando o resultado de nossa revisão

• Dificuldades

Havia instrumentos para implementar a política provincial


de proteção à criança, como estava sendo feito, mas não
para enfrentar a novidade de uma grande crise. A novi-
dade também foi para a mídia, instituições públicas, so-
ciedade em geral. A avalanche de casos na mídia, alguns
reais e outros sem consistência, apresentou um ritmo tão
acelerado que era difícil, senão impossível, de controlar.
As vítimas eram a prioridade, mas a instituição Marista
mergulhou em um turbilhão de acontecimentos. Desde o
minuto zero, a Comissão Catalã para a Proteção da Crian-
ça trouxe outras pessoas e se tornou um gabinete de crise.
Rapidamente se abriu para a ajuda de recursos externos:
assessoria jurídica e assessoria de uma empresa de comuni-
cação especialista em gestão de crises. Era urgente dar res-
postas sem ter concluído o planejamento e a mudança de
cultura. Alguns, internos, Irmãos afetados, professores, pais
de alunos e os próprios alunos, a grande maioria vítimas
secundárias ou colaterais do problema. Outros, externos,
relações com jornalistas, representantes de instituições pú-
blicas... As adesões privadas à instituição Marista transfor-
maram-se em silêncios públicos por medo de receber a luz
dos holofotes, concentrados exclusivamente nos Maristas,
apesar da dimensão geral do problema de abuso infantil. A
“frase” da mídia dificultou uma compreensão objetiva dos
fatos. Uma jornalista intitulou seu artigo: “Quando tudo
mais falhar.” Um bom diagnóstico. O impacto emocio-
nal foi profundo devido à consciência dos próprios erros;
das hostilidades externas que em alguns casos pareciam
ir além dos fatos, devido aos ataques à confiança, que as

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

famílias mantiveram apesar de tudo. Liderar a resposta a


uma crise dessas proporções requer uma equipe perfeita e
dedicada ao máximo, um distanciamento emocional para
não ser engolido pelos acontecimentos, um envolvimento
da instituição Marista para encarar a verdade sem procurar
subterfúgios e a consideração das vítimas como a mais alta
prioridade.

• Aprendizagens

Liderar uma situação com essas características exige tra-


balho em equipe. Os responsáveis pela província, com a
colaboração de leigos, buscaram uma resposta conjunta. A
crise, como realidade multifacetada, é vista sob a ótica de
cada um dos integrantes da equipe. A diversidade é vivida
como enriquecimento. Confiança, liberdade e equilíbrio
são essenciais, assim como uma comunicação interna ho-
nesta e clara, sem voltas e reviravoltas. Sentir medo não é
um problema, mas curvar-se a ele. A complexa realidade
de uma crise exige uma ajuda externa que compõe a am-
pliação da equipe. Chegar a um acordo sobre soluções
quando as opiniões vêm de perspectivas diferentes não é
fácil, mas quando se trata delas, são mais consistentes e
confiáveis. A perspectiva internacional da província con-
tribuiu com elementos que enriqueceram a visão do pro-
blema e a busca de soluções.

Há um progresso considerável no significado da proteção


à criança. Necessário, se você não deseja reduzir as ações
sob a proteção da própria instituição. Portanto, o objetivo
não é salvar a si mesmo, mas proteger as crianças e apren-
der a ver a realidade do que aconteceu do ponto de vista
da vítima. A proteção visa a defesa dos direitos da criança
e o empoderamento de meninos e meninas como sujeitos

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VOZES MARISTAS

destes direitos. Esta mudança de mentalidade é essencial


para uma boa liderança. As mudanças culturais são lentas,
mas às vezes as crises as aceleram. Esta mudança deve ser
estendida aos Irmãos, a todo o pessoal dos centros e até às
próprias famílias. Não tome isto como certo.

A determinação institucional para enfrentar a situação


de frente e em profundidade é essencial e dá segurança à
equipe. Contou com o envolvimento das lideranças nos
diversos níveis provinciais. É crescer construindo juntos.

A importância das redes educacionais, sociais, de mídia... é


fundamental. Isolar-se seria um erro. Uma crise profunda
é uma boa oportunidade para tomar consciência da pró-
pria fragilidade e transformá-la em força.

• Caminhos de melhoria

Liderar em tempos de emergência, uma vez que a tem-


pestade passa, pode tornar-se uma redução da guarda em
tempos de normalidade. Será um erro. A vontade de me-
lhorar avalia o trabalho realizado e intensifica os projetos
em curso e as linhas do futuro. A tarefa consiste em com-
binar o fechamento das feridas do passado com o compro-
misso de mudar a mentalidade, interna e externa, de pro-
teção às crianças, bem como de transformar a organização.
Para isso, é preciso estar atento. Subjacente à convicção de
que se você fez parte do problema, agora você deve fazer
parte da solução.

Algumas formas de aprimoramento: (a) garantir os meca-


nismos para aplicar rigorosa e imediatamente os protoco-
los de atuação diante de novos casos; (b) enfrentar os casos
prescritos a partir de um critério ético; (c) promover o

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

compromisso de que todos os envolvidos na ação Marista


considerem-se responsáveis pela prevenção; (d) promover
uma mudança cultural profunda, por meio de um bom
treinamento em todos os níveis, incluindo novos funcio-
nários em escolas e obras sociais; (e) ter centros universi-
tários de referência para fornecer ao nosso corpo docente
treinamento de pós-graduação em educação e treinamen-
to para a prevenção de abuso sexual infantil; (f) diversificar
linhas específicas de formação e capacitação, dirigidas a
alunos, famílias, professores, Irmãos, gestores, equipes de
proteção e responsáveis pela comunicação; (g) comparti-
lhar aprendizados e práticas com outras províncias Maris-
tas e outras entidades religiosas ou educacionais; (h) fazer
parte de organizações e grupos de trabalho de projetos
nacionais e internacionais para contribuir com a expe-
riência acumulada e permanecer em uma linha de atua-
lização e aperfeiçoamento; (i) levar a cabo processos de
certificação por instituições internacionais sérias, como a
Keeping Children Safe (manutenção das crianças seguras),
para garantir espaços seguros onde os direitos das crianças
e dos jovens sejam respeitados; (j) transferir o aprendizado
das atuais equipes de proteção e do próprio escritório de
crise para as novas equipes que conduzirão os diversos tra-
balhos educacionais no futuro; (k) utilizar as redes sociais
para a difusão de valores e práticas a serviço dos direitos
da criança e da sua prevenção; e, em suma, (l) proporcionar
aos líderes, em seus diversos níveis de atuação, uma visão
aberta, profunda e comprometida dessa causa em benefí-
cio das crianças.

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VOZES MARISTAS

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


A. Contribuições para uma reflexão institucional Marista

A reflexão precedente pode ser condensada em três ideias-chave. No exer-


cício da liderança, somos chamados a:

a. dar prioridade às pessoas através da escuta, da confiança e da


capacitação.
b. optando pelo trabalho compartilhado e em equipe, junto com
Irmãos e Leigos, integrando visões e sensibilidades diversas a
favor de um mesmo projeto, e favorecendo as relações huma-
nas e o trabalho em rede.
c. colocar-nos a serviço da missão evangelizadora e profética, à
luz do nosso carisma, numa perspectiva intercultural e inter-
nacional.

B. Para uma reflexão pessoal ou um diálogo em grupo

a. Quais ideias de tudo o que aparece neste capítulo mais se des-


tacam para você e quais você acha que pode ajudá-lo mais em
seu exercício de liderança?
b. Se as pessoas são a prioridade, a pessoa do líder também é.
Nessa perspectiva, qual a importância do autoconhecimento?
Quais são suas características pessoais que favorecem o exercí-
cio da liderança e quais constituem um obstáculo?
c. Em minha prática de liderança, que elementos acho que aju-
dam ou atrapalham mais para empoderar as pessoas?
d. Como os outros vivem sua liderança? Você cria dependência,
capacita, agita em torno deles, gera espírito de equipe...?
e. Que contribuições deste capítulo o teriam ajudado a lidar com
mais sucesso com as situações problemáticas por que passou?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

f. Como você acompanha as pessoas que estão com você no tra-


balho, na missão ou no seu dia a dia? Você os ajuda a crescer
como pessoas e como líderes? Qual tem sido a sua experiência
de ser acompanhado e acompanhar em sua missão, em situa-
ções especiais de vida ou em momentos de crise e dificuldade?

REFERENCIAS

Keeping Children Safe. Em: https://www.keepingchildrensafe.global/

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 12

“Quantos pães
vocês têm?”
Ir. Hipólito Pérez
Provincial de América Central

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VOZES MARISTAS

Uma liderança que constrói comunidade,


servidora e profética, a partir da história da
multiplicação dos pães (Mc 8, 1-10)
Recebi o convite para aprofundar a experiência de liderança ma-
rista a partir de algumas chaves: servidora, profética e comunitária. Depois
de um tempo de escuta interior, surgiu com força em mim o relato da
multiplicação dos pães (Mc. 8) como metáfora deste, inspirado fundamen-
talmente no Evangelho, que nós maristas desejamos desempenhar neste
século XXI.

Esta passagem do Evangelho, provocadora e evocadora, em suas


várias versões, pode ser interiorizada a partir das chamadas que nos faz o
XXII Capítulo Geral (2017): “Assumir uma liderança profética e servidora,
que acompanhe com proximidade a vida e a missão marista”.

Algumas chaves para a leitura desta passagem


(Mc 8, 1-10)
A multiplicação dos pães é o fato da vida de Jesus que se repete
mais vezes, seis ((Mc 6, 30-44; Mt 14, 15-23; Lc 9, 12-17; Jo 6, 1-5; Mc 8,
1-10; Mt 15, 32-39). Nestas passagens, há uma primeira multiplicação de
pães relatada pelos quatro evangelhos e uma segunda relatada somente por
Mateus e Marcos.

Este relato deve ter impressionado muito as primeiras comuni-


dades cristãs. Recorda duas das coisas que mais preocupam todos os seres
humanos - saúde e comida - e foi a principal práxis de Jesus.

Outro aspecto importante que descobrimos nele, é a sua reação


ao contemplar as pessoas: “Comoveram-se as suas entranhas (em gre-
go: splagnísthe), que implica ‘comoção’ visceral interior”, como em outras

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

tantas passagens do Evangelho. Jesus acolhe, compreende, aceita... a todos,


assim como são e vivem. Sua humanidade é única e se converte em
encontro com Deus.

Considerar na ‘multiplicação dos pães’ estas atitudes: partilha, par-


ticipação, fraternidade, horizontalidade, sentido comunitário... nos recorda que a
união e a humanidade, que caracterizavam as primeiras comunidades cristãs
– “um só coração e um mesmo espírito” – (At 2,42) e a experiência de nossas
origens maristas do padre Champagnat e a primeira comunidade de ir-
mãos, têm sua origem e fundamento em Jesus e seu Evangelho, que se faz
presente nestas atitudes, e não na honra ou no poder, apontando, assim, qual
deve ser o nosso estilo de ser, viver e desempenhar nossa missão.

Os “sete pães” de uma liderança servidora,


profética e comunitária
Esta passagem nos assinala o horizonte de alguns elementos signi-
ficativos que desejamos permeiem a liderança marista. O símbolo dos “sete
pães” nos acompanhará nesta reflexão, convertendo cada pão, numa atitude
fundamental, potenciando o desempenho de nosso serviço, com o mesmo
estilo do Mestre de Nazaré.

Jesus pede aos discípulos que deem uma resposta às necessidades


do povo e se envolvam. Eles se surpreendem e surge a pergunta: Quantos
pães tendes? Eles responderam sete e se puseram a distribuir e, entre todos,
ocorre a plenitude.

Sete pães, sete atitudes existenciais, que se convertem em fonte


de vida, em dinamismo transformador no desempenho de nossa liderança.

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VOZES MARISTAS

O pão da empatia
“Sobe para nascer comigo irmão, dai-me a
mão das profundezas de tua zona de dor
espargida” (Neruda). “Já estão há três dias
comigo e não têm o que comer” (Mc. 8,3).

No meu noviciado, li o livro de Ignacio Larrañaga:“Suba comigo”.


Nas primeiras páginas apareceu este verso do poeta chileno Pablo Neruda.
A profundidade e os insights ficaram na minha memória, tornando-se um
desafio e um convite diário.

Jesus, no relato da multiplicação, conecta, sintoniza a partir da raiz


com a necessidade do outro, a intui, percebe-a, move seu interior e, com
prontidão, trata de dar uma resposta. Jesus é uma pessoa empática.

Empatia (Díaz de Rada, 2012), é a habilidade para entender os


aspectos emocionais de outras pessoas. É colocar-se no lugar do outro. Sen-
sibilidade intracultural, intercultural e transcultural. A empatia é algo mais
que uma técnica comunicativa, é uma filosofia de vida. A empatia é serviço.
A empatia é o ‘outro’, é o “sobe para nascer comigo...”.

Em nossa atuação, implica conectar com o olhar, a verdade, per-


cepção, sentimentos do outro; entrar, com os pés descalços, sem julgamen-
tos em sua história e seu mistério. Esta comunhão profunda se converte em
espaço sagrado de conversão por parte de quem acompanha e de quem é
acompanhado.

A liderança, exercida dentro do princípio evangélico da simpli-


cidade, é capaz de dialogar pondo-se, realmente, no lugar da outra pessoa;
somente quem converte a Palavra na força motriz de sua existência pode
chegar a oferecer pistas, sempre novas e antigas, como são as de Jesus, e só
quem entende assim este serviço, é capaz de abordar e converter as pessoas

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

no centro de sua existência, com uma escuta ativa para cada um, em sua
identidade e originalidade (Revista Vida Religiosa, 2013).

Desde abaixo, o pão da fragilidade…


“O que podemos fazer com sete pães? É pouco para tantas pessoas? “
(Mc 8,5)

Junto com a empatia surge a vulnerabilidade, como atitude ne-


cessária neste exercício de liderança. Contemplamos, no relato da mul-
tiplicação, a atitude dos discípulos diante de uma situação emergente de
necessidade: eles não têm o que comer. Essas mesmas questões surgem na
realidade de nossas áreas de animação.

A possibilidade de encontrar caminhos e respostas surge com o


olhar partindo da fragilidade, da necessidade, da pequenez, do abaixamento,
do esvaziamento: meu, seu, nosso, como pessoa, grupo ou instituição. O ser
humano é vulnerável (Torralba Roselló, 2010). Essa vulnerabilidade, ine-
rente à sua condição, pode ser assumida e apropriada de forma consciente.
Karl Jaspers (1989) o expressa nestes termos: “Dentre todos os seres vivos,
o homem é o único que conhece sua finitude” (p. 59).

Francesc Torralba explica: a autoconsciência da vulnerabilidade


pessoal e grupal, transforma radicalmente a vida da pessoa e das institui-
ções. É diferente viver sem ter interiorizado a vulnerabilidade, do que viver
assumindo, em todo o tempo, o caráter lábil da própria existência.Tomando
consciência da vulnerabilidade pessoal e institucional, não se pode viver
como se tudo permanecesse igual, como se todas as seguranças que sus-
tentam a vida fossem intocadas por essa experiência. Assim o exprime e
confirma o apóstolo Paulo, segundo sua experiência pessoal, quando diz:
«Quando estou fraco, então sou forte» (2 Cor 12,10).

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VOZES MARISTAS

Este é o itinerário mostrado e proposto por Jesus,

tendo amado os seus, amou-os até ao fim... Levantou-se da mesa e


começou a lavar os pés dos discípulos... Depois de lhes ter lavado
os pés, vestiu o seu manto sentou-se de novo e disse: Eu dei um
exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz. (Jo 13,1-15)

O serviço de acompanhar e liderar exige esta mística, esta opção


e esta paixão, “até ao extremo e a partir de baixo”, com a consciência da
pequenez. O hino (Fl 2, 7) diz algo que é impactante: Deus “esvaziou-se
de si mesmo assumindo a condição de servo, tornando-se semelhante aos
homens. ”

Ubuntu: O pão da comunhão


“Ele pegou os sete pães, partiu-os e ia dando aos seus discípulos para que
os distribuíssem ao povo…” (Mc 8,6)

Nesta passagem reconhecemos o valor do todo, da coletividade,


da comunidade, da participação, da comunhão e do envolvimento de cada
um. Esta atitude do “todo”, evoca o conceito “Ubuntu” (Pérez Porto, et
al., 2010). Trata-se da regra ética sul-africana focada na lealdade das pessoas
e nas relações entre elas. A palavra vem das línguas Zulu e Xhosa. Ubun-
tu é visto como um conceito tradicional africano, cujo significado reflete
“humanidade para com os outros” ou “Eu sou porque nós somos.” É a ca-
pacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem ao próximo, sendo
semelhante aos mandamentos de Deus de amar os outros como a si mesmo.

Nelson Mandela, que a cunhou em sua filosofia de vida e em seu


estilo de governo, expressa: “Ubuntu não significa que as pessoas não de-
vam olhar para si mesmas, mas que a questão é se elas vão fazer algo que
permita que a comunidade melhore” (Diário de Ibiza, 2021). Essa sabedo-
ria e esse estilo de vida iluminam nossa dinâmica relacional, marcada pela
simplicidade, nos inspirando, como maristas a ser artesãos da fraternidade.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Pão amassado com entranhas de misericórdia


“Chamou os discípulos e disse-lhes:
Tenho compaixão dessa multidão...” (Mc 8,2)

Uma das dimensões mais profundas que os Evangelhos referem


com certa insistência em relação a Jesus de Nazaré é sua capacidade de
“comover-se”.

Uma oração eucarística, que ouvimos com frequência nas celebra-


ções da fração do pão, descreve a incidência que tem em nossas vidas, viver
a misericórdia de forma integral: o gesto, a palavra e a ação:

Dai-nos entranhas de misericórdia ante toda miséria humana. Ins-


pira-nos pelo gesto e pela palavra oportuna diante do irmão solitário e
indefeso. Tornai-nos abertos e disponíveis para todos, para que possamos
partilhar as dores e as angústias, as alegrias e as esperanças de todos os seres
humanos. (Igreja Católica, 2016, Oração Eucarística,Vb e Vc.)

A partir de nosso serviço, como Jesus, somos convidados a viver


como líderes compassivos. A compaixão nasce quando descobrimos no
centro de nossa existência não apenas que Deus é Deus e a pessoa é pessoa,
mas também que aquele que vive ao nosso lado é realmente nosso próximo.
Para um líder pleno do sentido de compaixão, nada de humano é estranho
a ele: nem alegria, nem tristeza, nenhuma forma de vida ou morte (Nou-
wen, 2014).

Nossa sociedade, a Igreja, nossas instituições buscam uma nova for-


ma de autoridade, perguntando-nos sobre sua natureza, e a melhor carac-
terística que a envolve é a compaixão. Esta deve converter-se no centro e,
até mesmo, na natureza da autoridade. Para a geração futura, o líder cristão
é, antes de tudo, um homem de Deus. Mas, para exercer uma liderança
autêntica deve ser capaz de tornar visível, capaz de tornar credível no seu

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VOZES MARISTAS

próprio mundo, a compaixão de Deus por cada pessoa, como se manifesta


em Jesus (Nouwen, 2014).

Esta opção torna a pessoa o centro e a prioridade. As estruturas são


importantes, mas nunca podem estar acima da pessoa. Em nosso encontro
de animação fraterna, as pessoas precisam sempre ocupar o primeiro lugar
e ser tratadas com misericórdia.

Pão assado na escuta, silêncio e olhar interior.


“Então ele tomou os cinco pães e os dois peixes, olhou para o céu...” (Lc. 9, 16)

A versão do relato de Lucas, expressa com menos ênfase que Mar-


cos a atitude interior, de profundidade e sentido de Jesus no desen-
volvimento de suas ações. “Levantou os olhos.” Estas palavras condensam a
dimensão transcendente, contemplativa, profunda e enraizada que o Mestre
vivia no momento de realizar sua missão.

Conecta perfeitamente com essa atitude interior o que Pablo


d’Ors expressa e propõe em sua entrevista: “O silêncio é a coisa mais trans-
formadora que conheço”, ao afirmar:

O cultivo do silêncio é essencial, e é a coisa mais transformadora


que conheço. Se o nosso serviço fosse habitado por espaços de si-
lêncio, o que deles emanaria seria muito mais autêntico e genuíno.
Sem pretender mitificar o silêncio, mas vivenciá-lo e verificar que
ele tem um poder enorme. (D’Ors, 2015, 7 de setembro)

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

O pão da horizontalidade que constrói pontes...


«Jesus mandou que a multidão se sentasse no chão» (Mc 8, 6)

Somos convidados a ser criadores de lares, gerando relações autên-


ticas que nos permitam construir pontes entre nós e com as pessoas com
quem estamos em contato (XXII Capítulo Geral, 2017).

A liderança em rede é uma urgência e um serviço de horizontali-


dade, simetria, em colaboração, incentivando as pessoas a darem o melhor
de si mesmas, vivam e cresçam de forma integral. Perceber as pessoas em
uma relação simétrica, em igualdade, oferece-lhes a possibilidade de ser:
singulares, únicas, irrepetíveis, reflexivas e autênticas.

Trabalhar em rede implica gerar uma visão comum, proporcio-


nando um marco de valores e crenças, que integram e aproximam as dife-
rentes tendências e sentimentos. Favorece um ambiente criativo, no qual
as pessoas possam projetar o melhor de si mesmas, buscar a melhoria e o
aprendizado contínuo (Revista Vida Religiosa, 2012, 9 e 11 de outubro).

Pão de agradecimento, o cuidado e


testemunho, distribuído a mancheia.
“Ele pegou os sete pães, agradeceu, partiu-os e ia dando aos discípulos
para que os distribuíssem. Tinham também alguns peixinhos. Depois de
pronunciar a bênçãos sobre eles, mandou que os distribuíssem também.”
(Mc 8, 6-7)

Junto com a imagem de construtores de pontes, o XXII Capítulo


Geral dos Maristas nos desafia com outra imagem: ser faróis de esperança
(XXII Capítulo Geral, 2017).

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VOZES MARISTAS

Como acompanhantes de pessoas e instituições, implica assumir


estar ao lado de, trazendo luz e esperança. São tempos desafiadores, com a
necessidade de uma liderança que guie à vida e à visão; jamais no sentido
do medo, ajuste ou contenção.

O líder desta época sabe que o ministério a que deve responder


está no coração de cada pessoa. Em seus medos e seus sonhos. Em seu
presente e em seu futuro. Em suas lágrimas e em sua alegria. No seu pro-
jeto missionário e nas suas lutas internas.... Com esta verdade o líder toma
alento para guiar a missão da sua família ou instituição, para o possível e
o criativo. Ele está direcionando a missão para a comunhão. O líder, hoje,
é um líder para a liberdade e a responsabilidade. Que saiba infundir que a
liberdade de espírito se conquista a partir uma consciência desperta.

Esta visão de liderança implica gratuidade em duas direções: opor-


tunidade de servir, com espírito de fé, ao mesmo tempo que permite
explorar o mistério do outro. Desenvolver a consciência de que tudo é
graça, dádiva e oportunidade, sem fugir da realidade conflituosa desta
missão, leva-nos a um sentido positivo que nos pacifica e oxigena.

Unido ao sentido de gratuidade, surge a sensibilidade pelo cuida-


do pessoal do animador para ser eficiente e lúcido, e para potenciar nas
pessoas o sentido de responsabilidade diante de um cuidado pessoal integral
que favoreça uma vida digna e plena.

Convém inserir nesta seção a dimensão testemunhal do líder.


Superar uma visão arcaica, obstinada e perfeccionista nesse sentido. O autor
José María Castillo aborda este tema com clareza, orientado para assumir
convicções. A palavra precisa ser traduzida em convicções, que mudem
hábitos de conduta e estruturas. As convicções determinam o nosso com-
portamento e organizam os nossos hábitos e opções, porque as verdadeiras
convicções de uma pessoa manifestam o que faz (como vive? o que faz?
como o faz...?), não no que diz (Castillo, 2021).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Uma liderança que se multiplica...


Precisamos de pessoas que, com arte e dedicação da própria vida,
promovam a missão e a comunidade. Uma liderança evangélica, neces-
sária e urgente nestes tempos complexos, desconcertantes e desafia-
dores de pandemia e nova normalidade, que não tem respostas para
tudo, mas que é capaz de provocar a liberdade e a responsabilidade de cada
um.

Descartamos uma liderança factótum que faz, diz e se erige em


porta-voz de todos, limitando o crescimento harmonioso das comunida-
des e pessoas, semeando a sensação irreal de uma “polifonia monocórdia”.
Como aquele que só se preocupa com a conservação e a lembrança,
pois tratarão de justificar sua ação, ou não ação, por meio de pressão am-
biental ou medo de um mundo que mais temem do que amam.

Para além da liderança de boa e exata gestão, com a qual muitas


vezes cobrimos, em muitas ocasiões, a falta de espiritualidade, é necessário
promover uma animação para metas mais arriscadas, proféticas e
clarividentes.

A liderança que intuímos para a vida marista no século XXI é


evangélica (profética, servidora e comunitária), desafiados a beber da fonte
e fixar o olhar no Mestre de Nazaré, em suas atitudes e sabedoria, con-
vertendo-se como referência para nosso serviço: “Amar até o extremo”,
expresso na Última Ceia (entregar-se, partir-se e repartir-se) e no lava-pés
(a partir de baixo, com avental e em atitude de “aniquilamento”).

Como maristas, nos sentimos compelidos a contemplar a vida de


Marcelino Champagnat e a primeira comunidade marista, apren-
dendo a arte de “nos dedicar ao serviço”. A Regra de Vida, no número
55, reúne este belo testemunho de nossa tradição marista:

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Marcelino fez da comunidade dos primeiros irmãos


uma verdadeira família (Champagnat, 12/08/1837).
Vocês sabem, dizia, que eu só respiro por vocês; que não há bem algum que
não peça a Deus todos os dias e não esteja disposto a consegui-lo à custa
dos maiores sacrifícios. (Champagnat, JBM, 5/1/1838).
Em troca, os irmãos o amavam como um pai
(Champagnat, 17/01/1839).

Que esta liderança, amassada e multiplicada pelo pão da empatia,


da fragilidade, da comunhão, da misericórdia, da escuta interior,
da horizontalidade e da gratuidade, gere “vida e vida em abundância”,
neste novo começo para a vida e a missão maristas.

Encoraja nossa liderança profética, servidora e comunitária, o tes-


temunho martírial de nosso querido Irmão Moisés Cisneros como “Pere-
grino da Páscoa”.

Seguir Jesus é encarnar sua própria morte em nossa vida, para po-
der participar de sua Ressurreição. Sem dúvida, nosso irmão se
apropria destas palavras de um hino litúrgico: Se Cristo foi meu
alimento, deixe-me ser pão e vinho no lagar e no moinho de onde
arrancam a minha vida (Otero, S., 2008).

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO:


Depois de ler e internalizar este ensaio sobre a liderança marista, a partir da
leitura da passagem da multiplicação...

1. Com que atitude(s) do texto você se sentiu mais identificado? Por quê?
Ele se conecta com alguma experiência pessoal que você viveu ou está
vivendo?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

2. Você considera o aspecto comunitário importante no desempenho da


liderança marista? Por quê?
3. Como é vivida essa liderança comunitária em seu espaço de missão
marista? Você pode partilhar alguns exemplos?
4. Que desafios ou provocações você percebe em sua realidade marista a
partir desta visão do desempenho da liderança em chave comunitária?

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VOZES MARISTAS

REFERÊNCIAS

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dos Irmãos Maristas.
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conheço. Em: https://ethic.es/entrevistas/el-silencio-es-lo-mas-
-transformador-que-conozco/
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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

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PARTE III

HABILIDADES

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 13

Habilidades de
comunicação
Em Liderança Profética e
Servidora
Ir. Cyprian Gandeebo
Provincial da África Ocidental

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Conseguir que as pessoas se envolvam em atividades de grupo para


atingir os objetivos está cada vez mais na ordem do dia. Mas, para poder
incentivar a colaboração e a participação na realização de uma tarefa, são
necessárias habilidades de comunicação. Para construir comunidades ma-
ristas robustas é necessário ter habilidades de comunicação eficazes que
são indispensáveis para uma melhor coordenação e trabalho em equipe.
Quando falhamos na hora da comunicação na comunidade marista, deixa-
mos de cumprir o mandato cristão de ser “um só coração e um só espírito”
(Testamento Espiritual).

Pode-se dizer, sem dúvida, que a comunicação é um grande desa-


fio nas comunidades religiosas. Mesmo na sociedade de hoje, a má comu-
nicação ou a falta dela é a causa comum de luta nas famílias e nos locais de
trabalho. Não é de se admirar, então, que este tema tenha surgido muito
fortemente durante o 22º Capítulo Geral em Medellín - Colômbia, em
2017. O Plano Estratégico do atual Conselho Geral se esforça para um
“plano de comunicação que transmita quem somos e alcance efetivamente
nossos vários interessados e o público em geral” (Maristas de Champagnat,
2017 - 2025). O objetivo do projeto é nutrir um sentido de pertença, supe-
rar fronteiras geográficas e existenciais, e projetar a vida e a missão maristas
para a sociedade em geral, usando habilidades de comunicação simples e
eficazes para construir comunidades maristas autênticas.

O fundador, São Marcelino Champagnat e os primeiros Irmãos,


assim como os Superiores Gerais, falaram e escreveram circulares para ins-
pirar os Provinciais e Líderes Comunitários a melhorar a vida e a missão
maristas nas Províncias e Comunidades. Na fundação de qualquer comu-
nidade marista autêntica está a comunicação, pois quando falamos com
as pessoas com amor, falamos a partir do coração. Essa conexão constrói
confiança e convicção que, por sua vez, gera interações humanas. A comu-
nicação eficiente gera perdão e reconciliação entre os membros da comu-
nidade. Essa noção é o pensamento central da Testamento Espiritual de São
Marcelino:

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Queridos irmãos, eu vos imploro com todo o amor do meu cora-


ção, e por todo o amor que me tendes, mantende sempre viva entre
vós a caridade de Cristo. Amai-vos uns aos outros como Jesus Cris-
to vos amou. Que não haja entre vós senão um mesmo coração e
um mesmo espírito. Que se possa dizer dos Irmãozinhos de Maria
como dos primeiros cristãos: Vejam como eles se amam! É o mais
ardente voto de meu coração neste último momento de minha
vida. Sim, meus caríssimos irmãos, atendei às últimas palavras de
vosso pai, pois são as mesmas de nosso amado Salvador: “Amai-vos
uns aos outros!’’

São Marcelino Champagnat sabia muito bem como se comunicar


com seus ouvintes. Em Maravilhosos Companheiros, o Irmão Seán Sam-
mon, sublinha as preocupações concretas das comunidades maristas e pro-
põe a comunicação como uma ferramenta para dirigi-las confortavelmen-
te. A circular de Ernesto Sanchez, “Lares de Luz - Cuidar da Vida e Gerar
Vida Nova”, destaca mais claramente a comunicação como um remédio
para a construção de comunidades maristas autênticas.

O discurso sobre comunicação tem permeado amplamente os


cursos de liderança e gestão, bem como as relações humanas. Isto por-
que a comunicação é um tema central e tem um impacto maciço sobre
a liderança. Hoje, ela é amplamente discutida à medida que as interações
humanas aumentam e se tornam mais complexas. A existência contínua
de instituições humanas depende de sua capacidade de se comunicar entre
si. Como consequência, os seres humanos devem ter certas habilidades de
comunicação para melhorar as interações efetivas.

A literatura disponível sobre este tópico indica uma relação posi-


tiva entre a comunicação e a liderança. Há evidências suficientes que de-
monstram que habilidades de comunicação excepcionais são fundamentais
para uma liderança eficaz e para o alcance de objetivos institucionais (Zul-
ch, 2014). Assim, uma boa comunicação leva a uma liderança eficaz. Isto
porque a boa comunicação inspira e motiva os seguidores a trabalharem

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mais para atingir as metas institucionais. Os líderes que são incapazes de se


comunicar adequadamente não podem ser líderes eficazes. Como Luthra
e Dahiya, (2015) afirmam, “as boas habilidades de comunicação ajudam a
desenvolver a compreensão e as crenças entre as pessoas, inspira-as a seguir
os princípios e valores que seu líder quer inculcar nelas” (p. 43).

A comunicação, portanto, é uma parte integrante das instituições


que obtêm êxito. Portanto, não pode haver vida institucional significativa
sem a interação efetiva de seus membros. De fato, é um ingrediente vital
para a liderança. Como “cordão umbilical da vida nas organizações” (Gan-
deebo, 2017), não pode haver nenhuma relação significativa sem comuni-
cação. Na verdade, é a supercola que une os membros institucionais. Seria
impossível para uma organização funcionar sem um sistema adequado de
comunicação.

Visto que criamos nossa realidade a partir da partilha de experiên-


cias e percepções do universo e dos fenômenos, a comunicação ajuda na
“criação, iniciação e troca de significado” (Guffey, Rhodes, & Rogin, 2010).
Quando comunicamos, pretendemos transmitir significado de uma pessoa
ou grupo de pessoas a outros, através de símbolos comuns. Tais encontros
constroem relacionamentos, comunhão e fraternidade (Papa Francisco)
e transformam as pessoas. Um dos ingredientes básicos para uma comu-
nicação eficaz é a confiança. Abraham Lincoln, ex-presidente americano,
afirma que “se você quer conquistar um homem para sua causa, primeiro
convença-o de que você é um amigo sincero”. A confiança é uma base e
um alicerce para um relacionamento realista e provoca uma comunicação
autêntica e significativa.

Ao longo dos séculos, os seres humanos sempre articularam seus


pensamentos, sentimentos e compreensão do universo através da comuni-
cação. Como Owen (2011) captou, há um desejo fundamental, poderoso
e universal em todos os seres humanos de interagir uns com os outros. Os
seres humanos têm uma necessidade profunda de se comunicar, e quanto
maior sua capacidade neste sentido, mais satisfatória e gratificante é sua

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vida. O título do livro do Papa Francisco “Diversos e unidos: Comunico


e, portanto, sou”, citado por Wells (2020), supõe um desejo intrínseco aos
seres humanos de interagir. Assim, enquanto existir seres humanos, existirá
também a comunicação.

Citando o Papa Francisco, Gomes (2019) afirma que a comunica-


ção só é eficaz quando estamos em comunhão uns com os outros. A comu-
nicação, portanto, faz sentido quando desperta a participação e a partilha.
Essa deve provocar nossos pensamentos e sentimentos para um intercâmbio
de informações. Uma mensagem, iniciada e transmitida usando o meio
apropriado, recebida e compreendida deve despertar ou provocar uma
mudança de comportamento ou atitudes. A mensagem transmitida pelos
líderes zelosos e e proféticos, deve estimular, motivar e levar à ação quem
quer que receba a mensagem. A formação religiosa marista dada, recebida e
internalizada deve, portanto, expressar e exibir alguma fecundidade interna
e externa. Gomes (2019), mais uma vez, observa que “uma comunidade é
mais forte se for coesa e solidária”. Os líderes servidores são, portanto, cha-
mados a testemunhar a comunhão que é uma marca de nossa identidade
cristã e marista. É sob esta luz que Ernesto Sanchez (SG) encorajou todos
os maristas de Champagnat a formar ou construir casas que sejam uma luz
na colina para aqueles que estão ao seu redor, dedicando-nos sem reservas
na criação de um estilo de vida familiar aberto a todos (Barba, 2020).

O processo de comunicação
O processo da comunicação consiste em várias etapas incluindo
um emissor, uma mensagem, um meio e um receptor ou destinatário. O
processo de comunicação tem origem em um emissor que inicia uma ideia,
codifica e transmite esse pensamento através de um meio a um destinatá-
rio que recebe a mensagem, decodifica-a, interpreta-a e age sobre ela. O
beneficiário então dá um feedback sobre as informações recebidas. Assim,
há geralmente seis etapas em um processo de comunicação: formulação da
mensagem, codificação da mensagem, transmissão da mensagem, decodifi-

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cação da mensagem, interpretação da mensagem e feedback da mensagem


recebida. O objetivo central da comunicação é a transmissão de significado.
A comunicação, portanto, atinge seu objetivo quando o destinatário en-
tende a mensagem como concebida pelo emissor. Em outras palavras, a co-
municação é eficaz ou bem-sucedida quando a mensagem é compreendida
pelo destinatário como pretendido pelo emissor (Worth, 2004).

Ocasionalmente este processo de comunicação, no entanto, pode


sofrer interrupção ou interferência. Por exemplo, a mensagem ou intenções
do remetente podem ser mal compreendidas. A interferência e perturbação
de um processo de comunicação é chamada de ruído e pode ser causada
por desatenção, sonolência, medo e julgamento. Estes têm o potencial de
inibir a compreensão efetiva do intercâmbio de informações. Da mesma
forma, carros ou veículos em movimento, música alta, maneiras de comu-
nicar podem inibir o processo de comunicação. Estes fatores, em conjunto
ou individualmente, podem causar uma comunicação ineficaz. Por exem-
plo, um acompanhante sonolento ou um pregador confuso pode causar
uma comunicação ineficaz durante o acompanhamento. Portanto, líderes
servidores e proféticos devem usar habilidades de comunicação apropriadas
para superar ruídos e melhorar a compreensão no intercâmbio de infor-
mações.

Habilidades para uma comunicação eficaz


As habilidades de comunicação são ferramentas usadas para me-
lhorar a comunicação. As habilidades de comunicação representam nossa
capacidade de dar e receber ou compreender informações diferentes. Es-
sas habilidades consistem em falar, ouvir, sentir empatia, motivar, inspirar,
respeitar as opiniões dos outros, assim como compreender e compartilhar
as emoções dos outros. A comunicação só é eficaz quando a informação
recebida é compreendida e estimular uma mudança ou traz novidades no
comportamento do destinatário. O uso de habilidades apropriadas de co-
municação provoca uma transmissão e um intercâmbio eficazes de infor-
mação ou os aumenta.

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A escuta é uma habilidade essencial para a comunicação. Embora


muitos líderes tenham passado a maior parte de seu tempo se comunican-
do, a escuta é frequentemente negligenciada (Luthra & Dahiya, 2015). A
escuta não é uma atividade passiva, mas envolve prestar atenção ao que a
outra pessoa está expressando a fim de compreendê-la. Como Worth (2004
assinala, os líderes que não escutam, não conseguem se comunicar. Exorta
aos líderes servidores que escutem com atenção a fim de compreender e
construir uma conexão com as pessoas com as quais se comunicam. Essa
ligação emocional faz com que as pessoas se sintam valorizadas porque são
ouvidas e se sentem apreciadas porque percebem que suas opiniões são
levadas em consideração. Essa sensação de ser valorizado gera satisfação e
alegria.

Criar sintonia é uma é uma habilidade que promove o intercâmbio


imediato e alegre entre aquele que se comunica e aquele que escuta. Iden-
tifica-se com a confiança, que é um ingrediente indispensável do acom-
panhamento religioso marista. Com uma adequada sintonia, os formandos
se sentem seguros ao lhes garantir a confiança e a confidencialidade. Nesse
clima, partilham imediata e livremente as suas ideias. A falta de conexão
e de confiança, pelo contrário, dificulta ou inibe o processo de formação,
pois os formandos podem se sentir inseguros e relutantes em se abrir para
que a formação ocorra. Um ambiente tranquilo é um “meio privilegiado
para construir comunidade e para o crescimento humano e espiritual de
cada irmão. Compartilhamos com nossos irmãos o melhor de nós mesmos”
(C 40). Esse contexto nos oferece o meio certo para nos expressarmos
abertamente, sem distorções ou preconceitos, mas com o compromisso de
compreender as opiniões de outros membros do grupo. O acompanha-
mento eficaz ocorre, portanto, quando há uma escuta atenta e empática. A
comunicação requer disponibilidade, honestidade, paciência, tolerância e
reciprocidade, etc., (Barba, 2020).

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Princípios de uma comunicação eficaz


A comunicação pode ser moldada por experiências passadas, pre-
conceitos, emoções, linguagem, etc. Da mesma forma, o contexto e a cul-
tura são elementos importantes que têm impacto sobre a comunicação. O
contexto e a cultura em que a comunicação ocorre são fundamentais para
compreender os significados do conteúdo de uma mensagem e seu feedba-
ck. Muitas vezes, os irmãos podem não se dar muito bem em comunidade
porque se movem em terrenos distintos. Por exemplo, se a linguagem da
comunicação não fornecer o mesmo significado tanto para o remetente
quanto para o destinatário, a mensagem enviada pode ser distorcida, mal
compreendida ou mal interpretada. Assim, os líderes servidores se esforçam
para evitar frases longas, conceitos abstratos, palavras e sinais desconhecidos
quando se comunicam. Os líderes servidores não devem fazer uso ou evitar
palavras ambíguas e expressões coloquiais. Ao contrário, utilizam palavras
simples, sem ambiguidades para se comunicar. A comunicação eficaz flo-
resce muito bem em palavras simples e não sofisticadas. Um líder servidor
é claro e inequívoco ao se comunicar porque seu objetivo é dar conheci-
mento às pessoas que o escutam e receber respostas.

Assim, a capacidade de articular claramente ideias e uma visão ca-


racteriza os líderes que prestam serviços. Eles têm o objetivo de ajudar os
outros a realizar seu potencial. Em geral, costumam estar centrados nos ou-
tros e adotam uma comunicação bidirecional para entrar em diálogo com
o outro. Assim, o líder e o seguidor compartilham a responsabilidade pela
transmissão e compreensão da mensagem. As duas partes tornam-se então
corresponsáveis pela transmissão e compreensão da mensagem. Como lí-
deres servidores, o objetivo deve ser nutrir e capacitar os jovens irmãos,
estudantes e funcionários para amadurecerem e se tornarem futuros líderes
servidores e proféticos. Eles permitem que os seguidores se beneficiem ou
compreendam o que está sendo comunicado. Os seguidores são capacita-
dos a crescer em seu potencial ou no que são capazes de se tornar.

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Semelhante à verbosidade e ao contexto, preconceitos e diferenças


intergeracionais são fontes de interferências na comunicação. Esses fatores
têm um impacto significativo e podem distorcer o processo de comuni-
cação. É evidente nas comunidades religiosas que as diferenças intergera-
cionais têm impacto sobre a qualidade da comunicação. As gerações mais
jovens sentem que a qualidade da formação recebida hoje é muito melhor
do que a do passado. As gerações mais velhas, ao contrário, sentem que a
formação recebida hoje é diluída e os religiosos atualmente recebem uma
formação pela metade. Ideias como essas podem provocar distanciamento,
inibir a comunicação e polarizar as comunicações em diferentes grupos.

Compartilhar muito conteúdo informativo ou despejar conteúdo


sobre o público ou destinatários dificulta a comunicação efetiva. Como
“nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino do Céu
(Mt 7,21), assim não é todo mundo que transmite informações que é um
comunicador. Um comunicador eficaz aborda as necessidades do público
e não às suas necessidades pessoais. O despejo de conteúdo irrelevante que
não tem impacto sobre os destinatários pode criar tédio. Os líderes servi-
dores criam espaços para uma interação bidirecional. Este diálogo ou inte-
ração recíproca convida à participação do público, o que é uma excelente
receita para uma comunicação eficaz.

Obstáculos ao processo de comunicação


Além do ruído que inibe ou impede a comunicação eficaz, exis-
tem outros fatores que se apresentam como obstáculos para uma boa co-
municação. Para comunicar de maneira eficaz, um líder profético e servi-
dor deve aprender a lidar com as barreiras da comunicação.

Falhar em planejar é planejar falhar, diz o ditado. Muitos líderes


não conseguem se comunicar efetivamente com seus seguidores devido,
em grande parte, ao planejamento ineficaz do que desejam transmitir ou
comunicar. Um sistema de comunicação eficaz requer um planejamento
cuidadoso. O bom comunicador é inequívoco quanto ao objetivo do que

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ele comunica. Além disso, conhece outras alternativas e as leva em conside-


ração para depois selecionar a melhor mensagem e o seu modo de trans-
missão para alcançar o máximo de resultados. Quando tais considerações
significativas são negligenciadas, existe a possibilidade de fracassar na hora
de dar a impressão desejada, bem como de obter a resposta pretendida.

Às vezes, quando há uma lacuna no processo de comunicação de-


vido a diferenças na maneira como as pessoas percebem e interpretam
os fenômenos, isto pode criar interpretações errôneas, incompreensão e
confusão. Os erros e os impedimentos na comunicação das organizações
podem ser causados pelas diferenças na educação, treinamento, status social,
idade, sexo, situação econômica, cultural ou estereótipos. Um líder profé-
tico e servidor procurará preencher quaisquer lacunas geracionais usando
estratégias apropriadas.

Em algumas organizações, os problemas de comunicação são cau-


sados pela incapacidade de uma pessoa de compreender a língua ou as
expressões linguísticas de outra. A incapacidade de compreender o que
uma pessoa expressa indica um sentido, palavras, expressões ou afirmações
desconhecidas pelo ouvinte. Igualmente as diferenças na percepção, nas
palavras ambíguas e os bloqueios semânticos geram imprecisão e falta de
compreensão da mensagem que se pretende transmitir. Faz com que a
comunicação perca sentido não dando lugar ao entendimento e feedback.
O bloqueio semântico, em geral, decorre do uso de um vocabulário im-
próprio. Então, um líder servidor deveria se expressar com uma linguagem
que todos entendam claramente, ou falar devagar.

As organizações se estruturam de forma ‘horizontal’ ou ‘vertical’ e


esta forma de estruturação determina os bloqueios organizativos. As orga-
nizações horizontais, em geral, são democráticas e participativas, enquanto
as verticais são fundamentalmente centralizadas e hierárquicas. Os níveis
pelos quais deve atravessar uma informação para chegar até seu destino
afetam, normalmente, a precisão da informação. As distorções da informa-
ção são notórias nas organizações verticais, mais do que nas horizontais. A

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informação permite permear facilmente os níveis e, em muitas ocasiões,


acaba perdendo-se numa organização vertical, o que sucede menos em
uma mais horizontal. Por isso, os líderes servidores devem esforçar-se em
evitar a distorção da informação, um problema que pode reduzir-se sig-
nificativamente nas estruturas descentralizadas, mas não chega a tanto nas
hierarquizadas.

Fatores interpessoais, tais como confiabilidade entre os membros


da organização, a sintonia, tom e sensibilidade do conteúdo emocional da
mensagem afetam a eficácia da comunicação. Se um líder ensina com o
exemplo ou faz o que diz, resulta ganhar confiança e consegue fazer-se es-
cutar, enquanto que os que unicamente descarregam ordens, normalmente
não geram confiança ou não são escutados. Igualmente, a falta de sintonia
entre os líderes e seus seguidores provoca contratempos e desafios para a
comunicação.

Às vezes, os líderes não conseguem se comunicar de forma eficaz


por causa da sobrecarga de informação ou por excesso de coisas que de-
mandam sua atenção. Um dia típico da maioria de nossos líderes é cons-
tituído de chamadas, redação de memorandos ou relatórios, conversas com
diferentes pessoas sobre vários temas e ordens que devem ser comunicadas
verbalmente.

O objetivo geral da escuta é compreender completamente o que


está sendo comunicado. Infelizmente, em quase todo o tempo, muitas pes-
soas não entendem completamente o que foi formulado, pelo fato de que
escutam de forma seletiva ou escutam mal. A escuta seletiva é uma técnica
utilizada quando selecionamos escutar o que queremos escutar ou ver o
que queremos ver. Em outras palavras, uma pessoa bloqueia intencional-
mente as ideias ou opiniões de outra só porque as ideias não combinam
com o esperado. Essa técnica é chamada de filtro mental, na qual alguém
escolhe ouvir ou estar atento apenas aos aspectos de uma mensagem que
está sendo transmitida. Assim, a comunicação eficaz pode ser inibida devi-
do à habilidade de escuta seletiva ou deficiente. A escuta seletiva ou escuta

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deficiente pode ser causada por falta de concentração, desatenção ou alguns


outros fatos que interferem no processo de escuta. O mais comum é que
estas situações conduzem à perda de informação ou esquecimento.

O meio ou canal de transmissão da mensagem também pode ser


um impedimento ou uma barreira para uma comunicação eficaz. Assim,
os líderes proféticos e servidores devem utilizar os meios mais adequados
para transferir ou transmitir a informação desejada, para que a mensagem
possa ser adequadamente recebida, interpretada e compreendida. O valor e
a credibilidade da mensagem podem aumentar ou se tornar barreiras para
uma comunicação eficaz. Da mesma forma, a filtragem, manipulação e
distorção da mensagem de informação são fatores que podem dificultar o
processo de comunicação.

A responsabilidade de fortalecer e melhorar a comunicação nas


organizações é de responsabilidade tanto da pessoa como da própria or-
ganização. Por um lado, os emissores deveriam procurar definir e articular
o propósito de sua mensagem, construir cada mensagem levando em con-
sideração o destinatário; selecionar o melhor meio/canal para comunicá-
-la; programar cada transmissão cuidadosamente; e solicitar feedback. Os
receptores, por sua vez, devem escutar atentamente; mostrar sensibilidade
com o emissor; recomendar um meio adequado para transmitir as mensa-
gens; e realizar esforços de feedback.

A capacidade de se comunicar bem, verbalmente e por escrito é


uma habilidade indispensável para a liderança profética e servidora. Através
da comunicação, as pessoas trocam informações, o que influencia as ati-
tudes, comportamentos e compreensões uns dos outros. A comunicação
permite aos líderes estabelecer e manter relações interpessoais, escutar-se
mutuamente e obter as informações necessárias para criar uma comuni-
dade inspiradora. Nenhum líder pode lidar com conflitos, negociar e ter
sucesso na liderança efetiva sem ser um bom comunicador.

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PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Até que ponto me comunico com todos na minha comunidade?
2. Sou sensível aos diversos membros da minha comunidade quando me
comunico?
3. Quais são os maiores desafios que enfrento na construção da comuni-
dade marista?
4. Como posso avaliar a eficácia da comunicação em minha comunidade?
5. Quais são as barreiras para uma comunicação eficaz nas comunidades
maristas?
6. Como posso construir um bom relacionamento interpessoal em mi-
nha comunidade ou local de trabalho?
7. Qual metodologia estratégica é viável hoje em dia para a liderança
profética na hora de construir comunidades maristas?

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VOZES MARISTAS

REFERÊNCIAS

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Trabalho não publicado.
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Instituto dos Irmãos Maristas. (2018). Maristas de Champagnat: Plano Es-
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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 14

Habilidades para a
tomada de decisões
Ir. Robert Teoh
Provincial de East Asia
(2013-2019)

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Introdução
Uma vez concluído o processo de reestruturação, o nosso Instituto
enveredou no estudo da busca de uma estrutura simples de governo, mas
de aplicação universal, para fazer o Instituto avançar no novo século. Com
a ajuda de um grupo de consultores profissionais, que envolveu todas as
unidades administrativas, dedicando a esta questão mais de quatro anos de
debate e planificação, a Administração geral ideou, finalmente, uma estru-
tura simples, mas realista, que pode impulsionar todo o Instituto a levar
adiante a visão e a missão de nosso Fundador na nova era.

O XXII Capítulo geral (2017) completou este esforço, solicitando


à nova administração que assuma “uma liderança profética e servidora que
acompanhe com proximidade a vida e a missão marista”. Para tal fim o
Capítulo sugere “identificar e formar líderes, leigos e irmãos, em todos os
níveis, em vista do crescimento na corresponsabilidade...” assegurando que
“em todos os níveis de governo, se ponha em andamento ou se fortaleça
estruturas nas quais todos os maristas partilhem a liderança e a responsabi-
lidade da vida e missão”.

A passagem de um estilo de governança centralizado, piramidal, a


outro estilo de liderança e responsabilidade partilhadas requer, sem dúvida,
uma mudança de paradigma caracterizado por uma liderança servidora e
profética, como uma nova forma de fazer as coisas, especialmente no que
se refere à tomada de decisões. A liderança servidora incorpora os ideais
de empoderamento, qualidade total, trabalho em equipe, gestão participa-
tiva e ética de serviço, construindo, assim, uma filosofia de liderança. Os
especialistas demonstraram que a tomada de decisões participativa gera no
mundo laboral um alto nível de satisfação entre os funcionários. Segundo
a Greenleaf Center for Servant-Leadership (1997, p. 4), este modelo de
liderança se apoia num “maior serviço aos demais, um enfoque holístico de
trabalho, a promoção do sentido de comunidade, e a partilha do poder nas
tomadas de decisões”.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Não devemos ignorar a importância que tem a dimensão profética


de qualquer decisão que vamos tomar, mesmo que as vezes essa decisão
possa parecer ridícula e ilógica. Há momentos em que uma decisão equi-
vocada poderia levar o Instituto a perder a oportunidade de gerar nova
vida. Marcelino Champagnat deparou-se com uma dessas situações quando
refutou a proposta de unir seus irmãos com os religiosos fundados pelo
vigário geral, Sr. Bochard. Sem dúvida, os líderes, ou os grupos, tomam as
decisões com base em suas crenças (convicção), valores essenciais, critérios
distintivos (carisma), e a necessária análise “dos prós e contras”. Em seguida
vem o momento importante de colocar a decisão nas mãos de Deus e rezar
nesta intenção. Isto é algo que não deve se fazer levianamente, porque se
pode perder uma ocasião única de tomar uma decisão profética na vida. O
líder servidor deve cultivar um instintivo “sentimento interior” ou “per-
cepção” da vontade de Deus para não perder essa oportunidade de ouro.

Tomada de decisões partilhada através de uma


liderança servidora e profética
Uma das funções importantes dos líderes é a tomada de decisões.
Existem várias maneiras que podem ser utilizadas para chegar a qualquer
decisão. Alguns líderes vão optar resolver as coisas por si mesmos. Outros,
talvez, prefiram envolver um pequeno grupo de pessoas, por exemplo, os
membros do Conselho provincial, através de um processo de consulta; ou,
talvez, optem por implicar muitas pessoas, como nos processos de constru-
ção de consenso. No que tange a esta reflexão que estamos fazendo, vamos
nos centrar somente na tomada de decisões importantes, como a abertura
ou fechamento de uma comunidade religiosa, a elaboração de um plano
de ação de acordo com as linhas mestras recomendadas pelo Capítulo pro-
vincial, ou outras resoluções que afetarão a vida e missão de uma Unidade
administrativa. Não é nossa intenção agora entrar nas decisões cotidianas,
como fixar a hora das refeições ou o lugar adequado para as reuniões.

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VOZES MARISTAS

Nossas Constituições (2020), guiadas pelo Direito Canônico, assi-


nalam as diversas circunstâncias em que o Provincial e seu conselho devem
tomar decisões. Entretanto, não detalham o processo que deve ser aplicado.
Isto favorece, aos que estão à frente de uma Unidade administrativa, a opor-
tunidade de escolher diferentes dinâmicas e possibilidades para chegar a
uma decisão. Por conseguinte, os que adotam o estilo de liderança servidora
e profética, podem eleger a tomada de decisões partilhadas para os assuntos
relevantes de governo.

A tomada de decisões partilhadas é um procedimento fundado na


união de conhecimentos das várias partes interessadas a fim de favorecer a
busca de resoluções mais inteligentes e eficazes. Este método oferece múl-
tiplas vantagens porque traz perspectivas e informação que, de outro modo,
poderiam passar inadvertidas para os responsáveis na tomada de decisões. O
campo da saúde e da educação, normalmente, exigem tomada de decisões
partilhadas para melhorar os resultados dos pacientes e dos estudantes. Uma
liderança servidora eficaz requer cooperação quando chega o momento de
decidir. Em certo sentido, o líder servidor deve ter uma grande capacida-
de para refletir sobre si mesmo e fomentar a cultura participativa dentro
da organização. R. F. Russell, em seu ensaio O papel dos valores na liderança
servidora, em 2001, escreveu: “Os líderes capacitam os outros para atuar, não
acaparando o poder que têm, mas dando-o”.

Quais são as vantagens de uma tomada de


decisões partilhada
Maior compromisso. Com frequência, escutamos os dirigen-
tes queixar-se de como é difícil convencer as pessoas para que aceitem as
mudanças que necessita uma organização se se deseja gerar nova vida. Isto
pode atribuir-se ao fato de que as pessoas afetadas não tomaram parte na
tomada de decisões. O compromisso será maior quando os outros sabem
que sua contribuição é importante e pode ajudar a alcançar determinados
objetivos. Quando se sentem envolvidos na tomada de decisões partilharão

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

as ideias, o que estimulará o seu compromisso; assim, haverá mais possibili-


dade de que no processo surjam propostas inovadoras que facilitem assumir
acordos e resoluções.

Melhora a gestão da mudança. É provável que as iniciativas de


mudança fracassem devido à má comunicação e a falta de aceitação. Com
a tomada de decisões partilhada, a comunicação é mais aberta e frequente
ente os líderes e as pessoas de primeira linha na missão, assim como com
outras partes interessadas. Isto favorece a aceitação em todo os níveis, cer-
tamente. Qualquer dúvida ou incerteza se pode resolver de imediato, e
isto melhora a gestão da mudança e proporciona um controle e equilíbrio
constantes, afinando a estratégia que conduz ao objetivo previsto.

Diminui a possibilidade de tomar uma má decisão. Quan-


do um líder toma uma decisão por sua conta, com suas próprias limitações,
as possibilidades de tomar uma decisão equivocada são maiores. Entretanto,
quando o processo de tomada de decisões implica mais pessoas, vislum-
bram-se outras perspectivas e haverá mais informação e, com isso, se reduz
o risco de uma decisão errônea.

Melhor compreensão. Quando um líder toma decisões que afe-


tarão a vida de outra pessoa, é claro que se deve escutar a pessoa concer-
nida, permitindo-lhe participar das deliberações. Assim, se conseguirá uma
melhor compreensão e aceitação daquilo que se decida. Este é um aspecto
especialmente importante para o cuidado pastoral dos irmãos e dos leigos
que partilham nossa missão. Um líder servidor e profético deve seguir o
exemplo de Jesus, o Bom Pastor, que está disposto a morrer por suas ove-
lhas (Jo. 10,11) e deseja vida em abundância às pessoas que atende, para ser
como os pastores que vivem com “o cheiro da ovelha” (Papa Francisco,
2013). Somente, então, estará em condição de escutar as pessoas a quem
serve e estas, por sua vez, escutarão a ele.

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VOZES MARISTAS

Como pôr em prática a tomada de decisões


partilhada
1. Antes de iniciar uma conversa com seu grupo, no processo de tomada
de decisões partilhada, deixe primeiro seu ego fora da sala. Conscienti-
ze-se que não é você quem vai tomar a decisão, mas que vai acolher a
sabedoria e as opiniões das pessoas que reuniu. Provavelmente o Espí-
rito Santo fale mais forte através deles.

2. Vá dando pequenos passos. Concentre-se nas pequenas mudanças que


pode realizar com as pessoas que estão mais próximas. Tente fazer mu-
danças que toquem mais além de sua esfera de influência sabendo que
não é tarefa fácil, se não está acostumado na tomada de decisões par-
tilhada.

3. Faça a sua tarefa. Prepare a informação que vai partilhar com seu gru-
po. Leve em consideração que, talvez, o primeiro obstáculo será encon-
trar tempo para envolver as pessoas no processo de tomada de decisões.
Considere que, se o debate transcorre por um caminho demasiado
formal, as pessoas podem sentir-se incômodas. Existem métodos que
possibilitam o processo de coleta de opiniões de maneira informal.
Por exemplo, iniciar propondo perguntas relacionadas com a próxi-
ma decisão, antes de efetuar a reunião, quando tenha oportunidade
de conversar com os membros do grupo. Se isso é algo que você faz
normalmente, essas pessoas se sentirão mais à vontade respondendo às
perguntas e, pode ser que até se adiantem na exposição de suas ideias.
Visualize a informação que conseguiu, porque uma boa apresentação
provocará boa impressão ao grupo quando estejam reunidos debatendo
a questão.

4. Escolha o momento e o lugar adequados para a reunião e o debate.


Durante a reunião, o líder pode pedir a opinião do grupo. Deixe que
as pessoas tenham tempo suficiente para partilhar seus critérios. Escute

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

atentamente seus pontos de vista e trate de empatizar com eles. Quan-


do todos se manifestaram, pode-se efetuar uma chuva de ideias no
sentido de buscar uma solução. Pode-se utilizar diversos métodos:Ver-
-Julgar-Agir; discernir os prós e os contras; e a análise DAFO (Debili-
dades, Ameaças, Fortalezas, Oportunidades). Pode-se também orientar
o grupo mediante perguntas desafiadoras, visando aprimorar e otimizar
a decisão. É preciso respeitar a decisão coletiva final; assim, as pessoas
implicadas assumirão a responsabilidade do que foi decidido.

5. Reze por aquilo que foi decidido. Diferentemente do que ocorre no


setor empresarial, a maioria de nossas decisões, seguramente, estão re-
lacionadas com a vida e a missão de nossa Unidade administrativa.
Portanto, é muito conveniente rezar pelas decisões que vamos tomar e
encomendá-las a Deus por intercessão de Maria, como tantas vezes fez
nosso fundador no passado.

Conclusão
A mudança de estrutura e estilo de governo exige uma nova for-
ma de tomar decisões. O que aqui foi exposto é uma simples tentativa de
apresentar a tomada de decisões partilhada como elemento constitutivo de
nosso modo de decidir dentro desse novo estilo de governar através de uma
liderança servidora e profética. Este tipo de liderança consiste em romper a
estrutura piramidal do poder e da tomada de decisões. Nosso Instituto deve
inclinar-se para processos mais flexíveis e participativos. Uma boa maneira
de caminhar nessa direção é promover a inovação e fomentar o feedba-
ck dentro do Instituto. Os líderes maristas farão muito bem em seguir o
exemplo de nosso fundador, Marcelino Champagnat, que quando tomava
decisões cruciais, nunca deixava de consultar os irmãos mais prudentes,
ouvindo-os com atenção. Em certo sentido, sua forma de decidir não se
distancia muito da tomada de decisões partilhada que explicamos. Marce-
lino também nos ensina a tornar assunto de oração as decisões coletivas,
confiando-as à Boa Mãe.

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VOZES MARISTAS

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Por que consideramos que o partilhar o poder na tomada de decisões
é uma consequência natural do novo estilo de governo dos Irmãos
Maristas?
2. Quais são os benefícios da tomada de decisões partilhada?
3. Em seu contexto local, como poderíamos colocar em prática o proces-
so de tomada tomada de decisões partilhada?
4. Por que você acredita que é importante encomendar a Deus a decisão
que vamos tomar, dedicando tempo em rezar com esta intenção, como
fazia Marcelino Champagnat quando ia tomar uma crucial decisão?
5. “Os líderes capacitam os demais para atuar, não monopolizando o po-
der que têm, mas dando-o”. Em que experiências de sua vida você
descobre ecos desta frase?

REFERÊNCIAS

Irmãos Maristas. (2017). Mensagem do XXII Capítulo Geral. Casa Generalizia


dei Fratelli Maristi delle Scuole.
Irmãos Maristas. (2020). Constituições e Estatutos. Casa Generalizia dei Fra-
telli Maristi delle Scuole.
Papa Francisco (2013, 23 de março). Discurso aos sacerdotes na Missa Cris-
mal de Quinta Feira Santa. Em https://www.ncronline.org/blogs/
francis-chronicles/pope-s-quotes-smell-sheep. [O sacerdote preso
em si mesmo... perde o que há de melhor em nosso povo, aquilo
que ativa o mais profundo de seu coração presbiteral... E isso é o
que gera insatisfação em alguns que acabam tristes, padres tristes,
e convertidos numa espécie de colecionadores de antiguidades ou
de novidades, em vez de ser pastores com “cheiro de ovelha”. Pe-
ço-lhes isto: sejam pastores com cheiro de ovelhas”].

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Russell, R. F. (2001). The role of values in servant leadership. Leadership


& Organization Development Journal, 22, 76-83. Em http://DOI.
org/10.1108/01437730110382631
Greenleaf, R. K. (1997).The servant as leader. In R. P.Vecchio (Ed.), Leader-
ship: Understanding the dynamics of power and influence in organizations
(pp. 429–438). University of Notre Dame Press. (Reprinted from
“Servant Leadership,” Paulist Press, 1977, pp. 7–17).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 15

Colaboração e
trabalho em equipe
Ir. Patrick McNamara
Provincial dos Estados Unidos
(2015-2021)

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VOZES MARISTAS

Como dizem muitos treinadores sábios: “Não há ‘eu’ na equipe”,


mas não se deixem enganar. Mesmo nas melhores equipes, há muitos “eu”,
muitos egos.

O trabalho em equipe e a colaboração são, naturalmente, funda-


mentais para o sucesso de uma missão. A colaboração e a formação de
equipos entre pessoas com egos saudáveis e autoconfiança pode ser parti-
cularmente desafiadora, mas também extremamente gratificante.

Acredito que não há maior colaboração do que quando um gru-


po de pessoas fortes, criativas e independentes estão todos comprometidos
com o mesmo objetivo. É ainda melhor quando a energia do grupo é di-
recionada para atender às necessidades dos outros, em vez de suas próprias
necessidades. E quando a energia colaborativa é direcionada para fazer o
bem, também pode ser criado um vínculo de vida positivo, que transforma
aqueles que se entregam ao esforço. A colaboração é otimizada quando a
formação da equipe é liderada por um líder hábil e experiente.

Nesse capítulo, analisamos alguns conceitos que são importantes


para o trabalho em equipe, como a escuta e empatia com os outros, criar
uma visão e envolver os outros na visão. Concluiremos, olhando para de-
safios como os esforços para colaborar com líderes e sistemas hierárquicos
ou autocráticos.

Quando jovem, nunca me vi como um “jogador de equipe”. Cer-


tamente nunca me vi como um servo ou líder. Nunca gostei de trabalhar
junto com outros estudantes em projetos de grupo. Eu não gostava de me
juntar aos escoteiros ou outras organizações juvenis. Não tentei entrar para
equipes de beisebol ou basquete. Talvez eu tivesse alguma deficiência pes-
soal ou não tivesse o físico necessário para o esporte, nem as habilidades ou
a resistência. Com toda honestidade, eu também não tinha muito interesse.
Mesmo quando encontrei pequenos trabalhos, como entregador de jornais,
cortador de grama, sacristão da igreja, zelador, eu trabalhava sozinho. Você
está reconhecendo um padrão aqui?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Gostava de passar tempo em minha própria companhia lendo, ou-


vindo música, escrevendo notícias fictícias, me perdendo em jogos imagi-
nativos ou caminhadas na floresta. Essas atividades me enchiam de energia,
eram minhas paixões.

Então, quando eu mudei?

Em muitos aspectos, não o fiz. Mas o que realmente mudou foi


aprender a valorizar melhor meus próprios dons e os dons dos outros. E,
eventualmente, chegar a perceber as alegrias e realizações que a colabora-
ção e o trabalho com os outros poderiam trazer.

À medida que fui crescendo, passei a respeitar e valorizar os dons


que alguns tinham, a ponto de querer estar em suas equipes, em sua com-
panhia, em sua comunidade. Descobri o poder da colaboração e a inspi-
ração e energia quando a colaboração apoiava uma missão. Fazer parte de
uma equipe marista que trabalha com jovens me motivou, quando jovem,
a entrar na Comunidade dos Irmãos Maristas como um irmão religioso
consagrado - e continua me motivando cerca de 45 anos depois.

Você já esteve tão motivado que um grande líder ou uma equipe o


inspirou para maiores realizações ou serviços? Grandes mulheres e homens
ao longo da história e através das culturas vêm à sua mente.

Em minha juventude, os maiores exemplos de inspiração e lide-


rança foram o Presidente dos EUA John F. Kennedy e o Papa João XXIII.
Em pouco tempo (sua presidência foi de apenas 1000 dias), JFK inspirou
uma nação e convidou uma nova geração para objetivos grandiosos. O
Papa João inspirou um mundo, dentro e além do catolicismo, a juntar-se
num renascimento do espírito e a trabalhar pela paz na Terra (João XXIII,
1963).

O Presidente Kennedy e o Papa João XXIII inspiraram muitos a


fazer do mundo um lugar melhor para dar suas vidas também por outros.
Na verdade, estes foram chamados a se tornarem líderes servidores.

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VOZES MARISTAS

Às vezes, inspiração e motivação podem ser encontradas a partir de


fontes muito mais humildes. Por exemplo, um professor, treinador, pai ou
parente, supervisor, santos desconhecidos ou anônimos, amigo ou colega
de classe.

Santa Madre Teresa escreveu1: “Nenhum de nós, inclusive eu, ja-


mais fazemos grandes coisas.” Mas todos podemos fazer coisas pequenas,
com muito amor e juntos podemos fazer algo maravilhoso”. Mahatma
Gandhi escreve2 da mesma forma: “A melhor maneira de se encontrar é
perder-se a serviço dos outros”.

Martin Luther King, Jr.3 nos inspira em uma veia semelhante, en-
corajando a todos nós a assumir o manto da liderança servidora.

Todos podem ser grandes, porque todos podem servir. Não é pre-
ciso ter um diploma universitário para servir.Você não precisa fazer
com que seu sujeito e seu verbo concordem em servir.Você só pre-
cisa de um coração cheio de graça, de uma alma gerada pelo amor.4

Apelos ao trabalho em equipe e à colaboração na busca de um


objetivo podem vir de um líder governamental ou político, de uma figura
religiosa, filosófica ou social. Ou pode ser de atletas influentes que captam
a imaginação de um planeta e despertam o entusiasmo por uma boa causa.

Dois dos maiores ícones esportivos dos EUA, Babe Ruth e Mi-
chael Jordan, eram conhecidos por reconhecerem o valor do trabalho em
equipe e da colaboração em seus sucessos esportivos.

Babe Ruth5 escreveu: “A maneira como uma equipe joga como


um todo determina seu sucesso”.Você pode ter o maior grupo de estrelas
individuais do mundo, mas se elas não jogarem juntas, o clube não valerá
um centavo”.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Michael Jordan da NBA, um dos maiores jogadores da história do


basquete, sabia que o trabalho em equipe era a chave para o sucesso dura-
douro quando escreveu: “Talento ganha jogos; trabalho em equipe e inteligência
ganham campeonatos”.6

Como todos sabemos, São Marcelino Champagnat, não era um es-


tadista ou figura famosa do esporte. Ele era um simples sacerdote do campo
que tinha uma visão. Ele usou sua visão e sua liderança para construir uma
equipe para impactar nosso mundo muito além de sua imaginação - o que
continua acontecendo 200 anos depois. Pense nisso, de tão humilde início,
o impacto global de nossa fraternidade marista. Como isso aconteceu? Li-
derança servidora e colaboração para um objetivo inspirado.

“Precisamos de irmãos”, ele argumentaria com seus coirmãos ma-


ristas. Sua visão de educar e evangelizar as crianças dos países pobres não
poderia ser feita sozinha. E assim, nossa equipe de Irmãos Maristas co-
meçou em janeiro de 1817, quando Champagnat começou a reunir uma
equipe de jovens para trabalhar juntos por sua visão. Champagnat possuía
enorme força pessoal e autoconfiança, apesar de sua educação ser mínima.
Sustentado por sua firme fé e crença de que Maria, nossa boa Mãe, seria
sempre seu recurso habitual, Champagnat dedicou sua vida por seus ir-
mãos e pela missão. Acredito que uma parte integral do sucesso das equipes
de colaboração é o componente de liderança, muitas vezes por um líder
visionário que entende a dinâmica da equipe. Os líderes servidores mais
eficazes devem ter muito “ego” e autoconfiança como São Marcelino, em
conjunto com uma visão clara. A visão é uma fonte de energia e pode ser
transformadora.

O líder servidor por excelência é Jesus. Na Bíblia, aprendemos e


experimentamos a palavra viva de Jesus como um líder servo, à medida que
ele cresceu na compreensão de sua visão e missão:

Jesus se levantou para ler e recebeu um pergaminho do profeta


Isaías. Ele desenrolou o pergaminho e encontrou a passagem onde

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VOZES MARISTAS

estava escrito estava escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim,


porque ele me ungiu para levar boas notícias aos pobres. Ele me
enviou para proclamar liberdade aos cativos e recuperação da visão
aos cegos, para deixar os oprimidos ir livres e proclamar um ano
aceitável ao Senhor.

Enrolando o pergaminho, ele o devolveu ao atendente e sentou-se,


e os olhos de todos na sinagoga olharam atentamente para ele. Ele
lhes disse: “Hoje se cumpriu essa passagem da Escritura, que vocês
acabam de ouvir”. (Lc 4,16-21)7

Em todos os quatro Evangelhos, os ensinamentos de Jesus são mos-


trados em sinais, obras, sermões e parábolas. Jesus exemplifica a liderança
servidora, ao reunir ao seu redor companheiros de equipe fortes que apren-
deriam que o primeiro seria o último - eles tinham que servir a suas irmãs
e irmãos na comunidade de fé.

Talvez nenhum evento caracterize a liderança servidora tanto


quanto mostrado em João 13,15, quando Jesus dá a seus discípulos um
mandato surpreendente depois de um ato muito pessoal de lavar os pés. “Se
eu, portanto, que sou Mestre e Senhor lavei seus pés, vocês devem lavar os
pés uns dos outros”. Eu apresento um modelo a seguir para que, como eu
fiz para vocês, também o façam”.8

Jesus fundou a comunidade cristã para ser uma equipe de líderes


servidores. Durante os próximos dois mil anos, este paradigma seria inter-
pretado para o bem e para o mal de tantas maneiras quanto existem cristãos
e líderes cristãos.

Em cada uma de nossas vidas, encontramos um espaço de serviço


a Jesus como Maristas de Champagnat. Meu próprio projeto de vida como
Irmão Marista há quase cinco décadas tem sido viver, trabalhar e promover
a liderança servidora em nossas comunidades, escolas e em nossa Igreja.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Como Irmãos Maristas, estamos comprometidos a respeitar e


apoiar a vida em sua diversidade e singularidade. Queremos convidar ou-
tros a colaborarem conosco. Então, vamos fazer a pergunta “Qual é a ma-
neira marista de construir uma equipe? Como podemos colaborar, nós os
maristas?

Nos baseamos em 200 anos de exemplos práticos onde os maristas


de Champagnat foram construtores de equipes em nossa missão educativa
e evangélica com milhões de jovens em todo o mundo.

Podemos também buscar uma pesquisa contemporânea influente


sobre este tema. Em seu ensaio de 1970, “Servant as Leader”, Robert K.
Greenleaf, uma autoridade notável em dinâmica de grupo, cunhou pela
primeira vez a frase “liderança servidora”:

A Liderança Servidora é uma abordagem que as pessoas utilizam


há séculos. Como líder de serviço, você é “primeiro um servidor”,
focalizando nas necessidades dos outros, especialmente dos mem-
bros da equipe, antes de considerar as suas próprias necessidades.
Você reconhece as perspectivas das outras pessoas, dá o apoio que
elas precisam para cumprir seu trabalho e seus objetivos pessoais,
envolve-as nas decisões quando apropriado e constrói um senso de
comunidade dentro da equipe.

Muitos de nós agimos como líderes de serviço e o somos há anos,


muitas vezes com pouco ou nenhum treinamento. Em minha experiência
com a formação de equipes como líderes servidores, há algumas questões
fundamentais. Eu sei o que estou fazendo? Estou interessado e disposto a
investir eu mesmo neste serviço e trabalho? Será que percebo que meu
trabalho ou serviço não é sobre mim, mas para o bem de outro?

Um verdadeiro líder servidor conhece os riscos. Ouvimos Jesus


em João 15, 13: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar a vida por
seus amigos” (Nova Bíblia Americana, 1970).

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VOZES MARISTAS

Os colegas de equipe e os membros da comunidade também de-


vem conhecer o risco de sacrifício pessoal. “Sabemos o que estamos fa-
zendo como equipe? A tarefa é clara? Partilhamos o mesmo objetivo? O
objetivo vale a pena?”

A tarefa que você poderia ser solicitado a assumir poderia ser a de


promover um adulto mais saudável vivendo em uma comunidade religiosa.
Você pode ser solicitado a coordenar os detalhes para fornecer abrigo e
cuidados seguros e disponíveis para vizinhos carentes, ou pessoas sem-teto
ou refugiados de rua. Você pode ter a tarefa profissional de criar excelen-
tes centros educacionais. Escolha qualquer Obra de Misericórdia Corporal
como descrito em Mateus 25,35-45, e você será chamado para servir e se
auto sacrificar para outros a custos variáveis. “O que quer que você tenha
feito por um destes menores meus, você fez por mim” (Nova Bíblia Ame-
ricana, 1970).

De acordo com Larry C. Spears, ex-presidente do Centro Robert


K Greenleaf de Liderança Servidora, dez características emergem nos ver-
dadeiros líderes de serviço. “Essas características incluem escuta, empatia,
cura, consciência, persuasão, conceituação, previsão, administração, com-
promisso com o crescimento das pessoas e construção da comunidade”
(Spears, 2018).

De fato, estas características formam nosso estilo de liderança


marista.

Não faz muito tempo, em meu ministério profissional, aceitei uma


tarefa para ser administrador escolar de uma grande escola secundária. Re-
fletindo sobre uma de minhas funções anteriores como líder escolar, ob-
servei como as características de Spears parecem emergir naturalmente em
meu trabalho com meus colegas líderes, professores, funcionários e estu-
dantes. Em seguida, tentei aprender mais sobre desenvolver e aplicar estas
características de liderança servidora em meu papel.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

No meu caso, substituí um administrador impopular que termi-


nou seus mandatos como Diretor de Escola tendo se distanciado de seus
professores, colegas e companheiros e se tornado muito autocrático em seu
estilo de liderança. Embora a escola tenha tido um sucesso razoável em sua
missão acadêmica, professores, funcionários, alunos e pais relataram que a
atmosfera da liderança escolar carecia de inovação ou visão para o futuro.
Alguns relataram que a liderança da escola se sentia tóxica.

Embora, naquela época, minha experiência profissional como Di-


retor de escola fosse mínima, eu tinha muitos anos de liderança de serviço
e sendo um formador de equipe em outras situações educacionais. Em
meu primeiro ano como líder escolar naquela escola, passei incontáveis
horas ouvindo as partes interessadas da escola. Não surpreendentemente,
o consenso era que tanto o pessoal da escola quanto os alunos se sentiam
ignorados. Ninguém parecia se importar com suas preocupações, esforços
ou ideias. Tomar tempo para ouvir foi um primeiro passo óbvio e um bom
começo. A escuta ativa construiu um vínculo real entre a equipe adminis-
trativa, o corpo docente e o pessoal, e especialmente com os alunos.

Não apenas escutei, mas também reconheci os pontos fortes e os


desafios desses grupos. E compartilhei seus sentimentos em toda a comu-
nidade para ser transparente. Em resumo, fui capaz de fomentar um senso
de confiança muito maior com as partes interessadas e ganhei a oportu-
nidade de compartilhar minha visão para a missão escolar. As conversas
foram colaborativas; compartilhamos ideias e planejamos para uma melhor
experiência escolar em todos os níveis. Procuramos garantir que nossos
professores tivessem o conhecimento, o apoio e os recursos necessários
para fazer seu trabalho de forma eficaz. De várias maneiras criativas, traba-
lhamos para alimentar figurativamente e literalmente um local de trabalho
mais saudável e feliz, primeiro compartilhando a vida de Jesus Cristo como
um modelo através do respeito mútuo e do cuidado com todos na escola.
Depois, criando uma atmosfera para fomentar a aprendizagem ao longo
da vida e uma família marista sustentável. Como uma comunidade escolar,

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VOZES MARISTAS

dedicamos tempo para nos reunirmos para reuniões educativas, bem como
para orações, eucaristia, refeições e celebrações.

Em nossa experiência vivida de criarmos juntos a escola, pude


testemunhar e promover nossos valores como Maristas de Champagnat,
especialmente “para tornar Jesus Cristo conhecido e amado, e que para
ensinar às crianças, é preciso amá-las e amá-las todas igualmente”.

Promovendo a colaboração e o trabalho em equipe, pude construir


uma forte equipe administrativa e apoiar os líderes acadêmicos em suas
próprias áreas e no estabelecimento de metas profissionais para os estudan-
tes. Juntos, em grande número de reuniões e grupos, nos planejamos para
criar uma proposta de missão clara e compreensível, bem como desenvolver
estratégias de curto prazo e planos de longo prazo para a melhoria da escola
e um futuro desejado para atender às diversas necessidades de nossos alunos
atuais e futuros.

Não nos abstivemos de enfrentar e atender às necessidades em


áreas de crescimento profissional de nossos colegas. Tampouco evitamos
dar feedback negativo sobre comportamentos que não estavam de acordo
com os manuais do professorado, do pessoal ou dos estudantes. Embora de-
morado e muito exigente, assegurei que a porta do meu escritório estivesse
aberta para qualquer feedback honesto, da parte de todos os membros da
comunidade escolar.

Em poucos anos, com muito sacrifício e boa vontade, o ambiente


e a atitude dentro da comunidade escolar mudou radicalmente e positiva-
mente em todos os níveis. Funcionários e alunos sabiam, podiam recitar e
estavam comprometidos com a missão da escola. Como comprovação, a
escola recebeu um louvor exemplar de uma revisão de acreditação nacional
e partiu para uma trajetória de excelência contínua em todos os níveis de
sua missão. Esta conquista profissional continua a ser reconhecida nacional-
mente mesmo depois de mais de uma década.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Entretanto, apesar de muitos exemplos positivos que todos nós


conhecemos em nossas vidas e culturas, nem todas as situações ou orga-
nizações valorizam diferentes tipos de liderança. A liderança servidora e o
trabalho em equipe são valores menos desejados em sistemas hierárquicos
ou autocráticos.

Tenho certeza de que todos nós estamos familiarizados em tais sis-


temas ou trabalhando para um líder assim (chefe, treinador, diretor, líder, ou
quem quer que esteja “no comando”), que exige total controle e autori-
dade sobre todas as decisões. Muitos de nós já vivemos ou trabalhamos sob
uma liderança hierárquica ou autoritária. Podemos ter tido experiências
em primeira mão: em nosso país, ou no ambiente do governo, das forças
armadas ou de agências de aplicação da lei; empresas, organizações de as-
sistência médica, ou agência social ou escola. Pode até ser a nossa igreja ou
grupo religioso.

Para que essas organizações tivessem sucesso, muitas vezes os fun-


cionários ou colegas tinham que seguir as regras, aceitar disciplinas, ordem,
conformidade, regularidade. A diferença, diversidade ou dissidência não
eram valorizadas. O auto sacrifício ao valor operativo era necessário. Em
troca, o sistema proporcionava estabilidade e conformidade, não exigindo
reflexão ou consideração dos colegas membros da equipe.

Como membros de comunidades religiosas, conhecemos a má-


xima popular: “Mantenha a regra e a regra irá mantê-lo”. Sem dúvida, já
houve e ainda há comunidades religiosas que promoveram esta máxima e
muitas vezes tiveram sucesso em atrair membros e assegurar uma missão na
Igreja. Na história dos Maristas de Champagnat, houve tempos e lugares
em que os modelos hierárquicos de liderança comunitária foram proemi-
nentes, em vez de colaboração e trabalho em equipe. Nesses tempos, os
superiores das comunidades determinavam a vida e o trabalho dos mem-
bros da equipe. Os membros eram mais reconhecidos se seguiam as regras
como religiosos modelo e dispensavam seu próprio crescimento pessoal ou
necessidade. Eles ofereceram suas vidas pela ordem da comunidade.

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VOZES MARISTAS

A história também nos ensina que houve momentos políticos, so-


ciais e religiosos em que os líderes autocráticos e hierárquicos beneficiaram
as sociedades em geral à custa da falta de cuidado com as necessidades dos
outros. Entretanto, também podemos citar muitas experiências horríveis
e catastróficas quando as necessidades dos outros são ignoradas ou não
consideradas importantes. Com muita frequência, os sistemas autocráticos
e hierárquicos trouxeram a intolerância social, política e religiosa, a divisão,
a injustiça sistemática, a ganância, a falta de respeito humano, as guerras, a
destruição e o holocausto.

Claramente, defender a colaboração e o trabalho em equipe e viver


como líderes servidores pode trazer um equilíbrio humanizador e pessoal
a alguns desses sistemas autocráticos e hierárquicos em nosso planeta hoje.

Por mais de 200 anos, os maristas de Champagnat tomamos o ca-


minho para servir aos outros, dando-nos a nós mesmos para a missão junto
aos jovens e às crianças pobres de todo o mundo. Podemos ser mais bem
reconhecidos por nossa colaboração e formação de equipes como líderes
Servos ao seguirmos Jesus Cristo, nosso primeiro líder servidor, e São Mar-
celino Champagnat, nosso Fundador e modelo.

Chaves para um trabalho de equipe bem-sucedido

• Ter a mente aberta, clara e comprometida com uma visão.


• Convidar outros para se juntarem à equipe.
• Conhecer o risco de dar de si mesmo.
• Escutar os outros e depois escutar a si mesmo. Especialmente conhecer a si mes-
mo - suas motivações, seus princípios orientadores, suas perspectivas de vida, seus
bloqueios pessoais e seus preconceitos.
• Ser solidário e honesto; a verdade constrói a autoconfiança.
• Reservar tempo para celebrar seu trabalho e o tempo juntos.
• Fazer paradas regulares para ver como estão se saindo como uma equipe. Con-
tinue olhando para o futuro.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Faça um levantamento de sua própria experiência de trabalho em
equipe e colaboração.
2. Você aplicou as características de liderança servidora em sua liderança
marista?
3. O que você aprendeu? Qual foi o risco que você encontrou?
4. Qual foi a resposta de sua equipe aos seus esforços?
5. Como seus esforços como líder fizeram com que seus companheiros
de equipe melhorassem?

REFERÊNCIAS

João XXIII. (1963, 11 de abril). Encyclic letter: Pacem in Terris. Libreria Edi-
trice Vaticana.
Greenleaf, Robert K., (1970, revisado em 1973). Servant as Leader. Green-
leaf Center of Servant Leadership, Paulist Press.
Spears, Larry C., (2018). Character and Servant Leadership” 10 Characte-
ristics of Effective, Caring Leaders. The Journal of Virtues and Lea-
dership,1(1). In: https://www.spearscenter.org/46-uncategorised/
136-ten-characteristics-of-servant-leadership

Notas
1 líquiasWorld. Em https://www.relicsworld.com/mother-teresa/none-of-usin-
cluding-me-ever-do-great-things-but-we-can-author-mother-teresa
2 Ghandi, M. e Dr. Ivan Joseph em Twiter // Confidence-coach, @DrIvanJoseph.
Mahatma Ghandi citações #leadership
3 Em: https://www.tameday.com/teamwork-quotes/
4 Em: https://www.tameday.com/teamwork-quotes/
5 Em: https://www.tameday.com/teamwork-quotes/
6 Em: https://www.tameday.com/teamwork-quotes/
7 A Nova Bíblia Americana. (1970). [Editoras Católicas da Bíblia]. Catholic Bible Publishers.
8 A Nova Bíblia Americana. (1970). [Editoras Católicas da Bíblia]. Catholic Bible Publishers.

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PARTE IV

TRILHAS E
FUNDAMENTOS

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CAPÍTULO 16

Pinceladas bíblicas em
chave de fraternidade
para uma liderança
orientada ao serviço
Ir. Josep Maria Soteras
Conselheiro-Geral

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VOZES MARISTAS

Nesta fase da jornada, da “minha jornada”, começar a escrever so-


bre liderança é, no mínimo, temerário. Exaltar os próprios sucessos e ocul-
tar os erros no exercício da autoridade, seja em nível pessoal ou de grupo,
é uma tentação quase inevitável. A sabedoria popular e a Bíblia oferecem
um bom número de frases que revelam a frequência com que essa situação
ocorre: “Casa de ferreiro, espeto de pau”, “Faça o que eu digo, não faça o que eu
faço”,“Diga-me do que você se vangloria e eu direi o que lhe falta”,“Médico, cura-te
a ti mesmo” (Lucas 4, 23)... Ao longo dessas páginas, mais de um leitor se
lembrará da frase de Jesus, “Observai e fazei tudo o que eles dizem mas não façais
como eles, pois dizem e não fazem” (Mateus 23, 3).

Com essa consciência viva não é fácil começar a escrever sobre


o assunto. Com atitude prudente poderíamos apresentar uma síntese dos
traços que caracterizam a “liderança servidora”1 e que encontramos bem
descritos em vários autores (Blanchard, K. e Broadwell, R., 2018; Gutiér-
rez Blanco, L. C., 2009; Blanchard, K. e Hodges, Ph., 2007; Maxwell, J. C.,
2007; Prosser, S., 2007; Howell, D. N., 2003)2, começando por seu promo-
tor R. K. Greenleaf (fundador do moderno movimento de liderança de
Servos) (2002) que deu origem a essa tendência com sua obra Servant Lea-
dership em 1970. Aparentemente o propósito deste capítulo seria fornecer
um fundamento bíblico, visto que nessa tradição religiosa está a principal
referência inspiradora deste modelo de liderança.

No entanto, o recurso à Bíblia torna esse exercício ainda mais


perigoso. Trata-se de utilizar um texto venerável que suscita a reverência
como instrumento de justificação. Ainda hoje vemos quantos poderes neste
mundo buscam o benefício de uma interpretação bíblica favorável aos seus
interesses. E esta é praticamente a única crítica que Jesus não mitiga contra
os “profissionais da religião” chamando-os de hipócritas e sepulcros caiados…
(Mateus 23, 27-32).

Assim, adotando uma atitude menos prudente, o foco destas pá-


ginas abordará a perspectiva bíblica a partir de uma categoria quase “tabu”
em um contexto religioso mas que inevitavelmente aparece associada a

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

qualquer liderança: o poder e suas tentações autojustificantes. Neste senti-


do o subtítulo deste artigo poderia muito bem ser algo como um “manual
bíblico de más práticas”, supondo-se que as boas práticas estão na mente de
todos e são desenvolvidas nos demais capítulos.

Leonardo Boff (teólogo brasileiro) lembrou que seu livro Jesus


Cristo, Libertador (1972) causou algum desconforto em alguns círculos ecle-
siásticos, mas sem mais. Porém sua autêntica “via crucis” institucional se
deu quando publicou Igreja, carisma e poder (1981) onde abordou sem eu-
femismos aquela categoria oficialmente invisível na Igreja. E embora tenha
havido abundância desde então, ainda estamos lutando contra nossa própria
resistência. Não chamar as coisas pelo nome nos leva facilmente à corrup-
ção da linguagem. É assim que sacrificamos as coisas sagradas no altar do
poder para que ele continue a se refugiar em seu confortável anonimato.
Como é fácil mascarar o desejo de poder com o servir! Se assim o chamar-
mos, sem ter consciência do contrário, acabaremos por ser vítimas daquilo
que queremos ignorar: as deformações do poder vão se espalhar sem ne-
nhuma contenção e ofendendo-se se alguém as questionar.

Para esta abordagem bíblica utilizaremos três pares de personagens:


dois são óbvios e o último aparentemente menos. Porém todos eles estão
unidos por um certo grau de fraternidade: eles são “irmãos” de alguma
forma e alguns litígios surgem entre eles e o poder tem algo a ver com isso.

Caim e Abel: inveja, violência e vitimização


É uma das duplas primordiais cujo propósito é revelar, na lingua-
gem narrativa, a quintessência da condição humana (Gênesis 4, 1-16). Se
Adão e Eva expressam diversidade e complementaridade na obra criadora
de Deus (Gênesis 1, 27; 2, 22), Caim e Abel revelam a fraternidade radical
que tudo permeia: no fundo somos todos um (Gênesis 4, 11-2).

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VOZES MARISTAS

Caim e Abel representam duas antigas sociedades rivais: agricul-


tores e pastores. Alguns, sedentários bem estabelecidos. E outros, nômades
itinerantes. Alguns relativamente recentes. Outros com uma longa tradição.
Assim ambos assumem determinado papel de representação coletiva, de
exemplificação de um estilo de vida e, de certa forma, de liderança.

Com seu holocausto (Gênesis 4, 3-4), ambos buscam a aceitação


divina, ou seja, fortuna – ou “bênção” em termos bíblicos. Mas há tantos
fatores em jogo que o sucesso costuma ser aleatório, ocasional ou escor-
regadio. Nem sempre favorece a todos igualmente e quando isso acontece
surge a disputa pelo primeiro lugar e a vontade de impor o próprio projeto.

Na verdade, se olharmos a partir de outra perspectiva, Deus – ou


a realidade – está abençoando Caim, estimulando-o com um desafio que
deve impulsioná-lo a evoluir e melhorar este cultivo da terra, ainda inci-
piente e com menos tradição que a pastagem (Gênesis 4, 7). Já aqui a frase
de Albert Einstein (físico teórico alemão) é verdadeira: “Insanidade é fazer
a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”. Em vez disso,
surge nesse momento um dos protagonistas “capitais” da história da hu-
manidade: a inveja (Gênesis 4, 5-6). Os especialistas dizem que a inveja é o
pecado capital mais difundido e menos reconhecido: as mulheres às vezes,
mas os homens nunca. Possivelmente o pecado com mais disfarces.

A inveja, aliada à resistência ancestral à mudança, leva-o a escolher


o caminho mais fácil: eliminar os concorrentes (Gênesis 4, 8). O termo pe-
cado não aparece associado à busca de benefício pessoal ou coletivo como
ocorre no episódio do fruto proibido (Gênesis 3) mas quando para obtê-lo
é necessário prejudicar os outros (Gênesis 4, 9-10) . No hebraico original é
com esta dupla de irmãos que a palavra “pecado” aparece pela primeira vez
(Gênesis 4, 7). Felizmente, em nossos contextos institucionais, não se chega
ao extremo de danos físicos. Mas em círculos eclesiásticos e curiais, com
delicada cortesia, abunda uma habilidade mais refinada de prejudicar os ou-
tros com insinuações veladas, meias-verdades, desvalorizações sutis, palavras
capciosas, cinismo disfarçado de humor, comentários inocentes que nada

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

têm de inocentes... e deixando “O dia ao outro transmite essa mensagem,


e uma noite à outra a repete” (Salmo19 (18), 3). Neste caso não é a palavra
de Deus mas puro veneno.

Ao longo do caminho um líder que aspira a cumprir o seu papel na chave


do serviço (liderança servidora) enfrentará inevitavelmente esta realidade.
Por isso não é supérfluo perguntar-se como pretende lidar com a inveja, a
sua e a dos outros relativamente a si mesmo. Encontrar uma boa resposta
para essa pergunta e treiná-la nos dará uma boa medida do que seremos
capazes de incorporar nos relacionamentos.

A aparente vitória de Caim carrega uma maldição: a violência o


segue por toda parte. Somente a ameaça de um mal maior pode contê-lo
(Gênesis 4, 14-15.24). Não será mais um camponês pacífico instalado em
algum bairro camponês mas um fugitivo errante, fundador de cidades (Gê-
nesis 4, 16-17), o que o autor bíblico considera uma degradação do mundo
rural. Segundo essa concepção, o urbano é uma construção humana regida
pela agressividade e pela violência que ameaça sistematicamente a beleza
do projeto divino (Babel, Gênesis 11, 1-9; Êxodo 2, 13). Nenhum trabalho
nascido nessas condições será sustentável.

Esse é outro aspecto que aparecerá no desempenho da liderança servidora.


Não há serviço que não esteja associado a um certo grau de agressividade ou
mesmo violência, ativa e/ou passiva. Reconhecê-lo é essencial para manter
o nível sob controle. Duas questões são relevantes aqui: Até que ponto a
agressividade associada ao meu serviço degrada a liderança e o projeto que
pretendo realizar? Esse nível de agressividade é inevitável ou pode ser
reduzido? e como?

Vendo as consequências que Caim sofre, pode-se perguntar se ele


também não é uma vítima. Não é Deus quem o vitima com a rejeição?
Ele não é vítima de sua própria inveja ou do sucesso de seu irmão? Ainda
mais quando, por baixo da narrativa corrente, descobrimos o traço de uma

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VOZES MARISTAS

história anterior que exaltou um Caim vigoroso como modelo contra um


Abel brando, preguiçoso ou vaidoso, cujo próprio nome significa “vaidoso,
vazio ou inconstante”. Além disso, tradicionalmente eram os pastores itine-
rantes que, ao passarem, ameaçavam aproveitar-se do trabalho dos lavrado-
res. Caim não terá sido vítima daqueles que invejaram sua coragem e força?
Será que o culpam por se defender dos pastores? Caim poderia reclamar de
como a tradição bíblica o trata ao degradá-lo e exaltar seu irmão? A seu ver,
qualquer um desses argumentos poderia legitimar sua represália, desforra
ou vingança.

Se formos um pouco mais fundo, não será difícil reconhecer que a vitimiza-
ção se esconde por trás dessas acusações. Ocorre quando se presume que o
papel de vítima é a obtenção de um benefício e geralmente em detrimento
de alguém. É muito comum em contextos de violência de gênero: o com-
portamento abusivo é justificado pelos supostos maus-tratos previamente
dispensados pela vítima real.

De forma talvez mais acentuada do que em outros modelos de


liderança, quem pretende liderar servindo encontrará o sentimento de víti-
ma, em si mesmo ou nos outros. E nesses casos será importante questionar-
-se seriamente: quem é realmente a vítima? Não aconteça que ele mesmo
ou o outro estejam praticando a vitimização como uma forma de manipu-
lação. Se isso acontecer, seja qual for o grau, a próxima pergunta seria: como
podemos nos ajudar a sair dessa armadilha insidiosa?

Moisés e o Faraó: poder, fragilidade e visão


A narrativa bíblica sugere, por dados circunstanciais, que ambos são
meio-irmãos. O jovem Moisés teve de fugir do Faraó, acusado de assassina-
to (Ex 2,11-15). Ao retornar (Gênesis 4, 19), o mesmo texto confirma que
o trono foi ocupado pelo sucessor, o herdeiro (Êxodo 2, 23) com quem
teria compartilhado seus primeiros anos de vida na corte como meio-ir-
mão (Êxodo 2, 10).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Certamente, essa relação de “família” adiciona tensão à história.


Não se trata de dois estranhos. O conflito não ocorrerá somente entre os
extremos sociais, o topo e os últimos despojados, mas dentro do próprio
coração da família imperial, o centro do poder egípcio.

No calor deste confronto pode-se facilmente perceber um choque


de “egos”, seja dos protagonistas seja dos deuses que representam e dos
quais ambos se declaram fervorosos “servos”. Em seu nome, ambos justifi-
cam a legitimidade de seu poder. Ambos aparecem como zelosos defenso-
res da causa de Deus e isso geralmente é o prelúdio de uma violência sem
escrúpulos. Agora uma nuance sutil os distingue: enquanto o Faraó é aque-
le que apoia a causa de Deus, no caso de Moisés é Deus quem o apoia, a
ele e a sua causa. Quem defende quem? Quem serve ou usa o outro? Aqui
a ordem dos fatores altera o produto. Uma linha muito tênue os separa e
com grande facilidade a perversão da linguagem religiosa permite colocar
Deus a serviço do próprio poder.

Entre os exemplos não tão esporádicos da vida religiosa podemos


lembrar de um de nossas origens quando o Padre Jean-Claude Courveille
provocou uma eleição em l’Hermitage para ver quem deveria ser superior.
Diante do voto unânime dos irmãos a favor do Padre Champagnat, ele in-
sistiu na necessidade de um superior para os três padres que, naquela época,
estavam hospedados na casa, obviamente sem êxito (Coste, J. e Lessard, G.,
1985, p. 376). Mais tarde, a partir de um mosteiro trapista, escreveu-lhes
informando que era chegado o momento de reconhecer um superior e
que, se o procurassem, ele estaria pronto. Os padres, “extremamente felizes”
– pontua o cronista –, mandaram-no ficar onde estava (Coste, J. e Lessard,
G., 1985, p. 377).

Lembro-me de um bom superior de uma comunidade juvenil


cheia de criatividade que costumava repetir: “Vocês no acelerador e eu
no freio”. Sua presença foi percebida somente nas curvas. Um dos muitos
frutos dessa época foi o grupo musical Kairoi, conhecido por sua contri-
buição para a vida da Igreja. Ele se colocava atrás de todos. Por sua vez, ou-

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VOZES MARISTAS

tros entendem a liderança como aquele que vai na frente e toma posse do
acelerador. Algo assim aconteceu quando um irmão mais novo provocou
um diretor muito ciumento de “seu” colégio: “O colégio é tão seu, que
não pode ser meu”.

No exercício da liderança servidora é bom perceber como o poder se distri-


bui no grupo. Existem ferramentas para isso e para ajudar a recuperar o
equilíbrio. Muitas vezes é útil perguntar-se sobre a posição em que o líder
geralmente é visualizado: se na frente ou atrás do grupo e se corresponde à
percepção dos outros. Neste contexto é interessante descobrir as justificativas
que você se dá e colocá-las de lado. Através da porta estreita da liderança
servidora só se pode entrar verdadeiramente sem essa bagagem.

A história da libertação do Egito atribui a Moisés um papel muito


poderoso que cativa o leitor. Essa imagem se reflete nas representações ar-
tísticas que foram feitas dele ao longo da história. Basta lembrar do famoso
Moisés de Michelangelo em Roma (San Pietro in Vincoli, 1513-1515) ou
o filme norte-americano “Os Dez Mandamentos” (1956).

A grandeza do poder que auxilia Moisés é medida em contraste


com a do Egito, sem paralelo na época. Diante desse espetáculo surpreen-
dente, os detalhes que denotam a extrema fragilidade de Moisés e os limites
que o cercam são quase imperceptíveis. Proveniente de família irrelevante
(Êxodo 2, 1; 6, 20; Números 26,59), exposto à morte desde o nascimento
(Êxodo 1, 16, 22; 2, 15), submetido à arbitrariedade de um destino incerto
(Êxodo 2, 4.19-20). Assassino ou protetor? (Êxodo 2, 11-14, 16-17). Israe-
lita ou egípcio? (Êxodo 2, 11-19). Sua lealdade sempre questionada (Êxodo
14, 11-12; 16, 3; Números 14, 2-4; 20, 4; 21, 5), suas inseguranças (Êxodo 3,
11, 13; 4, 1, 8-9; Números 11, 11-15), suas dificuldades em falar para uma
missão onde a palavra é essencial (Êxodo 4, 10.13-14) (Caim, S., 2012), sua
liderança discutida até pelos seus irmãos (Números 12.1-2). E por outro
lado a ajuda essencial das mulheres (Êxodo 1, 17-21; 2, 2-10, 20-21) (cf.
Batallé Prats, I., 2021),3 de seus irmãos Aarão (Êxodo 4, 14-17, 27-31) e

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Maria (Êxodo 2, 4, 7; 15, 20-21), de Jetro, seu sogro (Êxodo 18, 13-27),
de Josué (Êxodo 17, 9; Números 13, 16; Deuteronômio 1, 38; 31, 1-4, 7-8;
Jos 1, 1), dos anciãos (Êxodo 3, 16; 4, 29; Números 11, 10-17), dos profetas
(Números 11, 24-30); dos levitas (Êxodo 32, 25-29)...

Uma fragilidade que não corresponde à missão imponente que as-


sume. A tradição religiosa interpreta esta desproporção como uma expres-
são da força de Deus nele (Números 12, 3). Embora, para falar a verdade, no
dia a dia das lideranças a realidade não seja tão simples como nas leituras a
posteriori. O Padre Mayet (1850) nos diz a opinião que o Padre Terraillon
e outro colega tinham do Padre Champagnat e que, sem quer, provavel-
mente projetariam em sua relação com ele: “O Padre Champagnat reunia
os seus irmãos para os formar e não sabia o que lhes dava. Ele os ensinou a
ler quando ele mesmo não lia bem. A escrever e ele não observava as regras
gramaticais quando escrevia... ” (COSTE, J.Y LESSARD, G., 1985, p. 396).
Como o Pe. Champagnat elaboraria internamente esse descaso latente por
parte dos companheiros?

Sinal de uma autêntica liderança servidora é a sensação de verti-


gem ou desproporção entre a missão assumida e a consciência da
própria fragilidade (Peter, R., 2004). Resolver esse contraste não é fácil
mas é fundamental. Existem aqueles que tendem a afirmar o poder da
posição. Outros, a desenvolver uma falsa humildade ou a exaltar suas pró-
prias qualidades. Alguns são dados à reclamação ou reprovação sistemática.
E outros recriminam os limites e erros dos outros... Todos são mecanismos
insanos que levam a falsos consolos. O que seria uma elaboração saudável
e eficiente do próprio limite, tanto para o desenvolvimento pessoal quanto
para a liderança do servidor?

É precisamente por causa das suas fraquezas que também Moisés,


de alguma forma, caiu na desconfiança, junto com todo o povo que cami-
nhava pelo deserto (Deuteronômio 1, 29-37). Por meio do símbolo geo-
gráfico, o relato bíblico deixará claro que a terra prometida só será possível
com pessoas livres que não incorporaram as deformações da escravidão.

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VOZES MARISTAS

Todos aqueles que deixaram o Egito morrerão no deserto e somente os


nascidos em liberdade poderão entrar (Deuteronômio 1, 37-40; 4, 21-22).
Apesar de tudo, a Moisés é concedido o favor de chegar à sua fronteira e
contemplar a promessa com os próprios olhos (Deuteronômio 3, 23-28;
32, 48-52).

O episódio que fecha o Pentateuco, austero e terno ao mesmo


tempo, evoca o serviço que o líder presta em seu último suspiro quando a
incerteza invade a cena. O povo havia chegado ao sopé do Monte Nebo,
de frente para a terra prometida (Números 36,13; Deuteronômio 34,1).
Diante de seus olhos surge uma montanha. Para além do cume talvez uma
promessa (Deuteronômio 1, 22-25) mas com relatos pouco lisonjeiros de
quem a explorou anos atrás (Deuteronômio 1, 26-28).

O anúncio do fim chega a Moisés (Deuteronômio 31, 14). Diante


dessa notícia tende-se a olhar para trás e relembrar o que foi vivido. Pouco
interesse pessoal tem no dia seguinte. Porém Moisés sobe à montanha ante
o olhar atento do povo e no topo, sem se virar, fica com o olhar fixo no
horizonte, vislumbrando o conteúdo da promessa e finalmente fechando
os olhos, cheios de futuro (Deuteronômio 34, 1-5). Não do passado mas de
futuro. Há muito para ver! Essa imagem fica impressa na retina das pessoas.
Com seu gesto ele oferece um ícone que os convida a seguir em frente
com esperança, sem olhar para trás e sem desejar as “cebolas e alhos do Egi-
to” (Números 11, 5-6; Êxodo 16, 3). Uma visão que todos compartilham
mas que o líder aproxima, despertando uma confiança que ajuda a superar
a resistência residual daquela primeira exploração fracassada. Não se trata
de otimismo compulsivo. É, ao contrário, esperança confiante.

Para discernir se uma liderança suscita visão e não é prisioneira do presente


ou da herança, poderia avaliar se está mais preocupada com a estrutura
do que com as pessoas, mais atenta às ameaças do que às oportunidades,
mais alerta para o que pode perder do que para o que pode obter, mais
interessada em conservar do que em gerar, mais inquieta por manter do

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

que por transformar, mais ocupada com as coisas acontecendo do que com
quem elas tornam visíveis, mais ansiosa por méritos do que por resultados...
Que outros itens poderíamos adicionar e a que modelo corresponde cada
um dos polos em contraste? Qual a diferença entre otimismo compulsivo e
esperança confiante?

Salomão e Estêvão: instituição, profecia e


martírio
Ao entrar na terra prometida os israelitas devem conquistar a pro-
messa, um presente que exige seu esforço (Jos 1, 1-6; Juízes 1). Aos poucos,
ao invés de continuar se expandindo, surge a necessidade de consolidação.
Até o rei Davi, que a Bíblia exalta como rei por excelência, a Arca da
Aliança ficava alojada em uma tenda, um memorial da experiência itine-
rante que os configurou como um povo (2 Samuel 6, 17; 1 Crônicas 16, 1;
2 Crônicas 1, 3-4). Mas aquele frágil tabernáculo não era mais suficiente
para sustentar a extensão e o poder adquirido. A convivência com cidades
vizinhas aumentava o risco de se perder a identidade e com ela o motivo
da conquista (Juízes 2, 20-23; 1 Reis 3, 1-3; 11, 1-8).

Então, para preservar todo esse patrimônio, nada melhor do que


um templo construído pelo rei, junto com o palácio real, onde todos os
poderes que o povo reverenciava se dessem as mãos (1 Reis 6-7; 2 Crônicas
3-4). Embora o propósito desta instituição seja delimitar a identidade e
configurá-la, sua concepção não foi inteiramente exclusiva e, com o passar
do tempo, foi agregando espaços para acolher quase todos nos diferentes
átrios: um para sacerdotes, outro para judeus homens, outro para mulheres
e, finalmente, também para gentios (Êxodo 38, 9-20; 1 Reis 6, 36; 2 Crôni-
cas 4, 9; 20, 5; Ezequiel 40, 17; Marcos 11, 15; 12, 41-42). No entanto não
devemos perder de vista o fato de que a construção ou a restauração de
um templo também serviram ao longo da história para afirmar o poder de
algum tirano e encobrir suas atrocidades sob esse manto.

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VOZES MARISTAS

Do ponto de vista histórico o reinado de Salomão foi bastante


controverso. No entanto a Bíblia o exalta como o referencial humano de
sabedoria (1 Reis 5, 9-14; 2 Crônicas 1, 7-12). Para ilustrar, ele não toma a
construção do templo como um expoente mas um episódio praticamen-
te irrelevante em comparação com outros desafios imperiais. Uma dispu-
ta entre mulheres para obter a custódia de um recém-nascido (1 Reis 3,
16-28) serve ao autor para mostrar que uma sabedoria de governo sem
atenção pessoal, insensível às necessidades concretas, ausente, isolado ou
alheio à preocupação do povo seria totalmente insuficiente para sustentar o
império.

A liderança servidora não significa que negligenciará alguns aspectos para


priorizar outros. O segredo não está na seleção de prioridades mas no equi-
líbrio certo, mesmo entre aspectos aparentemente opostos mas necessários. O
cuidado e consolidação da instituição não perde de vista as origens carismá-
ticas (embora precárias, são uma referência insubstituível de identidade), o
acolhimento de todos aqueles que podem contribuir de alguma forma (nos
átrios correspondentes) e as pessoas em sua realidade concreta4. Que recur-
sos podem ajudar a manter esse equilíbrio? Como perceber o desequilíbrio?
Perguntar aos outros sobre como se é percebido geralmente é muito escla-
recedor. O P. Champagnat é um exemplo magnífico desse sábio equilíbrio.

Estêvão se lembra da construção do templo de Salomão em sua


pregação cristã (Atos dos Apóstolos 7, 46-47). Esta instituição os uniu em
uma irmandade que ultrapassou os laços de sangue e cruzou a fronteira
do tempo. Os samaritanos, com um templo alternativo no monte Gerizim
(Deuteronômio 11, 29; 27, 12; Jos 8, 33; João 4, 20-21), estavam fora desta
fraternidade e muitas vezes a inimizade era maior do que entre os próprios
gentios (Neemias 3, 33-34; Lk 9, 53-54; Jonas 4, 9, 27). Daí a hostilidade e
os contrastes de que trata a parábola do Bom Samaritano, com personagens
que competiam pela causa do templo (Lucas 10, 29-37).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

A presença assídua dos primeiros cristãos no culto do tempo (Atos


dos Apóstolos 2, 46; 3.1; 5.12.42) revela a alta consideração que essa insti-
tuição merecia. Aos poucos, com as novas incorporações, essa valorização
foi se diversificando. Os judeus da diáspora articularam sua identidade, não
tanto em torno do templo mas na observância da lei na vida cotidiana, com
pequenos rituais diários. A distância havia separado o templo de seu hori-
zonte vital e a sinagoga foi ganhando relevância. Destes, os que aderiram
à comunidade cristã (Atos dos Apóstolos 4, 36) leram a tradição de Jesus a
partir de sua própria perspectiva de modo que as diferenças com os crentes
oriundos da Palestina se acentuaram a ponto de causar a chamada crise dos
helenistas (Atos dos Apóstolos 6, 1-4). Estêvão foi o porta-voz do grupo.
Ele era conhecido por sua palavra profética e poderosa (Atos dos Apóstolos
6, 5.8-15; 7, 51-56). Embora tenha assumido a tradição do templo, relati-
vizou a sua idealização, chegando a afirmar que Salomão o construiu por
iniciativa própria, sem que Deus lhe pedisse, visto que toda a criação é o
autêntico templo que o próprio Deus se deu (Atos dos Apóstolos 7, 47-50).
Na verdade Estêvão pregava na sinagoga (Atos dos Apóstolos 6, 9) e nunca
o vemos no templo como Pedro e João (Atos dos Apóstolos 3, 1) ou na
comunidade local (Atos dos Apóstolos 2, 46; 5, 12, 42).

Os helenistas, com sua visão mais aberta, fomentavam a recepção


de estranhos além dos átrios previstos no templo. Se até então era necessá-
rio ir a Jerusalém (1 Reis 5, 14; 10, 1-9; Jeremias 3, 17), os helenistas prefe-
riam levar a mensagem para fora de seus muros, até os confins do mundo
(Lucas 24, 47; Atos dos Apóstolos 1.8). Assim vemos Filipe pregando aos
samaritanos (Atos dos Apóstolos 8, 4-8, 14-17) e até mesmo a um príncipe
etíope (Atos dos Apóstolos 8, 26-40). Em Antioquia determinados judeus
de Chipre e Cirene abriram a pregação diretamente aos gentios (Atos dos
Apóstolos 11, 19-20). E até mesmo Pedro, em Cesareia, sentiu o chamado
para romper as estreitas margens que o impediam de abraçar o que até en-
tão estava fora de seu alcance (Atos dos Apóstolos 10). São os antecedentes
da missão de Paulo. Esta dinâmica mostra que o templo poderia até afogar
o que estava tentando proteger. Enfim, todo um concílio deveria ser o

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VOZES MARISTAS

único para validar essa abertura e, com ela, aquela primeira geração cristã
finalmente se abriu para o futuro (Atos dos Apóstolos 15; Gálatas 2, 1-10).

Uma liderança não deve servir somente o presente e ser fiel ao passado mas
também transmitir o futuro do projeto em que está comprometida5. Não se
exige necessariamente que o conceba mas pode acolher os que o promovem,
discernir com eles o essencial do acessório e disponibilizar os meios para que
se apresente no ritmo que lhe for conveniente. Não se trata somente de uma
atitude mas de um investimento. Neste sentido não é inútil questionar-se
acerca de tempo, energia, pessoas e recursos que se investem para acolher o
futuro e se mantêm a proporção adequada com aqueles que se dedicam a
gerir o presente ou preservar o passado.

Dentro deste contexto de liderança, como a “visão” (Moisés) e a “profecia”


(Estêvão) são diferentes?

A abertura para o futuro requer por vezes sacrificar o templo, ou


seja, romper alguns dos moldes existentes e que, como meios que são, não
devem necessariamente perpetuar-se com mensagem, identidade, carisma
ou missão que tiveram a honra de veicular (Mateus 26, 61; Marcos 14, 58;
João 2, 19-20; Atos dos Apóstolos 6,13). A princípio isso não desperta o
entusiasmo do grande público, que tende a martirizar o mensageiro. Foi o
que aconteceu com Estêvão (Atos dos Apóstolos 7, 57-60) e com tantos
outros, como o próprio Jesus já havia lembrado (Mateus 5, 12; 23, 29-
31.37; Lucas 13, 34).

Às vezes, como reação defensiva, dá-se no grupo um recuo, um re-


trocesso ou uma regressão, em uma tentativa desesperada de salvar essências
que nada têm de essencial mas que parecem ter. Basta lembrar que, nessa
mesma época, havia uma grande efervescência em torno do templo, com
grupos que competiam para garantir sua defesa (Lucas 13, 1-5) e que veio
desencadear uma rebelião cujo desfecho significou sua destruição total no
ano 70 A.D. (Mateus 24, 1-2; Marcos 13, 1-2; Lucas 21, 5-6).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

É interessante notar que esses grupos rebeldes também acabaram


assumindo a opção do martírio como forma de salvar a honra quando tudo
estava perdido. O episódio emblemático é o suicídio coletivo dos sicários
na fortaleza de Massada, o último bastião da resistência judaica, por volta
de 72 ou 73 A.D.

Servir ao futuro implica também assumir uma certa dose de martírio, neces-
sária para purificar a profecia e até permitir ao grupo canalizar a raiva e a
dor pela perda de algo a que se agarram e que, sem dúvida, cumpriu uma
função. Mas não mais.

Por outro lado, também é importante discernir se o significado do martírio


está sendo utilizado de forma fraudulenta, ou seja, para permanecer no
poder, prolongar a validade do obsoleto ou, em última instância, morrer
tentando salvar a honra.

Como podemos distinguir um martírio (o primeiro) do outro (o segundo)?


Como saber se tendemos para um ou para o outro?

Conclusão
Como corolário final, poderíamos sublinhar esses três detalhes.

Primeiro. Com esses elementos e outros semelhantes fica suficien-


temente claro que a manipulação da linguagem religiosa permite chamar
qualquer tipo de liderança de “líder servidor”: basta encontrar o argumen-
to certo e torcer as palavras o quanto for necessário (Stamateas, B., 2010)6.
No entanto, a questão pertinente é se esse rótulo realmente corresponde à
realidade do líder.

Segundo. Ninguém deve ser tentado a identificar sua própria li-


derança com Abel, Moisés, o bom de Salomão e Estêvão ou, ainda mais,
com Jesus, Maria, José ou Champagnat... Na pessoa do líder, de cada líder,

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VOZES MARISTAS

coexistem todos ao mesmo tempo, tanto uns como seus opostos. Eviden-
temente não eles próprios mas o que eles representam. Estar honestamente
ciente dessa realidade pessoal multifacetada é possivelmente o primeiro
passo para nos movermos na direção certa. Depois as proporções podem
ser ajustadas.

Em terceiro lugar, com diferentes expressões, este acontecimento


tornou-se popular entre os irmãos: “Tal irmão se santificou pela virtude e
santificou seus irmãos de comunidade pelo martírio”. A liderança servi-
dora é somente para os imperfeitos. Os perfeitos têm os outros modelos à
sua disposição. O irmão Basílio Rueda, referindo-se à passagem da regra
antiga onde se indicava que o superior deveria ser “santo, sábio e sadio”,
dizia “nem santo demais, nem sábio, nem sadio para que possa entender o
medíocre, o desajeitado e o doentio”. Servir é descer e isso não combina
com quem almeja subir. Servir não é um meio de autopropaganda para al-
cançar a posição desejada: é a posição mesma. Recordemos que, para servir
à humanidade, alguém decidiu abandonar a perfeição divina para assumir a
fragilidade humana (Acosta, B. e Caviedes, J., 2021; Cortés, J., 2021)7.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que elementos da tradição bíblica me inspiram e me ajudam a en-
tender e viver melhor meu servir em qualquer contexto de liderança?
Quais aspectos precisam de mais cuidado e atenção de minha parte?
2. Tanto pessoal quanto institucionalmente, quais princípios ajudariam a
libertar a liderança de qualquer uma de suas tentações ou seus desvios
de orientação? Que princípios permitiriam que você desenvolvesse
melhor a transparência, a autenticidade e a simplicidade?
3. Que meios de vigilância pessoal são úteis para se praticar a liderança
servidora autêntica?
4. Como aprofundar na formação da liderança vivência saudável de po-
der, influência e autoridade?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

REFERÊNCIAS

Acosta, B. y Caviedes, J. (2021). Un liderazgo sapiencial y colaborativo:


Horizonte en tiempos de reducción. Frontera Hegian, 112;
Batallé Prats, I. (2021). Atrévete a hacer las cosas a tu manera. La revolución del
liderazgo de las mujeres. Destino (Planeta).
Blanchard, K. y Broadwell, R. (2018). Servant leadership in action. Berret-
-Koehler Publishers, Inc.
Blanchard, K. y Hodges, Ph. (2007). Lead like Jesus. Thomas Nelson.
Cain, S. (2012). Quiet: The power of introverts in a world that can’t stop talking.
Crown Publishing Group.
Cortés, J. (2021). Liderazgo en la Vida Religiosa. Frontera Hegian, 111.
Coste, J. y Lessard, G. (1985). Origines Maristes (1786-1836). Extraits concer-
nant les Frères Maristes. Frères Maristes.
Fernández, M. (2019). Trabaja en modo actitud. Mestas Ediciones, S. L.
Gladwell, M. (2000). The tipping point: How little things can make a big diffe-
rence. Little Brown Company.
Greenleaf, R. K. (1970/2002). Servant leadership. Paulist Press.
Greenleaf, R. K. (2002). The power of servant leadership. Oakland: Berrett-
-Koehler Publishers.
Gutiérrez Blanco, L. C. (2009). Fundamentos bíblico-teológicos del “Liderazgo
etico-servicial”. Universidad Rafael Landívar.
Howell, D. N. (2003). Servants of the Servant: A biblical theology of leadership.
Eugene: Wipf & Stock Publishers.
Laloux, F. (2014). Reinventing organizations. Ed. Diateino.
Mancuso, S. (2017). Plant Revolution: Le piante hanno già inventato il nostro
futuro. Ed. Giunti.
Maxwell, J. C. (2007). The Maxwell leadership bible. Thomas Nelson.
Peter, R. (2004). Introducción a lo humano: La epistemología del límite. Benemé-
rita Universidad Autónoma de México.
Prosser, S. (2007). To be a servant leader. Mahwah: Paulist Press.
Stamateas, B. (2010). Intoxicados por la fe: Cómo ser libres de una religión tóxica y
vivir una espiritualidad feliz. Editorial Sudamericana S. A. (Grijalbo).

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VOZES MARISTAS

Notas
1 Nos outros capítulos deste volume encontramos um excelente desenvolvi-
mento dessas características: a opção de servir primeiro para liderar, discipulado, humildade,
verdade e honestidade pessoais, preocupação com o bem-estar geral etc.
2 Além disso, vários artigos podem ser comparados. Para citar alguns desta últi-
ma década: EKINCI, A., & SAKIZ, H. (2020). Servant leadership within the context of
organizational efficacy. In Handbook of research on positive organizational behavior for improved
workplace performance (pp. 86-101). IGI Global; LANGHOF, J. G., & GÜLDENBERG, S.
(2020). Servant leadership: A systematic literature review—Toward a model of antecedents
and outcomes. German Journal of Human Resource Management, 34(1), 32-68; SMITH, L. S.
(2020). Christian leaders as servants: Accept the opportunity. In Modern metaphors of Christian
leadership (pp. 95-113). Palgrave Macmillan, Cham; EVA, N., ROBIN, M., SENDJAYA, S.,
VAN DIERENDONCK, D., & LIDEN, R. C. (2019). Servant leadership: A systematic
review and call for future research. The Leadership Quarterly, 30(1), 111-132; AMAH, O. E.
(2018). Determining the antecedents and outcomes of servant leadership. Journal of Gene-
ral Management, 43(3), 126-138; GREEN, M. T., RODRIGUEZ, R. A., WHEELER, C.
A., & BAGGERLY-HINOJOSA, B. (2016). Servant leadership: A quantitative review of
instruments and related findings. Servant Leadership: Theory & Practice, 2(2), 5; PANACCIO,
A., DONIA, M., SAINT-MICHEL, S., & LIDEN, R. C. (2015). Servant leadership and
wellbeing. In Flourishing in life, work and careers. Edward Elgar Publishing; WASHINGTON,
R. R., SUTTON, C. D., & SAUSER JR, W. I. (2014). How distinct is servant leadership
theory? Empirical comparisons with competing theories. Journal of Leadership, Accountability
& Ethics, 11(1); PARRIS, D. L., & PEACHEY, J. W. (2013). A systematic literature review of
servant leadership theory in organizational contexts. Journal of business ethics, 113(3), 377-
393; SCHNEIDER, S. K., & GEORGE, W. M. (2011). Servant leadership versus transfor-
mational leadership in voluntary service organizations. Leadership & Organization develop-
ment journal; DENNIS R., KINZLER-NORHEIM L., BOCARNEA M. (2010) Servant
Leadership Theory. In: van Dierendonck D., Patterson K. (eds) Servant leadership. Palgrave
Macmillan, London; PAROLINI, J., PATTERSON, K., & WINSTON, B. (2009). Distin-
guishing between transformational and servant leadership. Leadership & Organization develo-
pment journal.
3 É interessante resgatar o papel da mulher como uma “conspiração a favor da vida”
que vem sabotar o plano de morte em que os homens se movem (Êxodo 1, 16-22; 2, 11-
12.15). A perspectiva feminina vem enriquecendo a compreensão da liderança com uma
contribuição específica. Cf. BATALLÉ PRATS, I. (2021). Atrévete a hacer las cosas a tu manera:
La revolución del liderazgo de las mujeres. Barcelona: Destino (Planeta).
4 A atenção ao bem-estar das pessoas deixa de ser somente um meio e aos poucos
se torna um eixo essencial de qualquer organização, integrando-se em seus próprios propó-
sitos. Um número crescente de publicações mostra isso. Por exemplo, conforme FERNÁN-
DEZ, M. (2019). Trabaja en modo actitud. Madrid: Mestas Ediciones S. L.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

5 Parecem-me especialmente estimulantes as abordagens para o futuro que tomam


como referência a observação empírica da realidade, sejam de epidemias, da evolução da so-
ciedade ou da botânica, entre tantas outras. Cf. GLADWELL, M. (2000). The Tipping Point:
How Little Things Can Make a Big Difference. New York: Little Brown Company; LALOUX,
F. (2014). Reinventing Organizations. Paris-Strasbourg : Diateino; MANCUSO, S. (2017).
Plant revolution: Le piante hanno già inventato il nostro futuro. Firenze: Giunti.
6 De vez em quando é aconselhável aplicar uma higiene saudável ao lidar com a
linguagem religiosa. Algum livro pode ajudar, como o citado de Stamateas, B. (2010). Intoxi-
cados por la fe: Cómo ser libres de una religión tóxica y vivir una espiritualidad feliz. Buenos Aires:
Editorial Sudamericana S. A. (Grijalbo).
7 Recentemente, para o contexto específico da vida religiosa, cf.: ACOSTA, B. Y
CAVIEDES, J. (2021). Un liderazgo sapiencial y colaborativo. Horizonte en tiempos de re-
ducción. Frontera Hegian, 112; CORTÉS, J. (2021). Liderazgo en la Vida Religiosa. Frontera
Hegian, 111.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 17

Liderando com Maria


em nosso coração
Ir. Juan Carlos Fuertes
Provincial de Mediterránea
(2016-2021)

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VOZES MARISTAS

No final da exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013) o


Papa Francisco destaca algumas virtudes de Maria, indicando que elas não
pertencem aos fracos, mas aos fortes, “que não precisam maltratar os outros
para se sentirem importantes” (n. 288). Neste capítulo vamos conhecer
algumas dessas virtudes que tradicionalmente foram identificadas como
femininas e que mostram a grandeza do ser humano. Poderíamos dizer
que nossa espiritualidade marista, sendo influenciada por uma mulher, está
cheia de virtudes femininas. Essas mesmas virtudes moldam uma liderança
com estilo mariano.

Neste mundo emergente de conflito, dominação, desigualdade, ex-


ploração... percebemos que “a humanidade precisa mudar” (Papa Francisco,
2015, p. 155) e busca um amor autêntico que ajude a crescer, a acolher, a
integração e a paz.

Aí, no meio deste mundo, sentimos o chamado à fraternidade uni-


versal e nós, como maristas, queremos ser o rosto mariano de uma Igreja
pobre e servidora. Como podemos contribuir para tornar este sonho reali-
dade? Com que estilo de liderança? Nós acompanhamos Maria na Anun-
ciação, ela será nossa inspiração.

1. VULNERABILIDADE
Liderar a partir da vulnerabilidade pode parecer contraditório se
tivermos em nossa mente uma imagem de líder como uma pessoa que tem
todas as respostas e controla tudo. Mas na liderança servidora, que procura
“ajudar as pessoas a terem sucesso” (Floyd, 2018, p. 61), ela pode nos forne-
cer uma perspectiva diferente.

A palavra “vulnerabilidade” vem do latim “vulnus” que significa


“ferida” e indica “a possibilidade de ser ferido” (Torralba, 2007, p.92). Po-
demos experimentar esta situação de necessidade a nível corporal, psico-
lógico, social e espiritual. E há muitas situações em que nos encontramos
desta maneira: na doença, em situações de dor ou solidão, na busca de

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

sentido... (Sandrin, 2007). O momento pessoal ou a situação social em que


vivemos pode nos expor a um maior ou menor grau de vulnerabilidade.

Também pode haver uma busca consciente ou uma atitude de


vulnerabilidade na qual uma pessoa pode ser sensível ao que a vida, as
pessoas e a sociedade estão vivenciando e permitir que isso “fira-a” em seu
eu interior. Esta ferida pessoal lhe permite questionar suas convicções, seus
valores, suas escolhas... e tomar decisões a fim de responder a estes apelos
percebidos. A pessoa teria dado -conscientemente- permissão à vida para
que a pudesse machucar, questionar, incomodar.

Deste ponto de vista, existe uma vulnerabilidade que é imposta


por nossa natureza humana, mas existe uma outra vulnerabilidade que é
escolhida e procurada. Torna-se assim uma escolha pessoal. Esta escolha
pessoal envolve viver com incerteza, risco e exposição emocional.

Brené Brown é professora e pesquisadora da Universidade de


Houston que estuda este fator há muitos anos e o apresenta mencionan-
do o discurso de Theodore Roosevelt na Universidade de Sorbonne em
Paris (1910). Nele ele valorizava não tanto o homem que critica e olha os
tropeços do outro, mas o homem que está no ringue e ousa correr riscos
com todas as suas forças. Esta mesma autora conclui que ser vulnerável é
estar envolvido, ser totalmente interior, o que para ela significa viver genui-
namente, ou seja, cultivar coragem, compaixão e conexão (Brown, 2016).

A partir desta perspectiva, voltemos nosso olhar para o texto do


anúncio do anjo Gabriel a Maria no início do evangelho de Lucas (Lc
1,26-38). Este texto pertence ao gênero literário de “anunciação” que de-
seja transmitir a um destinatário específico - neste caso, Maria - uma men-
sagem que vem de Deus. No texto podemos ver a capacidade de Maria, a
serva do Senhor, de aceitar a voz de Deus e sua prontidão para se envolver,
respondendo “sim”. Poderíamos dizer que Maria é uma pessoa vulnerável
que se permite ser questionada e que decide se comprometer com o plano
que lhe é apresentado. Maria se envolve e o faz completamente.

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Esta passagem evangélica, vista deste ponto de vista, contém várias


mensagens para nossa vida e para nossa maneira de exercer a liderança. Mas
é uma mensagem para todos nós, porque onde quer que você esteja - seja
em sua família ou comunidade, em seu trabalho marista, em seu grupo de
fé, em seu movimento de pastoral juvenil... - tenha em mente que a lide-
rança não se trata de uma posição, mas da influência que você pode exercer
(Blanchard, 2012).

O primeiro convite desta passagem evangélica, lida em termos de


vulnerabilidade, é de nos expormos à realidade. Ou seja, viver de tal forma
que nossas vidas possam estar em contato com a realidade, com o que as
pessoas ao nosso redor estão vivenciando.Trata-se de procurar ocasiões para
fazer contato, para conhecer, para vivenciar situações em primeira pessoa.
Esta exposição pessoal às pessoas e à realidade ao nosso redor é um enorme
risco emocional de que temos que estar cientes. A alternativa é viver com
calma e sem perturbações.

Em nossa liderança, podemos criar encontros, conversas, expe-


riências... onde podemos ver e ouvir as pessoas, onde podemos detectar
necessidades e onde podemos nos fazer perguntas: O que eu posso fa-
zer? Certamente, uma maneira de ser exposto é permanecer acessível, estar
disponível para uma conversa, para uma interpelação, para uma proposta.
Medo, fracasso, feridas da vida, decepções... muitas vezes se traduzem em
desconexão e isolamento. Máscaras, desculpas e distância afetiva emergem
então. Abrir-se a uma situação que nos traz novos aprendizados e nos ajuda
a crescer pode ser uma boa maneira de nos mantermos acessíveis.

O segundo convite é para ousar, correr riscos. Este é um compro-


misso com a criatividade e a inovação. É dar um passo à frente para nos
envolvermos com a realidade que conhecemos e à qual temos sido sen-
síveis. Nessa realidade, podemos notar algo que não está funcionando ou
uma oportunidade que está se abrindo (Laloux, 2016). A pergunta que cada
um de nós pode se fazer é: “O que vale a pena fazer, mesmo que falhe?”
(Brown, 2016, p. 42). Tenha em mente que “a verdade e a coragem nem
sempre são emoções confortáveis, mas nunca fracas” (Brown, 2016, p. 37).

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Em relação à criatividade, a vulnerabilidade nos pede para criar um


ambiente que nos permita experimentar novas maneiras de viver e traba-
lhar, onde nos relacionamos uns com os outros (Sinek, 2018). Isto requer
favorecer a confiança necessária para que as pessoas ao nosso redor possam
falhar tendo tentado um novo caminho, um novo produto, uma nova ideia.
Acolher, acompanhar e aprender com o fracasso é tudo trabalho que nós,
como líderes, podemos fazer.

Finalmente, precisamos “regularizar o desconforto” (Brown, 2016,


p. 194), porque se quisermos aprender, mudar e inovar, a jornada pela fren-
te é incerta e imprevisível. E aceitar isto como normal pode nos ajudar a
reduzir a ansiedade. Não é fácil navegar pelo desconhecido. Mas a novida-
de tem seus riscos e nós devemos estar cientes disso. Isto deve nos levar a
considerar não tanto a redução das propostas que fazemos, mas a estarmos
conscientes dos possíveis riscos envolvidos e a aprender a viver com o des-
conforto.

Assim, ser vulnerável, dizer “que seja feito”, como disse Maria, sig-
nifica ter risco, criatividade e incerteza como companheiros ao longo do
caminho. Desta forma, em meio à complexa realidade em que vivemos,
com nossas próprias capacidades e limitações, com as possibilidades e difi-
culdades de nossas instituições... assumimos liderar e servir. Ou seja, hoje
“que seja feito”, como Maria fez. Isso é ser vulnerável.

2. PROPÓSITO
Muitos de nós estamos familiarizados com os Maristas Azuis de
Aleppo. Sua história é a de um grupo de pessoas que realizava a missão
marista nesta cidade síria. Com a chegada da guerra ao país em 2011, mas
especialmente a partir de 2012, quando a batalha de Aleppo começou, eles
implantaram um enorme sistema de cuidados para pessoas que haviam sido
deslocadas de outras partes da cidade ou de outras cidades. Durante todos
esses anos, eles multiplicaram a ajuda que já estavam fornecendo. Os es-
paços comunitários se tornaram em várias ocasiões um grande centro de

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acolhimento para famílias deslocadas. Eles cuidaram dos feridos de guerra,


distribuíram água nos bairros, alimentaram famílias, organizaram atividades
educacionais para crianças... Com o fim da batalha de Aleppo no final de
2016, eles conseguiram adaptar sua ajuda a diferentes grupos onde surgi-
ram necessidades: atenderam um campo de refugiados curdos, prepararam
microprojetos para financiar a criação de pequenas empresas para jovens,
promoveram a integração das mulheres no mercado de trabalho... Em tudo
isso, nunca perguntaram àqueles que ajudaram de onde eram, que religião
professavam ou para onde planejavam ir em seguida. Para eles, eles eram
seus irmãos e irmãs. E eles, por sua vez, sabiam que eram Maristas Azuis,
embora incluíssem cristãos e muçulmanos, homens e mulheres, sírios e
curdos, religiosos irmãos e leigos.

A partir da história dos Maristas Azuis aprendemos que viver vul-


neravelmente, deixar-se surpreender e assumir riscos, nos leva a complicar
nossas vidas. Ao mesmo tempo, ela nos permite viver com propósito, com
significado. Ou seja, fazer uma viagem ao que é essencial em nossas vidas,
sem o qual não poderíamos viver.

Para fazer esta jornada, precisamos de uma liderança que nos ajude
a buscar um sentido, que nos permita ajudar os outros a crescer. De fato, “o
líder cresce ajudando outros a crescer” (Blanchard, 2012, p. 93). Descobrir
o potencial das pessoas e permitir que elas se desenvolvam ao máximo é
uma das melhores maneiras de cuidar daqueles que vivem e trabalham co-
nosco. É uma questão de oferecer ferramentas para que cada pessoa tenha
a capacidade de amadurecer em todas as suas dimensões: psicológica, social,
ocupacional, espiritual... Podemos chamá-lo “acompanhamento”.

Precisamos do mesmo em nível institucional, em nossa missão:


descobrir as possibilidades de crescimento, de melhoria... Uma visão que
nos ajude a ver a riqueza que já temos como grupo e a desenvolvê-la é
essencial para poder oferecer aos outros o melhor que somos.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Além disso, um caminho de crescimento pessoal durante um longo


período de tempo é uma prioridade, ajudando-nos a descobrir os códigos
de nossa existência. É uma ferramenta importante para o autocuidado. E
fazer isso acompanhado pode nos ajudar a encontrar um propósito. Isto
requer uma alta dose de maturidade pessoal e coragem para enfrentar nossa
história com seus sucessos e erros, suas feridas e suas conquistas. O objetivo
é aprender a tomar a vida em nossas mãos e ser livre para dirigi-la ao nosso
propósito.

Uma alternativa é cair em contínuas reclamações, fazendo parecer


que sempre há outra pessoa a quem culpar pelo que nos acontece. É uma
maneira mais rápida e simples, mas não nos leva a nada. Pelo contrário, está
nos corrompendo por dentro e sutilmente rompe nossas relações com os
outros.

Quando você reclama, você está mostrando seu desacordo com o


que outra pessoa decidiu, planejou ou fez. Por definição, você está
sendo desagradável, e você também escorrega na insinuação de
que teria feito melhor. Isto raramente constitui um aporte positivo,
especialmente se você o faz nas costas das pessoas e não o diz na
cara. (Goldsmith, 2018, p.97)

Sem propósito em nossas vidas e em nossas instituições, seremos


capazes de preencher nosso tempo com atividades e ser muito ocupados.
Teremos um ritmo de vida frenético. No entanto, o verdadeiro cuidado
para nós mesmos e para nosso povo está aqui: viver com sentido. É a melhor
maneira de cuidarmos de nós mesmos. É por isso que ajudar outros a en-
contrar este significado em suas vidas se torna uma das melhores maneiras
de servi-los.

A quantidade de trabalho não é um problema em si. O autocuida-


do não significa esvaziar a agenda. Significa expressar o propósito de nossa
vida e missão em tudo o que fazemos. Isso significará eliminar algumas
atividades, reuniões, compromissos que não têm nada a ver conosco ou

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VOZES MARISTAS

com nossas instituições. Em outros momentos, isso exigirá um aumento


da carga de trabalho. De fato, é o trabalho criativo e a capacidade de amar
que dá sentido à vida (Frankl, 1979). O que alimenta meu/nosso propósito?
Qual é a melhor maneira de expressar o propósito de minha vida? Qual é a
melhor maneira de expressarmos o propósito de nossa missão?

O objetivo do acompanhamento, como cuidado que exercemos


com as pessoas, não é viver no lugar dos outros. Não podemos fingir pou-
par as pessoas de qualquer sofrimento, mas podemos ajudá-las a aprender
as ferramentas para enfrentar a vida como ela vem. Às vezes, as pessoas nos
procuram pedindo atalhos espetaculares para a felicidade rápida. Eles se
enganam. A maturidade e a qualidade de vida são cultivadas com paciência,
pouco a pouco e em silêncio.

Sem propósito, os projetos dos Maristas Azuis de Aleppo são uma


lista de boas ações. Sem propósito, sua vida e a minha, assim como nossas
instituições, são um calendário cheio de coisas para fazer. Ao invés disso, os
Maristas Azuis desenvolveram um propósito. Eles acolheram, como Maria,
a voz de Deus através das pessoas deslocadas pela guerra, decidiram ser vul-
neráveis e assumir riscos. Da mesma forma, a proposta que o mensageiro de
Deus faz a Maria é viver com propósito, participar da história da redenção,
acolher seu plano (Lc 1, 35): engravidar e permitir que Deus seja Emma-
nuel, Deus que está próximo. Poderíamos dizer que Deus - em sua infinita
vulnerabilidade - pede a Maria que permita que ele se aproxime da huma-
nidade, que faça presente sua ternura entre os homens. Viver com sentido
nos torna vulneráveis. Ser vulnerável nos permite viver com propósito.

3. TERNURA
Reconhecer-nos como vulneráveis - a nós mesmos e aos outros -
nos leva a nos considerar como necessitados de cuidados (Laguna, 2020).
Somos vulneráveis entre os vulneráveis. Se alguma vez tivemos a sensação
de sermos super-heróis perfeitos que fazem o melhor para ajudar aqueles
de status diferente (social, econômico, cultural...), nossa própria experiên-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

cia nos faz sair deste sonho e passar para uma realidade na qual todos nós
precisamos uns dos outros. Neste sentido, “lembramos que ninguém é salvo
sozinho, que só é possível ser salvo juntos” (Papa Francisco, 2020, p. 33). Em
outras palavras, em vez de sermos autônomos, somos seres interdependen-
tes. O irmão Emili Turú colocou isso lindamente em sua carta para o ano
Montagne: “Trata-se antes de reconhecer que a missão deve ser realizada
em vulnerabilidade, em humildade, aberta para ser evangelizada por aqueles
que somos chamados a evangelizar” (Turú, 2015, p. 6).

Esta interdependência nos leva a considerar também nossas estraté-


gias de vida e missão. É um convite para fazer planos de vida “com” outros
e não tanto “para” outros. Imaginar projetos de irmãos e leigos com jovens,
com os pobres - contando com eles desde o início - é uma consequência
desta interdependência.

Outra implicação é entender que o cuidado é uma viagem de ida e


volta, que é um verbo ativo e passivo ao mesmo tempo, que se trata de cui-
dar e deixar-se cuidar. Fazendo isso, aumenta nossa capacidade de liderança.
Em nossa missão, enriquecemos a vida dos outros, mas também enrique-
cemos a nossa própria. Cada encontro, cada conversa, cada planejamento,
cada fracasso... é uma oportunidade para desenvolver nosso potencial, para
aprender, para amadurecer.

Desse ponto de vista, uma comunidade é uma rede de cuidados,


uma rede de relacionamentos. É um lugar onde vivemos um permanente
intercâmbio de ideais, sentimentos, projetos e história. É um lugar onde
ninguém é imune, todos estão expostos à realidade (Boff, 2015). É ali que
experimentamos a ternura que “irrompe quando a pessoa se descentra de
si mesma, sai na direção do outro, sente o outro como outro, participa de
sua existência e se deixa tocar por sua história de vida” (Boff, 2015, p. 65).
Em qualquer caso, é importante reconhecer que ternura é cuidado sem ob-
sessão, sem a necessidade de suplantar outros, roubar suas vidas, plagiar seus
sonhos, adormecer suas preocupações. É o lugar para caminharmos juntos,
para compartilharmos nossa vulnerabilidade da qual nasce nossa riqueza.

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No relato da anunciação, contemplamos a maravilhosa intercone-


xão de dois seres vulneráveis: Deus, que pede permissão para realizar seus
sonhos, e Maria, que arrisca a incerteza de acolher a voz de Deus. Eles
precisam um do outro. E aí, em meio a essa vulnerabilidade, é onde nasce
a vida. Aí nos permitimos com outros, cuidar sem suplantar, precisar uns
dos outros.

CONCLUSÃO
Liderar no caminho de Maria na Anunciação é liderar a partir
da vulnerabilidade que vem de nos deixarmos tocar pela realidade, pelas
pessoas, e ousar dizer “sim”. Isto nos permite desenvolver a coragem de
viver com propósito e fazer essa caminhada para o essencial da vida. Ali, no
essencial, encontramos compaixão, ternura e interconexão.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Como Maria em seu “faça-se”, a que desafios você tem dito “sim”
como líder ultimamente?
2. Em que área de sua missão você precisa estar mais presente? Em que
situação você precisa olhar de frente? Onde em seu trabalho você en-
contra mais inspiração?
3. Como Maria, que acolhe a voz de Deus, qual parte da realidade em
que você está imerso está atualmente tocando mais seu coração?
4. Você pode definir o propósito de sua vida? O que é essencial para você,
o que o faz viver? Quanto tempo você dedica a falar com alguém sobre
o que é essencial em sua vida? Quanto tempo e recursos você dedica
para ajudar os outros a buscar um propósito em suas vidas?
5. Como você está ajudando a descobrir e desenvolver o propósito no
trabalho que está realizando?
6. Quais interconexões geram mais confiança e dinamismo em você?
Quais você acha que poderiam lhe trazer novas perspectivas?

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REFERÊNCIAS

Blanchard, K. y Miller, M. (2012). Great leaders grow. Berrett-Koehler Pu-


blishers.
Boff, L. (2015). Derechos del corazón. Trotta.
Brown, B. (2016). El poder de ser vulnerable. Urano.
Floyd, M. A. (2018). Liderazgo servicial: ¿Qué significa, realmente? En K.
Blanchard y R. Broadwell (Eds.), El liderazgo servicial. Urano.
Frankl,V. (1979). El hombre en busca de sentido. Herder.
Goldsmith, M. (2018). La pregunta que todo líder debería hacerse. En K.
Blanchard y R. Broadwell (Eds.), El liderazgo servicial. Urano.
Laguna, J. (2020).Vulnerables: El cuidado como horizonte político. Cristia-
nisme i Justicia, 219.
Laloux, F. (2016). Reinventar las organizaciones. Arpa Editores.
Papa Francisco. (2020). Fratelli Tutti. San Pablo.
Papa Francisco. (2015). Laudato Si’. Verbo Divino
Papa Francisco. (2013). Exhortación Apostólica Evangelii Gaudium. San Pa-
blo.
Sandrin, L., Calduch-Benages, N. y Torralba, F. (2007). Cuidarse a sí mismo.
PPC.
Sinek, S. (2018). La evolución del liderazgo servicial. En K. Blanchard y R.
Broadwell (Eds.), El liderazgo servicial. Urano.
Turú, E. (2015, abril 25). Circular Montagne: La danza de la misión. Casa
Generalizia dei Fratelli Maristi. (Versão em português disponível
em: https://www.champagnat.org/e_maristas/emili_turu/Lette-
rEmili2015_pt.pdf)

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CAPÍTULO 18

Marcelino Champagnat,
um modelo de liderança
servidora
Ir. Benjamin Consigli,
Conselheiro-Geral

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Marcelino Champagnat, em seu próprio relato, claramente não era


um mestre intelectual como definido pelo desempenho acadêmico ou pela
educação formal. Devemos lembrar que a educação formal nas áreas rurais
da França quase não existia nos anos após a Revolução de 1789. Em 1803,
quando dois representantes diocesanos chegaram a Marlhes em busca de
candidatos para o seminário, Marcelino tinha quatorze anos e era quase
analfabeto. Antes de poder iniciar o estudo do latim, que era necessário
para o sacerdócio, Marcelino teria que saber ler e escrever em francês. Até
mesmo seu pai, Jean-Baptiste, acreditava que este obstáculo educacional se-
ria difícil de superar para Marcelino. No entanto, sua decisão foi tomada - a
partir daquele momento, ele pensou apenas em se tornar padre. Após dois
anos de estudo relativamente intenso com Benoit Arnaud, seu cunhado, seu
progresso foi tão insignificante, que Arnaud disse à Sra. Champagnat que
Marcelino “tem muito poucos talentos para ter sucesso” e não demonstrou
muita capacidade de aprendizagem formal” (Zind, outubro de 1971, p. 8).

Em novembro de 1805, Marcelino foi ao seminário menor de


Verrières para iniciar seu estudo formal para o sacerdócio. Ele tinha dezes-
seis anos, era grande, desconfortável com o francês formal escrito e falado,
e não era o mais inteligente da classe. Para Marcelino, foi um retorno ao
que hoje poderíamos chamar de “classe de iniciantes”. No final do ano,
seus resultados foram tão pobres que ele foi aconselhado a não voltar ao
seminário. No entanto, ele acabaria passando longos anos de estudo no
seminário e superaria muitos obstáculos para se tornar um padre. Seus co-
legas seminaristas todos concordaram que ele não possuía nem os talentos
nem os recursos necessários para tentar, com qualquer esperança de sucesso,
a fundação de uma congregação. Segundo o Padre Denis Maîtrepierre, um
confrade de seus dias de seminário, Marcelino “tinha de fato tudo o que era
humanamente necessário para impedir o sucesso de seu empreendimento”1. Apesar
disso, ele é considerado por muitos como um dos fundadores e líderes mais
significativos da história da Igreja (Balko,1994, pp. 22-38).

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Então, o que permitiu que este simples garoto da França rural se


decidisse a proporcionar aos outros a educação formal que ele mesmo não
possuía? O irmão Jean-Baptiste afirma claramente:

O Padre Champagnat deve muito , no sucesso de seu ministério


e na fundação de seu Instituto, ao seu caráter brilhante, aberto,
amigável e atencioso bem como sua capacidade de resolver situa-
ções de conflito. Uma afabilidade despretensiosa, uma franqueza e
uma impressão de bondade irradiada de seu rosto, conquistando
todos os corações e mentes para aceitar sem dificuldade e mesmo
com prazer, suas opiniões, suas instruções e suas repreensões. (Fu-
ret, 1989, p. 266)

Ao estudar algumas de suas correspondências e rever alguns dos


testemunhos daqueles que o conheceram, é minha convicção que Marce-
lino era um líder servidor, dotado de extraordinária fé e confiança
em Deus, o que lhe permitiu realizar o que muitos pensavam ser
improvável, se não impossível. Para examinar mais a fundo essa premissa,
o melhor seria começar com uma breve visão geral dos leigos sobre as qua-
lidades de um líder servidora.

Liderança servidora
Enquanto a ideia de liderança de serviço remonta a pelo menos
dois mil anos atrás, o movimento de liderança servidora moderno foi lan-
çado por Robert K. Greenleaf em 1970 com a publicação de seu ensaio
clássico, The Servant as Leader. Foi nesse ensaio que ele cunhou as palavras “
líder servidor “ e “ liderança de serviço “. Greenleaf disse que “o líder- ser-
vidor é primeiro um servo “. Com isso ele quis dizer que o desejo de servir,
o “coração serviçal”, é uma característica fundamental de um líder servidor.
Não se refere a uma atitude servil, mas ao desejo de ajudar os outros. É
sobre identificar e atender as necessidades dos colegas e das comunidades.
Segundo Larry C. Spears, ex-presidente do Centro Robert K. Greenleaf

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para a Liderança de Serviço, estas são as 10 características mais importantes


dos líderes servidores (Spears et al., 2010, pp. 25-30):

Escuta, Empatia, Cura, Conscientização, Persuasão, Con-


ceptualização, Prospecção, Administração, Compromisso
com o Crescimento das Pessoas, e Construção de Comu-
nidade.

As características da liderança dos servidores muitas vezes ocor-


rem naturalmente dentro de muitos indivíduos e, como muitas tendências
naturais, elas podem ser melhoradas através do aprendizado e da prática.
Olhando alguns trechos de suas diversas correspondências e dos testemu-
nhos daqueles que o conheceram, veremos que Marcelino Champagnat
tinha muitas dessas tendências naturais que lhe permitiram realizar tanto.

Escuta e empatia
Ele sabia como trazer humor a uma conversa para animar as coi-
sas... ele nunca se sentia incômodo entre os irmãos... (Laurent,
1842, p. 3)

Os líderes têm sido tradicionalmente valorizados por suas habili-


dades de comunicação e tomada de decisões. Embora estas também sejam
habilidades importantes para o líder servidor, elas precisam ser reforçadas
por um profundo compromisso de ouvir atentamente os outros. O
líder servidor procura identificar a vontade de um grupo e ajuda a escla-
recer essa vontade. Ele ou ela escuta receptivamente o que está sendo dito
e não dito. A escuta também abrange ouvir a própria voz interior. Escutar,
juntamente com períodos de reflexão, é essencial para o crescimento e
bem-estar do líder servidora. Da mesma forma, a empatia representa a
capacidade de criar um senso de conexão com os outros - de colocá-los
no seu comprimento de onda e convidá-los a se moverem com e em dire-
ção a você em vez de se afastarem e contra você. As pessoas com empatia

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podem constantemente captar sinais emocionais. Elas podem apreciar não


apenas o que as pessoas estão dizendo, mas também porque o estão dizen-
do. Essa competência tem a ver com a compreensão de outras pessoas e a
capacidade de “ler” bem as situações. É a capacidade de ouvir e entender
com precisão os pensamentos, sentimentos e preocupações dos outros. Os
líderes servidores mais bem sucedidos são aqueles que se tornaram habili-
dosos ouvintes empáticos.

Então, como Marcelino é um ouvinte empático? É importante


lembrar que Marcelino tinha sofrido quando menino pela ausência de
qualquer escolaridade regular e estava determinado a ver que as oportuni-
dades de aprendizagem que ele não tinha, se estendiam por toda a França
rural. Ele estava profundamente convencido da importância da educação.
Ele se propôs a estabelecer um sistema de escolas de educação básica no
qual as crianças rurais pudessem receber uma boa educação elementar -
uma educação que ele não tinha oportunidade de receber - e, ao mesmo
tempo, receber instrução na fé cristã. Marcelino sabia em primeira mão as
privações que os jovens estavam passando... e compartilhou suas lembran-
ças dessa privação em sua carta à Rainha Marie-Amelie da França:

O que vi com meus próprios olhos naquele novo posto, com re-
ferência à educação dos jovens, me lembrou as dificuldades que eu
mesmo havia experimentado na idade deles, por falta de professo-
res. Assim, rapidamente realizei o projeto que já tinha em mente
de criar uma associação de irmãos professores para os municípios
rurais, muitos dos quais, por falta de recursos financeiros, não po-
dem pagar os Irmãos das Escolas Cristãs.2

Essas mesmas preocupações também foram compartilhadas com o


rei Louis-Philippe:

...só aprendi a ler e escrever depois de fazer enormes esforços, por


falta de professores capazes. A partir daí compreendi a necessidade
urgente de ter uma instituição que pudesse, com menos despesas,

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proporcionar às crianças rurais a mesma boa educação que os Ir-


mãos das Escolas Cristãs proporcionam aos pobres das cidades.3

Marcelino também compreendeu seus irmãos. Como vimos an-


teriormente, Marcelino conhecia Sylvestre “profundamente e o estimava
muito por sua franqueza e docilidade” e o defendia quando os membros
mais velhos da comunidade alegavam que Sylvestre “só pensava em se di-
vertir... e perturbar a boa ordem da comunidade”. O conhecido incidente
com o carrinho de mão aparentemente causou tumultos significativos na
comunidade. Como Marcelino reagiu a esses irmãos que reclamavam? Dis-
se ele:

Prefiro vê-lo se divertir dessa maneira do que ficar entediado. Não


consigo ver o mal que seu carrinho de mão causou.Vocês também
se divertiam quando eram jovens... Em vez de se juntar ao jovem
irmão em algum jogo inofensivo ou em algumas atividades de di-
versão para ajudá-lo a passar o tempo, vocês o deixam sozinho;
estão ocupados no estudo ou conversando sobre questões sérias;
estão surpresos que ele brinque com o carrinho de mão? Por fa-
vor, não façam disso um crime, e muito menos abandoná-lo a si
mesmo, correndo o risco de azedar sua atitude em relação ao seu
trabalho e sua vocação. (Furet, 1989, pp. 270-271)

O Irmão Sylvestre, em suas Memórias, descreve vários exemplos


da bondade de Marcelino para com ele, em particular quando o perdoou
de mil e duzentas linhas que lhe foram dadas pelo Mestre de Noviços:

Durante a leitura espiritual fiz um barulho enquanto movia uma


estátua sobre minha mesa. O Mestre de Noviços, um tanto irritado
com meu descuido no passado, me deu nada menos que 1200 li-
nhas. Eu acreditava que essa penitência era completamente injusta
e fui pedir ao Padre Champagnat que me dispensasse dela. Quando
cheguei ao quarto dele, contei-lhe em lágrimas e em grandes deta-
lhes o porquê de ter vindo vê-lo. Depois de me ouvir atentamente,

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ele pegou uma folha de papel de sua mesa, pingou cera de selagem
e aplicou seu selo. Então ele escreveu uma única linha nela, assinou
a folha e me deu, dizendo-me para ter mais cuidado. O que con-
tinha essa linha? Aqui está escrito palavra por palavra: “Pagamento
de 1200 linhas”. (Green, 2007, pp. 91-92)

A resposta de Marcelino revela sua compreensão natural e in-


tuitiva da adolescência e da vida religiosa. Mas essa compreensão intuitiva
não era apenas para o irmão Sylvestre. Segundo o irmão Jean-Baptiste,
assim que Marcelino percebia que um postulante estava tendo problemas
para se adaptar ou tinha dúvidas sobre sua vocação ou estava saudoso de
casa, ele o chamava ou buscava uma oportunidade de dialogar com ele.

Isso podia ser ao levar o postulante como acompanhante em uma


viagem, fazendo um passeio com ele ou pedindo sua ajuda em
algum trabalho manual. Em qualquer caso, ele nunca perdia o
contato com ele até que tivesse reforçado sua determinação de
perseverar em seu estado sagrado... Marcelino teve uma variedade
de abordagens e usou todos os meios possíveis para banir as ten-
tações contra a vocação e para incutir coragem naqueles que se
assustavam com as provações ou problemas da vida religiosa. Ele
fazia uma proposta de ficar mais alguns dias, assegurando-lhe que
se a insatisfação não passasse, ele o deixaria partir. Outro poderia
receber uma posição de confiança com o lembrete de que estava
contando com ele e estava confiante de que não seria desiludido
de forma alguma. Ou poderia ser que ele chamasse o “vacilante”
para fazer uma novena, com a promessa, de que, se suas disposições
permanecessem inalteradas, não haveria nenhum obstáculo depois
para sua partida. Um jovem poderia ser aconselhado a continuar
seus estudos e enquanto estivesse ocupado fazendo isso, o Funda-
dor o inspiraria habilmente com o gosto pela vida religiosa e o
levaria à decisão de abraçá-la. (Furet, 1989, pp. 465-466)

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A escuta empática de Marcelino é ainda mais significativa quando


é vista no contexto do rigorismo predominante na teologia moral, nas
expectativas da vida religiosa e até mesmo na prática pastoral dos tempos.
Para o rigorista, a natureza humana era corrupta e o perdão válido de Deus
era difícil de obter. Jesus Cristo era visto como um severo e inescrutável
Redentor (Farrell, 1984, p. 4). Por causa disso, muitas pessoas permanece-
ram afastadas dos Sacramentos, especialmente na França durante os séculos
XVII e XVIII, ou os receberam, mas raramente, com o sentimento de serem
muito indignas. No entanto, no testemunho seguinte do Irmão Callinique,
vemos Marcelino como um homem de enorme empatia no confessionário.
Em sua escuta do jovem noviço, Marcelino foi firme e compassivo:

Durante meu noviciado, fiz uma confissão geral de toda a minha


vida, como sugere a Regra. Nada pode descrever a bondade do Pai
no confessionário. Durante minha confissão, ele me segurou em
seus braços, como era seu costume, e me abraçou afetuosamente
contra seu coração. Ele era verdadeiramente o pai do pródigo, aco-
lhendo seu filho.4

Sua empatia o ajudou a “se conectar” com as pessoas. Para


criar um sentimento de conexão com seus irmãos, Marcelino dedicou um
tempo para conhecê-los e compreendê-los. Para construir essa conexão,
Marcelino se certificou de que estava “em contato” com seus irmãos.

É interessante notar que a Regra de 1837 exigia que todos os


Irmãos escrevessem ao Superior “a cada quatro meses”. (Regra de 1837).
Claramente, essa foi uma forma de Marcelino conhecer seus Irmãos. É
também por causa desta regra que temos várias cartas de Marcelino, res-
pondendo a cartas de seus Irmãos. Muitas dessas cartas revelam as qualida-
des empáticas de Marcelino, especialmente sua capacidade de ouvir atenta-
mente os outros. Ao Irmão Barthélemy, Marcelino escreve:

Fiquei muito feliz em ter notícias suas e saber que está com boa
saúde. Sei também que você tem muitas crianças em sua esco-

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la; consequentemente, terá muitas cópias de suas virtudes, por-


que as crianças se modelarão em você, e certamente seguirão seu
exemplo.5

Em outra carta, Marcelino é capaz de ouvir e compreender os pen-


samentos, sentimentos e preocupações de Barthélemy:

Estou muito consciente de todos os problemas que todas as doen-


ças de seus colegas de trabalho podem criar para você. Cuide bem
de si, para que você possa desempenhar bem suas difíceis tarefas...
Seja corajoso, querido amigo; pense como sua ocupação é preciosa
aos olhos de Deus. Grandes santos e grandes homens estavam feli-
zes por ter uma tarefa que Jesus e Maria tanto valorizam. Que estas
criancinhas venham a mim, pois o céu lhes pertence6

Ir. Denis, superior da comunidade em St-Didier-sur-Rochefort,


sem dúvida escreveu a Marcelino para o Ano Novo e compartilhou al-
guns possíveis problemas pessoais. Como não temos a carta de Denis para
Marcelino, não sabemos ao certo quais foram esses problemas. Temos, no
entanto, a resposta de Marcelino a Denis:

Se você quer que eu continue a admoestá-lo por suas falhas, bom


amigo, não deve considerar minhas admoestações tão estranhas...
Você fala de seu desejo de ir para a missão da Polinésia. Meu caro
amigo, cultive esse desejo, pois creio que ele vem de Deus; creio
que você também tem graças e talentos adequados para esse traba-
lho. Deus, sem dúvida, tem planos para você...7

Parece que Denis está infeliz onde está e deve ter mencionado que
gostaria de ir para as missões. Marcelino entendeu que uma “mudança geo-
gráfica” não iria realmente resolver o que está incomodando Denis.Vemos
Marcelino ser claro, direto e ainda assim compassivo com Denis.

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Marcelino tinha a capacidade de captar os sinais emocionais dos


outros. Ele era capaz de apreciar não só o que as pessoas lhe diziam, mas
também porque o diziam. Isso é visto em um breve trecho de uma de suas
cartas ao Irmão François, que, segundo o Ir. Avit (1884, p. 251), “pediu para
ser aliviado do fardo do governo:”

Sua posição em l’Hermitage talvez não seja tão invejável como al-
guns poderiam pensar. O que você poderia fazer a respeito, afinal?
Você não foi à procura desse cargo. Apenas tente cumprir bem seu
dever e Deus fará o que você não puder.8

Ser empático também é compreender outras pessoas e a capa-


cidade de “ler” bem as situações. Vemos isso na carta de Marcelino à sua
cunhada depois que ele soube da morte do irmão, Jean-Barthélemy, seu
último irmão em vida. Ele se relaciona com sua cunhada através do luto
compartilhado por eles:

Minha querida cunhada, aquele por quem você chora, e por quem
eu mesmo choro, se ele não lhe deixou muitos bens, deixou para
você e seus filhos o exemplo de uma vida verdadeiramente cristã,
e é por isso que eu gosto de lembrar que ele era meu irmão... Eu
nunca subo ao altar sem pensar nele. Será que vamos nos atrasar
muito em segui-lo até o túmulo?9

Marcelino era um homem que sentia as coisas intensa e profun-


damente - um homem do “instinto”, um homem que sofreu, que lutou
com suas próprias emoções e, como vimos anteriormente neste artigo, com
suas limitações. Essa capacidade de sentir profundamente as coisas tornou-
-o extraordinariamente empático. Claramente, Marcelino era um homem
empático, além de apaixonado: ele tinha uma paixão por seu Deus, uma
paixão pelas pessoas próximas a ele, e uma paixão por seu projeto.

A empatia de Marcelino também é evidente em sua carta a seu


sobrinho, o irmão Théodoret. Ela foi escrita oito meses após a morte do

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

irmão de Marcelino e pai de Théodoret (Jean-Barthélemy). Podemos ima-


ginar a ansiedade e a tristeza que Théodoret estava passando. Neste trecho,
vemos Marcelino assegurando a Théodoret que tudo está bem com os
demais membros de sua família:

Seu irmãozinho está em La Grange-Payre, muito feliz, e Jean-Pier-


re está se sentindo melhor. O resto de sua família também está de
boa saúde.10

Como vimos, empatia é a capacidade de ouvir e entender com


precisão os pensamentos, sentimentos e preocupações dos outros. Essa ha-
bilidade é uma habilidade necessária de um mestre diretor espiritual. A
empatia nunca é tão clara como nas cartas de Marcelino a seus irmãos. Para
um irmão, anônimo, Marcelino escreve:

A boa sorte de ser um filho de Maria certamente implica alguma


luta e sacrifícios. Além do que podemos dizer a Jesus, o que não
temos o direito de dizer a Maria: por que eu deveria ter sido o
primeiro a invocá-la mais do que isso, ter sido seu filho.11

Ele entende que ser um bom religioso “exige lutas e sacrifícios”.


Ao Irmão Basin, ele escreve:

Você nunca deve duvidar do meu afeto por você. Eu nunca vou
uma única vez ao altar sagrado sem rezar por você. Deus, meu
querido filho, lhe concederá a perseverança da qual depende a sua
santificação.12

Como Irmão Basin, Irmão Avit tinha acabado de fazer sua pri-
meira profissão cinco meses antes e aparentemente tem algumas perguntas
sobre como nutrir e apoiar os votos, em particular “a virtude muito amável
(castidade)”. Marcelino compreende isso quando escreve:

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VOZES MARISTAS

...Pensar na morte e na paixão de Jesus Cristo é uma excelente


maneira de repelir qualquer pensamento estranho ou contrário à
virtude muito amável. Outra maneira muito boa de adquirir as
virtudes religiosas é, como você sabe, caro amigo, a prática da san-
ta presença de Deus, recomendada por todos os mestres da vida
espiritual. Se é apenas recomendada para as pessoas do mundo, é
obrigatória para os religiosos. Portanto, faça a experiência durante
o resto desta Quaresma.13

A carta de Marcelino ao Irmão Anaclet, como as cartas ao Irmão


Basin e ao Irmão Avit, é evidentemente uma resposta a uma dessas cartas
que um Irmão tinha que enviar ao superior a cada quatro meses (Regra,
1837, cap.VII, parag. 2). Ela mostra a profunda preocupação de Marcelino
com Anaclet:

Que Jesus e Maria sejam sempre o seu único recurso. Eles conhe-
cem bem o seu nome e as suas necessidades. Não obstante, não dei-
xe de falar-lhes sobre eles, e conte com sua poderosa ajuda...Você
não deve ter dúvidas do quanto eu desejo que Deus o abençoe e
tudo o que você faz, e que por sua causa Ele abençoe o estabele-
cimento onde você está e todos os irmãos que estão com você.14

Como as cartas anteriores a seus irmãos (Sester, 1991, Cartas PS


244, 247, 248), o trecho da carta seguinte ao irmão Marie-Laurent trata
de assuntos de direção espiritual. Mas essa carta diz respeito a uma situa-
ção dolorosa que Marcelino está tentando ajudar Marie-Laurent a resolver
(Sester, 1991, p. 449). Ele lhe mostra seu afeto por meio das orações que
lhe promete, e vemos também que a situação de Maria-Laurent despertou
a compaixão de Marcelino:

Sua carta, meu queridíssimo amigo, despertou minha compai-


xão. Desde então, nunca mais me aproximei do santo altar sem
recomendá-lo a ele, em quem nunca esperamos em vão, que pode
nos ajudar a superar os maiores obstáculos. Nunca desespere de sua

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

salvação; ela está em boas mãos: Maria, não é ela o seu refúgio e sua
boa mãe? Quanto maiores forem suas necessidades, mais ela quer
se apressar para ajudá-lo.15

Marcelino tinha a capacidade de pesar a situação e o estado psico-


lógico da pessoa envolvida. Uma carta ao irmão Apollinaire, de vinte e três
anos, prestes a fazer seu exame de brevet, e de repente atingido por uma
doença, é um bom exemplo desta habilidade:

O que mais me perturba é que me disseram que você não está


bem. Você não deve, meu caro amigo, estar tão doente que não
consiga se recuperar. Se você estivesse no exército, eles lhe dariam
tempo para ficar bom novamente. Peça permissão ao Padre Maze-
lier e venha aqui para recuperar sua saúde. Se você não conseguir
seu brevet no mês de setembro, você o receberá mais tarde. Não
queremos enterrá-lo tão cedo; até agora você não fez o suficiente
para ganhar o céu.16

Marcelino conhece Apollinaire e ele sabe que deve estar extrema-


mente decepcionado e frustrado por não poder fazer seu exame brevet.
Marcelino lhe assegura que sua saúde é mais importante que seu brevet
(que era necessário ter para evitar o recrutamento militar e para ensinar)
... e acrescenta um pequeno toque de humor (“Não queremos enterrar você
ainda; você não fez o suficiente até agora para o céu”) para “suavizar” o desapon-
tamento que Apollinaire deve ter sentido.

Outro exemplo da capacidade empática de Marcelino pode ser


visto em sua carta ao Irmão Cassien. Sabemos que Luís Chomat e Césaire
Fayol abriram uma escola em Sorbiers, sua cidade natal, em 1812, e a di-
rigiram até que ambos entraram para os Irmãozinhos de Maria em 1832.
Naquela época o Instituto a assumiu. Durante quase dez anos, Marcelino
atuou como diretor espiritual para estes homens. Os dois professores, dora-
vante Irmão Cassien e Irmão Arsène, permaneceram na escola de Sorbiers,
e dois outros Irmãos foram enviados para ajudá-los. Aparentemente, a partir

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VOZES MARISTAS

daquele momento, o Irmão Cassien teve que suportar uma longa crise in-
terior; primeiro ele descobriu que seus coirmãos não eram suficientemente
bons religiosos, e depois ele mesmo começou a questionar sua vocação para
a vida religiosa. Foi neste estado de espírito que ele escreveu a Marcelino,
culpando todos à sua volta por suas dificuldades. Marcelino responde com
uma carta muito comovente e simpática. Aqui está um trecho dessa carta:

Meu caro Irmão Cassien, não vou esconder de você a dor que
sua atitude me causa, pois simplesmente não consigo entendê-
-la. Não acredito, meu caro amigo, que tenha falhado de nenhu-
ma maneira com você: Tomei nota cuidadosamente das objeções
que você se sentiu obrigado a levantar comigo, e certamente não
pensei que estava zombando de você ao lhe enviar os dois irmãos
como fizemos. Você mesmo ficou satisfeito com eles... Quando a
atitude negativa do irmão Denis o perturbou, será que eu não fui
lá imediatamente para mudá-lo? ...Então, querido irmão, por que
você tem que ficar chateado? Se os membros da Sociedade de
Maria são demasiado imperfeitos para servirem de modelo para
você, caro Cassiano, então olhe para ela que pode ser o modelo do
perfeito e do imperfeito e que ama a todos eles: o perfeito porque
praticam a virtude e levam outros a fazer o bem, especialmente
em comunidade; e o imperfeito porque é especialmente por causa
deles que Maria foi elevada à sublime dignidade de Mãe de Deus.17

Marcelino, conhecendo bem o Irmão envolvido, foi capaz de “ava-


liar” a situação e responder adequadamente.

Segundo o padre Jean Jantin, um padre marista,

O Padre Champagnat tinha um raro talento para detectar todas as


pequenas falhas de seus irmãos e dar-lhes conselhos apropria-
dos. Um dia, quando um certo jovem Irmão pediu sua permissão
para comungar (o que era exigido pela lei canônica da época), o
Padre de bom grado a deu, mas aproveitou a ocasião para lembrá-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

-lo do risco de andar por aí olhando para o céu... ele o havia visto
pisar inadvertidamente em uma pilha de argamassa. Em outra oca-
sião, ele lhe perguntou se as groselhas estavam maduras; ele o havia
visto comendo um pouco enquanto caminhava por um dos cami-
nhos. Estas observações, dadas com verdadeira bondade paternal,
mas armadas de um pequeno ponto afiado e penetrante, deixaram
memórias salutares e inesquecíveis.18

Marcelino sabia como “ler as pessoas”, como se relacionar com


elas de uma forma não ameaçadora, mas firme.

Cura
A cura das relações é uma poderosa força de transformação e in-
tegração. Uma das grandes forças da liderança servidora é o potencial para
curar a si mesmo e o relacionamento de cada um com os outros. Muitas
pessoas têm o espírito machucado e sofreram com uma variedade de gol-
pes emocionais. Embora isso seja parte da condição humana, os líderes ser-
viçais reconhecem que têm uma oportunidade de ajudar a tornar inteiros
aqueles com os quais entram em contato. Em seu ensaio, The Servant as
Leader, Greenleaf (1977/2002) escreve,

Há algo sutil comunicado a quem está sendo servido e liderado


se, implícito no pacto entre líder servidor e liderado, estiver o en-
tendimento de que a busca da totalidade é algo que eles compar-
tilham. (p. 50)

Possivelmente pelo exemplo de seu próprio pai, Marcelino havia


aprendido a conhecer as pessoas de perto, a se misturar com elas, a mostrar
preocupação, a ajudar a curar as relações. A tendência natural de Marcelino
era a de ser relacional. Em apoio a essa visão, é interessante notar que o
Irmão Sylvestre diz que Marcelino faz muitas viagens para visitar seus pa-
roquianos nas aldeias remotas,

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VOZES MARISTAS

...não eram apenas para visitar os doentes, mas também para res-
tabelecer o contato com as famílias, para reconciliar seus
inimigos, para ajudar os pobres, para consolar os aflitos e
para trazer de volta aos seus deveres as pessoas que se distanciaram
e que já não falavam mais caridosamente de seu padre. Ele tinha
um dom natural para ganhar confiança e corrigir sem jamais ferir.
(Green, 2007, p. 34)

A relação de Champagnat com o irmão Dominique deve ter sido


muito interessante. O Irmão Dominique Exquis, nascido em 1803, havia
entrado em Lavalla em 1824 e feito os votos durante 1826. Ele fez seus
votos perpétuos em 1837. Em 1832 foi Diretor em Chavanay; em 1834
esteve em Charlieu com o Ir. Liguori como Diretor. De 1837-1844 ele foi
Diretor em Charlieu; de 1844-50 em Pélussin, e depois em Monsols. Em
1857, abriu a escola em Blanzy; ali morreu em 12 de dezembro de 1865
(Farrell, 1984, p. 187). Contudo, imediatamente após seu noviciado, por
volta de outubro-novembro de 1826,

quando o Padre Courveille, depois de dar tanto trabalho ao nosso


Fundador, o deixou para ir a Saint-Antoine para fundar o que ele
chamou de uma congregação mais austera, o Ir. Dominique foi
um dos que se deixaram conquistar e o seguiram. Mas este irmão
não esperou pelo fiasco total do Padre Courveille antes de voltar a
l’Hermitage. (Champagnat, p. 191)

Marcelino deve ter ficado triste ao ver um pequeno número de


seus Irmãos, incluindo o Irmão Dominique, a quem ele tanto valorizava,
desertar o Hermitage para ir e juntar-se à nova congregação de Courveille.
Não demorou muito até o retorno de Dominique. De acordo com o Ir.
Théodose, quando o Ir. Dominique voltou de Saint-Antoine, ele

foi ver o Padre Champagnat em l’Hermitage e pediu para ser read-


mitido. O Padre Champagnat o empurrou para a sala de jantar:
‘Sim, entre’, ele lhe disse, sorrindo como se dissesse: ‘Pobre pródi-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

go! Sim, pode voltar a entrar. Você foi enganado; você agiu preci-
pitadamente; bem, entre e deixe que seja o fim de tudo. (Coste &
Lessard, 1985, III, doc 861.8)

Duas das cartas de Marcelino ao irmão Dominique ainda Cham-


pagnat. De acordo com o que podemos observar, Dominique aparente-
mente era um bom professor e um administrador capaz, mas parece que ele
era “duro” com seus irmãos. No entanto, Marcelino e seu Conselho devem
tê-lo “creditado com um sólido espírito religioso, já que lhe confiaram a
liderança de várias comunidades e escolas” (Farrell, 1984, p. 187).

Em 1834, Dominique, de trinta e um anos de idade, parece estar


tendo dificuldades na comunidade. Seria uma preocupação com a realiza-
ção pessoal, uma continuação de seu desejo de viver uma vida mais austera,
ou alguma outra razão, nunca saberemos, mas o que temos é a resposta
de Marcelino a ele. Nela, Marcelino, sem perder sua calma, oferece enco-
rajamento e bons conselhos... coisas que só poderiam ser oferecidas por
alguém que conhece bem Dominique e sua personalidade:

...Um pouco mais de humildade e obediência não prejudicaria sua


situação. Se o irmão Ligouri lhe tivesse dito que todos os irmãos
o felicitaram por tê-lo como seu colega de trabalho, você teria
sido tão ingênuo a ponto de acreditar nele? Querido Dominique,
é impossível para nós agradar a todos, não importa como
agimos... Eu realmente sinto por você em suas dificulda-
des. Deus tem renda suficiente para lhe pagar; você não perderá
nada com Ele, nem mesmo os juros; eu lhe garanto isso.19

Quatro anos mais tarde, vemos Marcelino responder a outra carta


de Dominique, aparentemente cheia de reclamações:

Quanto a você, querido amigo, estaremos sempre pron-


tos para agradá-lo e até mesmo a obedecer. Mostre-nos
uma tarefa na qual você possa permanecer constante e

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VOZES MARISTAS

satisfeito, e nós lhe confiaremos isso imediatamente. É uma


doença muito triste, ser feliz somente em lugares onde não se está.
É também um erro terrível procurar qualquer outra forma de fazer
o bem que não seja aquela que nos foi confiada.20

Marcelino tinha a capacidade de lidar com indivíduos difíceis e


situações tensas com diplomacia e tato. Ele era capaz de enfrentar um
conflito em vez de tentar evitá-lo, e era capaz de desarmar os
maus sentimentos que poderiam já estar se deteriorando. Como
vemos, a resposta de Marcelino é clara e direta - e dado o que podemos
supor sobre a personalidade de Dominique, é um tipo de resposta que
o próprio Dominique apreciaria. Marcelino conhece bem Dominique e
está preocupado com ele e com seu estado de espírito, o que levaria a
reclamações contínuas. Ele reconhece a situação de Dominique, mas tenta
fazer com que ele escute a razão. Era a pessoa, o próprio Irmão, com quem
Marcelino estava mais preocupado. Sua postura com seus irmãos (e com os
outros) era relacional.

Conscientização e autoconscientização
Para nós que estávamos no início, somos como as pedras brutas
que são jogadas nas fundações; para isso não se usam pedras polidas.21

A consciência geral, e especialmente a autoconsciência, for-


talece o líder de serviço. A conscientização ajuda a compreender as ques-
tões que envolvem ética, poder e valores. Ela se presta a ser capaz de ver
a maioria das situações a partir de uma posição mais integrada e holística.
Como observou Greenleaf (1977/2002):

A conscientização não é um doador de consolo - é exatamente o


contrário. É um perturbador e um despertador. Líderes capazes es-
tão geralmente bem acordados e razoavelmente perturbados. Eles
não são buscadores de conforto. Eles têm sua própria serenidade
interior. (p. 41)

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Algumas pessoas não estão preparadas para enfrentar a verdade so-


bre si mesmas. Quando uma pessoa sabe quem é, pode ter que mudar; e
alguns indivíduos simplesmente não querem mudar porque mudar exige
esforço! A autoconsciência requer honestidade e coragem ... para entrar em
contato com o que estamos pensando e sentindo e para enfrentar a verdade
sobre nós mesmos.

Marcelino, como muitas pessoas santas, muitas vezes acreditava que


ele ficava aquém de seus ideais.Temos um vislumbre disso porque ele mes-
mo chamou a atenção para suas falhas - em seu orgulho e amor próprio.
Em 1812, enquanto estava no seminário menor de Verrières, Marcelino
escreve em uma de suas resoluções pessoais:

Virgem Santa... Dirijo-me principalmente a ti; ainda que eu seja


teu servo indigno, pede ao adorável Coração de Jesus que me dê a
graça de me conhecer a mim mesmo, e uma vez que me conheço
a mim mesmo, lutar e superar meu amor-próprio e orgulho... (Ca-
dernos Maristas, 1990, pp. 75-76)

Marcelino estava muito consciente de que suas próprias “ofensas”


eram tão “hediondas” quanto as dos outros. Ele, de fato, se preocupava com
seus próprios pecados e os “lamentava”, e através dessas lamentações se
esforçou para corrigi-los.

De uma maneira muito real, a consciência de Marceli-


no de seus próprios lapsos e fracassos o encorajou a não ser tão
crítico em relação aos outros. Isso é visto em uma de suas primeiras
resoluções durante seus anos de seminário:

Falarei com todos os meus colegas estudantes sem exceção, por


mais desagradáveis que eu ache alguns deles, pois reconheço agora
que só o orgulho me impede de fazê-lo... Por que eu os desprezo?
Por causa dos meus talentos? Eu sou o último da minha turma.
Por causa de minha virtude? Estou muito orgulhoso. Por causa da

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VOZES MARISTAS

beleza do meu corpo? Deus o fez e, em todo caso, é bem mal arru-
mado e eu não passo de uma pitada de pó. (Sester, 1990, pp. 77-79)

Essa autoconsciência foi uma parte fundamental da personalidade


de Marcelino e sem dúvida foi útil em suas futuras relações com os muitos
irmãos do Instituto que ele ajudou a formar. Seu genuíno e profundo afeto
por seus “Irmãozinhos de Maria” era evidente nas saudações paternais que
começam tantas de suas cartas aos Irmãos... “Meu muito querido irmão...
Meu querido amigo... Meu querido filho...”. Os Irmãos viram o amor e a
preocupação de Marcelino por eles, e Marcelino foi capaz de mostrar esse
carinho e preocupação por eles em todas as suas lutas, porque ele também
lutou em sua vida. Ele compreendeu as lutas deles.

Nos depoimentos das testemunhas da beatificação de Marcelino, o


irmão Aidan afirmou,

Foi especialmente no confessionário que seu zelo (de Marcelino)


brilhou. Seus conselhos foram sempre práticos e adaptados às ne-
cessidades de cada um. Ali, sempre se encontrava o representante
do divino Mestre... o médico amoroso que sabia derramar óleo e
bálsamo, para devolver à alma desanimada ou ferida sua confiança,
paz e felicidade. Pudemos sentir que o Pai havia tirado suas palavras
amorosas não somente da doutrina, mas especialmente do coração
do Mestre22

Seus anos de estudo no seminário haviam sido obviamente difíceis


para Marcelino, mas sua confiança em Deus aderiu à sua “dureza” natural e
autoconsciência, e estes traços lhe permitiram perseverar. Ele modelou essa
firmeza e determinação para seus irmãos, mas também deu grande teste-
munho da ideia de que conhecer-se bem é um caminho para conhecer a
vontade de Deus.

Marcelino conhecia seus recursos interiores, suas habili-


dades e limites - e estava disposto e aberto a receber feedback e

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

novas perspectivas sobre si mesmo. Ao olhar para suas notas acadê-


micas no final de 1813, é óbvio que ele não havia melhorado em termos
escolares, mas suas outras notas (conduta, caráter, estudo) indicam uma me-
lhora na atitude geral - uma aparente fraqueza inicial que sem dúvida foi
apontada por seus instrutores do seminário.

Quanto melhor uma pessoa se conhecer, melhor ela pode aceitar


ou mudar quem ela é. Estar no escuro sobre si mesmo poderia levar um
indivíduo a se envolver em suas próprias lutas internas e permitir que for-
ças externas o moldem e condicionem. A clareza com que uma pessoa se
entende determina a capacidade dessa pessoa de traçar seu próprio destino
e realizar seu potencial.

Marcelino era motivado por um desejo de aprendizagem contínua


e autodesenvolvimento e tinha a capacidade de direcionar esses impulsos
de mudança pessoal para a maior glória de seu Deus. Essa competência,
também conhecida como “orientação para a realização”, mostra uma preo-
cupação com uma necessidade pessoal de melhorar a si mesmo. Na época
de sua morte em 1840, Marcelino tinha uma biblioteca pessoal composta
de aproximadamente cinquenta e três livros (Lanfrey, 2008). Muitos de
seus livros, tais como: “A moral da Teologia” de Liguori”, “Dieu seul” de
Boudon, “Fondements de la vie spirituelle” de Surin e “Introduction à la
vie devote” de Saint Francis de Salles lhe deram orientações sobre como ele
deveria viver sua vida para Cristo. Em seus anos de seminário, a área na qual
Marcelino se concentrou para melhorar foi seu orgulho. Mais uma vez, suas
resoluções dão um exemplo claro dos passos que ele sentiu que precisaria
dar para que ele abordasse essa questão. Em momentos diferentes durante
seus dias de seminário, Marcelino prometeu que o faria:

...nunca...voltar para a taberna sem necessidade......evitar maus


companheiros e, em uma palavra, não fazer nada que vá contra o
vosso serviço... (Ele prometeu) dar bom exemplo; levar os outros,
na medida do possível, a praticar a virtude; instruir os outros em
vossos ensinamentos divinos...Conversar com todos os meus com-

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VOZES MARISTAS

panheiros sem exceção, por mais desagradáveis que eu ache alguns


deles, pois reconheço agora que só o orgulho me impede de fazê-
-lo... (Sester, 1990, pp. 73-77)

Em suas resoluções para 1815, ele revelou uma generosa perseve-


rança para agir onde e quando ele pensava que Deus queria e uma maior
ênfase no estudo e na oração. Ele estava dando atenção à culpa de contar
mentiras e se envolver em calúnias, e enfatizava fortemente a caridade para
com o próximo (tanto no seminário como de volta a Marlhes durante suas
férias).

Toda vez que meu exame noturno me faz perceber que critiquei
alguém”, escreveu Marcelino, “vou me privar do café da manhã”.
...Toda vez que me dou conta de que fui culpado de uma men-
tira ou de qualquer exagero, direi o Miserere para pedir perdão a
Deus”. (Sester, 1990, pp. 89-91)

Os preparativos para o sacerdócio o levaram à “privação, renúncia,


vida de oração, de regra, de estudo...” e para alcançar os objetivos que ele
estabeleceu para si mesmo, ele apelou fortemente para a “Virgem Santa”,
sua Boa Mãe, já que ele estava bem consciente de suas fraquezas.

O desejo de aprender mais sobre si mesmo e assim fazer a von-


tade de Deus o levou mais uma vez a procurar o conselho de seu antigo
superior no seminário maior de Lyon, Padre Philibert Gardette. Em uma
carta de maio de 1827, vemos Marcelino escrever a Gardette, como a uma
“figura paterna”, para “algum conselho e consolo”23, a respeito da situação
atual em l’Hermitage.

Em 1827, o Instituto tinha apenas dez anos de existência e suas


fundações ainda eram bastante fracas. Quando os Irmãos foram enviados
para as escolas, muitas vezes ainda eram muito jovens e não estavam bem
treinados. Marcelino, portanto, sentiu a necessidade de continuar sua for-
mação em suas comunidades e em seu apostolado, o que lhe exigia visitá-
-los com frequência. Ao mesmo tempo, enquanto Marcelino tinha um Ir-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

mão para servir como diretor de noviços, ele desejava ter alguns sacerdotes
(de preferência maristas de inclinação) para ajudar na formação espiritual
dos jovens em l’Hermitage e na administração financeira do Instituto. Nes-
te ponto da história do Instituto, Courveille e Terraillon tinham deixado
Marcelino e ele tinha que tratar sozinho de todas as questões. Marcelino
sabia que simplesmente não podia “fazer tudo isso a menos que eu tivesse
alguém para compartilhar o trabalho”. Ele procurou tanto o consolo quan-
to o conselho.

Temos também uma visão de como Marcelino se viu uns quinze


anos depois de deixar o seminário. Embora não se trate de uma auto-a-
valiação “direta”, Marcelino dá algumas ideias sobre que tipo de sacerdote
deveria vir ao Hermitage para ajudá-lo em seu trabalho com os Irmãos.
Em uma carta ao Arcebispo de Pins durante a Quaresma de 1835, Marce-
lino escreve,

...o que ainda precisamos é de alguém que possa supervisionar,


animar e dirigir tudo, que possa encontrar e lidar com aqueles
que vêm à casa; alguém que ame, que perceba a importância e os
benefícios de tal cargo, um diretor que seja piedoso, iluminado,
experiente, prudente, firme e constante.24

Aqui, Marcelino pinta um retrato do tipo de pessoa necessária para


ajudar os Irmãos em l’Hermitage... e, sem saber, Marcelino pintou um au-
to-retrato! Marcelino era “piedoso, iluminado, experiente, prudente, firme
e constante”, assim como “alguém que ama”.

Persuasão
Os líderes servidores usam a persuasão - ao invés de sua autoridade
- para encorajar as pessoas a agir. Este elemento oferece uma das mais claras
distinções entre o modelo autoritário tradicional e o da liderança servidora.
Os líderes servidores visam a construir consenso em grupos, de modo que
todos apoiem as decisões.

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VOZES MARISTAS

Marcelino estava ciente de quem ele precisava “ver” ou “encon-


trar” para influenciar uma situação particular a fim de atingir seus objetivos.
Ele era capaz de se dirigir tanto às autoridades eclesiásticas quanto
às civis. Examinemos algumas dessas instâncias que revelam a capacidade
de persuasão de Marcelino.

A fim de conseguir um padre para ajudá-lo no Hermitage com a


formação dos Irmãos, ele escreve ao Padre Philibert Gardette, seu superior
no seminário maior e seu conselheiro espiritual:

Eu simplesmente não posso cuidar de tudo... Se é tão importan-


te quanto todos concordam, para os jovens ter uma boa
formação religiosa, é, portanto, igualmente importante,
não só que aqueles que lhes dão essa formação recebam
eles mesmos uma boa formação, mas também que não sejam
deixados à sua própria sorte uma vez enviados.25

Ao Padre Simon Cattet,Vigário Geral encarregado das congrega-


ções religiosas, ele escreve:

...precisaria visitar nossos estabelecimentos pelo menos a cada dois


meses, para ver se tudo está em bases sólidas; se algum de nossos ir-
mãos se envolveu em uma relação perigosa para que eu possa fazer
algo a respeito desde o início; se a limpeza e a Regra estão sendo
observadas; se as crianças estão progredindo, especialmente na área
da piedade; para garantir, em uma palavra, que os irmãos não estão
perdendo seu espírito religioso.26

Ao Padre Barou,Vigário Geral encarregado das nomeações sacer-


dotais para a Diocese de Lyon, Marcelino pede um sacerdote pelo nome:
“...O Padre Séon seria adequado sob muitos pontos de vista. Ele não só não pediria
nada, mas me disse que até nos daria seu patrimônio de 20.000 francos”.27

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Marcelino também explica o assunto ao arcebispo De Pins, ad-


ministrador da diocese de Lyon e generoso benfeitor de Marcelino, que
poderia afetar a nomeação de um padre para o Hermitage.28

Ele também se dirige a outras autoridades eclesiásticas


quando o considera apropriado e necessário. A monsenhor Bénigne
Trousset d’Hericourt, Bispo de Autun, escreve Marcelino,

Só posso regozijar-me com sua contínua boa vontade para com a


Sociedade de Maria e expressar-lhe mais uma vez nossa profunda e
respeitosa gratidão. Espero que a santa união que Vossa Excelência
quer contrair no coração de nossa Boa Mãe com a Sociedade de
seus irmãos e seus filhos seja inteiramente para sua glória e para a
salvação das almas. O senhor deseja conhecer a base do arranjo que
deve cimentar e assegurar essa união. Estou totalmente de acordo:
é bom que ambas as partes cheguem a um entendimento prévio
sobre as condições essenciais, para que quando nos encontrarmos,
tenhamos apenas os detalhes para resolver.29

Marcelino também se assegura de enviar suas saudações ao futuro


Cardeal Arcebispo, o Monsenhor Cardeal Hughes Robert Jean Charles de
Latour D’Auvergne, Bispo de Arras, em Sommes, e lhe pede que use sua
influência para garantir o reconhecimento legal dos Irmãos Maristas:

O Superior dos Irmãozinhos de Maria, estabelecido em N-D


de l’Hermitage perto de Saint-Chamond (Loire), ousa lançar-se aos pés
de Vossa Eminência para implorar-lhe que aceite a homenagem de seu
profundo respeito e suas humildes felicitações pela nova dignidade que
o Soberano Pontífice acaba de conferir a seus méritos e virtudes. Rego-
zijamo-nos de coração, com toda a França e toda a cristandade, por ver
um prelado tão santo e um pontífice tão zeloso e caridoso tornar-se um
dos principais pastores da Igreja universal... Ouso também suplicar-lhe que
tenha a bondade de estender a influência salutar de sua alta e poderosa
proteção a toda a sociedade dos Irmãos de Maria.... Não temos dúvidas de

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VOZES MARISTAS

que uma simples recomendação de sua parte seria da maior ajuda para nós
na presença de Sua Majestade.30

Essa mesma lógica pode ser vista em sua carta ao bispo De Bonald
de Le Puy, que acabara de ser nomeado arcebispo de Lyon em 4 de de-
zembro de 1839. Assim que Marcelino soube da nomeação de De Bonald,
apressou-se a compor uma carta para lhe enviar seus respeitos. Como o
Arcebispo estava em Paris nesta época, era uma boa ocasião para atualizá-lo
sobre os procedimentos com vistas a obter a autorização legal do Instituto
e para pedir-lhe que usasse sua influência para obter o que era necessário:

O Superior dos Irmãozinhos de Maria ousa antecipar o momento


feliz de lhe oferecer nossos parabéns e nossos desejos, para oferecer
a Vossa Grandeza a homenagem de seu profundo respeito e de suas
mais humildes felicitações... Há oito anos solicitamos, sem ter con-
seguido obtê-lo, o benefício de um decreto real que, ao regularizar
nossa existência, protegeria nossos irmãos do alistamento. Como
nos consideraríamos afortunados, meu senhor, se pudéssemos de-
ver este favor, tão precioso e tão desejado, à sua benevolência e à
sua poderosa influência...31

Vemos Marcelino também se dirigindo às autoridades civis ou go-


vernamentais que têm o poder de decisão que poderia afetar Marcelino e
seus irmãos. A seguir, apenas alguns exemplos:

Ao senhor Alexandre Denis Devaux de Pleyne, prefeito de Bour-


g-Argental, Marcelino, que sem dúvida está respondendo a uma carta do
prefeito pedindo-lhe para reduzir o salário dos três irmãos de Bourg-Ar-
gental, escreve,

Deixo à sua sabedoria e à bondade de seu coração julgar se não


seria cruel reduzir essa quantidade. Mostrarei sua carta ao Gover-
nador, que me prometeu que se interessaria pelas cidades pobres.32

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Ele usa alguma de sua acuidade política quando menciona a De-


vaux que mostrará sua “carta ao Governador”, aparentemente com a espe-
rança de colocar alguma pressão sobre Devaux.

Ao senhor Jean François Preynat, prefeito de Sorbiers, Marcelino


informa que se a escola não for renovada ou se não for obtida outra casa,
os Irmãos não ficarão em Sorbiers:

Tendo tomado conhecimento de que o senhor não renovou o


aluguel da casa onde os irmãos ensinaram no ano passado, e sa-
bendo também que não começou a construir outra, posso prever
que chegará o dia de Todos os Santos e que nada terá sido feito. Eu
ficaria muito satisfeito em saber se você tem algum outro recurso
em outro lugar; se não, os irmãos não podem, em nenhuma cir-
cunstância, operar a escola da cidade em seus próprios aposentos,
porque eles são muito pequenos e insalubres.33

Em sua carta ao senhor Jean Baptiste Antoine Merlat, prefeito de


Sympohorien-le-Chateau, que aparentemente procurava alguma descul-
pa para que os Irmãos deixassem a cidade, Marcelino se dirige a ele com
respeito e “sabedoria política”, e afirma: “Conhecendo sua honestidade, tenho
toda a confiança de que agirá sabiamente, como sempre, no que diz respeito à sua
escola”. 34

Marcelino também quis deixar claro ao Rei Luís Filipe que os


Irmãos Maristas são súditos leais e bons cidadãos que esperam fazer o que
está “no melhor interesse de meus concidadãos:”.

Estou, portanto, satisfeito, Majestade, com a agradável esperança de


que este empreendimento, iniciado unicamente no melhor inte-
resse de meus concidadãos, seja aprovado por Vossa Majestade, que
está sempre pronta a encorajar o que é útil. Os Irmãos de Maria...
lhe devem sua eterna gratidão e se juntarão a mim para dizer para
sempre que somos, Majestade, os súditos mais humildes, mais obe-
dientes e mais fiéis de Vossa Majestade.35

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VOZES MARISTAS

Marcelino deu seguimento a essa carta ao Rei com uma carta


à Rainha. Ele esperava influenciar a Rainha Marie-Amelie a instar seu
marido, o Rei Louis-Philippe, a aprovar a autorização legal do Instituto. A
esperança de Marcelino era que uma esposa tivesse mais influência sobre
seu marido do que qualquer outra pessoa:

O objetivo desta carta é pedir a Vossa Majestade que peça a Sua


Majestade Louis-Philippe que aprove por decreto a autorização
que seu conselho estava disposto a conceder à sociedade dos Ir-
mãos Maristas, aprovando seus estatutos, conforme consta do Ma-
nual Geral de Instrução Primária, Nº6, para o mês de abril de
1834.36

Marcelino reconheceu a necessidade de conquistar também os de-


putados e ministros governamentais. Vemos isso em sua carta ao Ministro
da Instrução Pública, Sr. Nicolas De Salvandy. Ele tenta fazer isso “explo-
rando” o “amor do Ministro por tudo que se refere ao bem-estar público”
e lembrando-o da tentativa da Sociedade de Maria de “levar a civilização
francesa” a outras partes do mundo:

Seu amor por tudo o que diz respeito ao bem-estar público, que
é tão conhecido, e a proteção que o senhor estende àqueles que
querem promovê-lo, me levam a acreditar que o senhor enten-
derá a liberdade que estou tomando para lembrá-lo do pedido
dos Irmãozinhos de Maria, apontando-lhe as principais razões para
uma ação rápida sobre ele...O bispo Pompallier, a quem a augusta
família real se dignou mostrar sua bondade e a quem honrou com
as marcas mais lisonjeiras de sua boa vontade, e que partiu há mais
de um ano para levar a civilização francesa e as crenças francesas às
muitas ilhas da Oceania Ocidental, acaba de chegar a seu destino
com segurança.37

No entanto, é importante notar aqui que, embora Marcelino sou-


besse com quem precisava entrar em contato, ele tinha uma certa ingenui-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

dade quando se tratava de entender porque a aprovação legal do Instituto


não estava progredindo em 1838. Nos círculos políticos, a animosidade
contra a Igreja e o clero certamente não tinha morrido por completo. Por
volta de 1837, enquanto os católicos reforçavam suas posições, uma certa
inquietude começou a se manifestar. Os ‘legitimistas’ temiam uma reconci-
liação entre a Igreja e a dinastia governante. Os liberais lembraram os anos
negros da aliança entre Trono e Altar. O povo universitário sentiu que suas
posições estavam ameaçadas.

A este meio se juntou o já mencionado De Salvandy, o Ministro


da Instrução Pública, que poderia ter temido perder sua posição ministerial
no final da década de 1830. O governo, do qual ele era um membro líder,
foi acusado de produzir “um espetáculo de impotência”, de não ter um
programa bem definido, e de fazer política com os padres e o rei. Desde
que seu ministério o colocou no meio das relações Igreja-Estado, o com-
portamento de De Salvandy foi certamente observado de perto pela opo-
sição, que era particularmente delicada neste ponto. ¬Portanto, o caminho
pelo qual Marcelino queria conduzi-lo deve ter-lhe parecido cheio de
emboscadas políticas, e seu caráter estava mais inclinado a ser complacente
quando promovia seus próprios interesses, ao invés de generoso em seguir
suas convicções políticas independentemente do custo. Ainda assim, Mar-
celino sabia que De Salvandy era uma pessoa que precisava ser conquistada.

E em sua carta ao Sr. Jean-Jacques Baude, deputado do Ministério


em Paris, vemos Marcelino pedindo que ele continue usando toda influên-
cia que tenha para ajudar o Instituto a conseguir sua aprovação legal, o que
agora não parece provável:

...quanto a mim, senhor deputado, tomei minha decisão: a gran-


de influência que o senhor possui, a gentileza especial com que
sempre me acolheu, assim como o irmão que lhe enviei, e seu
interesse em meu estabelecimento, me dão garantias suficientes de
sucesso...38

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VOZES MARISTAS

Claramente, Marcelino compreendeu com quem precisava se co-


municar se desejava atingir seus objetivos.

Conceitualização, previsão e governança


(“Stewardship”)
A conceitualização está relacionada à capacidade de “sonhar gran-
des sonhos”, para que um líder possa olhar além das realidades do dia-a-dia
para uma visão mais geral. O líder que deseja ser também um líder servidor
deve estender seu pensamento para englobar um pensamento conceitual
de base mais ampla. Estreitamente relacionada à conceitualização, a capa-
cidade de prever o provável resultado de uma situação é difícil de definir,
mas mais fácil de identificar. Conhece-se a previsão quando se experi-
menta isso. A previsão é uma característica que permite ao líder servidor
compreender as lições do passado, as realidades do presente e a
conseqüência provável de uma decisão para o futuro. Ela também
está profundamente enraizada dentro da mente intuitiva e chama o líder a
confiar em sua intuição.

Peter Block (1993) -autor de Stewardship and The Empowered


Manager- definiu governança/stewardship como “manter algo em con-
fiança para outro” (1993, p. xx). A visão de Robert Greenleaf sobre todas as
instituições foi uma em que todos desempenharam papéis significativos na
manutenção de suas instituições em confiança para o bem maior da so-
ciedade. A liderança servidora como a governança assume antes de tudo
um compromisso de servir às necessidades dos outros. Ela também enfatiza
o uso de abertura e persuasão, em vez de controle.

As competências de Marcelino nestas áreas são evidentes nos pri-


meiros anos de seu ministério como vigárioem Lavalla:

Quantos quilômetros percorri por estas montanhas, quantas camisas en-


charquei de suor! Se tudo estivesse reunido naquele vale, acho que haveria

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

o suficiente para tomar banho... Posso ter transpirado de fato nas minhas
caminhadas, mas tenho o grato consolo de ter sempre chegado, com a ajuda
de Deus, a tempo de confortar os moribundos com os ritos da Igreja. Hoje,
nada me consola mais! (Furet,1989, p. 56).

Isso também é visível no conhecido “episódio Montagne”.


Como sabemos, na segunda-feira, 28 de outubro de 1816, aconteceu um
episódio que convenceu Marcelino de que ele deveria iniciar imedia-
tamente a fundação de uma congregação de ensino. Ele havia sido
chamado à casa de um carpinteiro em Les Palais, um lugarejo além de Le
Bessat, onde um adolescente estava deitado gravemente doente. Marcelino
ficou horrorizado ao descobrir que este adolescente não conhecia os prin-
cípios básicos da fé católica, nem mesmo da existência de Deus. Marcelino
passou horas tentando instruí-lo sobre os preceitos cristãos básicos, ouviu
sua confissão e o preparou para morrer. Marcelino partiu então para aten-
der a outra pessoa doente em uma casa próxima, e quando voltou, desco-
briu que o menino havia morrido. Marcelino não pôde deixar de refletir sobre a
situação religiosa e educacional da França após a Revolução e o Império. Decidindo
que não tinha tempo a perder, Marcelino foi até Jean-Marie Granjon
para pedir-lhe que se tornasse o primeiro membro de uma comunidade de
Irmãos professores (Furet,1989, pp. 58-59). De alguma maneira, Marcelino
agiu como um “catalisador de mudança”... ele reconheceu a necessi-
dade de mudança e chamou a atenção para essa necessidade. A partir deste
acontecimento marcante, podemos ver essa orientação “para servir” em
algumas correspondências de Marcelino.

Em sua carta à Madre São José, Superiora das Irmãs Maristas, Mar-
celino afirma que enviará três meninas para que ela comece sua forma-
ção. Embora não saibamos como Marcelino as conheceu, sabemos que ele
trabalhou de maneira constante para toda a Sociedade de Maria: para os
Padres (Furet, 1989, p. 199) e para as Irmãs, a quem enviou cerca de dez
meninas (Coste, et al., 1985).

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VOZES MARISTAS

Estou lhe enviando as três garotas de St. Laurent d’Agny sobre as


quais lhe falei. Se elas não lhe podem trazer tanta riqueza quanto
gostariam, pelo menos elas têm boa vontade suficiente para fazer o
que você possa exigir delas. Eu lhes disse que se elas não se apre-
sentassem até você com perfeito desprendimento pessoal, submis-
são diante de toda prova, grande abertura de coração, um espírito
perseverante e um desejo real de amar a Deus como Maria, elas
não deveriam ir muito longe.39

Marcelino também estava tentando responder aos vários pedidos


de Irmãos. Ao Padre Paul Benoit, Diretor do Grand Séminaire de Montpe-
llier, Marcelino escreve:

Pretendo fazer uma pequena viagem para o sul. Espero ter a opor-
tunidade de vê-lo e falar com você sobre o estabelecimento que
você solicita. É verdade que não podemos fornecer irmãos este
ano por causa de nossa falta de pessoal, mas seu pedido está sendo
considerado e tentaremos atendê-lo o mais rápido possível.40

A Marcelino Gerentet, prefeito de Saint-Rambert-sur-Loire, es-


creve Marcelino:

Acredite, Senhor Prefeito, eu ficaria muito satisfeito em poder


apoiar seu zelo pela educação dos jovens de sua cidade, e ficarei encantado
em ver uma escola de nossos irmãos estabelecida em Saint-Rambert, pois
além do sucesso que não pode deixar de ter sob sua benevolente prote-
ção, este estabelecimento se adequaria perfeitamente às nossas necessidades,
pois centralizaria as outras que já temos naquela área. Portanto, faremos
tudo o que pudermos o mais rápido possível para atender a seus desejos
e mostrar-lhe o quanto somos gratos pela confiança que tão gentilmente
demonstrou em nossa casa.41

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Mas, como Marcelino havia escrito ao Ir. Francisco (PS197), sim-


plesmente não foi possível abrir nenhuma escola nova em 1838, além de La
Grange-Payre e St-Pol-en-Artois. Embora os Irmãos não tenham tomado
conta da escola em Saint-Rambert até 1855, é importante notar a esperan-
ça e a intenção de Marcelino de ser útil a essas cidades e paróquias.

Isso também é visto na carta de Marcelino ao Padre Julien Deschal,


Curé de Virelade na Gironde:

Tivemos muito prazer em receber a importante carta que o senhor


nos fez a honra de nos escrever e na qual nos informa sobre a ati-
tude gentil de Sua Senhoria o Arcebispo de Bordeaux em relação
à nossa sociedade. Faremos tudo o que pudermos para nos
tornarmos úteis à sua importante diocese quando a Provi-
dência nos der a oportunidade de criar ali estabelecimentos.42

Contudo, tendo em vista a falta de Irmãos para atender a todos os


pedidos, não é possível para Marcelino satisfazer este pedido neste momen-
to. No entanto, o interesse óbvio expresso na carta de Marcelino trará o
Padre Deschal em nova tentativa no mês seguinte (cf. PS 284), e a intenção
de Marcelino de “estar a serviço” é novamente notada.

Apesar de toda a nossa boa vontade, somos obrigados a manter o


que dissemos na última carta que lhe enviamos. É impossível para nós, no
momento, especificar um momento em que poderemos dar a vocês alguns
de nossos irmãos. O grande número de pedidos que temos que preencher
antes do seu, esgotará o número de candidatos que receberemos durante os
próximos anos. Esperemos, no entanto, que a Providência os multiplique
de acordo com nossas necessidades. É realmente muito doloroso para nós
não podermos contribuir imediatamente para o seu zelo pela instrução de
seus queridos filhos.43

325

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VOZES MARISTAS

Como vimos, muitas das cartas de Marcelino nesta época eram


cartas a várias pessoas em posições importantes (como prefeitos, párocos,
bispos) nas quais ele tinha que dar uma resposta negativa a seus pedidos de
novas escolas - praticamente sempre por causa de alojamentos inadequados
que podiam ser obtidos para os Irmãos e/ou pela falta de Irmãos prontos
para o apostolado. No entanto, é claro que Marcelino deseja estar a serviço.
Por exemplo, uma dessas cartas foi escrita ao Superior dos Jesuítas, em La
Louvesc, em 21 de março de 1837:

Estamos muito interessados em estabelecer nossos irmãos em La


Louvesc. Que satisfação ver nossos súditos perto do túmulo de St.
Régis, trabalhando para a glória de Deus e a salvação das almas, sob
a direção dos estimados Padres Jesuítas. É muito doloroso para nós
que não possamos atender a seu pedido. Seu estabelecimento já
está inscrito em nosso registro, e estamos muito determinados
a fazer tudo o que pudermos para servi-lo o mais rápido
possível.44

A orientação de Marcelino “para servir aos outros” também se es-


tendia para os apostolados “não tradicionais”. Quando ele se preparava para
satisfazer as expectativas da cidade de Saint-Etienne, que conta com Irmãos
para seu Instituto de Surdos-Mudos, Marcelino recebeu um pedido seme-
lhante do Padre Henri Pradier de Le Puy. É fácil entender por que ele não
hesita em responder com entusiasmo e positivamente, mas isso não signifi-
ca que ele pense que pode satisfazer com muita facilidade os dois pedidos:

Tivemos o prazer de receber sua proposta de enviar dois de nossos


irmãos para dirigir um estabelecimento para surdos-mudos em sua
cidade. Ela se encaixa perfeitamente no plano de nossa ins-
tituição, que é totalmente dedicada à educação de crianças
de qualquer condição.45

Essa orientação também é vista na carta de Marcelino ao Bispo


Devie da Diocese de Belley. Após as duas Revoluções e uma guerra con-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

tinental, muitas crianças no campo ficaram sem direção e eram, em certo


sentido, como “bandidos errantes” ou “órfãos funcionais”. Alguns teóricos
sociais da época acreditavam que as “escolas agrícolas” eram uma resposta
possível a este problema. O bispo Devie encorajou estas diferentes escolas
agrícolas/granjas que foram criadas em vários momentos no departamento
de Ain, e ele mesmo tentou algumas experiências deste tipo, com despesas
consideráveis46. Ele havia pedido a Marcelino que assumisse uma dessas
escolas, ou granjas modelo, que ele queria começar em Bresse. Marcelino
comenta a Devie:

Estou cada vez mais atraído por este bom trabalho, que,
após exame atento, não se afasta do meu objetivo, uma vez que ele
se preocupa principalmente com a educação dos pobres47

Mesmo que, em última análise, ele não será capaz de satisfazer o


pedido, Marcelino ainda mostra muito claramente que este tipo de aposto-
lado se encaixa perfeitamente em sua concepção da vocação do Pequeno
Irmão de Maria - de estar a serviço da educação cristã da juventude, “de
qualquer condição”.

Outro exemplo desta “orientação de serviço” é visto na última


carta de Marcelino que possuímos. É uma carta ao senhor Pierre Bernard
Hugony, pároco em Prés-Saint-Gervais, Paris, datada de 3 de maio de 1840.
Nela, temos um vislumbre da reação de Marcelino diante da pobreza moral
que provavelmente foi descrita na carta original de Hugony a ele. No final
de sua vida, Marcelino reconhece outro tipo de necessidade entre os jovens
(os jovens trabalhadores de um subúrbio parisiense) e gostaria que seu Ins-
tituto estivesse a serviço. Ele diz a Hugony:

As necessidades de sua paróquia são extremamente grandes; a des-


crição que nos fez delas nos impressionou e nos afligiu muito pro-
fundamente, mas apesar de toda a boa vontade que possamos ter
para promover seu zelo, achamos impossível fazê-lo no momento
presente... Que Deus abra a seu zelo recursos suficientes para a

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VOZES MARISTAS

realização de um trabalho tão importante e necessário, e também


nos dê os meios para promover seu piedoso projeto!48

Entretanto, as circunstâncias não permitiram que Marcelino nem


os Irmãos fossem ajudar neste projeto de Monsieur Hugony, mas em suas
linhas finais, Marcelino parece sugerir que este tipo de “projeto piedoso”
pode se encaixar no objetivo do Instituto: estar a serviço dos jovens margi-
nalizados, onde quer que estejam.

Compromisso com o crescimento das pessoas e


construção da comunidade
Suas lições (de Marcelino) e seu exemplo não se perderão; as en-
contraremos nos Irmãos que ele fundou. (Jean Louis Duplay, em
Sester, 1993)49

Os líderes servidores acreditam que as pessoas têm um valor in-


trínseco além de suas contribuições tangíveis. Como tal, os líderes servido-
res estão comprometidos com o desenvolvimento pessoal e profis-
sional de todos os envolvidos na missão. Na prática, isso pode incluir
(sem se limitar) ter um interesse pessoal nas ideias e sugestões de todos e
encorajar o envolvimento na tomada de decisões.

Desenvolvendo e influenciando outros

Essa competência diz respeito à capacidade de fomentar a


aprendizagem ou o desenvolvimento a longo prazo de outros.
Seu foco está na intenção e efeito de desenvolvimento e não no papel
formal de ensino ou treinamento. Aqueles indivíduos que fazem isso bem
gastam tempo ajudando as pessoas a encontrar seu próprio caminho através
de feedback específico. Eles orientam os outros, reconhecendo seus pontos
fortes. Eles também podem impactar os outros a fim de apoiar um objetivo
específico. No caso de Marcelino, seu objetivo era claro: proporcionar uma
educação cristã aos jovens pobres das cidades.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Das muitas imagens usadas para descrever Marcelino, a de “men-


tor” é extremamente adequada. Ele orientou seus primeiros irmãos para
que eles pudessem um dia assumir papéis de liderança dentro da comuni-
dade. Ele menciona isso em sua carta de 1835 ao arcebispo De Pins: “É
verdade que tenho alguns irmãos que me ajudam em várias tarefas: um bom mestre
de noviços, um irmão capaz de dirigir a classe dos irmãos, outro para os noviços, e
um ecônomo...”.50

Sabemos também que Marcelino acreditava no desenvolvi-


mento de seus irmãos. Em sua Circular de 04-02-1840, (Sester, 1991,
PS 318) é claro que Marcelino treinou outros para liderar a conferência
anual:

Portanto, em conformidade com nossa última circular, a conferên-


cia será realizada em...para os estabelecimentos de...e será presidida
por nosso Irmão Primeiro Assistente, e em sua ausência pelo Ir-
mão...51

Ele aconselhou e orientou François sobre como ser um líder e


como tomar decisões. Um exemplo disso é visto na carta de Marcelino de
10 de janeiro de 1838 a François. Marcelino, que está a caminho de Paris
para tentar obter autorização legal para o Instituto e está ciente da relutân-
cia de François em assumir um papel de liderança em sua ausência, diz-lhe:

Sempre que tiver algum problema, após consultar a Deus e nossa


Mãe comum, consulte o Pe. Matricon. Diga a ele que eu lhe disse
para consultá-lo. Resolva as coisas com ele e com o Pe. Terraillon,
quando puder. Aos domingos, no horário de costume, encontre-se
no secretariado com o Pe. Matricon e os irmãos de costume.52

Marcelino modelou o tipo de tomada de decisões que ele acredita-


va ser necessário - Consulta com os padres no Hermitage e “os Irmãos de
sempre”. Em sua carta ao Padre Ferréol Douillet, podemos ver o processo
decisório de Marcelino, que sem dúvida ele transmitiu a seus Irmãos:

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VOZES MARISTAS

A decisão que partilhei com vocês sobre nosso estabelecimento


em La Côte não foi de forma alguma uma decisão que tomei so-
zinho. Depois de recomendar o assunto às orações de todos
os nossos irmãos, e de rezar missa por essa intenção, consultei
meus coirmãos, nossos irmãos, e todos foram de opinião que
não deveríamos continuar dirigindo a escola em La Côte, exceto
nas condições em que foi estabelecida, e de acordo com as quais
nós procedemos em todos os outros lugares53

Também é importante observar que antes da promulgação da


Regra de 1837, Marcelino a enviou aos Irmãos idosos para consulta e
comentários sobre seu conteúdo e, segundo o Irmão Marie-Jubin,
Marcelino também procurou os conselhos e opiniões de alguns dos Irmãos
mais jovens:

Pedir conselhos nunca o envergonhava. Mais de uma vez ele


veio até mim, um jovem irmão de vinte anos, o que tanto me sur-
preendeu quanto me edificou.54

Marcelino também gastou tempo ajudando alguns de seus irmãos


a “encontrar seu próprio caminho” através de acompanhamento específico.
Isso já foi visto em suas duas cartas a Dominique (PS 049 & PS 234), sua
carta ao Irmão Cassien (PS 042), sua carta ao Irmão Barthélemy (PS 024),
sua carta ao Irmão Denis (PS 168), sua carta ao Irmão Théophile (PS 061),
e uma de suas cartas ao Irmão François (PS 197). A seguir, apenas alguns
trechos dessas cartas:

Ao irmão Dominique, Marcelino escreveu,

...Um pouco mais de humildade e obediência não prejudicaria sua


situação... e ...Quanto a você, querido amigo, estaremos sempre
prontos para agradá-lo e até mesmo para obedecê-lo. Mostre-nos
uma tarefa na qual você possa permanecer constante e satisfeito,
e nós lhe confiaremos isso imediatamente. É uma doença muito

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

triste, ser feliz somente em lugares onde não se está. É também um


erro terrível procurar qualquer outra forma de fazer o bem que
não seja aquela que nos foi confiada.

Ao Irmão Cassien, Marcelino aconselha:

...Então, querido irmão, por que você tem que ficar chateado?
Se os membros da Sociedade de Maria são demasiado imperfei-
tos para servirem de modelo para você, caro Cassiano, então olhe
para Aquela que pode ser o modelo do perfeito e do imperfeito
e que ama a todos eles: os perfeitos, porque praticam a virtude e
levam outros a fazer o bem, especialmente em comunidade; e os
imperfeitos, porque é especialmente por causa deles que Maria foi
elevada à sublime dignidade de Mãe de Deus.

Em sua carta de 1º de novembro de 1831, Marcelino orienta o


Irmão Bartolomeu sobre como “conquistar seus alunos”:

...Diga-lhes: ‘Deus ama vocês e eu também os amo, porque Jesus


Cristo, a Santíssima Virgem e os santos os amam tanto’. Então di-
ga-lhes: ‘Vocês sabem por que Deus os ama tanto? É porque vocês
foram comprados com Seu sangue, e vocês podem se tornar gran-
des santos, e com pouca dificuldade, se vocês realmente quiserem.55

Para Denis, Marcelino escreve: “Se você quer que eu continue a


admoestá-lo por suas falhas, bom amigo, não deve considerar minhas ad-
moestações tão estranhas...”.56

Ao irmão Théophile, ansioso por uma situação na escola de Mar-


lhes, Marcelino recomenda:

“...Por que se preocupar? Vamos agir como se tivéssemos certeza


do sucesso total e dar toda a honra a Jesus e Maria”.

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VOZES MARISTAS

E para François, temeroso de que seus talentos e habilidades não


estejam à altura das tarefas que lhe são confiadas, Marcelino diz: “Tente
apenas fazer bem o seu dever e Deus fará o que você não pode...”.

Claramente, Marcelino tinha a capacidade de fomentar o desen-


volvimento de seus “Irmãozinhos”.

Desenvolvendo & Influenciando Outros... mais um exemplo!

Como é que um “mestre” orienta um “noviço”? Passando tem-


po com a pessoa, falando com a pessoa, aconselhando, encorajan-
do e modelando o comportamento. Podemos ter uma ideia de como
Marcelino “desenvolveu e influenciou outros” examinando o que outros
disseram sobre um desses irmãos “desenvolvidos/formados” por Marcelino:
o irmão Jean-Baptiste Furet.

Sabemos que Jean-Baptiste chegou a Lavalla em 27 de março de


1822. Ele tinha quatorze anos e meio e chegou como resposta à oração de
Marcelino a Nossa Senhora de Puy. Durante os cinquenta anos seguintes,
Jean-Baptiste deveria ser “um discípulo fiel e dar ao Instituto, além de seu tra-
balho apostólico, o tesouro de seus muitos escritos que transmitem nossa história e
espiritualidade maristas” (Delorme, 2008). Jean-Baptiste também conheceu
Marcelino durante os últimos 18 anos de vida de nosso Fundador.

O Irmão Amphiloque, em seu ensaio biográfico inédito escrito em


1917 a pedido do Irmão Stratonique, Superior Geral, indicou que Jean-
-Baptiste passou um tempo em Charlieu, Feurs, Millery, e St. Symphorien
d’Ozon, Neuville, Bourg Argental, Saint Pol-sur-Ternoise, e em l’Hermi-
tage. Ele serviu durante trinta e dois anos como Assistente Provincial, seja
em Midi ou no Centro. Foi Provincial de Saint Paul-Trois-Châteaux, após
a fusão dos Irmãos do Padre Mazelier em 1842 e supervisionou a fusão dos
Irmãos de Viviers com nosso Instituto em 1844. Com sua presença e suas
interações, Jean-Baptiste ajudou a formar postulantes, noviços e noviços
do “terceiro ano” e escreveu muitos livros, como a Vida do Padre Cham-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

pagnat, que ajudaram a servir de memória viva do Fundador. No entanto,


mais significativa que os detalhes históricos deste ensaio inédito, é a reve-
lação da influência de Marcelino sobre o jovem Jean-Baptiste e como essa
influência ajudou a moldar todos aqueles que entraram em contato com
Jean-Baptiste (Delorme, 2008). Influência neste contexto é a capacidade
de persuadir, convencer ou impactar os outros a fim de fazê-los alinhar ou
apoiar sua agenda.

Em sua Circular de 8 de abril de 1872, dois meses após a morte de


Jean Baptiste, o Irmão Louis Marie, Superior Geral, escreveu,

No Irmão Jean-Baptiste, a razão, a inteligência e o bom senso se


destacam. Mesmo a piedade, que parecia ser mais particularmente
uma questão do coração, ele desejava que fosse acima de tudo só-
lida, sábia e baseada em princípios de fé... E quem, além disso, era
mais alegre, mais realizado, mais amável, mais cativante do que ele?
(Circular, vol. IV, p. 239)

O irmão Amphiloque registrou as palavras de uma testemunha,

O irmão Jean Baptiste sempre foi alegre da maneira mais gentil e


amigável. A atração de sua pessoa e a felicidade que se sentia ao se
aproximar dele, a grande facilidade com que se podia falar com ele,
a facilidade com que se abria o coração para ele, não eram o efeito
de uma alegria translúcida que o tornava tão amável?... (Amphilo-
que, 2008, pp. 112-113)

Outra testemunha confirmou que o Irmão Jean-Baptiste “...tinha


um dom maravilhoso para consolar, encorajar, levantar, fortalecer...nunca se saiu de
seu quarto...sem levar uma coragem renovada, contentamento e desejo de fazer tudo
melhor” (Amphiloque, 2008, p. 88).

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VOZES MARISTAS

Em sua opinião sobre como formar jovens irmãos, Jean-Baptiste


segue os conselhos que lhe foram certamente dados e modelados por Mar-
celino. Mais uma vez, o Irmão Amphiloque dá conta do que Jean-Baptiste
disse a um diretor que solicitou que dois jovens irmãos fossem afastados de
um determinado apostolado e comunidade:

Remova-os! Remova-os! Isso é fácil de dizer. Mas se cada vez que


alguém causar um problema, for transferido, até o final do ano, ele
terá causado problemas em vinte estabelecimentos...Portanto, pre-
cisamos ter calma...Você precisa ser paciente...Eu preciso ser pa-
ciente.Vamos unir forças para trabalhar esses companheiros...Você
deve entender que hoje precisamos cuidar dos nossos recrutas e
não os enviar para um tour pelo país...(2008, p. 252)

Por que dedicar algum tempo à vida do irmão Jean-Baptiste?


Muitos dos comentários e adjetivos usados para descrever Jean-Baptiste
poderiam ser usados (e foram usados) para descrever Marcelino.

Em sua Circular de 8 de abril de 1872, o Irmão Louis-Marie, SG,


escreveu que

o Venerado Fundador deve sua presença contínua trinta e dois anos


após sua morte” a um Assistente que “continuou e aperfeiçoou seu
trabalho... Ele não é como um segundo Fundador para nós? (Cir-
cular,Vol. IV, p. 250)

O Irmão Jean-Baptiste tinha “uma missão muito especial no Instituto


- a de estabilizá-lo e completá-lo” (Circular,Vol. IV, p. 279).

Para entender como Marcelino se desenvolveu e influenciou os


outros, basta olhar para a vida e a obra do irmão Jean-Baptiste.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Construindo laços
Essa competência consiste em trabalhar para construir ou
manter relações amigáveis, recíprocas e calorosas com as pessoas.
Construir vínculos significa desenvolver e manter bons relacionamentos,
como aqueles dentro de uma família. A pessoa que possui essa com-
petência nutre relacionamentos relacionados a atividades ou projetos e tem
uma rede ampla e informal de colegas.

Marcelino, através de suas visitas pessoais, suas cartas e conferências,


foi capaz de “construir laços” entre uma grande variedade de pessoas, es-
pecialmente seus irmãos. Embora Marcelino tivesse uma “aparência impo-
nente” para o Irmão Sylvestre, isso “não o impediu de ser alegre... e durante os
períodos de recreação, ele sempre teve algumas observações espirituosas para divertir”
os Irmãos. Sylvestre continua dizendo que “mais do que isso, ele nos ensi-
nou e nos fez jogar alguns jogos muito agradáveis e inofensivos”. Ele nem
mesmo se importou em participar (Sylvestre, 1992, p.17). Para o irmão
Jean-Baptiste, “nenhum pai jamais amou seus filhos com mais ternura do que o
Padre Champagnat amou todos os seus irmãos” (Furet, 1989, p. 426).

Marcelino também fez trabalho manual com os Irmãos, mesmo


quando isso era visto por muitos líderes eclesiásticos como inferior à dig-
nidade do estado sacerdotal. O Irmão Laurent (1842) lembrava que foi

... ele quem construiu toda a obra de nossa casa em La


Valla... Como nunca tínhamos sido treinados como construto-
res, era necessário nos explicar cada tarefa e frequentemente ele
tinha que refazer nosso trabalho. Quando havia algumas pedras
grandes para carregar, era sempre ele mesmo quem as carregava.
Era preciso que dois de nós as colocássemos nas suas costas. Ele
nunca se zangava com nossa inépcia no trabalho. É verdade que
estávamos cheios de boa vontade, mas éramos muito desajeitados,
especialmente eu... Quando chegava a noite, suas roupas estavam

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VOZES MARISTAS

frequentemente rasgadas, e ele estava coberto de suor e poeira. Ele


nunca estava mais feliz do que quando tinha trabalhado muito e
por muito tempo. (Green, 2007, p. 2)

De fato, uma das razões para sua aceitação pelos irmãos, para o res-
peito que lhe demonstraram, para a confiança que depositaram nele, é que
ele conquistou seu amor mostrando amor - construindo relações com eles.

Em suas cartas, o afeto de Marcelino por seus irmãos é bastante


evidente:

“... Não esqueça de dizer a todos os irmãos o quanto os amo, e o


quanto sofro por estar longe deles...” 57
“...Você nunca deve duvidar do meu apreço por você. Eu nunca
vou ao altar sagrado sem
Rezar por você...”58
“...Eu vos abraço nos corações de Jesus e Maria...”59
“...Meu caro amigo, diga ao irmão Sylvestre o quanto eu o amo...”60
“...dou a todos vocês uma garantia do terno afeto com o qual...61
“...Estou de coração partido por saber que você está doente”...62
“...Enquanto espero o prazer de abraçá-lo...”63
“...Você sabe, querido irmão, que o amo e sou inteiramente devo-
tado a você em Jesus Cristo;
saiba o quanto você é querido para mim e o quanto sou afetado
por todas as suas dificuldades”...
“Carissimi, muito amados, meus queridos irmãos...”64
“Eu os considero a todos como meus queridos filhos em Jesus e
Maria e os levo com todo o meu afeto em meu coração...”65
“Eu os carrego todos muito profundamente no meu coração...”66
“Eu também tenho muito amor ao Irmão Appollinaire, ao Irmão
Nizier...”67
“Diga-lhe que lhe quero bem de todo o coração...”68

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Somente nas quinze “cartas de Paris” de Marcelino a François


(1838), trinta Irmãos são mencionados pelo nome, e dez desses Irmãos são
mencionados mais de uma vez. Em sua correspondência com os Irmãos
Diretores, Marcelino insiste:

“Diga a seus irmãos que os amo como a meus próprios filhos; que
penso neles com frequência e constantemente, rezo por eles”. E, a
uma comunidade pouco antes de visitá-los, “estou ansioso para ir
vê-los e poder abraçá-los aos dois...69

Cada uma de suas Circulares fala da caridade, que, para Marcelino,


era a marca registrada de uma família religiosa. Nelas se expressa o afeto de
Marcelino por todos os Irmãos. Em janeiro de 1836, ele escreveu:

Muito queridos irmãos, recordo vocês de coração todos os dias


e os apresento ao Senhor no altar sagrado; mas hoje não posso
resistir à grata satisfação de expressar a vocês meus sentimentos
afetuosos e de mostrar-lhes meu carinho paterno. Apreciados e
bem-amados, vocês são constantemente o objeto especial de mi-
nha afetuosa preocupação. Todos os meus desejos e votos são para
sua felicidade.70

Marcelino queria que a caridade e a unidade fossem primordiais


entre seus irmãos. Para ele, era uma forma de construir a “família”. Este
sentimento aparece evidente em seu Testamento Espiritual:

... Queridos irmãos, eu vos imploro com todo o amor do meu


coração, e por todo o amor que me tendes, mantende sempre viva
entre vós a caridade de Cristo. Amai-vos uns aos outros como Jesus
Cristo vos amou. Tenham um só coração e um mesmo espírito.
Que o mundo diga dos Pequenos Irmãos de Maria, o que eles
disseram dos primeiros cristãos: “Vejam como eles se amam.” Esse
é o desejo do meu coração e meu desejo ardente, neste último mo-
mento de minha vida. Sim, meus queridos irmãos, escutem estas

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VOZES MARISTAS

últimas palavras de vosso Pai, que são as do nosso Bem-aventurado


Salvador: ‘Amai-vos uns aos outros!71

Marcelino não se limitou a mostrar seu afeto apenas com palavras;


ele deu provas práticas disso pelo que fez. O Irmão Sylvestre conta uma
história sobre um postulante, que em seu leito de morte, queria ser rece-
bido como Irmão:

O bom Pai, que reconheceu o grande desejo que o postulante


tinha de se tornar um irmão, não queria que ele levasse essa pena
para a sepultura. Por isso, depois de ter-lhe dado os Últimos Sacra-
mentos, ele trouxe o manto de um Irmão, abençoou-o, colocou-o
ele mesmo sobre a cama do postulante moribundo e disse: “Meu
caro amigo, eu o recebo, a partir deste instante, como membro da
Congregação, e como marca de sua admissão, receba este manto
no lugar do santo hábito que você tão ardentemente deseja vestir.
(Green, 2007, p. 86)

Foi desta forma que Marcelino foi capaz de forjar uma família
religiosa. Com os laços construídos, Marcelino e seus irmãos colaboraram
para proporcionar uma educação cristã aos pobres.

Marcelino foi capaz de reunir as em torno de si para realizar as


tarefas que tinha em mãos e foi capaz de construir um forte sentimento
de pertença, levando outros a sentirem-se parte de algo maior do que eles
mesmos. E embora se deva notar que a estrutura de governo do Instituto
era centralizada, parece que Marcelino gostava de compartilhar responsa-
bilidades e de valorizar as capacidades dos outros para que “a vontade de
Deus” e “a obra de Maria” fossem realizadas.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Conclusão
Concluímos onde começamos, com uma reflexão do Irmão Jean-
-Baptiste sobre Marcelino:

O Padre Champagnat deve muito no sucesso de seu ministério e


na fundação de seu Instituto, ao seu caráter brilhante, aberto, ami-
gável e atencioso, e à sua capacidade de resolver situações de con-
flito. Uma afabilidade natural, uma franqueza e uma impressão de
bondade irradiadas de seu rosto, conquistavam todos os corações
e predispunham as mentes para aceitar sem dificuldade e mesmo
com prazer, suas opiniões, suas instruções e suas repreensões... (Fu-
ret, 1989, p. 266)

A liderança de Marcelino estava enraizada em suas interações com


os outros e em sua sensibilidade aos sentimentos, temperamentos e moti-
vações dos outros... em suma, estava em sua capacidade de compreender
os detalhes muito reais das relações humanas. Ele tinha a capacidade de
“ler” situações, de compreender o contexto social que influencia
o comportamento, de formar e desenvolver os outros, capacidade
de inspirar. Marcelino foi capaz de escolher estratégias que levariam ao
cumprimento de seu objetivo principal: proporcionar uma educação cristã
às crianças pobres.

Como um líder servidor, Marcelino foi “primeiro um servo”, fo-


cado nas necessidades dos outros antes mesmo de considerar as suas pró-
prias necessidades. Ele reconheceu os pontos de vista de outras pessoas,
deu-lhes o apoio necessário para atingir seus objetivos ministeriais e pes-
soais, envolveu-os nas decisões quando apropriado e construiu um senso
de comunidade dentro do recém-criado Instituto. Sua interação com
todos aqueles que encontrou levou a um maior engajamento, mais
confiança e relações mais fortes com os outros. Isso também o
levou a uma capacidade de inovar.

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VOZES MARISTAS

Através de algumas de suas correspondências e das recordações


daqueles que o conheciam bem, vemos Marcelino como calmo, sereno,
aberto, constante e corajoso. Ciente de suas próprias limitações, ele era
dotado de uma profunda inteligência no sentido prático, e estava extre-
mamente confiante em suas convicções. Marcelino sempre esperava que a
qualidade que definiria seus “Irmãozinhos de Maria” fosse a simplicidade
e, em muitos aspectos, essa qualidade caracterizava Marcelino. Para ele, a
simplicidade era franqueza nas relações com os outros, entusiasmo pelo
trabalho assumido e uma confiança descomplicada em seu Deus.
Ele compartilhou essa qualidade com seus irmãos, que ele esperava se tor-
nassem como uma verdadeira família.

Vimos que Marcelino era verdadeiramente talentoso nas re-


lações humanas; seu senso comum e sua compaixão fizeram dele um
confessor popular ao longo de sua vida. Ele era capaz de se comunicar
eficazmente e de empatizar facilmente com os outros. No entanto,
sabemos por nossa história marista que Marcelino não era um homem
para escrever tratados espirituais, mas era um homem de determinação
e ação, um homem de coração e afeto. Sua ênfase estava no coração
e nos relacionamentos - tanto com Deus quanto com outras pessoas. Essa
era e é a chave de nossa herança espiritual e de nossa pedagogia marista.
Foi com esse coração e afeto... para os jovens da França rural e para
aqueles que os ensinariam... que Marcelino conseguiu fazer o que muitos
pensavam ser impossível. Estas qualidades de liderança de Marcelino - “seu
caráter aberto, amistoso e atencioso... sua despretensiosa afabilidade, sua
simplicidade e expressão de bondade” - lhe permitiram construir o reino
de Deus em seu tempo e circunstância; que seu testemunho e seu estilo
de liderança sejam um guia inspirador para todos os que nos chamamos
“maristas”.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


Marcelino Champagnat, um modelo de liderança de serviço

A essência da liderança de serviço é um elemento transversal, pre-


sente implícita ou explicitamente, em todas as áreas que impactam a vida
e a missão maristas e, portanto, é um componente fundacional do carisma
de São Marcelino Champagnat. Abaixo estão algumas perguntas que pode-
riam ajudar em suas reflexões como líder servidor marista:

Escuta e Empatia

• Será que escuto ativa e receptivamente o que os outros têm a dizer,


mesmo quando discordam de mim?
• Eu realmente me preocupo com o bem-estar das pessoas que traba-
lham comigo?

Cura

• Promovo tolerância, gentileza e honestidade na missão?


• Eu invisto bastante tempo e energia para ajudar os outros a superar suas
fraquezas e desenvolver seu potencial?

Conscientização e Autoconscientização

• Tenho coragem de assumir total responsabilidade por meus erros e


reconhecer minhas próprias limitações?
• Tenho coragem e determinação para fazer o que é certo, apesar da
dificuldade ou oposição?

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VOZES MARISTAS

Persuasão

• Sou capaz de reunir as pessoas ao meu redor e inspirá-las a atingir um


objetivo comum?
• Eu tenho um coração aberto para servir aos outros?

Conceptualização, Prospecção e Governança

• Sou capaz de apresentar uma visão que é prontamente e entusiastica-


mente abraçada por outros?
• Minha liderança é baseada em um forte senso de missão?

Compromisso com o Crescimento das Pessoas e Construção da


Comunidade

• Para inspirar o espírito de equipe, eu comunico entusiasmo e confian-


ça?
• Concedo a todos os meus colaboradores uma quantidade justa de res-
ponsabilidade e latitude na execução de suas tarefas?
• Crio um clima de confiança e abertura para facilitar a participação na
tomada de decisões?
• Delego constantemente a responsabilidade aos outros e os capacito a
fazer seu trabalho?


REFERÊNCIAS

Amphiloque. (2008). Ensaio inédito. (Como relatado na palestra do Irmão


Alain Delorme de 19 de abril de 2008, Patrimony Course 2008).
Balko, A. (maio de 1994). Father Champagnat and Confidence. Marist No-
tebooks, n. 5, pp.22-38. Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.

342

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Bilon, B. (Irmão. Avit) (1884). Abrégé des Annales de Frère Avit (AA). Casa
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Coste, J. (S.M.), and Lessard, G. (S.M.), (1985). Origines Maristes: Extraits
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Coste, J. (S.M.), and Lessard, G. (S.M.). (1985). Origines Maristes (OM): Ex-
traits concernant les Frères Maristes. III, doc. 861.8. Casa Generalizia
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Delorme, A. (2008, April 18). Handout on Brother Jean-Baptiste Furet. Patri-
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Duplay, J. L..Testimony. In Avit, Fr. (1884). Annals of the Institute, #205. Casa
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Farrell, S. K. (1984). Achievements from the Depths. A critical historical survey of
the life of Marcellin Champagnat 1789-1840. Marist Brothers of the
Schools.
Furet, J. B. (1989). Life of blessed Marcellin Champagnat 1789-1840. (Bicen-
tenary Edition). General House.
Green, M. (ed.) (2007). The Memoirs of little Brother Sylvestre. Marist Publi-
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reflexões editadas por M. Green).
Greenleaf, R. K. (2002, Edição de aniversário de 25 anos). Servant Lea-
dership: A journey into the nature of legitimate power and greatness.
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Laurent, Brother. (1842). Memoirs.


Marist Brothers. (1937). Rule of 1837. Marist Brothers Institute.
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Sester, P. (ed.). (1990, junho). M. Champagnat’s Resolutions. Marist Note-
books, (1). Casa Generalizia dei Fratelli Maristi.
Sester, P. (ed.). (1991). Letters of Marcellin J.B. Champagnat:Texts. Vol. 1. Casa
Generalizia dei Fratelli Maristi. (L.Voegtle, Trans.)
Sester, P. (ed.). (1991). Letters of Marcellin J.B. Champagnat: References. Vol. 2.
Casa Generalizia dei Fratelli Maristi. (L.Voegtle, Trans.)
Sester, P. (ed.). (1993). Annals of the Institute. (Vol. 1). Casa Generalizia dei
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Sylvestre, Brother. (1992). Raconte Marcellin Champagnat, (Como apresen-
tado em um folheto do Ir. Alain Delorme, em Roma, 24 de abril
de 1992, página 17).
Zind, P. (1971, outubro). L’ecolier rebelle. Voyages et Missions, n. 115. Lyon,
França.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Notas
1 Atribuído a Marcelino Champagnat...por D. Maitrepierre - OM #537. Coste, J.
(S.M.), e Lessard, G. (S.M.). Origens Maristas (OM): Extraits Concernant les Frères Maristes.
Casa Generalizia dei Fratelli Maristi; Roma, Itália, 1985).
2 Carta à Rainha Marie-Amelie, 1835-05, PS 059
3 Carta ao Rei Louis-Philippe, 1834-01-28; PS 034
4 TESTEMUNHOS SOBRE MARCELLIN CHAMPAGNAT: TESTEMU-
NHOS MENORES (Extraído de, Irmão. Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Teste-
munha da Beatificação de Marcelino Champagnat”), Irmão Callinique, página 7.
5 Carta ao irmão Barthélemy; Ampuis, Rhône; 1830-01-21; PS 014
6 Carta ao Irmão Barthélemy; Ampuis, Rhône; 1831-01-03; PS 019
7 Carta ao Padre Denis; St. Didier-sur-Rochefort, Loire; 1838-01-05, PS 168
8 Carta a François; Notre Dame de l’Hermitage; 1838-06-23; PS 197
9 Carta à Madame Marie Clermondon,Veuve Champagnat; Rozey, Marlhes, Loire;
1838-03-16; PS 180
10 Carta ao Irmão Théodoret; Ampuis, Rhône; 1838-08-12; PS 205
11 Carta a Un frère; 1839-07-20; PS 259
12 Carta ao Irmão Basin; Saint-Paul-en-Jarret, Loire; 1839-02-23; PS 244
13 Carta ao Padre Avit; Pélussin, Loire; 1839-03-10; PS 247
14 Carta ao Padre Anaclet; Saint-Didier-sur-Rochefort, Loire; 1839-03-23; PS 248
15 Carta ao Irmão Marie-Laurent, 8 de abril de 1839; PS 249
16 Carta ao Irmão Apollinaire, 4 de agosto de 1837, PS 126
17 Carta ao Irmão Cassien; Sorbiers, Loire; 1834; PS 042
18 Testemunhas sobre Marcelino Champagnat: Testemunhas menores (Extraído de,
Irmão Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Testemunha da Beatificação de Marcelino
Champagnat”), Pe. Jean Jantin, SM, Testemunho, p. 18
19 Carta ao Irmão Dominique; Charlieu, Loire; 1834-11-23; PS 049
20 Carta ao Irmão Dominique; Charlieu, Loire; 1838-12-28; PS 234
21 Atribuído a Marcelino Champagnat...por P. MAYET - OM #438. (Coste, J.
(S.M.), e Lessard, G. (S.M.). Origens Maristas (OM): Extraits Concernant les Frères Maristes.
Casa Generalizia dei Fratelli Maristi; Roma, Itália, 1985).
22 TESTEMUNHOS SOBRE MARCELLIN CHAMPAGNAT: TESTEMU-
NHOS MENORES (Extraído de, Irmão Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Teste-
munho da Beatificação de Marcelino Champagnat”), Irmão Aidan, Testemunhos, página 4.
23 Carta ao Padre Gardette, maio de 1827, PS 003. (O PS é entendido como “Car-
tas de Marcelino Champagnat”, extraídas de Letters of Marcellin Champagnat” Volume 1,
Textos, Editado pelo Irmão Paul Sester, Traduzido pelo Irmão Leonard Voegtle, Casa Gene-
ralizia Dei Fratelli Maristi, Roma, 1991).
24 Carta a Monsenhor Gaston de Pins, Administrateur apostolique de Lyon, Rhône;
1835 (Quaresma); PS 056
25 Carta ao Padre Philibert Gardette, maio de 1837, PS 003

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VOZES MARISTAS

26 Carta a Monsenhor Simon Cattet,Vicaire général de Lyon, Rhône; 1827-05; PS


004
27 Carta ao Sr. Jean Joseph Barou; Lyon, Rhône; 1827-05; PS 007
28 Carta a Monsenhor Gaston De Pins; Lyon, Rhône; 1827-05; PS 006
29 Carta a Monsenhor Bénigne Trousset d’Hericourt, Evêque d’Autun; Saône-et-
-Loire; 1839-09-13; PS 268
30 Carta a Monsenhor le Cardinal Hughes Robert Jean Charles de Latour D’Au-
vergne, Evêque d’Arras; Somme; 1840-02-11; PS 319
31 Carta a Monsenhor Louis Jacques Maurice De Bonald, Archevêque de Lyon,
Rhône; 1840-01-16; PS 314
32 Carta ao Sr. Alexandre Denis Devaux de Pleyne; Bourg-Argental, Loire; 1827; PS
008
33 Carta a M. Jean-Francois Preynat, Prefeito de Sorbiers, outubro de 1834, PS 047
34 Carta a Senhor Jean Baptiste Antoine Merlat; Sympohorien-le-Chateau, Rhône;
1831-04; PS 022
35 Carta a Louis-Philippe, Roi des Français; Paris; 1834-01-28; PS 034A-B
36 Carta para A S. M. le Reine Marie-Amelie; Paris, 1835-05; PS 059
37 Carta a Senhor Antoine Nicolas Salvandy; Paris; 1838-02-14; PS 173
38 Carta a Senhor Jean-Jacques Baude, député; Paris; 1838-11-24; PS 228
39 Carta a Mère Saint-Joseph, Supérieure des Soeurs maristes; Belley, Ain; 1832- 08;
PS 025
40 Carta ao Sr. Paul Benoit, diretor do Grand Séminaire de Montpellier; Hérault;
1838-07-16; PS 199
41 Carta a Senhor Marcellin Gerentet, Maire de Saint-Rambert-sur-Loire; LOIRE;
1838-07-27; PS 201
42 Carta ao Sr. Julien Deschal, Curé de Virelade; Gironde; 1839-09-15; PS 270
43 Carta ao Sr. Julien Deschal, Curé de Virelade; Gironde; 1839-10-21; PS 284
44 Carta a R. P. Rigaud, S.J., Supérieur de la Louvesc, Ardèche; 1837-03-21; PS 103
45 Carta a Senhor Henri Pradier, Prêtre; Le Puy, Haute-Loire; 1840-02-22; PS 323
46 Cartas de Marcelino J.B. Champagnat,Volume 1, Textos, pp 71-72 (Ver também
Cognat,Vie de Mgr. Devie, L. 1, p. 259).
47 Carta a Monsenhor Alexandre Raymond Devie, Evêque de Belley, Ain; 1833-07;
PS 028
48 Carta a Senhor Pierre Bernard Hugony, Curé à Prés-Saint-Gervais, Paris, Seine;
1840-05-03; PS 339
49 Jean Louis Duplay,Testemunho, como encontrado em Annals of the Institute #205
(cfr. Sester, 1993).
50 Carta a Monsenhor Gaston de Pins, Administrateur apostolique de Lyon, Rhône;
1835 (Quaresma); PS 056
51 Circular de 1840-02-04; PS 318
52 Carta ao Pe. François; N.D. De l’Hermitage; 1838-01-10; PS 169
53 Carta a Senhor Ferréol Douillet; La Côte-St.André, Isère; 1838-10; PS 215

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

54 TESTEMUNHOS SOBRE MARCELLIN CHAMPAGNAT: TESTEMU-


NHOS MENORES (Extraído de, Irmão Leonard Voegtle, FMS, Postulador Geral, “Teste-
munha da Beatificação de Marcelino Champagnat”), Irmão Marie-Jubin, p. 12.
55 Carta ao Irmão Barthélemy; Saint- Symphorien d’Ozon; 1831- 11- 01; PS 024
56 Carta ao Irmão Denis, PS 168.
57 Carta ao Ir. François (Gabriel Rivat); Notre Dame de l’Hermitage; 1838-06-23;
PS 197
58 Carta ao Ir. Basin; Saint-Paul-en-Jarret, Loire; 1839-02-23; PS 244
59 Carta PS 63
60 Carta PS 61
61 Carta PS 67
62 Carta PS 126
63 Carta Circular PS 62
64 Carta PS 79
65 Carta PS 19
66 Carta PS 181
67 Carta PS 36
68 Carta PS 48
69 Carta PS 20
70 Carta PS 063
71 Testamento Espiritual de Marcelino Champagnat, Arquivo Geral dos Padres Maristas,
Dossiê Champagnat, OM 417

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VOZES MARISTAS

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 19

Estilo marista de
liderança profética
e servidora: alguns
exemplos em nossa tradição
Ir. Michael Green
Província da Austrália

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VOZES MARISTAS

Voltemos no tempo a uma cena na história marista do início do


século passado. O ano é 1903, no mês de junho. O lugar é Saint-Genis-
-Laval, perto de Lyon. Um Capítulo Geral dos Irmãos acaba de aprovar
um novo conjunto de Constituições - depois de uma disputa de qua-
renta anos com as autoridades em Roma - e também reelegeu o Irmão
Théophane como Superior Geral. Ele tem 80 anos de idade, um homem
idoso. Enquanto os sinos tocam e os delegados capitulares se solenemente
seguem em procissão ao longo do claustro, em direção à grande capela da
Casa geral, cantando o Magnificat em latim - todos de batina preta, rabat e
manto - passam por entre trabalhadores apressados que transportam peças
desmontadas do grande órgão de tubos. Ao seu redor, os móveis foram
empilhados e os utensílios embalados para serem retirados. Arquivos em
papel, correspondência escrita e registros estão sendo separados para serem
queimados. É um momento de contraste e caos. Se não fosse tão trágico,
essa justaposição incongruente de serenidade e urgência seria assunto para
comédia aristocrática, paródia ao estilo de Monty Python. Mas ninguém
ria. Nuvens sinistras pairavam no ambiente.

Durante mais de trinta anos, a imposição de leis de secularização,


cada vez mais draconianas, e o veneno dos movimentos sociopolíticos a elas
associados foram apertando o cerco em torno dos Irmãos, expulsando-os
das escolas nas quais ensinavam desde a época de São Marcelino. A partir da
década de 1880, chegou-se a perder até vinte escolas por ano. Os sucessivos
Superiores Gerais - Louis-Marie, Nestor e agora Théophane – tiveram que
exercer a liderança com agilidade, mas sem pânico, em meio a essa situação
em constante deterioração. Eles tinham transferido os Irmãos das escolas
nos municípios, para estabelecer novas escolas privadas, e foram criativos
para encontrar a maneira de catequisar e de viver a vida religiosa. Mas agora
a espada de Dámocles havia finalmente caído: com apenas algumas semanas
para lidar com ela, eles estavam sendo expulsos da França. Uma fábrica de
seda abandonada e queimada, situada sobre a fronteira italiana, perto de
Turim, foi espaço adquirido para transladar a administração geral. Em 3 de
julho, o Superior Geral octogenário despediu-se de sua pátria, para nunca

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

mais colocar os pés nela. Importantes decisões precisavam ser por ele toma-
das. A liderança precisava ser exercida.

A liderança, especialmente a profética ou servidora, raramente


ocorre em circunstâncias suscitadas ou almejadas pelo líder. Podemos ima-
ginar que Théophane teria desejado que o contexto fosse bem diferente.
Com formação teológica, culto e inteligente, um administrador eficiente
e visionário, e um pedagogo de renome, com várias publicações sobre o
assunto, tanto em suas Circulares quanto em uma série de livros didáticos
escolares, ele estava muito bem capacitado para liderar um instituto inter-
nacional em expansão dedicado ao ensino. Ele havia viajado muito, visitan-
do pessoalmente as magníficas novas escolas maristas, que estavam sendo
planejadas e construídas em toda a França e em outros países como Canadá,
Espanha, Brasil, México, China e Austrália. Novas Províncias foram esta-
belecidas. Iniciou-se um programa de segundo noviciado. Foi introduzida,
com sucesso, a causa da beatificação do Padre Champagnat. Contudo, o
caráter da liderança de Théophane seria medido por sua resposta a outros
desafios. Em um Instituto, cuja identidade ainda era bastante franco-cên-
trica, Théophane precisava administrar o súbito fechamento de mais de
quatrocentas escolas maristas na França, bem como a diminuição de Irmãos
franceses. Em três anos, mais de mil deles se haviam “secularizado” e muitos
haviam deixado o Instituto.

Para compreender sua resposta, é necessário olhar para sua pessoa


e para a forma como ele foi formado enquanto marista. Como o Irmão
Louis-Marie, o Irmão Théophane havia iniciado seu itinerário formativo
marista sob a amável e profundamente espiritual orientação de um Irmão
que foi mestre de noviços, em l’Hermitage, por mais de um quarto de sé-
culo. Um homem que o próprio Marcelino havia mencionado e descrito
como “um santo”. O Irmão Boaventura foi uma pessoa profundamente
mística, conhecida por sua alegria contagiante, sua inesgotável bondade e
por sua vida de íntima contemplação. Ele estava próximo de Deus. Tinha
o dom de inspirar, em seus noviços, um prazer irresistível em suas vidas
espirituais, e um sentido de confiança inabalável em Deus. Enquanto o Ir.

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VOZES MARISTAS

Théophane conduzia aquela procissão cantante, em Saint-Genis, em 1903,


e o mundo marista parecia estar desmoronando, não era um ato de uma
pessoa isolada da realidade, do que estava acontecendo, ou que a negava.
Era, sim, em quem Théophane se havia tornado como marista. Podemos
especular, mas com confiança, que as palavras do Salmo 46 encheram seu
coração: “Rendei-vos e reconhecei que eu sou Deus”.

É claro, nisso é onde qualquer profeta precisa começar: para estar


em Deus e pertencer-lhe. A liderança profética, em seu conjunto, é fruto da
vida interior de cada um. É agir e falar de maneiras que se alinhem com a
forma como foi cuidadosamente discernida a vontade de Deus. E saber que
essa vontade deve ser essencialmente esperançosa. Os profetas sabem disso
no âmago de seus corações. O canto deles é sempre o Magnificat.

O ano de 1826 - talvez o mais crucial no itinerário espiritual


de Marcelino - foi moldado pelo mesmo imperativo, quando teve que
aprender a confiar em Deus diante da aparente aniquilação: sua própria
doença grave, demissões e deserções de alguns dos membros mais pro-
missores, dívidas crescentes, antagonismo diocesano e oposições internas,
traição dolorosa. Foi depois desta verdadeira experiência de “noite escura
da alma”, já decorridos dez anos como sacerdote, que vemos Marcelino
começar a citar as palavras do Salmo 126(127): Nisi Dominus ... Foi um
grande aprendizado para ele, um desafio fundamental para sua própria au-
toconfiança. Marcelino era um líder natural: era agradável para com todos
e as pessoas gostavam de se reunir em torno dele. Ele as inspirava, as ajudava
a se tornarem cada vez melhores. Mas para ser um líder profético, ele tinha
que aprender que seu projeto não girava em torno dele, de suas ambições
ou de suas referências de sucesso; ele não era o centro. O centro era a ação
de Deus, e esta aconteceria quando Ele a olhasse e do modo como Ele a
quisesse.

Marcelino escolhia líderes e influenciadores entre aqueles nos


quais ele percebia atitudes e profundidade espiritual semelhantes a ele, em-
bora tivessem personalidade e qualidades humanas muito diferentes. Bo-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

naventure foi um deles; Louis, Jean-Baptiste e Louis-Marie foram outros.


E, é claro, o Irmão François. Atualmente, ao ler seus escritos, ficaremos
impressionados não só pelo seu extraordinário conhecimento das Escritu-
ras e dos mestres espirituais, mas também por sua sincera intimidade com
Jesus. A circular de quatro partes do Irmão François, sobre o “Espírito de
Fé”, na qual ele tenta descrever a essência da espiritualidade marista, é um
exemplo notável. É útil que os profetas possam escrever e falar bem, mas
é essencial que eles tenham algo que valha a pena ouvir e ler. François o
possuía. Talvez o ponto alto desta Circular seja a forma como atrai seus
leitores maristas - que ele desafia a serem, acima de tudo, discípulos de
Cristo e apaixonados pelo evangelho – a modo do coração da carta de São
Paulo aos Gálatas. Eu vivo agora, não eu, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20), e
para enfatizar, ele acrescenta, “... pensa, julga, ama, odeia e faz tudo em mim”.
Para François, a característica distintiva de um marista é permitir o que em
Gálatas se diz “que Cristo seja formado em nós” (Gl 4,19). Não há atalhos
para quem procura ser um líder profético: isso exige tempo, investimento
pessoal, estudo, tranquilidade e entrega de si.

Cada sucessor de François, como Superior Geral, foi homem do


próprio tempo e dedicado a ele. Durante os oitenta anos seguintes, até os
primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, vieram o erudito Louis-Marie
(1860-1879), o vigoroso Nestor (1880-1883), o competente Théophane
(1883-1907), o atraente e otimista Stratonique (1907-1920), e o atencio-
so e corajoso Diogène (1920-1942). Cada um enfrentou crises e desafios,
lidando com os apelos urgentes de seu próprio período. Mas todos eles
compartilharam uma coisa: a prioridade da oração pessoal e a busca da co-
erência com a ação do Espírito. “Eras difícil – escreveu o Irmão Jean-Emile
a respeito do Irmão Diogène, – chegar à capela antes dele”. Comentários
semelhantes podem ser facilmente encontrados a respeito de cada líder.
Meio século depois dele, o Irmão Basílio Rueda (1967-1985) foi reco-
nhecido como alguém “que vivia em grande intimidade com Deus”. Seu
tema mais comum, como um orientador de retiros, era a “contemplação”.
Em uma entrevista para a revista espanhola Religiosos de Hoy, ele explicou
que, “quando se escuta atentamente a Palavra de Deus, cria-se um diálogo

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VOZES MARISTAS

íntimo. Este diálogo alimenta um desejo ardente de proclamar com a pró-


pria vida que Deus é vida”. Em sua Circular sobre a “Obediência”, Basílio
focalizou essa ideia de forma mais teológica: “Cada um de nós, com efeito,
carrega dentro de si um grande mistério: Jesus Cristo é eu mesmo, e eu
mesmo sou Jesus Cristo”. Poderia ter sido François a escrever estas linhas.
Basílio ocupou um lugar na linha de Superiores Gerais como uma pessoa
de grande profundidade espiritual e intimidade com Jesus; somente por
essa razão, qualquer um deles poderia ser chamado de profético.

Todos eles enfrentaram crises existenciais de grandes proporções.


Por exemplo, depois do Irmão Théophane, que também teve que lidar
com revoltas na China, nos primeiros anos do século XX, e com as mortes
violentas de Irmãos naquele país, o Irmão Stratonique, eleito em 1907,
continuou a liderar o mundo marista em meio às lutas e contradições da
laicização na França, antes que ela e outros países se envolvessem nas vicis-
situdes da Grande Guerra. Os Irmãos se viram recrutados para os exércitos
de lados opostos, as instituições foram requisitadas para fins militares, e a
jovem e promissora província alemã entrou em colapso. O Irmão Diogène,
eleito em 1920, teve que enfrentar a espoliação de escolas e expulsões na
Turquia, a feroz secularização no México, a Grande Depressão, os horrores
da Guerra Civil Espanhola com tantos Irmãos cruelmente assassinados,
antes que o mundo se envolvesse novamente numa guerra global. A to-
mada do poder pelos comunistas na China e em Cuba, nos anos 50, com
a expulsão dos Irmãos dessas prósperas províncias, as décadas de ditaduras
militares e civis dos anos 60, em mais de vinte países da América Latina
e da África, que tinham uma presença marista, ou os conflitos religiosos e
étnicos na Nigéria, no final dessa década, e na Argélia e Ruanda nos anos
90, são exemplos que exigiram que os líderes em nível local, provincial e
internacional fossem pessoas de compreensão, resiliência, habilidade e es-
perança. Era preciso ter líderes proféticos que pudessem dar alento e gerar
uma promessa.

Além das ameaças externas, a segunda metade do século XX trou-


xe no seu bojo grandes desafios. As reorientações paradigmáticas oriundas

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

do Vaticano II - ou, talvez mais precisamente, os movimentos sociais e ecle-


siais que levaram João XXIII a convocar o Concílio - provocaram profun-
da crise de identidade e de finalidade do Instituto. A intuição do Capítulo
Geral de 1967 foi a de não eleger o candidato mais seguro e estável, que
muitos pensavam ser o próximo e mais provável Superior Geral, mas eleger
alguém que os capitulares discerniram estar mais bem preparado para con-
duzir os Maristas profeticamente, por inexplorados mares que os aguarda-
vam. O Irmão Basílio – com apenas 43 anos de idade e nunca tendo sido
provincial - foi uma escolha providencial.

Irmão Basílio tinha um plano estratégico? Para isso, talvez ele tives-
se alguns elementos rudimentares: certamente, ele tinha as Constituições ad
experimentum, redigidas pelo Capítulo, junto com vários outros documen-
tos capitulares, e prioridades indicadas. Eram publicações contemporâneas
esclarecedoras. Mas, o ponto de partida do Irmão Basílio não era impor
“roteiros de viagem” ou baixar decretos, mas sair ao encontro dos Irmãos,
escutá-los e compreender suas histórias existenciais. Em sua primeira Cir-
cular (ele escreveu catorze, algumas delas verdadeiras teses) identificou a
realidade: havia aspectos, ainda que fundamentais, concernentes à natureza
da vida consagrada e às prioridades do ministério que pareciam ser anacrô-
nicos. Eram respostas para outro tempo e outro lugar. Era preciso mudar.
Poder-se-ia dizer que não há tarefa mais complicada para um líder do que
liderar um grupo, de forma eficaz e coesa, por meio de uma mudança sig-
nificativa, para relativizar estruturas estabelecidas, mantendo todos coesos
em torno do essencial.

Nem tudo, porém, foi bem. Em 1965, da cifra máxima de Irmãos,


com quase dez mil, no final dos dois primeiros anos do Irmão Basílio, mais
Irmãos haviam deixado o Instituto do que em qualquer outro momento,
antes ou depois. Literalmente, de diversos países, haviam saído centenas de
Irmãos. As casas de formação ficaram vazias, anualmente Irmãos professos
saíam em grupo, Irmãos de meia idade se questionavam e analisavam as-
pectos das próprias vidas que eles sentiam ter-lhes sido privados a força.
Em 1985, quando ele deixou o governo ao Irmão Charles Howard, havia

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VOZES MARISTAS

mais de trinta por cento menos Irmãos do que quando ele havia tomado
as rédeas. Com nenhum Superior Geral havia acontecido algo semelhante;
mesmo no final dos generalatos dos Irmãos Théophane e Stratonique, em
que o número total havia aumentado.

Mesmo assim, Irmão Basílio, tanto na época quanto depois, foi


reconhecido dentro do Instituto e em toda a Igreja - como um dos princi-
pais profetas do período pós-Conciliar. A obra é de Deus, acontece quando
Ele olha para ela e da forma como Ele a quer. Uma das caraterísticas de
sua liderança era reunir-se com todos os Irmãos e com cada um individu-
almente. Ele se fazia presente no âmbito pessoal deles, em sua realidade, e
falava com cada um de irmão para irmão. Dialogava com eles em linguajar
realista (suas conversas de noite se tornaram lendárias), sondava-os ampla-
mente, anotava, analisava e sintetizava. E punha tudo na oração. Ele respon-
dia a cada carta individualmente – foram mais de 50.000 cartas! Transmitia
ao mundo marista e à Igreja em geral o que havia aprendido, e o fazia de
maneira clara e sem rodeios. Almejava por honestidade. Alguns consideram
sua última Circular, intitulada “A Fidelidade” e publicada em 1984, como
a melhor delas, na qual ele refletia sobre o que tinha acontecido a partir de
1967. O título capta algo essencial do Divino – a “hesed” de Deus, revelada
nas Sagradas Escrituras – que o Irmão Basílio sabia, em primeira mão, estar
viva no Instituto e ele a celebrava.

Cada Superior Geral descobriu que abraçar o próprio momento


presente e seu povo é o epicentro da liderança profética. A profecia sempre
requer tempo e espaço, pessoas e contexto, o “aqui e agora”. Foi assim,
tanto para os profetas judeus de outrora como para os superiores maristas
de qualquer década, e é também para o líder marista de hoje, em todos os
níveis. Quaisquer que sejam os ideais e aspirações que possam alimentar
perfeitamente o exercício do cargo, o líder profético nunca é um teórico
desconectado. É uma pessoa que se coaduna com as famosas linhas de aber-
tura da Gaudium et Spes (1965):

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje,


sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se
encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração.

O Irmão Basílio estava atento para essa questão desde o início.


Sua primeira circular, em 1968, exortava os irmãos a não se assustarem
com o mundo como ele era, muito menos a se afastarem dele. Eles deve-
riam, ao contrário, ser um “sacramento e fermento” para o mundo. Com
essas palavras, o Irmão Basílio antecipava o que os escritores, a respeito da
liderança no século XXI, poderiam nomear como “liderança distribuída”.
Ou seja, em uma comunidade ou instituição, que tem um senso de missão
compartilhada, a liderança – em nosso caso, a liderança profética – será
compartilhada ampla e profundamente entre todos. Descrever a liderança
desta forma é reconhecer que todos os membros de um grupo se influen-
ciam reciprocamente, e que o desafio é aglutinar todas essas influências, em
consonância e harmonia. No caso de uma comunidade marista, trata-se de
que seus integrantes deem vida ao Evangelho de Jesus, de maneiras reco-
nhecidamente maristas, e tendo ressonância nos outros.

Há inúmeros exemplos desta densidade marista em nossa história


e em nossas situações atuais, vividos por líderes proféticos que alcançam
“distribuir” a profecia entre todos aqueles que são atendidos e servidos
com seus ministérios. Em nível local, as escolas e projetos juvenis maristas
estão repletos disso. Podem se encontrar em lugares mais improváveis, desde
as favelas de São Paulo, por exemplo, até as ruas de Alepo, com seus “Ma-
ristas Azuis”. É um sinal de que a vida cristã se nutre, como está escrito em
Água da Rocha, que é fruto da liderança profética. Como Maria, indo com
presteza para a região montanhosa, ou Marcelino partindo sem demora
para ir atender o menino moribundo, nos flancos do Pilat, os maristas são
pessoas que não ficam no conforto e na segurança do próprio mundo, mas
proativamente saem ao encontro dos outros dentro de seu âmbito pessoal.
O líder profético não lidera a partir do detrás de uma mesa ou em final de
um e-mail.

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Às vezes, e mesmo frequentemente, é a decisão de estar presente


deste jeito que motiva um líder ao novo e ao diferente, e a responder de
maneiras que encarnem a vida cristã de formas novas e adequadas para as
circunstâncias da época. Por exemplo, na deflagração da Primeira Guerra
Mundial, o Irmão Diogène, que era então Assistente do Norte da França,
viu-se preso no imenso complexo marista de Beaucamps, que havia sido
tomado e ocupado pelo exército alemão. Ao invés de desejar que o mo-
mento, o lugar e as pessoas fossem diferentes, ele os aceitou e conquistou o
respeito e o afeto, tanto dos militares quanto da população local, tornando-
-se, de fato, o prefeito de Beaucamps. Dado o apelido - em uma combina-
ção de palavras francesas e alemãs - Le Frère Prior –, ele se colocou a serviço
de granjeiros e trabalhadores, mulheres e homens, pobres e ricos, soldados e
civis, demonstrando gentileza, tato e determinada coragem, quando era ne-
cessário. É improvável que a descrição de sua função como Assistente Geral
mencionasse alguma coisa a esse respeito. Por seus esforços, posteriormente
ele foi premiado com a Légion d’Honneur.

Uma coisa é ser profético, outra é ser um líder profético. Um líder


procura ter influência institucional e impacto cultural. Os profetas hebreus
normalmente falavam a todo o povo, e desafiavam coletivamente a co-
munidade, pois é isso que um líder faz. Assim foram os dezoito anos de
liderança do Irmão Basílio: o mundo marista, em 1985, estava em um lugar
diferente daquele em que estava em 1967. O Irmão Basílio havia inspirado
mudança cultural. A compreensão que se tinha do foco preferido para a
missão e suas prioridades para viver como religiosos, haviam sido redefini-
das. Isso permitiu, por exemplo, que em 1984, no ano anterior ao Capítulo,
os Provinciais Maristas da América Latina se reunissem em Chosica, Peru, e
optassem decididamente, enquanto grupo, para alinhar suas Províncias com
as prioridades evangelizadoras que seus bispos haviam traçado nas significa-
tivas declarações de Medellín, Colômbia (1968) e Puebla, México (1979).
Os Irmãos admitiram que, institucionalmente, haviam sido cúmplices do
“bi-classismo” que assolava a Igreja latino-americana. Três anos depois, eles
se reuniram em Cali, Colômbia, com o novo Superior Geral, Irmão Char-
les Howard, para consolidar as diretivas que haviam sido estabelecidas.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Foi uma mudança de direção não sem controvérsia ou conflito,


e difícil de ser tomada para muitos, mas os Irmãos Charles e Basílio eram
líderes que podiam impulsionar os maristas em direção à “conversão ins-
titucional” da qual se falaria em posteriores Capítulos Gerais. Além desta
grande reorientação das prioridades na missão do Instituto, os primeiros
passos estavam prontos para serem dados em direção à próxima grande
conversão institucional, de acordo com o Vaticano II: o reconhecimento de
que a espiritualidade marista não era algo restrito apenas aos Irmãos como
homens religiosos, mas um itinerário do Evangelho de Jesus que podia ser
vivido por ampla gama de pessoas: além dos Irmãos, mulheres e homens,
leigos e sacerdotes, casados e solteiros, jovens e idosos. Foi uma mudança de
paradigma. Começou com a visão do Irmão Charles, e foi crescendo em
força e profundidade durante a liderança de seus sucessores. Os primeiros
passos, incertos consistiam em amadurecer uma forma totalmente nova de
entender quem eram os Maristas de hoje, como eles poderiam compar-
tilhar a vida e o ministério em comunhão e, de fato, como eles poderiam
compartilhar a responsabilidade pelo desenvolvimento contínuo da vida e
missão maristas. Por outro lado, é claro, isso exigia um novo discernimento
sobre o significado da vida consagrada dentro de uma família carismática
marista mais ampla.

Tal liderança profética estava intrinsecamente ligada à liderança


servidora, como sempre está. A segunda não pode existir sem a primeira.
E a chave para a liderança servidora é o encontro genuíno, a união de co-
rações. É aproximar-se do outro com um espírito de genuína humildade,
não com soluções prontas, tomadas de cima para baixo, mas com disposi-
ção de escuta e mangas arregaçadas. Isto se deu com o Irmão Diogène, em
Beaucamps, na Primeira Guerra Mundial: só pelo fato de assumir a atitude
de escuta e de serviço, ele foi capaz de liderar, de forma profética, durante
aqueles anos difíceis. Décadas depois, em nível de Instituto, foi a mesma
coisa. Ao convocar os Provinciais para a Conferência geral em Veranópolis,
Brasil, em 1989 (pela primeira vez fora da Casa geral), o Ir. Charles pediu
a todos eles que fizessem uma “peregrinação de solidariedade”: passar um
tempo com companheiros maristas, em uma situação socioeconômica ma-

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terialmente pobre. Ele fez o mesmo, ao convocar o Capítulo Geral, quatro


anos mais tarde. Do mesmo modo, quando novas formas de vida marista
estavam sendo imaginadas, era essencial que os leigos, que se sentiam ma-
ristas, dialogassem com os Irmãos. Não era para os Irmãos Maristas definir
para os leigos o que significava para eles ser marista. Era preciso começar
com a escuta, e esta, ser precedida pelo respeito.

A orientação das lideranças profética e servidora é fundamental-


mente a mesma: estar abaixo e não acima. Assim como Jesus lavou os pés de
seus discípulos, sendo seu “senhor e mestre”, assim nós também devemos
fazer. Abraçar a mentalidade que foi promovida pelo bispo Tonino Bello
(1935-1993), que pedia uma “igreja do avental”, descrevendo a primei-
ra “vestição” como o avental de Jesus na Última Ceia. Ouvir e dialogar
para poder entender. Uma tradição reveladora da liderança marista, desde
a época de Marcelino, foi a escrita de cartas. Cada Irmão devia escrever a
Marcelino (e mais tarde ao Superior Geral e aos Assistentes) três vezes por
ano, sendo os Superiores obrigados a responder a cada um deles. Temos
centenas de cartas pastorais escritas pelos Irmãos François, Jean-Baptiste e
Louis-Marie - cartas de compreensão, sabedoria, respeito e encorajamento.
Infelizmente, a Santa Sé retirou essa exigência das Constituições dos Ir-
mãos porque julgava que os superiores (sendo não-ordenados) não estavam
qualificados para oferecer acompanhamento espiritual. Continuou, porém,
de um modo ou de outro. Dizia-se, por exemplo, que o Irmão Diogène
passava a maior parte de cada dia, em sua mesa de trabalho, lendo e respon-
dendo à mão a cartas de Irmãos de todas as partes do mundo, em francês,
italiano, inglês, espanhol e alemão. Já vimos a prolífica produção do Irmão
Basílio (levando em conta que ele tinha cinco secretários em tempo inte-
gral).Todo Superior Geral, desde a época de Marcelino, passa muito tempo
na estrada. À medida que o mundo marista se expandia, o tempo e o esfor-
ço investidos nas viagens também se expandiam, não para seu próprio bem,
mas para acompanhar e estar presente.

Maria é retratada nas Escrituras Lucanas como o paradigma do


profeta e servo: como Jeremias, ela estava perturbada e questionou, mas se

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

permite, com vulnerabilidade e abertura, acolher a Deus e encontrar har-


monia com a vontade dele. Ela, então, se dispõe a prestar serviço, visitando
Isabel, na casa dela. O encontro delas é de alegria e justiça. Da mesma for-
ma, o líder marista não é um prisioneiro da função nem dos livros teóricos,
e nem alguém que lidera por meio de comunicação desencarnada. O líder
marista é alguém para quem a vida dos companheiros maristas e dos jovens
é solo sagrado, onde a vontade de Deus é buscada no encontro. A credibi-
lidade do líder marista será sempre encontrada em sua disposição para ser
Maria em seu tempo e lugar, para as pessoas a quem serve.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que desafios existem, em seu contexto de liderança, para você poder
estar pessoalmente presente às pessoas de sua escola, instituição ou pro-
jeto; ser alguém que sai, como Maria, para ser pessoa de encontro, e
alguém que ‘veste o avental’?
2. A profecia consiste fundamentalmente em dar voz ou testemunho ao
pensamento e ao coração de Deus. Como você age para ser reflexo de
Deus? Como o torna integrante no ritmo de seu dia?
3. A tarefa de distribuir a própria liderança, profunda e amplamente, entre
o corpo docente e o pessoal de uma escola, instituição ou programa é
uma prioridade para um bom líder. Como líder marista, de que modo
você inspira e capacita as pessoas para que façam própria a forma de
viver o Evangelho do jeito marista?
4. Um líder eficaz nunca é alguém que oferece as respostas de ontem às
perguntas de hoje. Podemos comprovar, em nossa história marista, que
os líderes precisaram ser ágeis e atentos para liderar suas comunidades.
Quais são, na sua realidade, as necessidades educacionais e espirituais
emergentes das pessoas que exigem que você, em sua liderança, seja
criativo, esperançoso e audaz?
5. Você já se considerou, alguma vez, ser “como Maria”? O que pode
significar para você ser a figura de Maria em sua comunidade?

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VOZES MARISTAS

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Vol. XXVIII ( N.º1). Institute of the Marist Brothers. (A versão
em português pode ser acessada em: https://champagnat.org/pt/
biblioteca/?tags=cpt_circulares )
Ronzon, J. (ed.) (2010). Chronologie mariste. Institut des Frères Maristesdes
Écoles.
Spillane, J.P. (2006). Distributed leadership. San François: Jossey-Bass

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 20

A sabedoria ética e
espiritual na liderança
Ir. Luis Carlos Gutiérrez
Vigário-Geral

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VOZES MARISTAS

A busca da grandeza da mente


Arregaçou as mangas e, com determinação,
cortou a rocha e edificou a casa de l’Hermitage.
Foi um líder carinhoso sem deixar de ser reto,
firme e equânime. (RV, 84)

O Dicionário Oxford (2021) define “ânimo” como a capacidade


humana de experimentar emoções e afetos, e de compreender; a força ou
energia para fazer, resolver ou empreender alguma coisa; ou a intenção de
fazer ou alcançar algo; disposição mental ou psíquica de alguém. É usado
para infundir força ou energia a alguém ou para exortá-lo a fazer algo difí-
cil. É a partir desse “ânimo” que vamos refletir durante este ensaio, particu-
larmente em dois de seus componentes, ética e espiritualidade.

Marcelino Champagnat foi uma pessoa de estatura moral e espi-


ritual, capaz de inspirar nos outros novos horizontes de serviço. Sem pre-
tender idealizar sua figura, reconhecemos sua extraordinária grandeza de
ânimo. Ele era um santo muito humano e um humano muito santo. Com
sua atitude vital - de olhos e coração abertos - e com sua fé profunda, ele
olhou para o mundo, em particular para seus vizinhos, a fim de responder
às circunstâncias da pobreza e da ignorância educacional e religiosa, parti-
cularmente entre crianças e jovens. Ele se libertou de várias prerrogativas
e formas que rodeavam a vida sacerdotal, para criar uma comunidade com
visão de futuro. Ele se colocou à frente como aquele que ama e serve. Nisso
ele entregou sua vida, enquanto generosamente buscava o bem dos outros
e lutava para realizar seu trabalho, nadando contra a maré. Ele sempre teve
um profundo senso de Deus e uma consciência constante da presença de
Maria.

A admiração que provoca entre os seus, se reflete na descrição feita


pelo Irmão João Batista Furet:

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

O Pe. Champagnat era de estatura alta, aprumada e majestosa; tinha


fronte larga, traços fisionômicos bem-definidos, tez morena, aparência grave,
comedida e séria. Inspirava respeito e, muitas vezes, ao primeiro encontro,
timidez e receio. Bastavam, porém, alguns instantes de contato com ele para
que tais sentimentos se esvaíssem, substituídos pela confiança e pelo amor.
Sob formas um tanto rudes e um exterior que manifestava algo de severo,
ocultava caráter invejável. Tinha espírito de retidão, discernimento seguro
e profundo, coração bom e sensível, sentimentos nobres e elevados. Era de
caráter alegre, expansivo, franco, firme, corajoso, ardoroso, constante e equâ-
nime. (Furet, 1856/1989, p.251)

A partir dessa descrição, podemos traçar características importan-


tes, que não são as únicas, da dimensão ética de sua liderança: retidão, bom
senso, olhar profundo, bondade, sensibilidade, nobreza de coração e senti-
mentos elevados. E de seu caráter, da mesma forma, destacamos a abertura,
sinceridade, firmeza, entusiasmo, ardor, tenacidade e equanimidade.

Esses traços pessoais do Fundador vivem em nossa visão de lide-


rança marista e fazem parte do nosso DNA. Cada um de nós, com nossa
própria personalidade e características, aspira a viver uma liderança que, ao
mesmo tempo, esteja profundamente ligada a essa identidade comum e que
nos permita expressar nossa própria singularidade.

Max Scheler dizia que “o santo está autenticamente presente em


seus discípulos e realmente vive neles”. Quem sente o chamado
para liderar deve ter perspectiva suficiente para saber, em todos os
momentos, que, acima dos seus próprios fracassos ou dos fracassos
dos outros, é possível alcançar essa grandeza de ânimo sem a qual
não há liderança possível. (Sonnenfeld, 2021, pos. 100)

Buscando a grandeza de ânimo, entende-se corretamente que a


ética está no coração da liderança (Ciulla, 2004), assim como da espiritua-
lidade. Ambas são boas e necessárias companheiras para poder liderar com
sabedoria, justiça e visão; ter maior autoconsciência e direcionamento, e

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VOZES MARISTAS

agir com discernimento, profetismo, compaixão e inteligência. São bússolas,


em suma, que guiam o porquê, o para que e o como, presentes nos diferentes
processos de liderança e de sua dinâmica.

A ética serve para “dar razão”, sustentar e endossar o próprio có-


digo de conduta que, resumido, poderia se concentrar nessas duas ques-
tões: Por que acreditamos no que acreditamos? E por que fazemos o que
fazemos? (Cortina & Martínez, 1996). Essas mesmas perguntas podem ser
respondidas pela espiritualidade.

Ética e espiritualidade fortalecem a identidade pessoal, comunitá-


ria, institucional e organizacional. Ambas ajudam a desenvolver uma práxis
coerente e precisa, e interagem para inspirar e orientar nosso “modo” de
dirigir, animar ou governar. (Anderson & Sun, 2017). Ambas nos ajudam a
“habitar” no nosso espaço e tempo.

Como maristas, temos uma identidade “moral”, ou seja, um con-


junto de valores compartilhados que nos definem. No centro desse código
moral estão a simplicidade, a humildade e a modéstia, o espírito de família
e de fraternidade, o espírito de trabalho e o senso de missão. Esse DNA
identitário também é composto por um amor especial pelos pobres e ne-
cessitados, amor por todos e a todos igualmente, o cuidado integral das
crianças, a paixão por uma missão sem fronteiras em “todas as dioceses do
mundo”, e as chamadas “pequenas virtudes”.Todas essas atitudes moldam a
forma como agimos; permeiam, junto com muitos outros aspectos, a forma
de “ser marista” e nossa maneira particular de agir. Alcançamos exercer
uma liderança marista autêntica se conseguirmos integrar esses atributos
em nossa prática diária. Portanto, a grandeza do ânimo residirá em um
amadurecimento progressivo desse “ethos” e de sua respectiva evolução
“espiritual”.

Será bom perguntar: Para mim, em que consiste a grandeza de


ânimo? Em que isso corresponde ao exemplo de Champagnat? Que outros
valores eu enfatizo?

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

O cuidado dos “sentimentos nobres”


Há crescimento quando se tem paixão e compromisso com algo
que é significativo, vital ou relevante; com algo que inspira e cativa, que
é bom, justo e nobre. É o que o professor acredita quando aspira dar aos
seus alunos formação e sabedoria; contribuir para seu caráter; mostrar-lhes
como se preparar e alcançar uma existência plena e feliz. É isso que o jovem
líder busca quando transmite paixão apostólica nas experiências significa-
tivas de fé e de serviço. É o que o diretor da escola faz, quando trabalha
lado a lado com seus colegas, para desenvolver melhorias e inovações em
benefício de sua escola ou comunidade circundante. É o superior ou líder
de uma comunidade, uma fraternidade ou uma associação, quando procura
assistir e ajudar seus irmãos ou irmãs da melhor maneira. Em todas essas
experiências, há paixão e vocação. Nelas, liderar significa ter a possibilidade
de inspirar, primeiro a si mesmo, e depois aos outros; vislumbrar horizon-
tes do presente e do futuro; e viver valores pelos quais vale a pena dar o
tempo e própria vida. Esses sentimentos nobres, com suas escolhas, fazem
a diferença.

Isso é particularmente válido se houver uma conexão profunda


entre o próprio ser e as funções, trabalhos ou papéis que são desempenha-
dos. A harmonia interna permite que se viva, valorize e, se possível, desfrute
do trabalho ou função. Se isso não acontecer, é difícil encarar o dia a dia.
Quando isso acontece, somos capazes de transmitir, com a palavra e a ação,
o que é vivido internamente, aquilo que nos constitui a partir do funda-
mental e que se conecta com nosso ser autêntico, porque, como o Evange-
lho nos diz: “a boca fala do que está cheio o coração” (Lc 6, 45) e, por uma
questão de princípio, “o homem bom tira coisas boas de seu tesouro” (Mt
12, 34-35). Com essa integração e harmonia, dois dos problemas atuais de
liderança são eliminados: o medo de liderar e o cinismo (Torralba, 2021).
Um passo importante, então, será desenvolver, na medida do possível, sen-
timentos nobres integrados à liderança, que fazem a diferença e nos permi-
tem inspirar os outros a partir de nossa harmonia, sem medo e sem cinismo.

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VOZES MARISTAS

Honestamente, eu me perguntaria: Quais são os sentimentos no-


bres que me motivam na minha liderança? Onde encontro a harmonia
necessária para liderar sem medo, ou sem cinismo?

A proximidade de um “coração sensível”


Somos continuamente convidados a nos comprometermos com
o mundo e a contemplarmos a vida com os olhos e o coração de Deus.
(AR, 90)

Somos uma comunidade apostólica. Temos um imperativo ético


de transformar a realidade das crianças e jovens; promover mudanças signi-
ficativas em nosso ambiente; servir o mundo com o coração do Evangelho.
Tornamos isso possível quando vivemos com um coração sensível. A espiri-
tualidade e a ética nos ajudam a cultivar uma atitude de abertura e atenção
serena, de “olhos abertos”.

Lembremos desse pequeno gesto de Marcelino. Em 12 de agosto


de 1816, o jovem padre parou, cerca de 300 metros, ao norte da vila de
La Valla. A partir daí, contemplou, por alguns momentos, a natureza e as
casas habitadas por muitas famílias de pessoas do interior, cuja realidade ele
conhecia bem por sua própria origem. Silenciosamente, ajoelhou-se para
confiar seu ministério a Deus. Em memória daquele momento, uma “cruz
vermelha” está lá. O tempo e os anos seguintes dariam a Marcelino um
olhar penetrante, não superficial, que o moveu a viver em comunhão com
as necessidades e esperanças de seu povo. Ele se entregou aos seus cuidados
pastorais e à criação de uma congregação jovem.

Esse olhar transparente e profundo nos ajuda a entender que o


significado final de nossas ações está ligado ao bem fundamental dos ou-
tros, particularmente no que afeta seu bem-estar ou no que toca em seus
sofrimentos ou desafios vitais. Estar atento e olhar empaticamente são os
primeiros passos para dar respostas éticas e se conectar espiritualmente. Esta
profunda conexão é encontrada no Papa João XXIII. Seu olhar honesto e

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

sua naturalidade de se conectar com as pessoas, entender situações de vida


e mover o coração revelavam uma consciência e uma atitude suave, que
até hoje emocionam (João XXIII, 1962/2021). Isso lhe rendeu o título de
“Papa bom”. Contam que, um dia, depois de visitar um asilo, ele voltou
ao Vaticano. Seu secretário, no caminho, indicou-lhe a casa do editor do
L’Osservatore Romano cuja esposa estava muito doente, e perguntou se ele
poderia enviar-lhe sua bênção. O Papa rapidamente respondeu: “É difícil
enviar uma bênção pelo ar, Dom Loris. Não é melhor levá-la pessoal-
mente?” Alguns minutos depois, sem avisar, como costumava fazer, estavam
batendo à porta para estar com ela e dar-lhe sua bênção pessoalmente”
(Benito-Plaza, 2000, p. 73).

Há uma imagem que é icônica. Era a tarde de 27 de março de


2020, quando o Papa Francisco caminhando sob chuva, na Praça de São
Pedro vazia, subiu a rampa para dirigir uma súplica pela humanidade opri-
mida pela Pandemia. O silêncio e a escuridão que cobriam a Praça eram se-
melhantes à dor do mundo e da cidade de Roma. Em seu relato posterior,
ele afirmou: “Eu caminhava sozinho, pensando na solidão de tantas pesso-
as... um pensamento inclusivo, um pensamento com a cabeça e o coração,
juntos... Eu sentia tudo isso e caminhava...” (Ruiz, 2021, p. 1).

Três líderes, três situações, a mesma atitude. A partir dos exemplos


acima, fica claro que por trás dos fatos, destacam-se as pessoas que têm “um
coração sensível”, um olhar atento e empático, que se expressa em uma
atenção completa, profunda, intuitiva, inclusiva, fora do centro de si mesma,
conectada com o mundo e o planeta. Essa atenção representa uma com-
binação dos valores e atitudes de amor e solidariedade, de compromisso e
transformação, aliada à disposição espiritual de estar atento às inspirações
do Espírito, vividas no cotidiano ou no extraordinário.

Habitar o tempo contemporâneo em profundidade requer, mais


do que nunca, uma nova sensibilidade, capaz de “ver e sentir” as sérias mu-
danças e os enormes dilemas éticos e espirituais de hoje. Isso é feito a partir
da proximidade. Em um movimento triplo de “ouvir” atentamente, “com-

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VOZES MARISTAS

preender” profundamente e “propor” sabiamente, a liderança será capaz de


conectar suas ações e decisões com os principais desafios vivenciados nesta
época, em nossas sociedades, instituições e Congregação.

Uma liderança útil e profética precisa dessa conexão permanente


com a realidade interna e externa. Mantemo-nos perto para podermos ser-
vir e servir melhor. Com essa predisposição, cuidamos dos outros e avança-
mos na transformação, dois princípios fundamentais do serviço e cuja raiz
espiritual é encontrada na encarnação:

Porque é precisamente a maneira que Deus escolheu para nos sal-


var: a proximidade. Ele veio até nós, tornou-se homem. A carne:
a carne de Deus é o sinal; a carne de Deus é o sinal da verdadeira
justiça. Deus que se tornou homem como um de nós, e nós que
devemos nos tornar como os outros, como aqueles que precisam
de nossa ajuda. (Francisco, homilia 31 de outubro de 2014, p. 1)

Pergunte a si mesmo para quê


Como eles não sabem como interpretar o tempo presente?
Como vocês não sabem julgar por si mesmos o que deve ser feito?
(Lc 12, 54-59)

A liderança de serviço tem valor profético quando oferece respos-


tas significativas ao mundo contemporâneo. É a intuição do XXII Capítulo
Geral dos Irmãos Maristas (2017). Somos chamados a viajar nas caravanas
e caminhos da vida, em situações emergentes, para estender a misericórdia
de Deus e a fraternidade humana.

Vivemos numa época extraordinária em possibilidades e defici-


ências. Enfrentamos situações que não foram imaginadas e que afetam ra-
dicalmente o que será o presente e o futuro do planeta e da própria vida.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Como humanidade, parece que coexistimos em mundos paralelos


e que vivemos em épocas históricas diferentes. Ao avançar na quarta revo-
lução industrial e na era digital, com imenso potencial humano e econômi-
co para desenvolver melhorias e inovações incríveis, vemos, bem do outro
lado da rua ou a poucos quilômetros de distância, pessoas e comunidades
que vivem – ou vivemos – em condições de total precariedade, exclusão ou
pobreza. Os contrastes são tão imensos que ferem o íntimo da consciência.
Vivemos, como humanidade, uma fratura séria, da qual outras são deriva-
das, como a ecológica, social, cultural, econômica, de saúde, geopolítica,
intergeracional ou a religiosa-espiritual. O Papa Francisco (FT, n. 10-53)
mergulha no drama desta época, destacando alguns aspectos e desafios: (a)
sonhos e aspirações sociais desfeitos em pedaços, juntamente com uma re-
gressão nos êxitos e conquistas históricas; (b) o fim da consciência histórica
e do significado histórico, juntamente com novas formas de colonização
cultural; (c ) a falta de um projeto para todos, o que gera desesperança,
desconfiança, exasperação, exacerbação, polarização social, comunitária ou
familiar e arrogância; (d ) a cultura do descartável, que descarta os pobres,
deficientes e idosos, e empurra multidões de seres humanos para a miséria
e a exploração, com novas formas de pobreza, racismo e xenofobia e de
escravidão; (e) direitos humanos que não são suficientemente universais; (f
) conflito e medo que aumentam novas barreiras de autopreservação, geram
solidão, insegurança e dependência, individualismo, agressividade, desinfor-
mação, manipulação, confusão, subjugação e autodesprezo.

Há um clamor que Fratelli Tutti (2020) lança para o mundo e para


cada um de nós:

“Voltemos a promover o bem, para nós e para toda a humanidade,


e assim caminharemos juntos em direção ao crescimento genuí-
no e integral. Toda sociedade precisa garantir que os valores sejam
transmitidos, pois se isso não acontecer, disseminam-se o egoísmo,
a violência, a corrupção em suas diversas formas, a indiferença e,
em última instância, uma vida fechada a toda transcendência e fe-
chada em interesses individuais.” (n. 113)

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VOZES MARISTAS

Meditando sobre este contexto, é importante nos perguntarmos:


Por quê e para quê lideramos? Que mundo queremos transformar e como
faremos isso? Como posso fazer uma mudança real no meu círculo de in-
fluência? Que bem urgente temos que enfrentar?

Talvez, lideremos com profecia se devolvermos sonhos e aspirações


sociais, inspirarmos consciência histórica, promovermos um projeto para
todos, fomentarmos a cultura da integração, consolidarmos os direitos hu-
manos e formos construtores da comunhão e da confiança.

Certamente não se lidera no vazio. Se eu quiser um modelo de so-


ciedade diferente, eu terei de fazê-lo na minha própria escola. Se eu desejar
um modelo diferente de igreja, primeiro procurarei inspirá-lo na minha
comunidade religiosa ou cristã. Se eu construir espaços para a proteção de
direitos ou cuidados abrangentes da criação ao meu redor, estou inspirando
alunos ou funcionários a fazer o mesmo fora dos perímetros institucionais.
A liderança é responsável pelas referências éticas que gera.

Para nós, Instituto Apostólico, tudo isso é um horizonte e um desa-


fio. Nosso DNA vocacional foi projetado para fazer uma mudança na vida
das pessoas, especialmente crianças e jovens, marginalizados, comunidades e
sociedades circunvizinhas, como mencionamos acima. Sem essa convicção
interna, nossa liderança perde seu horizonte e sua força ética e profética.
Precisamos de um julgamento preciso da realidade, tanto quanto possível,
para responder como Marcelino fez.

Competência ética com “consciência justa e


julgamento profundo”.
Ter uma consciência justa é uma tarefa para toda a vida. Para al-
cançá-la, diversas qualidades são desenvolvidas, intimamente ligadas a di-
ferentes serviços, como professor, diretor ou provincial. De forma sucinta,
há três aspectos que podem ajudar nesta situação: a decisão, a práxis e a
competência ética.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Liderar é decidir, portanto, o desafio de decidir e decidir bem


acompanha a liderança. Na verdade, o momento decisivo (Rodríguez-Ma-
tos, 2001) é um ponto-chave em toda a reflexão sobre liderança. Há cir-
cunstâncias em que as decisões são tomadas com base no costume, tradição
ou hábitos. Há outros, onde se deve fazer um exercício deliberado para
acertar as opções corretas. Fatos, situações e contextos são variáveis e é fun-
damental ter um grau de discernimento, reflexão e estatura moral ou ética
para agir. Isso não é simples. Dilemas e perguntas surgem. Destas, algumas
são práticas, mas há outras que respondem a questões substantivas e são um
convite para pensar sobre o fundamental. Certamente, nos reconhecemos
ao ler essas perguntas: Diante de determinada situação, como devo deci-
dir? Que critérios devo adotar na tomada de decisão, tanto pessoal quanto
organizacional? Sou consistente na minha maneira de decidir; reflito sobre
ela? Em que me baseio quando tomo decisões? Na autoridade, no poder
ou na influência? Quais leis, protocolos, procedimentos e regras eu deveria
cumprir antes e durante a tomada de decisões? Como e com quem eu
resolvo os dilemas que me são apresentados? Tomo o tempo necessário
para refletir sobre o que faço e sobre como faço? Em que e como incluo o
discernimento espiritual na tomada de decisões?

Liderar é agir, portanto, supõe um grau de influência, autorida-


de e poder, tanto em situações formais quanto informais. Aqui abordamos
outros tipos de perguntas: Sou coerente na forma como aplico as decisões?
Que nível de compromisso alcanço com as decisões acordadas? Uso a au-
toridade, o poder ou a influência de forma correta e ética? Que motivações
ou princípios pessoais estão por trás de minhas ações? Que maneiras tenho
de gerenciar ou dirigir as pessoas? Que tipo de vigilância tenho sobre mim
mesmo, meu estilo de liderança e meus modos de agir? Que espaço tem o
discernimento e a profecia no que eu faço?

Para ambos os cenários – tomada de decisão ou práxis – é impor-


tante desenvolver a sensibilidade ética e espiritual que nos ajude, a cada dia
e com paciência, a refinar e melhorar o modo de liderar. Por isso, recente-
mente, os diversos programas de formação em liderança incluíram a cha-

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VOZES MARISTAS

mada “competência ética”, ou seja, formação em conhecimentos, procedi-


mentos e valores para a tomada de decisões, direção, desempenho e gestão
bem-sucedidas. Essa competência desenvolve maior clareza em torno de
questões morais e dilemas, e o reconhecimento de boas práticas.

García-Rincón (2021, p. 107) propõe cinco núcleos orientadores


para alcançar a competência ética, inspirados nas múltiplas inteligências de
Howard Gardner:

1. Empatia-Universalidade: Eu me coloco na situação do outro, em seu


lugar, em uma condição de empatia e significado universal. Este prin-
cípio me lembra de certa forma a máxima pedagógica marista: “Amar
a todos e a todos igualmente.”
2. Assertividade-Autocontrole: Expresso pontos de vista e valores com
segurança, clareza e autonomia, e evito violência e xingamentos.
3. Compromisso-Responsabilidade: Assumo os compromissos adquiridos
com as regras, valores, normas, protocolos, regulamentos ou contratos;
e ajo de forma responsável nas diferentes esferas de liderança.
4. Pró-socialidade-Serviço: Ajo proativamente diante dos problemas, ne-
cessidades e urgências dos outros, com foco no serviço, um sentido
generoso, benfeitor, solidário e atento.
5. Discernimento-Reflexão: Faço um discernimento adequado na to-
mada de decisões, que inclui, antes de tudo, autoconhecimento para
alcançar um grau adequado de liberdade e, em seguida, autorreflexão
sobre a liderança em torno de questões como: Por que? O que pode
acontecer? Essa é toda a verdade? Como e para quê?

A competência ética é educada e fortalecida ao longo de diferen-


tes experiências. Por isso, é importante incluí-la em cursos de formação e
atualização de liderança ou em cursos para diferentes grupos de animação
ou comunidade. Além disso, o discernimento espiritual, ao qual voltaremos
mais adiante, é usado como um processo que busca maior consciência das
inspirações do Espírito e dos apelos do Evangelho, que são fundamentais
para manter a vitalidade e a singularidade da identidade carismática marista.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Desenvolvimento de uma cultura ética


institucional
A partir da competência ética e sua formação, damos mais um pas-
so para avançar na consolidação de uma cultura ética institucional. Salomão
(1996) afirma que “toda cultura tem ética. Na realidade, é possível afirmar
que cultura é ética, o que inclui regras elementares que se aglutinam à or-
ganização e a protegem até mesmo de si própria “ (p. 48). Desenvolver ou
melhorar uma cultura ética é subir um novo degrau.

Certamente, temos uma cultura ética estabelecida que está sempre


sujeita a melhorias quando a colocamos em diálogo com a realidade emer-
gente. Durante as últimas décadas e dentro do mundo marista, conferên-
cias, workshops e treinamentos se multiplicaram para melhorar a cultura
institucional e educar o sentido ético. Hoje, temos inúmeros protocolos,
políticas e procedimentos em diferentes áreas de atuação. Um bom exem-
plo são aqueles relacionados à proteção de menores e adultos vulneráveis,
que foram desenvolvidos em todas as Unidades Administrativas (Províncias
e Distritos).

O que podemos fazer para desenvolver mais conscientemente essa


dimensão? Vamos mencionar algumas possibilidades:

1. Compartilhar e entrar em consenso com os valores, virtudes, códigos


morais e éticos dentro de nossas comunidades ou instituições maristas.
2. Facilitar experiências para esclarecer os dilemas que surgem, que po-
dem incluir ajuda especializada.
3. Consolidar a formação contínua, como mencionado quando se falou
na competência ética.
4. Promover motivação intrínseca em vez de motivação extrínseca, bem
como valores transcendentes.
5. Oferecer modelagem e mentoria que ajudem a reforçar processos e
procedimentos com base nos princípios éticos adotados.

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VOZES MARISTAS

6. Melhorar práticas com diálogos generativos em torno de situações


reais.
7. Revisar a aplicação de diretrizes, políticas, procedimentos e protocolos
éticos para cargos específicos ou gerais e introduzir melhorias.
8. Motivar constantemente e reconhecer as conquistas na aplicação e na
vivência de valores e virtudes institucionais.

Como maristas, estamos presentes em inúmeros campos de ação,


como a sala de aula, grupos de pastoral juvenil, catequese, escolas, univer-
sidades, comunidades religiosas, hospitais, casas de formação ou casas de
retiro espiritual... Em cada um deles, temos diferentes dimensões e tipos de
relacionamentos: fraterno, laboral, social, eclesial, diretivo, acadêmico, for-
mativo, espiritual. É preciso nos perguntarmos sobre os parâmetros éticos
que esclareçam, com “profundo bom senso”, esse mundo diversificado de
relacionamentos e cenários de missão, com suas características específicas
para vivê-las bem e garantir que a proteção de direitos e boas práticas sejam
asseguradas.

Como irmãos e irmãs: o “sentido de


equipe”(esprit de corps)
Mas esses sentimentos se transformavam em confiança e afeto
assim que eram tratados, porque sob esta camada um pouco empoeirada
e aparentemente severa, havia uma pessoa mais jovial escondida. (Furet,
1856/1989, p. 273)

Há uma série de TV intitulada “New Amsterdam” (David Schul-


ner, 2018). A trama se passa em um centro de saúde (Bellevue Hospital), em
Nova York. O protagonista, Dr. Max Goodwin, um jovem diretor médico,
repete esta pergunta como se fosse um leitmotiv: “Como posso ajudar?” Em
todas as situações que surgem, ao lidar com funcionários ou em um caso
particular de uma pessoa doente, ele pergunta: “Como posso ajudar?” Por
meio dessa atitude, consegue progressivamente mudar a mentalidade de

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

outros médicos e profissionais de saúde, até transformar a instituição para


responder à sua missão fundamental como hospital público. Caminhando
pelos corredores, em contato com as pessoas ou em conselhos de admi-
nistração, ele se torna um símbolo de proatividade e proximidade; oferece
visões alternativas e soluções criativas em favor do compromisso com o
paciente; resgata o valor do trabalho cooperativo e o senso de comunidade;
corre riscos para melhorar; se mostra compassivo com a dor dos outros; e
respeita as pessoas enquanto lidera. Ao longo do processo, une sua faculda-
de de medicina e muitos outros, em torno de um propósito comum e ético,
que gera um senso de intimidade, cumplicidade e equipe.

Dahlin & Schoeder (2021) destacam esses traços para fortalecer a


moral e o senso de equipe: fidelidade ao grupo e seus valores ou aspirações,
entusiasmo, motivação, lealdade, resiliência, vontade e atitudes de serviço.
Quando isso ocorre, observa-se um forte sentido horizontal que enriquece,
ajuda e perpetua uma cultura colaborativa que pode ser mantida ou au-
mentada efetiva e funcionalmente, em si mesmo e nos outros.

Pensando em Marcelino, notamos uma forte ligação entre sua li-


derança e o senso de comunidade ou equipe. Sua própria história e a dos
primeiros irmãos estão cheias de anedotas sobre o papel fundamental da
confiança baseada no afeto mútuo, que envolve a todos. Nosso Fundador
o transmite muito bem em sua correspondência, tão cheia de expressões
de afeto e detalhes de proximidade. No Testamento Espiritual (Instituto
dos Irmãos Maristas, 2021) ele expressou a profundidade de seus desejos
sobre a comunidade e cada irmão, particularmente, destacando os valores
primigênios de nossa vida. A Regra de Vida (2021) os expressa lindamente:

Irmão, na memória e no coração dos Irmãos Lourenço, Francisco,


Estanislau,
Silvestre e da primeira comunidade marista, Marcelino foi um pai
que
cuidou deles como uma mãe. (n. 84)

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VOZES MARISTAS

Como maristas, o senso de comunidade e o espírito de equipe têm


profundas ressonâncias em tudo o que fazemos, e é uma característica do
“modo” marista de liderar que se expressa em práticas concretas. É por isso
que o documento Água da Rocha (Irmãos Maristas, 2007), afirma:

As palavras irmão e irmã expressam com riqueza o estilo Marista


de relacionamento. Um irmão ou uma irmã é uma pessoa dispo-
nível, despretensiosa, sincera, gentil e respeitosa. Ser irmã ou irmão
é um jeito de relacionar-se que inspira confiança nas pessoas e lhes
dá esperança. (n. 119)

Age com nosso senso prático marista


Muitos dos processos ou experiências quando se trata de liderar
estão intimamente ligados à nossa escala de valores éticos e morais, tanto
pessoais quanto de grupo. Se analisarmos brevemente, pode-se observar
que eles fazem parte de uma certa concepção ou dimensão ética, que pode
variar de acordo com o assunto a ser considerado. Às vezes, somos lidera-
dos por princípios essenciais relativos às virtudes fundamentais ajustadas à
nossa moralidade e espiritualidade comuns; outras vezes, por conveniência
prática ou legal, em torno de certas circunstâncias; outras, pela análise das
consequências; outras, pelo nível de bem-estar, felicidade ou conforto que é
gerado; outras, porque é importante do ponto de vista espiritual. Tentamos
evitar ou eliminar discrepâncias ou, pelo menos, reduzi-las.

No dia a dia, tendemos a agir integrando essas diferentes perspec-


tivas com maior ênfase em algumas delas. Buscamos agir através de ações
que estejam em sintonia com nossos princípios, que estejam em sintonia
com nossa tradição espiritual e identitária, que busquem uma boa consequ-
ência do bem-estar ou felicidade, e que sejam legais, práticas e alcançáveis.
Dilemas sempre nos levarão não tanto a considerar o que é bom ou ruim,
certo ou errado a partir de uma perspectiva ética, mas a ter que priorizar
entre possíveis soluções positivas. Embora tenhamos um quadro estável de

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

valores, as decisões se movem dentro de situações que exigem muito diá-


logo. Trata-se de escolher bem, unindo inteligência moral com a necessária
perspicácia.

“Sejam astutos como serpentes, e simples como pombas” (Mt


10,16). Essa interpelação do Evangelho é importante para a liderança, pois
simplicidade da vida não se opõe ao uso da inteligência e capacidade neces-
sária para lidar em um mundo complexo. Na verdade, seria absurdo e nega-
cionista conviver de costas para o conhecimento, ferramentas e capacidades
existentes no século XXI, em relação à liderança e ao desenvolvimento de
organizações, sociedades, comunidades ou grupos. Isso não nos exime do
fato de que haverá situações – e aqui está a profecia – que nos obrigarão
a tomar decisões importantes e fundamentais, mesmo que sejam contradi-
tórias em relação ao costume, à tradição ou à “norma” socialmente aceita.

Círculos virtuosos
Era de caráter... firme, entusiasmado...(Furet, J.B., p. 252)

Essa característica de Champagnat, de significado psicológico e


também ético, nos permite mergulhar na reflexão sobre as virtudes da li-
derança. Para isso, podemos reconhecer a importância dessas virtudes. Para
Rebore (2001), as virtudes são entendidas como:

... qualidades que descrevem o verdadeiro centro do que uma pes-


soa é. As virtudes são flexíveis e adaptáveis ao ambiente em que
uma pessoa deve agir. Virtudes descrevem inclinações humanas e
disposições para agir de uma certa forma. As virtudes são integra-
das à vida emocional e intelectual de uma pessoa de modo que
facilitam chegar a um julgamento ético com facilidade. As virtudes
devem ser cultivadas ao longo do tempo para facilitar uma certa
forma de agir. (pp. 29-30)

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VOZES MARISTAS

Stephen Covey (1988) acrescenta que esses princípios permanen-


tes podem estar no centro da pessoa ou da organização e geram um sistema
de valores que informa e orienta as decisões.

Em nossa história marista há exemplos claros de líderes que são


modelos de diferentes virtudes por sua generosidade apostólica, sua co-
ragem, seu equilíbrio, sua sabedoria, sua honestidade, sua compaixão, sua
integridade, sua liberdade, seu compromisso com a comunidade ou a defesa
dos mais fracos. Certamente, nos vem à mente nomes concretos de pessoas
que as encarnam ou encarnaram. Cada uma enfatizou alguns aspectos par-
ticulares, desenvolvidos nas próprias vidas de uma forma diferente:

A liderança ética exige que cada pessoa esclareça o que lhe importa
na vida, o que é que a determina a tomar decisões sobre coisas que
estão ao seu alcance, e disso também dependerá a forma de se co-
municar. Dessa maneira, ela perceberá quais são seus valores prio-
ritários (hierarquia de valores) e como levará sua vida para alcançar
uma vida bem-sucedida que, a curto ou longo prazo, terá impacto
no bom desenvolvimento das capacidades operacionais das pessoas
que trabalham com ela (Sonnenfeld, 2021, pos. 208),

Lawton e Paéz (2015) realizaram um meta-estudo das virtudes


mais destacadas pelos pesquisadores. A partir dele, emergem as seguintes,
agrupadas pela semelhança:

• Integridade, que nas palavras de Bennis (2000) é a primeira qualidade


de um líder.
• Autenticidade e honestidade.
• Confiança e credibilidade.
• Humildade e perdão.
• Sabedoria.
• Prudência, justiça, força e temperança.
• Paixão, entusiasmo e coragem.
• Responsabilidade e determinação.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

• Serviço ou prestatividade e altruísmo.


• Modelagem.
• Empoderamento.
• Humor.
• Apreço pelos outros, gentileza, tolerância, compaixão e amor.

Todas têm um alto valor em nível pessoal ou de grupo. Mas quais


teriam relevância especial quando trabalhamos em equipes ou lideramos
organizações? Sobre quais seria bom colocar esforços para melhorar nossa
prática ou transformá-la? Quais são importantes destacar dentro de uma
cultura institucional? Vamos analisar brevemente as quatro que representam
um círculo virtuoso, unindo profissionalismo e capacidade de liderar: au-
tenticidade/humildade, honestidade, integridade e confiança.

A virtude da autenticidade/humildade. A definição do Di-


cionário da Academia Real Espanhola (RAE, 2021) é: “Coerente consigo
mesmo, que se mostra como é.” Essa virtude ajuda o próprio conhecimento
e reconhecimento, pessoal ou de grupo, e como líder, então, a agir de for-
ma transparente de acordo com os princípios, crenças e valores assumidos.
Refere-se à autoconsciência, autocontrole, consistência pessoal e coerência.
A autenticidade fomenta relacionamentos transparentes e cria um clima
positivo nas equipes, na comunidade ou na instituição. Tanto a autenticida-
de quanto a humildade estão relacionadas porque ambas reconhecem seus
próprios limites, dificuldades e erros ou qualidades, sucessos e conquistas.
Em cargos de gestão, onde muito ego pode ser acumulado inconsciente-
mente, essa dupla dimensão de autenticidade e humildade gera um círculo
virtuoso quando se sabe como trabalhar em equipe, se reconhece o valor
dos outros e se aceita o que se sabe ou não, nas diferentes áreas da vida ou
do trabalho. De fato, uma pessoa autêntica, profissionalmente competente
ou vocacionalmente sólida, cria um círculo de virtude que melhora seu
ambiente ao fazer “conexões” com um profundo senso de humildade e um
crescimento constante de sua autenticidade.

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VOZES MARISTAS

Intimamente ligada à autenticidade e humildade está a virtude da


honestidade, que é uma das qualidades mais reconhecidas nos líderes. Está
ligada à credibilidade pessoal e social.

A virtude da integridade. Consiste em coerência e consistência


entre ser e fazer. É viver unificadamente. A integridade das pessoas e ins-
tituições gera estabilidade e dá segurança. A aplicação de códigos, normas,
princípios e valores faz parte de um agir integral. Portanto, tem uma rela-
ção próxima com a justiça. A integridade é fundamental na liderança.

Segundo Clawson (1999), a integridade pode ser vivida em quatro


orientações essenciais: contar a verdade, manter promessas, ter equidade e
respeitar a pessoa individual. O que as pessoas apreciam é um líder corajoso
o suficiente para ser honesto mesmo em situações difíceis, auto prejudiciais
ou em suas próprias limitações ou deficiências.

A virtude da confiança está na raiz de toda liderança estável e,


sem ela, é muito complexo criar um ambiente de colaboração e serviço. É
um atributo indiscutível nas relações com e entre as pessoas. Criar, susten-
tar e consolidar a confiança torna-se um dos fatores mais significativos em
uma relação saudável, desempenhando um papel fundamental no trabalho
em equipe, melhorando a eficácia e a produtividade. (Ryan & Oestreich,
1998). A confiança em grupos, comunidades, equipes e instituições é al-
cançada, da mesma forma, quando o cuidado com as pessoas, honestidade
e integridade são demonstrados. De Pree (1997) afirma que “a confiança
cresce quando as pessoas veem os líderes traduzirem sua integridade pessoal
em fidelidade organizacional” (p. 127). Henn (2009) expressa-a em uma
declaração de grande clareza:

Pode parecer perfeitamente óbvio que essas características são be-


néficas, mas por que o fator humano é tão importante? Pela con-
fiança. O fator comum desses atributos é o elemento da confiança.
A autoconsciência é a confiança em si mesmo. Comunicação e
conexão constroem confiança pessoal entre indivíduos; e a com-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

preensão, sobre o impacto da organização na comunidade em geral,


constrói confiança com as partes interessadas, presentes e futuras.
Se considerarmos o papel da liderança em sua melhor abstração,
o trabalho mais importante de liderança é construir e manter a
confiança. (p. 102-103)

Histórias Maristas que inspiram ética e profecia


Sonnenfeld (2021) afirma, em um interessante ensaio sobre ética e
liderança que convida à introspecção:

Uma perspectiva específica da ética é a liderança, que poderíamos


definir como aprender a viver para que minha existência atinja a
plenitude a que está destinada em sua totalidade. Isso é algo que
não depende de mudanças de circunstâncias ou de quem detém
o poder. Depende de mim, do meu jeito fundamental de ser, dos
bens que me identificam, das aspirações que tenho, das possibili-
dades operacionais de que disponho, do caminho que devo seguir
para alcançar uma vida bem-sucedida. (pos. 181)

Aprender a viver plenamente, enquanto a gente serve, pode ser


expresso em seis dimensões profundamente éticas e espirituais: cuidado,
senso de responsabilidade, sustentabilidade, visão crítica, doação e justiça.

Cuidar da vida é um dos valores fundamentais do Evangelho de


Jesus e da ética cristã e um princípio comum nas grandes religiões. O res-
peito pela vida na terra, em todas as suas expressões, é encontrado na maio-
ria das culturas ancestrais. Esse cuidado é especialmente relevante quando
se trata dos menores, dos mais indefesos, dos frágeis ou dos “descartados”.

Em 14 de maio de 2019, o Irmão Ernesto e seu servo estávamos na


inauguração da placa que identifica o Instituto de San Leone Magno, em
Roma (Itália), como House of Life (Casa de Vida). Este é um reconhecimen-
to da Fundação Internacional Raoul Wallenberg (The International Raoul

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VOZES MARISTAS

Wallenberg Foundation, 2019) que honrou as ações realizadas pelo Irmão


Alessandro Di Pietro e pela Comunidade Marista durante a Segunda Guer-
ra Mundial. Bravamente e com risco de suas próprias vidas, eles esconde-
ram muitas crianças e adultos judeus perseguidos pelos nazistas e fascistas.
Anteriormente, em 16 de julho de 2001, a Comissão para a designação do
prêmio Justo entre as nações, concedeu esse título ao Irmão Alessandro. Na
ocasião, ele agradeceu esta honra conferida pelo Estado de Israel, dizendo:

Agradeço e aceito este reconhecimento, mas não como me foi


dirigido, mas como representante de todos os Irmãos do Instituto
San Leone Magno que compõem a comunidade. Na verdade, foi
uma decisão comunitária abrir as portas para 24 meninos judeus e
uma dúzia de adultos. Todos os membros da comunidade colabo-
raram, alguns de uma forma e outros de outra, mesmo sabendo que
estávamos em grande risco. (Instituto dos Irmãos Maristas, 2019,
p. 1).

O Presidente da República, Sergio Mattarella, ex-aluno do Insti-


tuto San Leone Magno, enviou uma linda mensagem aos presentes na ceri-
mônia. Em sua carta ele destacou algo que eu acho muito valioso no gesto
do Irmão Alessandro: “Ele nunca se vangloriou por seu valioso trabalho de
salvaguardar a vida humana, porque ele a considerava parte de sua missão
como homem e como religioso” (Instituto dos Irmãos Maristas, 2019, p. 1).

A liderança do Irmão Alessandro tem algo a nos dizer hoje. Men-


ciono alguns elementos:

1. O primeiro passo para ser um líder é ser uma boa pessoa.Você não pre-
cisa ser perfeito, apenas ser realmente humano. Sua pessoa, mais do que
sua posição, faz com que as decisões fundamentais, em última análise,
dependam de sua sensibilidade para com a humanidade, concretizada
em seu próximo.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

2. Você mostrará grande humildade em todas as suas ações porque o con-


siderará parte de sua “missão como homem e como religioso” (ou
como cristão ou cidadão, homem ou mulher).

3. Você escolherá cuidar da vida dos outros, mesmo que isso envolva
correr riscos, e às vezes, arriscar sua vida pelo outro. “Sabíamos que
estávamos em grande perigo.”

4. Você se sentirá chamado a fazer algo com os outros: “Todos os mem-


bros da comunidade colaboramos.” É algo muito marista. Faz parte do
nosso espírito familiar.

5. Serviço, compaixão, amor ao próximo emergirão em você como um


fundo ético e espiritual natural.

No cotidiano, manifestamos a dimensão do cuidado de múltiplas


formas, na gestão da missão e nas experiências da comunidade ou frater-
nidade. Langlois (2011) afirma que a ética do cuidado nos move mais para
uma gestão com as pessoas do que das pessoas. Ela nos inspira a nutrir e im-
pulsionar os valores de estima, lealdade e respeito mútuo. Nas organizações,
ambientes saudáveis são deliberadamente criados nas relações, e uma cultu-
ra do cuidado geral é facilitada para ajudar a alcançar o bem e o bem-estar.

Eisenbeiss (2012) conecta esse cuidado com a vida a dois valores


adicionais: o senso de responsabilidade e a orientação para a susten-
tabilidade. A visão de longo prazo é central quando pensamos em aspec-
tos atuais importantes e urgentes, como: o bem-estar global da sociedade e
do meio ambiente, o impacto de nossas decisões para as gerações futuras e
o conceito de liderança sustentável que vá além do interesse próprio.

O cuidado também inclui uma opção pela atenção pessoal, im-


portante para a liderança em termos de virtudes. O Irmão Ernesto (2020)
expressou o seguinte:

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VOZES MARISTAS

Somente aquele que cuida de seu próprio caminho interior e es-


piritual desenvolve melhor a capacidade de relações humanas sau-
dáveis e duradouras e, portanto, pode se concentrar no cuidado
com os outros. Sentir-me cuidado por Deus, pelos outros, por mim
mesmo, me faz mais capaz de colocar minha atenção nos outros.
Caso contrário, é difícil que possa dar-me generosa e livremente.
É uma melhor compreensão e implementação de “você deve amar o
próximo como a si mesmo” (Mt 22,39). (p. 37)

A antítese da ética do cuidado é a negligência à vida, aos outros e à


criação em qualquer uma de suas formas. É a atitude por trás da expressão
de Caim: “Por acaso sou o guardião do meu irmão?” (Gn 4, 9). É impor-
tante evitar alguns defeitos na gestão, como a familiaridade excessiva (que
é diferente de um senso de família como valor), especialmente quando se
reduz a liberdade na tomada de decisões ou se gira em torno de conside-
rações e preocupações muito personalistas. Quando o bem-estar pessoal
se torna o princípio central de ação, perdem-se dimensões do serviço e
se entra em uma dinâmica de “aproveitar-se” da organização para outros
propósitos diferentes, segundo Langlois (2011).

Senso crítico. É fácil encontrar no Colégio Marista Sagrado


Coração, em Joanesburgo, fotos de Nelson Mandela cumprimentando os
Irmãos da comunidade marista. Mandela era um avô “habitual” da escola
quando entrava para buscar a neta. O Irmão Joe Walton descrevia que:

... quando passava pela escola, parava para falar com todos que via,
fossem professores, faxineiros ou trabalhadores, para lhes dizer o
quanto ele se sentia feliz em vê-los. Fazia as pessoas se sentirem à
vontade consigo mesmas. Ele nunca viu a presidência como algo
que lhe dava superioridade sobre os outros, mas como uma opor-
tunidade de servi-los. Ele era um homem muito sensível que se
importava com as pessoas e que mostrava muita compaixão pelo
bem-estar de todos. Não podíamos deixar de sentir que estávamos
na presença de alguém muito espiritual, porque fazia todos se sen-
tirem bem e especiais. (Walton, 2020, p. 1)

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Mandela desempenhou um papel fundamental na inversão da or-


dem imposta pelo apartheid, um sistema político de separação racial. Ele foi
o exemplo mais claro de um movimento social, político e religioso muito
amplo. Como ele, o Irmão Jude Pieterse, provincial na época, e a comuni-
dade marista tomaram a delicada decisão de desafiar essa segregação e acei-
tar pessoas de todas as raças, mesmo quando o Estado tentou impedi-los.
“Nesta batalha, entre Igreja e Estado, o Irmão Jude desempenhou um papel
importante” (Walton, 2020; Fratelli Maristi delle Scuole, 2020). Já em 1957,
a Conferência dos Bispos sul-africanos fez a seguinte declaração:

A prática da segregação não é reconhecida em nossas igrejas, não


caracteriza nossas comunidades eclesiais, nossas escolas, nossos se-
minários, conventos, hospitais e a vida de nosso povo. À luz dos
ensinamentos de Cristo, isso não pode ser tolerado para sempre.
(Walton, 2020, p. 1)

A decisão dos Imãos de aceitar todos nos conecta ao nosso princí-


pio educacional: “Ame a todos e a todos igualmente” e expande-o com um
olhar mais amplo. Às vezes, como na África do Sul, isso significa quebrar
uma barreira legal e cultural, e superar questões tão viscerais e entrinchei-
radas como xenofobia e racismo. Essas decisões exigem caráter, convicção,
coragem e correr o risco que elas implicam. O imperativo ético e espiri-
tual abre caminho diante das circunstâncias ditadas pelos costumes ou por
qualquer forma de uso do poder que, em última análise, se torne opressão
sistemática ou exclusão constante. Nesta ocasião, amar a todos igualmente
significou garantir equidade e buscar ativamente a inclusão. Na educação,
sabemos que isso significa oferecer igualdade de oportunidades, qualidade
igual para todos.

Esta história nos mostra vários elementos éticos e espirituais que é


bom enfatizar para desenvolver uma liderança que:

1. Aponte o valor da justiça e da compaixão, particularmente diante da


desigualdade ou segregação sofrida por aqueles que estão nas periferias
geográficas ou existenciais.

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VOZES MARISTAS

2. Incentive a coragem de transformar a realidade com ações concretas e


até radicais.
3. Afirme a convicção fundamental do valor de cada pessoa humana, de
cada criança, de cada jovem, sem qualquer discriminação, como filhos
e filhas de Deus.
4. Tome a decisão de colocar todas as crianças em primeiro lugar, quais-
quer que sejam suas características, situações ou história.
5. Reafirme a proteção e o cuidado como valores fundamentais no cui-
dado de crianças e jovens, criando uma cultura proativa; e estender esse
cuidado para o resto das pessoas em seu círculo de influência.
6. Incentive um trabalho conjunto e colaborativo que leve a acordos em
prol do bem, da justiça e do desenvolvimento humano, para alcançar
um maior impacto, por meio do consenso e da organização inter e
intra eclesial, e do impacto social junto de outras entidades.

Repensando o acima, podemos mergulhar um pouco em seus sig-


nificados. Mandela, o Irmão Jude, a comunidade marista e a Igreja na África
do Sul... superaram inúmeros desafios e dificuldades, com o Evangelho em
seus corações e com um grande senso de humanidade, não sem controvér-
sias e conflitos. Essa história nos leva à orientação ética crítica, que tenta
identificar, dentro de uma determinada situação, as relações com o poder,
submissão ou exclusão, as relações de dominação e opressão, as relações de
benefício versus detrimento. A força dos acontecimentos provoca um salto
qualitativo de uma inocência moral para uma consciência completa de
fatos políticos e sociais, privilégios, interesses, influências, leis tendenciosas
ou tradições injustas, como aponta Langlois (2011). Olhando criticamente
para a realidade, as decisões que são tomadas são um esforço para promover
um nível mais elevado de “equidade e justiça” baseado não em uma luta
em grupo, mas na dignidade comum de todos os seres humanos e de todos
como filhos e filhas de Deus. O documento Água da Rocha (2007) serve
como reafirmação do que é mencionado a partir da dimensão espiritual:

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

O carisma Marista nos torna sensíveis aos sinais dos tempos e às


aspirações e preocupações das pessoas, especialmente dos jovens.
Superando fronteiras religiosas e culturais, desejamos a mesma dig-
nidade para todos: direitos humanos, justiça, paz e a participação
igualitária e responsável das riquezas do planeta. (n. 128)

A doação. O senso de serviço de Marcelino é profundo. O cui-


dado de seus paroquianos, a comunidade nascente e o crescimento das
escolas revelam um grande compromisso pessoal e um grande dom de si
mesmo. Incansavelmente, ele visitou sua paróquia, escolas e comunidades
recém-fundadas. Ele também encorajou uma atitude a favor da missão, que
cruzasse fronteiras. Seu desejo era alcançar todas as dioceses do mundo.
Lendo a história de fundação, pode-se vislumbrar grande generosidade nos
irmãos franceses que partiram para muitos lugares “sem passagem de vol-
ta”. Também podemos observá-la em gerações de irmãos missionários e
voluntários leigos que, hoje, continuam sendo testemunhas de doação. Da
mesma forma, há histórias maravilhosas de entrega no cotidiano, milhões
de histórias de “heróis anônimos”, pregadores do bem sem barulho.

Dar de graça é máxima do Evangelho. Para isso, é preciso cultivar


a qualidade do saber doar: uma doação de tempo e vida que vai além do
“obrigatório” ou do “pago”. É também uma atitude do coração, que nos
ajuda a não invadir o outro ou agir como conquistadores. É aprender a
oferecer a si mesmo sem criar dependências. É assumir a gratuidade. Essa
atitude é o que o Papa Francisco exige, quando pede que os líderes se en-
treguem livremente. (Francisco p. , 2019) e que Francesc Torralba (2010)
identifica com três ações: não ignorar, parar e responder ao chamado do
outro. Eu, me atreveria a adicionar mais uma: empoderar.

Talvez, este convite encontre espaço em nossos corações maristas:

Somos chamados a dar o que somos, a revelar o que levamos den-


tro de nós ao mundo e aos outros. Somos um dom e fomos feitos
para nos doarmos. Só nesse movimento de externalização reside a

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VOZES MARISTAS

felicidade. Entender a própria existência a partir da lógica do dom


significa perceber que o propósito essencial da vida é dar o que se
é. (Torralba, 2012, c.p.)

Existem alguns elementos que podem nos inspirar:

1. Começar com uma liderança que serve autenticamente, ou seja, que


esteja motivada pelo desejo de dar o seu melhor e dar generosamente.
2. Criar uma cultura de serviço altruísta, que significa promover comuni-
dades que multipliquem o bem através de seu compromisso, especial-
mente para aqueles que mais precisam. Isso inclui, não ignorar, mas se
envolver e responder ao chamado do outro em qualquer uma de suas
formas.
3. Criar as condições de não dependência, ou seja, de empoderamento
efetivo para que as pessoas e organizações possam agir livremente e
buscar seu bem efetivamente.
4. Desenvolver um profundo sentido vocacional em tudo o que é feito,
tanto profissional quanto espiritualmente, humanitária ou socialmente.
É vocação, em seu estado puro.

Senso de justiça. O Irmão Moisés Cisneros era diretor da Escola


Marista, localizada em uma área marginal da Cidade da Guatemala, quando
foi martirizado, em 29 de abril de 1991. Ele conhecia muito bem as situa-
ções de pobreza e violência que eram vivenciadas por ocasião das guerras
em toda a região da América Central. Ele também sabia, em primeira mão,
reconhecer e nomear os rostos de tantas pessoas que foram violenta e injus-
tamente tratadas ou eliminadas. Ele celebrou a Semana Santa, juntamente
com os jovens do Movimento REMAR. Durante a Vigília da Páscoa, ele fez
a proclamação pascal (30 de março de 1991), uma mensagem que convi-
dou à ressurreição em meio a tanta morte, com um alto senso de denúncia
social e valor profético. Este foi o antecedente mais notório antes de seu
martírio. Moisés esteve ativamente envolvido durante sua vida no serviço
dos mais pobres, em lugares e espaços muito diferentes. Em Chichicaste-
nango (Quiché, Guatemala), ele encontrou o rosto de uma igreja perse-

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

guida e martirizada, humilde e samaritana. Como diretor, trabalhou para a


dignificação educacional dos mais pobres, a quem literalmente procurava
junto dos professores, em meio às casas de lata e papelão dos barrancos
circundantes para oferecer-lhes um lugar e matriculá-los na “Escola Maris-
ta”. Não esteve isento de tensões internas e externas, mas sempre manteve,
como seu norte ético e espiritual, o sentimento de solidariedade com os
empobrecidos e necessitados e o compromisso com o Evangelho.

Ao lado dele, podemos citar os mártires de Bugobe, os Irmãos


na Argélia, os Maristas Azuis de Alepo (Síria), ... Quando se contempla a
profundidade humana e as raízes espirituais de todas essas histórias, desco-
brem-se as razões pelas quais os maristas decidiram permanecer, com risco
das próprias vidas, na missão de Bugobe; ou perseveraram na Argélia ou na
China; ou cruzaram as pontes da devastação de Aleppo para criar comu-
nhão. Todos eles compartilham uma raiz ética e espiritual fundamental que
nos mostra o valor e o testemunho de sua liderança de serviço e profética.
Podemos afirmar com eles que a ética não é uma panaceia, às vezes, é um
risco a favor da justiça, como é o próprio Evangelho.

A ética da justiça (Rawls, 1971/1999) emerge solidamente nessas


histórias. A proteção dos direitos da pessoa e o bem comum estão por trás
do autêntico exercício da liderança. Através da justiça, em uma escola ou
em uma província, criam-se condições para que todos se sintam respeita-
dos, dentro de normas e princípios estabelecidos e claros. Com o diálogo
ou o debate, as pessoas são envolvidas nos processos, consultas são feitas e
acordos são desenvolvidos. Com eles, desenvolvem-se autonomia respon-
sável, intercâmbio aberto, subsidiariedade, cooperação e a criação de uma
ordem justa dentro e fora do grupo, comunidade ou instituição.

Por outro lado, será importante evitar os problemas que bloqueiem


o intercâmbio, a comunhão aberta e a confiança. “Desconfiança, manipu-
lação, agressividade, controle de ações ou controle da linguagem, por um
grupo de líderes, podem levar a uma relação que se torna hipócrita, de-
sonesta, desleal, cruel e desumana” (Starrat, 1991, p. 196). Pelo contrário, a

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VOZES MARISTAS

justiça implica transparência na gestão e no governo, na promoção do bem


comum, do dever e da responsabilidade.

Itinerários espirituais em tempos de incerteza


“Ele refletia e encomendava a Deus as decisões importantes.
Tratava de conhecer sua vontade
e buscava aplicá-la às situações presentes.” (RV, 84)

Tudo o que discutimos anteriormente está fortemente ligado à


dimensão espiritual, que é uma base fundamental para entender a liderança.
Muitas características já foram mencionadas neste e em outros capítulos
deste livro, incluindo a fundamentação marista, bíblica ou mariana. Não
repetirei esses elementos, mas apontarei a seguir alguns dinamismos espiri-
tuais que podem nos ajudar em nosso crescimento pessoal. Talvez, até nos
apresentem novas dimensões.

Um irmão, que frequentava regularmente seu acompanhamento


pessoal, me disse que sempre se surpreendia com a pergunta repetida por
seu diretor espiritual: “Em tudo isso, onde está Deus?” “Sempre”, disse ele,
“acabo percebendo a importância dessa pergunta que me desacomoda e
me foca ao mesmo tempo.” “Às vezes eu não tenho resposta; em outras, ela
é simplesmente evidente e não há escapatória. Está. Deus está justamente
ali.”

Deus está em todo nosso itinerário existencial. Portanto, quando


falamos da dimensão espiritual estamos nos referindo à própria vida vivi-
da sob outros enfoques. Estes são capazes de transformar a liderança em
uma expressão íntima de nossa fidelidade às inspirações do Espírito. Nem
sempre é fácil. Às vezes cometemos erros ou nos enganamos. Outras vezes,
acertamos. O que é certo é que se necessita de muita escuta, oração e diá-
logo. Tudo isso é feito progressivamente e se aprimora todos os dias. Talvez
seja a história mais íntima de sua jornada como líder marista.

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Para facilitar este itinerário, existem algumas chaves que podem


ser de ajuda:

1. Disposição ao cuidado interior de si mesmo como líder, incluin-


do perseverança constante na experiência de Deus, pessoalmente ou
em comunidade. E também, uma vigilância constante sobre si mesmo.
Portanto, é necessário liderar a partir de dentro com maior autocons-
ciência e direcionamento. Ou seja, reconhecer nossa paisagem interior,
nossas próprias emoções e pensamentos, para abraçar sabiamente nossa
responsabilidade na vida, para sermos capaz de nos regular de forma
adequada, através das medidas necessárias de equilíbrio físico e psico-
lógico, vida espiritual e acompanhamento pessoal ou psico-espiritual.
Isso é especialmente evidente quando há tensões profundas ou mo-
mentos de intensa dificuldade. Como líderes serviçais, aumentamos
nossa “consciência”, “atenção presente” e abertura para ajudar a res-
ponder às necessidades dos outros.

2. Disposição vocacional com constante referência à pessoa de Jesus


e ao Reino, princípio inspirador de toda a liderança marista e cristã.
Jesus é mestre e servo. Ele nos convida a segui-lo e nos chama para
sermos pescadores de homens (Mc 1,17). Seguir Jesus é pregar livre-
mente nas cidades e vilarejos; é proclamar sem interesse o conteúdo do
Evangelho. Na paixão pelo Reino, tudo adquire unidade, verdadeiro
significado e força. O Reino compromete e pede liberdade. Do Rei-
no de Deus emerge a experiência de uma comunidade reconciliada e
missionária (Jo 1,19-28; Mt 3,7-10), que sabe encontrar audácia, sig-
nificado e profundidade em sua vida e compromisso. Esta radicalidade
comunitária de Jesus está aberta aos discípulos e discípulas, gerando um
novo parentesco. Para uma família carismática global, como a nossa, é
um chamado constante à fidelidade criativa, tanto dos irmãos quanto
dos leigos e leigas, em sua vocação particular.

3. Vontade de viver em chave de discernimento e profecia, para


aprender a escutar, entender, propor e viver de acordo com Deus. Está

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VOZES MARISTAS

em nossas mãos agir para buscar o que Deus nos pede. Não há progres-
so na verdadeira liberdade e responsabilidade sem esse discernimento
de nossos pensamentos, dos “espíritos” ou das intuições que nos guiam
nas decisões. Se fizermos isso bem, uma atitude profética germinará,
intimamente ligada ao Reino: a profecia da compaixão, a profecia de
construir pontes, a profecia da fraternidade e da amizade social. Com
nossa liderança, além das urgências específicas, buscamos sonhar com
um futuro melhor para todos, sabendo separar o trigo do joio, e dis-
tinguir os sinais dos tempos. Somos convidados a ser líderes capazes de
mobilizar-nos, de cuidar, de tocar o coração e a mente das pessoas, de
“suplicar” por mudanças. “Significa assumir o presente na sua situação
mais marginal e angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade” (FT,
188). Significa ter uma bússola moral e ética em mãos. Lembrando o
XXII Capítulo Geral (2017), as grandes e permanentes questões que
acompanham esse discernimento serão: O que Deus quer que sejamos e o
que Ele quer que façamos neste mundo emergente?

4. Disposição para desenvolver progressivamente uma metanoia, ou seja,


uma mudança de mentalidade no que entendemos por verdadeira feli-
cidade e sucesso, particularmente na liderança (Mt 5,3-12; Lc 6,20-26).
Essa metanoia nos leva a crescer em humildade e solidariedade, a nos
libertar interiormente e a viver como pobres em espírito, a ter fome
de justiça, a ser compassivos, simples, próximos dos sofredores e dos
pobres, puros de coração, sinceros, construtores da paz e da reconcilia-
ção. Assim, com esses elementos, Jesus nos introduz em um exercício
de liderança que é transformador em três aspectos: integridade pessoal,
compaixão pelo outro e a busca da vontade de Deus.

5. Vontade de servir e “olhar além”, sabendo que nossas ações têm


efeito e que devemos cultivar uma atitude permanente de esperança.
Os líderes espirituais de nosso tempo, como o Papa Francisco, nos ofe-
recem uma visão do momento atual, de seus significados e de como
nos adaptarmos e nos prepararmos para um futuro diferente, através
de uma constante interpelação a partir dos valores e princípios do

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Evangelho. “A liderança de serviço deve, portanto, ser consciente – não


pretensiosa – de que o efeito, que todas as nossas ações têm em nosso
entorno, é muito maior do que muitas vezes consideramos e nem sem-
pre se correlaciona com o cargo que ocupamos” (García, 2019, pág. 15)
Daí, a brilhante narrativa de Sharman (2019), quando afirma o valor da
liderança “sem cargo”, fundamento de todo serviço honesto.

6. Disposição para abandonar qualquer paralisia na chave da mis-


são. Como tantos exemplos do Evangelho, a paralisia, a fadiga e a
ansiedade podem corromper nossa alegria, motivação e comprome-
timento. Em um momento de complexidade, os líderes serviçais são
capazes de correr riscos, particularmente aqueles que são essenciais
para uma missão e vida frutíferas.

7. Disposição de viver em chave de bem-aventurança. Humildade,


entrega pessoal, conversão, desprendimento, vulnerabilidade, incom-
preensão, fracasso e sofrimento podem nos acompanhar em algumas
etapas da liderança. Permanecer na adversidade e nos momentos di-
fíceis com uma atitude de resiliência, consciência atenta e senso de fé
nos lembram que o Reino requer esforço e fidelidade, mas que contém
dentro de si uma promessa de plenitude e esperança.

Um teste da verdade
Ao final dessa reflexão sobre ética e espiritualidade, gostaria de
destacar as perguntas que Greenleaf (1970/2021) levanta na definição de
liderança de serviço. Sugiro que as deixe ressoar várias vezes dentro de você,
porque sua densidade é fundamental para entender se você está acertando
ou não no seu caminho:

A melhor prova, e difícil de realizar, é:


As pessoas que você serve
crescem como pessoas?
À medida que você as serve, elas se tornam

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VOZES MARISTAS

mais saudáveis
mais sábias
mais livres
mais autônomas,
mais propensas a se tornarem servidoras?
E qual é o efeito sobre as menos privilegiadas na sociedade?
Elas se beneficiarão ou, pelo menos, não serão mais prejudicadas?

Uma palavra aos caminhantes


Durante a difícil transição do pós-Concílio, o Irmão Basilio Rue-
da foi uma fonte de inspiração e visão. O Instituto sofreu uma mudança
profunda e radical. Sua liderança moral e espiritual, juntamente com seus
dons pessoais e profundidade intelectual, fizeram dele uma figura profética
e um serviçal extraordinária. O Irmão Paul Ambrose chegou ao ponto de
afirmar:

Nestes tempos tão difíceis que a Igreja do pós-Concílio está pas-


sando, é vital que haja no Instituto um Irmão que saiba viajar
no mar agitado de ideias e conduza o barco a um porto seguro,
sem mapas de navegação claros, sem pontos de referência fixos ...
(Brambila, 2016, p. 90)

Hoje, estamos vivendo situações emergentes e complexas. Esta na-


vegação é realizada por irmãos e leigos, juntos, como família global. To-
dos unidos, inspirados por nossa tradição espiritual marista, sentimos um
profundo chamado para servir e servir primeiro. Vamos cultivar uma rica
espiritualidade que nos mergulhe na profundidade da missão e da vida con-
temporânea para vivê-la a partir do Evangelho. Cresçamos, em tempos de
incerteza, apoiados nas virtudes e valores que nos fazem ser e viver como
maristas, uma aspiração sempre profética. Aproveitemos a possibilidade de
liderar e façamos isso com a paixão de nossa vocação marista, ética e espi-
ritual.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Quais valores e virtudes fundamentais definem você como pessoa em
suas diferentes posições de serviço?
2. Como você pode desenvolver sua competência ética e espiritual (ou
alguns elementos dela) para responder melhor a um mundo em cons-
tante mudança?
3. Quais aspectos você precisa desenvolver para criar uma cultura ética
ao seu redor, mais sólida e consistente, e em sintonia com as realidades
contemporâneas?
4. Quais são os principais desafios éticos e espirituais que você experi-
menta pessoal, social e eclesialmente? De que forma, a partir de sua
liderança, você pode dar uma resposta em termos de cuidado, justiça,
sustentabilidade, responsabilidade ou visão crítica?
5. Como você pode acrescentar sua espiritualidade na missão ou integrar
a missão em sua espiritualidade?

SIGLAS
AR Água da Rocha
C Constituições dos Irmãos Maristas das Escolas
FT Fratelli Tutti
RV Regra da Vida dos Irmãos Maristas

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PARTE V

PERSPECTIVAS DE
FORMAÇÃO

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CAPÍTULO 21

Formação e formação
permanente para um
mundo emergente
Ir. Chano Guzmán Moriana
Delegado da Missão da Província de
Mediterrânea (2016-2022)

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VOZES MARISTAS

Chris Lowney (2018) conta, em seu livro Todos Somos Líderes, no


capítulo 5, no qual descreve sua estratégia para revitalizar a Igreja, a seguin-
te anedota que eu resumo:

Em mais de uma ocasião, como passageiro, eu voei sobre os Alpes e seus


majestosos picos me causam arrepios [...] e que aconteceria se eu fosse lar-
gado no meio dos pântanos alpinos durante uma tempestade de neve? Teria
eu coragem suficiente para seguir em frente [...] ou eu me deitaria depois
de alguns passos para esperar a morte? Isso, nos dizem, é mais ou menos o
dilema que enfrentou um pelotão militar durante a Primeira Guerra Mun-
dial. Enviados em uma breve missão de reconhecimento em terreno alpino,
estes soldados ficaram envolvidos em uma tempestade de neve imprevista
que durou dois dias; estavam perdidos, congelados, aterrorizados e carentes
de quase tudo o que precisavam para sobreviver.

Quase tudo, exceto um mapa. Mas não conseguiam determinar facilmente


onde estavam. Os turistas que se perdem em Manhattan podem se orientar
por placas sinalizadoras de rua [...], mas os Alpes não estão sinalizados.
Os soldados sabiam que estavam em uma montanha, e que as montanhas
se estendem em todas as direções. No entanto, embora não conseguissem
localizar exatamente o ponto onde estavam, a promessa de um caminho
a percorrer representada pelo mapa lhes deu confiança. Especularam quais
poderiam ser suas coordenadas e se moveram na direção que parecia mais
viável. Encontraram obstáculos e becos sem saída, redefiniram sua rota, à
medida que iam avançando, e acabaram se salvando.

Esta história ainda é lembrada hoje, não menos importante por seu final
irônico. De onde era o mapa que ajudou os soldados a saírem dos Alpes?
Não era um mapa dos Alpes, mas dos Pirineus; eles só se deram conta disso
uma vez que estavam seguros.

Em todas as nossas unidades administrativas, ao longo da história,


foram definidas várias políticas de formação que foram fundamentais para
o avanço das províncias. Os planos estabelecidos serviram como um guia

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para que soubéssemos como caminhar pela evolução montanhosa de nossa


história e nos ofereceram objetivos e conteúdos comuns e a consciência
compartilhada de manter vivo o sonho de Champagnat.

Introdução
Todos os nossos documentos maristas estão repletos de referências
à importância da formação, um dos pilares sobre os quais se constrói o
presente e o futuro de nossa vida e missão como Maristas de Champagnat.

O próprio Marcelino concentrou seus esforços na formação hu-


mana e espiritual de seus discípulos, tanto nos primeiros anos em La Valla,
como em l’Hermitage que, desde o momento de sua construção, se torna-
ria um verdadeiro centro de formação para os Irmãos (MEM, 2003, n. 15)1.
E no desenvolvimento posterior de nossa história, os verões de formação,
as lições práticas dos Irmãos Diretores para os professores noviços2 (Irmãos
Maristas, 1853), os planos de formação inicial e permanente, os cursos de
especialização para os responsáveis das áreas e uma infinidade de ações
formativas (esse também “pão caseiro, rico e abundante que alimentou e
continuará alimentando muitas gerações” (Sánchez Barba, 2020, p. 18) que
serviram para melhorar a formação dos Irmãos e Leigos Maristas.

O XXII Capítulo Geral (2017) nos chamou para conhecer em


profundidade nosso mundo em contínua transformação. Um mundo que
está sendo definido por quatro de suas principais características: volatilida-
de, incerteza, complexidade e ambiguidade. Isso força os líderes de hoje a
lidar com a hiperconectividade, a globalização da economia, da saúde, das
questões políticas, ... a impossibilidade de controlar os fluxos e canais de
informação e comunicação, a interconexão de pessoas, sistemas, recursos e
geografias... (Poznynek, 2015).

Esta situação nos coloca diante de um cenário tão desafiador


quanto aquele que Marcelino enfrentou em seu tempo. E todos nós somos
solicitados a colocar em prática os meios para promover a liderança servi-

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dora no Instituto, na crença de que todos somos líderes. “Neste mundo em


rápida mudança, só cumpriremos nossa missão se uma massa crítica de nós
responder à vocação de liderança que nos foi dada no batismo” (Lowney,
2018).

Oferecemos em seguida algumas reflexões sobre QUAL FOR-


MAÇÃO precisamos promover para fortalecer nossa liderança servidora
e profética, EM QUE FORMATO estamos trabalhando atualmente, e a
importância de nossa formação DURANTE A VIDA.

I. Que formação?
Há muitos estudos que tentam analisar como o mercado de traba-
lho irá evoluir nos próximos anos, e há uma proliferação de listas de habi-
lidades que serão necessárias neste mercado, agora chamado de pós-Covid,
devido à influência óbvia da pandemia sobre ele. O Informe sobre o Futuro
dos Empregos do Fórum Econômico Mundial (2018), apresenta os resulta-
dos de seu estudo, destacando toda uma gama de habilidades pessoais que
devem ser promovidas, nos próximos anos, a fim de responder às exigências
do mercado de trabalho. Elas são as seguintes:

1. Pensamento analítico e de inovação


2. Aprendizado ativo e estratégico
3. Solução de problemas complexos
4. Pensamento crítico
5. Criatividade, originalidade e iniciativa
6. Liderança e influência social
7. Uso da tecnologia
8. Design e programação de tecnologia
9. Resiliência, tolerância ao estresse e flexibilidade
10. Raciocínio e solução de problemas3

De fato, em um mundo VICA (volátil, incerto, complexo e am-


bíguo) (VUCA em inglês) como aquele em que vivemos, a demanda por

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formação nestas habilidades será necessária se quisermos ter uma liderança


consistente. Mas que características deveriam ter, além de nossa formação
como líderes maristas? Como deveria ser nossa formação?

1. Que entenda que TODOS SOMOS LÍDERES

Há liderança natural em muitas pessoas, mas todos nós somos cha-


mados a exercer liderança servidora e profética em nosso ambiente. Não é
apenas a tarefa daqueles que assumem responsabilidades ou cargos por um
tempo.

2.- Que desenvolva o SENTIDO DE COMUNIDADE.

Nossa vida e missão partem de um compromisso pessoal, mas acei-


tando que há valor para mim além de mim. O senso de comunidade nos
faz lembrar que:

Há desafios de missão aos quais não posso responder sozinho, há


algo que eu preciso dos outros para desenvolver aquilo para o qual
fui criado. [...] é se estamos prontos para fazer parte de algo
maior do que nós mesmos. (Villanueva, 2019)

3.- Que seja “COMPETENCIAL”

Todas as pessoas com responsabilidade gerencial ou capacidade de


liderança devem ajudar, e acompanhar toda a nossa organização, a
aprender a aprender, a desaprender, a inovar, a colaborar, a desen-
volver todo o seu talento e a empregar suas habilidades pessoais,
técnicas, relacionais e digitais...4 (Culturaprendizaje, 2020)

4.- Que seja EXPERIENCIAL

Aprender já não é mais armazenar quilos de conhecimento para


acumular reconhecimento externo. Aprender, agora, é integrar os

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fluxos de conhecimento emergentes em sua vida diária, com uma


mentalidade transdisciplinar. 70% do aprendizado é adquirido por
experiência, experimentação e reflexão; 20%, do trabalho com ou-
tros, e os 10% finais, do treinamento formal. (Cañigueral Bagó,
2020)

5.- Que ative a INTELIGÊNCIA COLETIVA

E isto acontece quando trabalhamos de forma cooperativa e mais


participativa. Seremos capazes de enfrentar os problemas atuais e antecipar
desafios futuros, compartilhando e aproveitando o conhecimento e a expe-
riência que acumulamos em nossa história pessoal e comunitária.

6.- Que atraia e promova o TALENTO.

O melhor talento é aquele que vive com a humildade de sempre aprender. A


combinação de propósito consistente e talento é uma combinação vencedora.
[...] O talento é forjado pelo aprendizado e pela desaprendizagem. [...]
O talento atrai o talento e a mediocridade atrai a mediocridade. (Marcet,
2019)

Ao longo de sua história, nossa Instituição tem atraído muitos ta-


lentos. Marcelino, como outros grandes fundadores, teve esta poderosa ca-
pacidade de ajudar seus seguidores a crescerem em talento e se tornarem
líderes.

7.- Que seja MULTIPLICADORA

É nossa tarefa multiplicar os poços de onde extrair a água que sa-


ciará para sempre a sede de tantos que pedem, como a samaritana, “Senhor,
dá-me esta água para que eu nunca mais tenha sede” (Jo 4, 15). É nossa
tarefa buscar um efeito multiplicador, formando e inspirando pessoas que,
por sua vez, acompanhem, incentivem e motivem outras pessoas e equipes.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

8.- Que promova a capacidade de ADAPTAR-SE A MU-


DANÇAS.

“Um mundo em constante mudança nos obriga não apenas a nos


adaptarmos e sermos flexíveis, mas também a enfrentar questões funda-
mentais sobre nossa identidade” (Lowney, 2013, p. 29). E nossa mudança só
será possível se ela for assumida individualmente. O compromisso pessoal
não pode ser substituído porque ninguém pode aprender e desaprender
por outrem (Marcet, 2018).

9.- Que favoreça a MENTORIA e o ACOMPANHAMEN-


TO.

A decisão de Marcelino de compartilhar sua vida com os dois pri-


meiros jovens em La Valla, em 1817, teve um impacto profundo e duradou-
ro não apenas nos Irmãos de seu tempo, mas também nos líderes maristas
que o seguiram. Hoje todo o processo de crescimento de nossos líderes, de
seu relacionamento com eles mesmos, com o mundo e com Deus, deve ser
acompanhado. E, ao mesmo tempo, poderão exercer seu papel de mentores
com outros líderes em formação.

10.- Que tenha foco na RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

Muito do conteúdo deveria estar ligado à resolução de problemas


reais e à resolução de problemas complexos com pensamento crítico e
criatividade.

11.- Que ao invés de dar respostas, GERE BOAS PER-


GUNTAS

Desde a maiêutica de Sócrates, conhecemos o poder educador e


transformador das perguntas. Uma habilidade fundamental dos líderes é ser
bons questionadores, saber fazer perguntas essenciais muito bem.

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VOZES MARISTAS

12.- Que incentive o diálogo entre CARISMA, GESTÃO


E MISSÃO.

Carisma, gestão e missão devem estar em constante diálogo com


diretrizes para a avaliação e desenvolvimento de novas habilidades que fa-
cilitem a adesão a Jesus e seu Evangelho, a fim de que seja dominante em
nossa instituição. Desta forma, seremos profetas de um novo mundo5 (Va-
rona, 2009).

II. Em que formato?


Qualquer planejamento de formação deve sempre levar em conta
os seguintes níveis: local, provincial, nacional, regional e institucional. Li-
mitarmo-nos apenas ao nível local ou provincial desperdiça as sinergias que
nós, como países e regiões, viemos gerando nos últimos anos.

Temos histórias de sucesso muito concretas na área de treinamento,


em várias partes do mundo, que deixam claro que juntos somos
capazes de realizar grandes projetos e trazer melhorias e mudanças
significativas em nossas províncias, países e regiões. Aqui temos dois
exemplos:

a. Centro Marista Internacional de Nairóbi (MIC).

Fundado em 1986, no Quênia, para responder à necessidade ur-


gente de dar uma formação sólida a nossos jovens Irmãos na África. Duran-
te estes anos de existência, tornou-se um ponto de referência para a vida
marista neste continente. Centenas de Irmãos completaram o programa de
formação de 4 anos, oferecido a eles, e um bom número deles ocupa cargos
de responsabilidade, animação e governo em suas respectivas províncias.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

b. Conferência Marista Espanhola (CME)

A reestruturação das províncias maristas presentes na Espanha le-


vou Compostela, Ibérica, L’Hermitage e Mediterrânea a formar um agru-
pamento chamado Conferência Marista Espanhola. O objetivo essencial da
CME era atender aos interesses comuns das províncias membros: reforçar
o sentido de coesão nas províncias, facilitar a colaboração com a Igreja na
Espanha, favorecer a solidariedade interprovincial, promover a coordenação
e o apoio mútuo em vários campos...

É interessante notar que a formação patrocinada pela CME tem


sido de grande importância para as províncias. De 2005 até hoje, quase
2.500 pessoas participaram de cursos de formação interprovinciais, de vá-
rios tipos e durações, seguindo o Projeto Geral de Formação Marista ela-
borado conjuntamente pelas quatro províncias presentes na Espanha. Isto
tem sido um importante impulso para o crescimento pessoal de educadores
e Irmãos, e para a implementação e colocação em prática de projetos de
inovação educacional e pastoral em nossas obras. Da mesma forma, muitos
grupos de trabalho interprovinciais foram criados, produziram diretrizes,
materiais para uso comum (como o lema anual) e reflexões sobre temas
de missão.

Desde setembro de 2020, com a criação da MRE6 (Marist Region


of Europe), o trabalho conjunto em formação está incluído na nova região.

Diversos formatos
O tempo de confinamento, que vivemos no último ano, nos obri-
gou a procurar soluções criativas em todos os nossos trabalhos educacio-
nais que, de um dia para o outro, tiveram que ser fechados para evitar a
proliferação de contágios. E o mesmo aconteceu com uma infinidade de
ações formativas e outros tipos de projetos em toda a geografia marista, que
foram obrigados a ser adiados ou cancelados por razões óbvias.

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VOZES MARISTAS

O diferente desenvolvimento e implementação de meios tecno-


lógicos nos países do mundo fez com que a defasagem digital, já muito
acentuada em áreas menos desenvolvidas, tenha aumentado nos países com
um nível de riqueza menor. Portanto, falar da transição da presença para
a não-presença, em ações de educação e treinamento baseadas no uso de
meios tecnológicos não corresponde à realidade, visto que não foi possível
fazer isso de forma generalizada em todas as obras e projetos em nossas
províncias.

No entanto, é um sentimento geral que o uso da mídia digital para


reuniões de conselho e equipe, para reuniões específicas entre comunidades
e grupos nas províncias, para monitorar projetos e trabalhos à distância, para
acompanhamento pessoal e grupal... chegou para ficar. E num futuro não
muito distante, poderemos ver que muitas de nossas atividades regulares
envolverão indivíduos ou grupos em um formato não presencial. A melho-
ria das redes de comunicação nos países permitirá um uso, cada vez mais
difundido, dos meios digitais.

De nossa parte, o sucesso de tantos cursos de formação, especial-


mente aqueles organizados em bases provinciais e interprovinciais, reside
precisamente na oportunidade propiciada aos participantes de compartilhar
sua vida e missão, uns com os outros, por períodos de certa duração. Optar
por formatos não presenciais, para aprofundar a formação de nossos líderes,
deve ser feito como um complemento aos intensos momentos de trabalho
presencial ou em situações urgentes como a vivida durante o confinamento
devido à COVID 19.

A seguir, uma lista simples de formatos ou ferramentas formais e


informais que estamos usando ou poderíamos usar para aprofundar o trei-
namento de nossos líderes e para facilitar uma vida ativa de aprendizagem:

1. Microaprendizagem: leitura de blogs, conferências tipo TED, utilização


de uma nova ferramenta, audição de podcasts,....
2. Leitura e autoaprendizagem

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

3. Leitura de resumos de livros


4. Preparação de palestras sobre vários tópicos
5. Realização de trabalhos de pesquisa
6. Proposta e intercâmbio de boas práticas
7. Escritos de ensaios e livros7.
8. Conversas formativas em reuniões regulares (de comunidades, chefes
de equipe, diretores, coordenadores de obras, fraternidades maristas, ...).
9. Participação em conferências sobre diversos temas
10. Oficinas formativas de diferentes cargas horárias
11. Participação em jornadas temáticas provinciais
12. Participação em mesas redondas, debates, diálogos, programas de rá-
dio,...
13. Visitas, intercâmbios e cursos de formação (estágios).
14. Cursos de formação presencial de longo prazo: organização própria
com caráter provincial, interprovincial ou regional.
15. Cursos de formação presencial: organizados por outras instituições ou
associações do setor e abertos à participação de outras instituições.
16. Estudos oficiais em universidades e centros de especialização
17. MOOCs, Webinars, celebrações e congressos temáticos transmitidos
on-line.
18. Acompanhamento dos autores através de suas transmissões em plata-
formas de vídeo (YouTube,Vimeo,...), blogs ou publicações periódicas.
19. Escuta de livros-áudio, programas de rádio específicos, gravações, ..
20. Formação para o tempo livre.
21. Intercâmbio regular com outros líderes em seu campo de trabalho ou
missão.
22. Acompanhamento de jovens, novos educadores, outros líderes
23. Participação em processos de mentoria
24. Experiências em comunidades de prática8 e redes de aprendizagem

As Equipes Provinciais de Recursos Humanos serão um elemento


importante na promoção de planos de detecção e acompanhamento de
líderes. Da mesma forma, são figuras-chave na implementação de plata-
formas de e-learning – como as já utilizadas em algumas unidades admi-

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VOZES MARISTAS

nistrativas – e no favorecimento da democratização do uso dos diferentes


formatos.

III Aprendizagem ao longo da vida


O quarto ODS (objetivo de desenvolvimento sustentável) da
Agenda 2030, aprovado em 2015 pela ONU, já inclui, quando se fala em
alcançar uma educação de qualidade como base para melhorar a vida das
pessoas, o desejo de “promover oportunidades de aprendizagem contínua
para todos”9.

A formação ou é contínua (“em todos os sentidos, em todos os momen-


tos e em todos os lugares”, Cañigueral, 2020, p. 167) ou permanecerá limitada
a períodos específicos de nossa vida, possivelmente aqueles em que tivemos
alguma responsabilidade ou posição, e fechará a possibilidade de continuar
crescendo e nos adaptando às exigências que os jovens e o mundo de hoje
nos pedem.

Há muitas maneiras de continuarmos nos atualizando, mas o


importante é que todos nós, Irmãos e Leigos, conscientes de que somos
chamados a exercer a liderança em nosso ambiente, nos ajudemos a criar
espaços comuns de formação, tanto inicial quanto permanente, que pos-
sibilitem o mesmo processo de crescimento na fé e um projeto de missão
comum. Somos uma família carismática e o trabalho em equipe faz crescer
todas as potencialidades do carisma (Secretariado dos Leigos, 2017, p. 18).

Três elementos que gostaríamos de destacar:

1.- O cuidado dos ex-gerentes ou dos responsáveis por obras,


equipes e projetos.

Temos conhecimento do projeto lançado, há algum tempo, pela


Província Marista Ibérica intitulado El líder más allá de la función (O líder além
de seu cargo). Nele, de forma bastante prática, se estabelece uma estratégia

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

para assegurar que os diretores que terminam um período de serviço sejam


devidamente acompanhados no processo de integração em sua nova situa-
ção e que possam assumir novas formas de liderança.

Devemos cuidar deste processo de modo que as pessoas que pas-


sam por esta situação, se sintam acolhidas no coração do trabalho
educativo e da própria Instituição, que lhes agradece sua dedicação
e generosidade. Por outro lado, é importante aproveitar seu capital
humano, seu conhecimento acumulado e seu compromisso com a
vida marista como elementos que podem enriquecer o grupo de
educadores. Após um período de exercício de liderança em um
papel responsável, esses líderes podem se sentir chamados a de-
sempenhar um papel importante na obra em que trabalham, no
coração da comunidade cristã marista de referência ou na estrutura
provincial, onde podem continuar a exercer uma liderança positiva
e comprometida. (Consejo de Obras Educativas Maristas, Provincia
Ibérica, 2017, p. 20)

2.- Uma cultura de aprendizagem

Quando as pessoas aprendem, nossas instituições também apren-


dem. Quando as pessoas crescem, as instituições crescem. O estabelecimen-
to de uma cultura de aprendizagem contínua nos dará a oportunidade de
aprender e crescer juntos

A iniciativa espanhola CulturAprendizaje (www.culturaprendiza-


je.org/), que surgiu neste tempo de pandemia, propõe aderir a um ma-
nifesto para uma cultura de aprendizagem e entende isto como um eixo
estratégico para organizações inteligentes.

Nesta situação de tanta incerteza, muitas organizações, que antes costuma-


vam competir, estão dedicando recursos para colaborar, inovando em modelos
organizacionais mais líquidos e as pessoas estão demonstrando níveis de
comprometimento e atitude sem precedentes. Mas isso não é suficien-

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VOZES MARISTAS

te. A sociedade como um todo, e as organizações em particular,


são obrigadas a incorporar a aprendizagem como parte central de
sua estratégia, valores e processos de trabalho, entendendo que a
aprendizagem é parte dela, não apenas para superar esta situação
atual, mas também para antecipar futuros desafios. [...] Somos todos
responsáveis por garantir que, uma vez terminada esta crise, nossas
organizações se tornem mais inteligentes.Vimos, por exemplo, que
em muito pouco tempo, para algumas pessoas e organizações, foi
possível o teletrabalho e algumas das barreiras à transformação di-
gital foram superadas.Temos, portanto, uma grande responsabilida-
de de manter vivo este legado. Uma organização ou uma sociedade
que não aprende está fadada a desaparecer. As pessoas em funções
de liderança, como responsáveis pela gestão do patrimônio de suas
organizações, têm um papel decisivo a desempenhar para garantir
sua capacidade de aprendizagem e transformação (Culturaprendi-
zaje, 2020).

E isso nos lembra que hoje, mais do que nunca, devemos aprender
com o que aconteceu, ... valorizando a inteligência coletiva das organiza-
ções ... para criar, através da aprendizagem e do conhecimento, uma nova
realidade.

3.- Aprendizagem de idiomas

Conhecer outra língua nos permite não apenas nos comunicar-


mos, mas também compreender como outras pessoas pensam e como suas
culturas são estruturadas.

O XXII Capítulo Geral (2017) propôs a todo o mundo marista o


desafio de caminhar como uma Família Carismática Global. E certamente,
em mais de uma vez, você testemunhou situações em que pessoas da mes-
ma família, a nossa, não foram capazes de compartilhar o mínimo devido à
dificuldade de se expressar em outros idiomas.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

Como uma família espalhada por mais de oitenta países do mun-


do, temos a responsabilidade de facilitar a comunicação entre todos nós. E,
de fato, a dificuldade de aprender a dominar uma língua muitas vezes nos
afasta do desafio de estudá-la e praticá-la. Saber se expressar em pelo menos
uma das línguas oficiais do Instituto (francês, inglês, português e espanhol),
além da própria língua, seria sem dúvida uma ferramenta que facilitaria as
relações interprovinciais e inter-regionais. E se a expressão oral é compli-
cada, vamos pelo menos nos concentrar na compreensão da outra língua.
Este conhecimento permitiria encontros nos quais cada um poderia se
expressar em sua própria língua e ser compreendido pelos outros.

PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Que ideias deste capítulo lhe pareceram novas ou lhe chamaram a
atenção?
2. Você está convencido de que a formação é tão importante para os
líderes?
3. Estamos todos chamados a ser líderes maristas, ou somente aqueles que
sentem um chamado especial de Deus?
4. Você já teve alguma experiência de acompanhamento ou de mentoria?
5. Qual dentre os formatos propostos, você costuma utilizar com mais
frequência?
6. Que vantagens você encontra na formação presencial em confronto
com a não presencial?
7. Você pensa que a “comunidade como formadora”, como lugar de prá-
tica de valores, estilos e conhecimentos é um formato válido?
8. Em sua unidade administrativa, você sente que os antigos diretores,
responsáveis de obras, equipes ou projetos são cuidados?

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VOZES MARISTAS

Referências

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Sánchez Barba, E. (2020). Hogares de Luz. Cuidamos la vida y generamos nueva
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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

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En: https://educacion.maristas.edu.mx/wp-content/uploads/
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reports/the-future-of-jobs-report-2018

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VOZES MARISTAS

Notas

1 Misión Educativa Marista, nº15: Na medida do possível e de acordo com as


exigências legais, Marcelino ofereceu a seus discípulos uma formação humana, espiritual ini-
cial e contínua, prestando especial atenção ao seu desenvolvimento intelectual e pedagógico. O
Hermitage, portanto, pode ser considerado como o cadinho da pedagogia marista.
2 Irmãos Maristas. (1853). (Capítulo XVIII) Formação a ser dada pelo Ir-
mão Diretor aos professores noviços no início: encorajamento, paciência, aulas
práticas, advertências especiais. Em Guia do Professor. Instituto dos Irmãos Maristas.
3 Tradução retirada de https://www.womennow.es/es/noticia/habilida-
des-encontrar-trabajo-tras-pandemia/
4 Culturaprendizaje (2020). Por una nueva cultura de aprendizaje. Em: http://
www.culturaprendizaje.org
5 Varona, M. G. (2009). Convocatória à formação de um líder desde a
espiritualidade, Anexo 2, pp. 99. Profecia é aquele dom de Deus que permite aos
crentes e às instituições situar-se na sua vontade e adaptar seus critérios, organiza-
ção e funcionamento ao que é interpretado como uma expressão dessa vontade.
6 Marist Region of Europe (MRE). Mais informações em https://cham-
pagnat.eu/
7 Albert Cañigueral (2020) disse: “Escrevo não porque sei muito, mas porque é a
melhor maneira de continuar aprendendo” (p. 10). Em outras palavras, escrever ensaios
e livros é outra forma de continuar a aprender.
8 Saiba mais: https://www.chausa.org/publications/health-progress/arti-
cle/september-october-2011/servant-leadership-the-way-forward-
9 Saiba mais: https://www.un.org/sustainabledevelopment/es/education/

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

CAPÍTULO 22

Ir. Evilazio Francisco Ir. Manuir José


Borges Teixeira Mentges
Reitor da Pontifícia Universidade Vice-Reitor da Pontifícia
Católica do Rio Grande do Sul, Universidade Católica do Rio
PUCRS. Grande do Sul, PUCRS.

A educação superior
marista na perspectiva
do serviço

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VOZES MARISTAS

1. Introdução
Na obra A Tempestade, de Shakespeare (2002), as palavras são profe-
ridas por Próspero, no capítulo X. Ele está preso. Miranda, sua filha, e Fer-
nando, filho do Rei de Nápoles, então conversam com ele. Recorda-nos
que somos feitos do mesmo material usado para tecer nossos sonhos; somos
o que sonhamos ser. A identidade é definida mais pelos nossos projetos do
que por nossas realizações, mais pelos sonhos do que pela nossa realidade.

A Congregação para a Educação Católica, com o intuito de cele-


brar o quinquagésimo aniversário da Declaração Gravissimum Educationis e
o vigésimo quinto aniversário da Constituição Apostólica Ex Corde Eccle-
siae, lança um Instrumentum laboris: Educar hoje e amanhã: uma paixão que se
renova (Congregação para a Educação Católica, 2014). Já na sua introdução
enfatiza o fato de que vivemos uma “emergência educativa” e nos convida
a amadurecer individualmente na construção do bem comum. A Gravissi-
mum Educationis refere que as universidades devem estar a serviço da socie-
dade, e não somente da Igreja, e que devem brilhar não pela sua quantidade,
mas, sobretudo, pela sua qualidade e dedicação à ciência (Concílio Vaticano
II, 1965, n. 10).

Nessa mesma direção, a Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae


(João Paulo II, 1990) apresenta a universidade católica como instrumento
privilegiado para chegar à verdade e, como universidade, não pode se exi-
mir daquilo que é próprio a uma instituição acadêmica, ou seja, ensino e
pesquisa. Enquanto católica, a universidade deve ter uma inspiração cristã
não apenas por parte dos indivíduos, mas também da comunidade univer-
sitária como tal. Isso pressupõe que o patrimônio espiritual cristão dialoga
com o patrimônio cultural e com os avanços da ciência, proporcionando
uma experiência de aprendizagem que integra pesquisa, pensamento e vida.

Segundo o instrumento de trabalho Educar hoje e amanhã: uma


paixão que se renova (Congregação para a Educação Católica, 2014), “a
educação à vida, ao desenvolvimento cultural, à formação profissional, ao

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

empenho do bem comum representam uma ocasião e uma oportunidade


para compreender o presente e para imaginar o futuro da sociedade e da
humanidade”.

Na espinha dorsal da proposta Marista está presente o lema “Edu-


car é uma obra de amor”. Ora, quem ama cuida. O ser humano é, por sua
natureza e essência, um ser de cuidado. Sente a predisposição de cuidar e a
necessidade de ser ele também cuidado. O mesmo acontece com o amor.
Todos necessitamos amar e sermos amados. Outros princípios presentes
na ação educativa Marista que herdamos do Fundador, por exemplo, re-
monta à ideia de uma educação baseada nos princípios do afeto, ambiente
de família, integralidade na educação. Para Marcelino Champagnat, todo
educador cuidadoso deve empenhar-se para formar o espírito dos seus alu-
nos e fazer da educação um serviço. Nenhum educador alcança plena ação
educativa se não plasmar em seus educandos uma plena e real disponibili-
dade ao serviço dos outros, ou seja, “o verdadeiro serviço da educação é a
educação ao serviço” (Pacto Educativo Global, 2020, p. 17).

Quando falamos no cotidiano das nossas instituições de Educação


Básica ou de Educação Superior, não podemos esquecer algumas caracte-
rísticas peculiares que devem impregnar a nossa prática educativa em todos
os níveis, como a pedagogia da presença, mais diálogo do que autoridade;
a pedagogia da simplicidade, na qual os dons de cada um são colocados a
serviço; a pedagogia do trabalho e da constância como um elemento im-
portante para chegarmos a bons resultados e plenitude da vida.

Por meio do serviço e do trabalho criativo, devemos prover aos


nossos estudantes, bem como a toda a comunidade acadêmica, exemplos
de esperança, solidariedade, responsabilidade, liberdade, justiça, consciência
crítica, interioridade, reconciliação e paz, que contribuam na busca pelo
sentido da vida. Esse constitui um grande desafio para todos nós e deve
estar presente na nossa cotidianidade, ou seja, na ordinariedade do dia a
dia da universidade. No contexto da vida, os valores são mais vividos do
que afirmados e têm a ver com a qualidade das relações interpessoais. Exis-

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VOZES MARISTAS

tem determinadas qualidades que a universidade deve saber exprimir, assim


como apresenta o documento Educar hoje e amanhã: uma paixão que nos
renova (Congregação para a Educação Católica, 2014):

a. respeito pela dignidade de cada pessoa e pela sua unicidade.


b. oportunidade aos jovens para que possam crescer e desenvolver
as próprias capacidades e talentos;
c. atenção equilibrada aos aspectos cognitivos, afetivos, sociais,
profissionais, éticos, espirituais;
d. clima de cooperação e solidariedade;
e. promoção da pesquisa científica como empenho rigoroso em
relação à verdade, reconhecendo os limites do conhecimento
humano, mas com abertura da mente e do coração;
f. respeito pelas ideias, capacidade de discutir e colaborar num
espírito de liberdade.

2. Desafio para a universidade contemporânea


As primeiras universidades no mundo, pelo menos na perspecti-
va ocidental, nascem sob o “guarda-chuva” da Igreja Católica, como bem
expressa a Constituição Apostólica sobre as Universidades Católicas já na
sua introdução. (João Paulo II, 1990). No século IX, a universidade surge
para formação de monges e, posteriormente, nos séculos XI e XII, surgem
escolas episcopais, centros de educação e centros docentes para onde são
enviados estudantes de toda a Europa. Da fusão da escola episcopal com a
monacal, surge a Universidade de Bologna, na Itália, a primeira a ser criada
no mundo ocidental, em 1158. O mesmo acontece na França: a Univer-
sidade Sorbonne surge a partir da escola episcopal da Catedral de Notre
Dame. Embora constitua uma instituição milenar, e que tenha passado por
mudanças substanciais ao longo dos anos, a universidade é ainda chamada a
renovar-se continuamente.

A universidade só envelhece quando os que nela atuam acreditam


que o que fazem é perfeito e que basta reproduzir o passado. O grande

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desafio para as universidades continua sendo a formação humana integral,


com o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação profissional. Para tanto, são necessários docen-
tes qualificados e comprometidos na busca do saber como o melhor ser-
viço que se pode prestar à humanidade. Diante de um perfil de estudante
culturalmente diferente, com uma gama imensa de informação, conectado
ao mundo por redes sociais, e que não aceita simplesmente reproduzir os
cânones do passado, o docente é convidado à prática de duas virtudes pe-
dagógicas importantes: a inquietação positiva, que move o professor a ser
melhor a cada aula, educando e preparando seu estudante da forma mais
favorável possível, e a virtude da humildade, o professor não sabe tudo, pois
ninguém saberá tudo o que pode ser sabido.

O desafio permanece para as universidades: fazer ciência com ra-


cionalidade verdadeira, sem perder seu fundamento humanista que sempre
a caracterizou. Esse equilíbrio deve permanecer nas universidades por meio
do da reflexão e da autocrítica em relação à sua atuação, em contínuo ali-
nhamento com as demandas da sociedade, sem a perda de seus valores e
princípios. Estamos na iminência de pensarmos um novo humanismo, que
possua como princípio uma educação para um “novo pensamento capaz de
unir diversidade e unidade, igualdade e liberdade, identidade e alteridade”
(Pacto Educativo Global, 2020, p. 11).

Boaventura de Souza Santos (2005, pp. 8-9), em sua obra sobre a


Universidade no Século XXI, fala de uma crise tríplice. A primeira é aque-
la que o autor chama de crise de hegemonia entre as funções tradicionais
da universidade e as funções que lhe foram atribuídas ao longo do século
XX, ou seja, de um lado a produção de alta cultura necessária para a for-
mação das elites, desde a sua origem na Idade Média europeia, e de outro,
a produção de padrões culturais médios e de conhecimentos instrumentais,
úteis para a formação de mão de obra qualificada exigida pela lógica de
desenvolvimento capitalista. A crise hegemônica se dá pelo fato de que a
universidade deixa de ser única no domínio do ensino superior e na pro-
dução de pesquisa.

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VOZES MARISTAS

A segunda crise é a de legitimidade: a universidade deixa de ser


uma instituição consensual devido à hierarquização dos saberes especia-
lizados e, sobretudo, devido às restrições de acesso e às reivindicações de
igualdade de oportunidades para os filhos das classes populares. Por fim,
uma terceira crise tem a ver com a dimensão institucional da universidade,
que gira entre a reivindicação de sua autonomia, quanto à definição dos
seus valores e objetivos, e a pressão crescente de submeter a universidade a
critérios de eficácia e de produtividade de natureza empresarial ou respon-
sabilidade social. Na visão de Boaventura de Souza Santos (2005, p. 17), essa
“opção foi pela mercadorização da universidade”.

A universidade é chamada a ir além dessa lógica tecnocrata e eco-


nômica. Segundo Susin (2004):

disso decorre a tensão mais ou menos aberta e conflituosa entre o


tradicional ideal humanista e a realidade do mercado que assombra
e transforma todo o ideal em idealismo de verniz sem eficácia, algo
típico do romantismo que afunda na tragédia da impossibilidade de
conciliar a pureza do ideal com a crueza do real. (p. 81)

3. Contexto de incerteza
O início deste século trouxe uma velha aspiração - aquela de que
os complexos problemas que assolam a humanidade podem ser resolvidos
por meio da educação, de modo especial, pelas instituições de educação
superior (Teixeira & Audy, 2006, p. 102).Vivemos um período de transição
e, de certo modo, segundo Emmanuel Wallerstein (2001), trata-se também
de um tempo de perturbação e incertezas, que exigirá muita criatividade
em prol da construção de uma boa sociedade.

Talvez três imagens possam contribuir para compreensão do pe-


ríodo no qual estamos inseridos. A primeira é a da luz sintetizada na utopia
da razão forte, evocando o princípio inspirado na modernidade; dominar e
explicar tudo com a luz da razão. O ser humano dono do próprio destino.

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Ensaios sobre Liderança Profética e Servidora

A potência da razão se expressa plenamente. A realidade como um todo. É


isso que torna as ideologias violentas. A ideia de totalidade se torna tota-
litarismo. Da luz ao crepúsculo. A segunda poderia ser a imagem da noite,
tempo de abandono das esperanças, tempo de desencanto. É tempo de
naufrágio e de quebra. A doença mental é a indiferença; diante do viver
e menos humano. Multidões de solidões, o outro como um estrangeiro
moral. Uma terceira imagem é a da aurora, que representaria o reverso do
desencanto. Nostalgia de completa justiça; nostalgia do outro. Aqui se colo-
ca a urgência de encontrar sentido além do naufrágio, como horizonte do
outro. Redescoberta do outro em toda a sua concretude. Numa discussão
que seja de abrangência global, não podemos separar o conhecimento da
ética e a dimensão moralizadora de qualquer sistema educativo e político.

Uma analogia presente num texto inspirado de José Tolentino de


Mendonça (2016). Diz ele:

Mudanças e rupturas culturais aconteceram. Na orientação das


nossas viagens, deixamos de recorrer à bússola e passamos a utilizar
o radar. Isso significa o que? Significa que não estamos mais ligados
a uma direção precisa. É verdade que o radar vai em busca do seu
alvo, mas essa busca implica agora uma abertura indiscriminada,
plural, móvel. Com a bússola era-nos claramente apontando um
Norte, e só uma direção: o radar vem potenciar e tornar complexa
a procura. Diversificam-se os sinais e multiplicam-se igualmente os
caminhos. (p. 126)

A universidade atual vive num contexto de complexidade e in-


certeza em que são exigidas novas interfaces com a sociedade. Não se trata
de promover a formação de profissionais competentes para o mercado de
trabalho, mas ainda da autêntica excelência humana, pessoal, social e profis-
sional. A relevância da universidade deve ser avaliada em termos do ajuste
entre o que a sociedade espera das instituições e o que elas realizam de fato.

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VOZES MARISTAS

Inserida nas questões sociais que envolvem o mundo contempo-


râneo, a universidade não pode perder o contato com a realidade humana,
evitando os extremos. Um deles poderia ser o da “tentação” de um tra-
balho puramente acadêmico, perdendo-se na selva dos conceitos e abs-
trações. Outra “tentação” poderia ser a de cair na absorção dos problemas
do momento, levando a uma perda de uma visão de conjunto do processo
histórico, e a relação da ordem social com a ordem ética e com os valores
do espírito.

As universidades estão sendo “cobradas” por uma interação maior


com a sociedade. Elas não podem estar fechadas intramuros. Precisam dia-
logar constantemente com as empresas, governos e sociedade. Uma univer-
sidade inovadora e moderna deve ser protagonista no processo de desen-
volvimento de seu país.

A educação superior necessita reforçar suas atividades extensivas à


sociedade e, segundo a Encíclica Ex Corde Ecclesae (João Paulo II, 1990), suas
atividades de pesquisa devem incluir o estudo dos graves problemas que
assolam o mundo contemporâneo como a pobreza, a intolerância, a violên-
cia, o analfabetismo, a fome, a deterioração do meio ambiente e as enfer-
midades, problemas que afetam a dignidade da vida humana e que exigem
uma ordem política e econômica que sirva melhor à comunidade em geral.

O que entendemos por comunidade? Segundo Peter Block (2008),


comunidade tem a ver com a experiência de pertencimento, tem a ver com
ser um proprietário, algo me pertence. Em tudo o que fazemos colocar o
nosso propósito mais profundo. Experimentar a sensação de segurança que
surge em um lugar onde estamos emocionalmente, espiritualmente, psico-
logicamente inteiros e como membros. Somos convidados a tornarmo-nos
aquilo que queremos que o futuro seja. A comunidade universitária é uma
comunidade “aprendente”, melhora a si mesma, por meio do diálogo per-
manente entre educadores entre si e com seus alunos.

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De modo especial, a universidade, por meio de uma perspectiva


inter e transdisciplinar, deve almejar a criação de uma nova sociedade não
violenta e não opressiva, constituída de indivíduos altamente motivados
e íntegros, inspirados pelo amor à humanidade e guiados pela busca da
sabedoria.

Trata-se, portanto, do compromisso com a formação de profissio-


nais tecnicamente qualificados e comprometidos com a cidadania, corres-
ponsáveis pelos destinos humanos, especialmente os mais pobres e rele-
gados. Defender e promover os Direitos Humanos nos interpela a ações
decisivas e corajosas na construção da Casa Comum. Cabe a cada um de
nós e à universidade, enquanto instituição de Ensino Superior, criar e forta-
lecer comunidades, formando pessoas que se comprometam na construção
de uma sociedade sempre mais efetiva por meio do respeito à vida e a tudo
que é humano.

Na sua busca humanista, é inegociável a centralidade da pessoa e


da sua formação, como vetor central de desenvolvimento e inovação. A
universidade deve permitir-se navegar nos temas de fronteira do conheci-
mento e ser cada vez mais o lugar onde se ventilam questões fundamentais
que tocam a pessoa e a comunidade, entendendo-se comunidade como o
local e o global. Enquanto católica, a universidade também é chamada a as-
sumir a sua identidade, a expressar sua inspiração cristã, não apenas de seus
dirigentes, mas da comunidade como um todo, demandando um empenho
institucional como um serviço à sociedade (Teixeira & Audy, 2006, p. 109).
No que se refere ao serviço, o Instumentum Laboris sobre Pacto Educativo
Global (2014, p. 5) afirma que “fomos criados não apenas para viver com o
outros, mas também viver a serviço dos outros, numa reciprocidade salví-
fica e enriquecedora”.

A universidade é também um espaço aberto à autotranscedência,


no sentido amplo dado por Victor Frankl, referido por Elizabeth Lukas
(1990, pp. 35-36): universidade como a circunstância antropológica básica
da condição humana que implica sempre sair de si e dirigir-se para além

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dela própria, em relação a algo ou a alguém, em relação a um sentido.


Este sentido, no entanto, deve ser descoberto no mundo. Segundo Frankl
(2001), o ser humano sempre vai em direção a algo, ou a alguém diferente
de si mesmo, quer dizer; “quanto mais a pessoa esquecer de si mesma – de-
dicando-se a servir a uma causa ou a amar outra pessoa – mais humana será
e mais se realizará”, (Frankl, 2001, p. 100). Somente que esta auto realização
só é possível como um efeito colateral da autotranscedência. Em outras
palavras, o ser humano, torna-se ele mesmo quando ele próprio deixa se
de olhar e esquece de si. Segundo o instrumento de trabalho Educar hoje e
amanhã (Congregação para a Educação Católica, 2014, n. 2), os professores
devem aproximar os jovens do conhecimento e de suas aplicações. A pes-
quisa, porém, não vem separada da dimensão ética e transcendente do ser
humano. A verdadeira ciência, portanto, está inserida na trilogia ciência, éti-
ca e transcendência, elementos que se complementam, contribuindo para
uma melhor compreensão do ser humano e do mundo.

4. Universidade servidora para além da lógica


mercantilista
A universidade católica sabe qual é a sua missão. Tem ideias claros,
expressos em seus documentos. Constitui um serviço à humanidade e à
Igreja desde a causa da verdade. Aqui se coloca o sentido cristão de desen-
volvimento humano sustentável e integral (Rede Marista Internacional de
Instituições de Educação Superior, 2010, p. 4), opondo-se a uma visão que
se reduz à eficiência, à produtividade, e à lucratividade a qualquer preço. A
grande dificuldade, porém, está em tornar operacional o seu marco refe-
rencial. A universidade tem dificuldade diante da pergunta que lhe é feita:
formar para a vida ou para o mercado? Segundo Neutzling (2001), esse é
certamente um dos maiores desafios para uma universidade que quer, ao
mesmo tempo, primar pela excelência acadêmica e ser cristã e católica.
Nessa mesma direção, coloca-se o pensamento de Luiz Carlos Susin (2004,
p. 84), quando afirma que “a atual lógica do Mercado é redutora, compe-
titiva, excludente, contrária à lógica humanista das origens da universidade,

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que pretende ser humanamente holística, solidária, inclusiva”. Essa aparente


ambiguidade latente perturba os membros da academia.

Temos, então, ao menos dois modelos de universidade, segundo


Cleide Rita Silvério de Almeida (2001, p. 215): a do brasão e a do logoti-
po. Do brasão constituem universidades históricas ou tradicionais, atuando
num ensino complexo que discute as várias áreas do saber, o significado, o
conhecimento, a aura, a tradição; do logotipo, são as novas universidades,
em seu papel de instituições que absorvem a demanda por formação para o
mercado de trabalho, envolvendo-se somente com o saber como compro-
misso formal. Atuam em áreas profissionais que não discutem o universal,
mas o particular.

O papel da universidade é o de ajudar a sociedade a avançar. A


verdade é que a universidade, embora tenha que se adaptar a uma gestão
eficiente, com indicadores claros de resultado em todos os sentidos, não
pode ser administrada como se fossem uma empresa. Nas universidades,
pelo contrário, temos o dever de manter vivos também os interesses que
não expressam apenas o resultado financeiro. O que acontecerá no mundo
daqui a algumas dezenas de anos, quando os últimos conhecedores do gre-
go, latim, sânscrito, das línguas milenares da América Latina, e no mundo
afora já não estiverem mais entre nós? Quando não conhecermos mais
o passado, e tivermos apagado tudo o que veio antes, pois são experiên-
cias consideradas “inúteis”, então viveremos sem memória. E isso será uma
ameaça catastrófica para a democracia e para a liberdade. As universidades
não são feitas para vender diploma, e sim para oferecer aos estudantes uma
cultura que possa torná-los livres. Precisamos educar os jovens a resistir à
corrupção.

Nuccio Ordine, numa de suas obras, A Utilidade do Inútil (2016),


que se tornou uma espécie de best-seller global, procura recuperar o humano
que habita em cada um de nós, e tece uma crítica contundente ao status
quo do mundo de hoje: o fetiche do poder e a busca desenfreada pelo lucro.
Dentro desse contexto, onde se colocam as universidades? As universidades

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têm de apresentar uma cultura de muita flexibilidade para enfrentar os pro-


blemas de incerteza gerados por essa sociedade cada vez mais exigente em
que a velocidade das mudanças exige das Instituições de Educação Supe-
rior uma adaptação quase que diária, saindo do domínio hierárquico para
um domínio de competências. Nos últimos anos, por exemplo, a questão
das competências digitais tem se tornado um tema recorrente como con-
dição da lifelong learning, ou ainda da chamada “sociedade da informação”.

Boaventura de Souza Santos (2005, p. 76), porém, chama atenção


para o fato de que, em conjunto com a ”euforia tecnológica”, experimen-
tamos hoje uma certa desconfiança epistemológica, fruto das consequências
perversas de alguns progressos científicos, e também para o fato de que a
ciência moderna não foi capaz de cumprir com as suas promessas sociais. A
universidade, ao restringir o conhecimento “científico” como única forma
de conhecimento válido, contribuiu para a marginalização de grupos so-
ciais que só tinham a seu dispor formas de conhecimento “não-científico”.

Em 1999, o acordo de Bolonha, que reuniu ministros da educação


de diversos países, introduziu no panorama educacional conceitos como os
de competências e habilidades. Infelizmente esta linguagem foi confundida
com a construção de uma educação superior prioritariamente formadora
de mão de obra qualificada para o mercado. A partir desse momento, hou-
ve uma grande expansão da educação superior de um modo descolado da
antiga tradição da universidade como anima mater, ou seja, a mãe ou a alma
nutriente, que deixa marcas indeléveis na formação da pessoa, alguém que,
para além do conhecimento técnico, necessita fundamentalmente de um
novo ethos. Criou-se um tensionamento entre a missão da universidade e
as necessidades do mercado. Não se trata de aspirações incompatíveis, mas
também não podem ser reduzidas à superfície, ao mero produto, à tirania
dos rankings ainda que sejam importantes.

Educar hoje e amanhã: uma paixão que se renova (Congregação para a


Educação Católica, 2014) é bastante elucidativo quando fala numa multi-
plicidade de competências que não se resume meramente à transmissão de

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conhecimentos, mas que se relaciona a uma visão humanista que abrange


elementos como criatividade, imaginação, capacidade de assumir respon-
sabilidades, amor ao mundo, cultivo da justiça e da compaixão. A univer-
sidade não valoriza apenas as competências relacionadas ao saber e fazer,
mas também aquelas que ensinam a viver junto com os outros e crescer em
humanidade.

5. Algumas considerações finais


Platão em uma de suas obras chamada As Leis afirmava que “O
homem pode converter-se no mais divino dos animais, sempre que se o
eduque corretamente; converte-se na criatura mais selvagem de todas as
criaturas que habitam a terra, em caso de ser mal educado”. (Platão, 1980,
p. 766a). Mais do que conhecimento e informação, o final último da edu-
cação é a transformação da pessoa humana.

O livro A última grande lição, de Mitch Albom (1998), trata dos úl-
timos dias do Professor Morris Schwartz e traz algumas importantes lições
para todos os mestres. É bem verdade o que ele diz, observando alguns
de seus alunos: “Tanta gente anda de um lado para outro levando vidas
sem sentido. Parecem semiadormecidas, mesmo quando ocupadas em coi-
sas que julgam importantes. Isso acontece porque estão correndo atrás do
objetivo errado” (Albom, 1998, p. 42). E complementa: “É tudo o mesmo
problema... Colocamos os nossos valores em coisas erradas. Isso leva a uma
vida de desilusões” (Albom, 1998, p. 101). E lastima “Não importa onde
vivamos, o maior problema dos seres humanos é a miopia intelectual. Não
enxergamos o que podemos ser. Devíamos atentar para o nosso potencial e
nos esforçar para alcançar tudo o que podemos ser” (Albom, 1998, p. 126).

Como superar a inércia das Instituições e entre os diferentes pes-


quisadores? Que capacitação damos aos professores para que melhorem a
sua didática? A aprendizagem está centrada no estudante? Procuramos a
interdisciplinaridade no planejamento docente? Qual é a proporção en-
tre tarefas e projetos? Comumente dizemos que nossas universidades são

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VOZES MARISTAS

um reduto de aulas do século XIX, com professores do século XX e com


alunos do século XXI. Nossas ações de melhora são muito desordenadas.
Somos bons em avaliar e diagnosticar, mas não somos bons na solução dos
problemas. Isso porque nos equivocamos nas causas. Temos que tomar cui-
dado para que a nossa visão do ser humano ideal não nos impeça de ver o
humano real.

A educação por si só não pode resolver o problema do desenvol-


vimento. Uma educação inclusiva, holística, humanista poderá melhorar as
condições humanas dentro de uma convivência pacífica e tolerante.

Importante é o diálogo que requer capacidade de escuta e um


genuíno desejo de criar vínculos. Mas como nos alerta Byung-Chul Han
(2018, p. 69), vivemos também a era da sociedade do cansaço que se des-
dobra lentamente numa sociedade do doping cerebral, possibilitando, de
certo modo um desempenho sem desempenho, afinal somos o tempo todo
cobrados por desempenho e vivenciamos todos os tipos de excessos. O
excesso pode levar ao infarto da alma. Certamente todos concordamos que
esse fato ocorre não apenas na vida pessoal, mas sobretudo na vida profis-
sional, diante de um cenário de incertezas.

Se o panorama é de mudança na educação, especialmente nas or-


ganizações universitárias, são as instituições confessionais, com a crise das
metanarrativas, que talvez mais “sofram” com o momento atual. Suas bases
filosóficas e pedagógicas se veem desacreditadas em muitos aspectos, espe-
cialmente por aqueles que são seu público prioritário: os estudantes. Mas
desacreditadas também, por seus professores e técnicos. Ao falarmos em
organizações universitárias confessionais, logo temos presente a figura do
educador. Nesse tipo de instituição, o educador não é apenas o professor,
mas todos os que colaboram para o cumprimento da missão institucional,
pois o caráter testemunhal em todas as funções é relevante, visto ser o
exemplo uma forma de educar.

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Somos chamados a repensar uma nova antropologia – que se, de


certa forma, na articulação entre ética, política e economia, resolvia a vida
dos seres humanos, hoje necessitamos fundamentos da bioética, da biopolí-
tica, da bioeconomia, dentro de uma perspectiva de responsabilidade social.
Pensar o ser humano dentro de uma antropologia permanente de recons-
trução. Educação como um direito inalienável do ser humano. Recuperar
a capacidade de sentido do ser humano como protagonista de sua vida,
pensar em sustentabilidade, espiritualidade; somos parte de um processo do
qual não somos o começo, nem o final. Um convite a fazermos um esforço
permanente em prol do social e da transcendência.

Tendo em vista a nossa condição humana, de que lugar podemos


falar em responsabilidade social na universidade? Empatia pelo outro, pelos
problemas, pela dor, pelas vulnerabilidades. Um lugar antropológico em que
o outro habita; redescobrir a ética da proximidade e da dor na alma devido
a dor do outro. Em vez de falar sobre exclusão, reconhecer os excluídos, em
vez de falar de injustiça, identificar os injustiçados. Daniel Goleman e Peter
Senge (2015) sugerem que foquemos o nosso mundo interior, conectando
com nossos propósitos e nossas aspirações mais profundas. Eles descrevem
como podemos aperfeiçoar a autoconsciência, a empatia e as habilidades
sociais, e como isso tudo traz benefícios para o desenvolvimento pessoal e
acadêmico. Como seres humanos, trata-se de compreender o eu, o outro, e
os sistemas mais amplos dos quais fazemos parte. Conhecer o outro, sentir
com o outro. Empatia como valor e como virtude.

Uma educação inclusiva e de qualidade, em que a educação su-


perior seja um dos motores para garantir o desenvolvimento sustentável.
Instrumento para enfrentar o mundo moderno, cidadãos capazes de formar
uma sociedade justa, aberta, solidária. Educação superior como um direito
humano fundamental. Um projeto sustentável vai contra a sociedade in-
dustrial consumista e predatória em que vivemos hoje. A educação supe-
rior está diretamente vinculada com a melhoria da qualidade de vida da
sociedade.

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A universidade deve promover uma visão global, também uma vi-


são holística, uma vez que constitui um conjunto de variados saberes que
de certo modo se encontram. Na universidade deveríamos construir uma
cidadania ambiental: pesquisa, mas também mudanças de hábitos e atitudes,
uma nova forma de se relacionar com a natureza. A relação com a natureza
foi confundida com dominação da natureza. Uma nova relação é urgente
para garantirmos o futuro das próximas gerações.

O ser humano somente se realiza ao serviço do ser humano. Ser


inovador, eficiente e transformador. Combinar liderança com um bom pla-
nejamento estratégico e um acompanhamento financeiro acurado. Buscar
incansavelmente a qualidade em tudo o que fazemos. Nesse sentido, um
conceito básico de qualidade, fazer as coisas bem-feitas, a primeira vez,
todas as vezes, tem a ver com a confiança. Lideranças com disponibilida-
de para construir, empreender e transformar o mundo. “Porque mudar o
mundo passa antes por despertar nosso potencial, entendendo nós mesmos
e nossos interesses... é ser a melhor versão de nós mesmos” (Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul, 2018, p. 44).

Universidade do futuro, como será? Falamos de muitas mudanças.


Nossa missão é ajudar os nossos jovens a enfrentar este mundo desafiante
com uma visão humanista, numa dimensão de serviço. A educação será
autodidata e digital? Na qualidade de atores sociais, temos a prerrogativa de
melhorar a realidade, na qual a responsabilidade social seja um dos elemen-
tos chaves na formação do profissional do futuro.

O escritor, poeta e Cardeal José Tolentino de Mendonça, em sua


obra A Mística do Instante (2016, p. 26), enfatiza: “Trata-se antes de en-
contrar uma nova hermenêutica, de arriscar uma nova síntese, de propor,
partindo do ato de crer, mas também do ato de viver uma nova gramática
sapiencial”. E insiste ainda na direção de que estamos em déficit não apenas
de mestres de vida interior, mas simplesmente de vida, de uma experiência
digna de ser vivida.

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PERGUNTAS PARA A REFLEXÃO


1. Quais conexões e possibilidades integrativas podemos estabelecer entre
a Educação Básica e a Educação Superior Marista?
2. Qual a contribuição das Instituições de Educação Superior Maristas na
formação de lideranças (Irmãos, Gestores e Leigos) nas diversas frentes
de missão do Instituto?
3. Temos um considerável número de instituições maristas de Educa-
ção Superior distribuídas geograficamente em diferentes regiões do
Instituto Marista. Em que áreas poderiam ser desenvolvidos projetos
conjuntos?
4. Qual o principal papel das Instituições de Educação Superior Maristas
frente ao contexto e cenário no qual se encontra o Instituto Marista
na aurora do Século XXI?

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