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O DESEJO DA REALIDADE* Maria Rita Kebl T Memo sabendo que a natureza tiltima do desejo ¢ da categoria do impos- sivel, do absoluto, do interdito — que sao trés maneiras de dizer a mesma coisa —, ndo € assim que se dé nossa experiéncia cotidiana como sujeitos desejantes. Do ponto de vista do modo corriqueiro como vivemos e expressamos nossa condic#o de desejantes, o lugar dos objetos do desejo é a realidade, ou melhor, o campo das representagbes da realidade e dos objetos ditos reais. E nesse campo, das Tepresentagdes da realidade, que podemos falar nao O desejo, mas do desejo, des- viado de seus fins primérios, obscuros para 0 sujeito, em diregdo a objetos secun- darios que aparecem para a consciéncia como objetos possiveis cujo alcance de- pende pelo menos em parte de nossa agdo voluntaria, consciente. Aqui sou obrigada, um pouco a contragosto, a fazer um paréntese a res- peito do que estou pretendendo chamar de realidade. A principio parece simples: real é tudo o que se diferencia da produgao alucinatoria. Porém, as coisas se com- plicam muito quando se constata que, por um lado, também aquilo que o psi- guismo alucina se baseia na meméria de alguma experiéncia com algum objeto da realidade. Por outro lado, nfo temos nenhuma garantia a respeito da nossa plena objetividade, ou seja: de que nossa percep¢do e representacdo nao so dos objetos da realidade, mas principalmente das leis que regem as milltiplas relagoes entre esses objetos, e entre nds e “‘eles’”, sejam percepcdes e representacdes reais. Sabemos que, quando'Freud fala em Principio de Realidade ou em exigén. Cias da realidade, esta colocando a prova dos noves no limite daquilo que importa 20 psiquismo, que € 0 proprio limite entre a vida e a morte: satisfacao real é (*) Este trabalho contou com a participacdo integral da psicanalista Maria Marta Assolini Desde as primeiras fases de estudo e reflexdo, até a elaboracao do texto definitivo, sua contribuicio foi decisiva, na forma de sugestdes, referencias tebricas, criticas, esclarecimentos e uma total disponibi- lidade para conversas amistosas ¢ exigentes, sem 0 que *‘O desejo da realidade”” nao teria passado de ‘uma vaga intuigdo para mim. A ela este texto ¢ dedicado. 363 aquela capaz de assegurar a sobrevivéncia do corpo — ultimo reduto que con- segue se opor 4 onipoténcia do pensamento — enquanto o engodo da satisfacao alucinatéria é logo denunciado pelo proprio corpo, que continua a enviar sinais de desconforto e/ou alarme até que algum outro objeto venha ocupar o lugar do objeto criado pelo psiquismo em sua tentativa de auto-suficiéncia. A este outro objeto capaz de aplacar 0 corpo chamamos objeto real, ainda que o psiquismo precise de muito tempo e repetidas provas da realidade até diferenciar um do outro. Aqui, temos uma nocio da realidade muito proxima da concretude: real € aquilo que fala a0 corpo, prazer capaz de aplacar a carne, ameaca capaz de des- truir a vida ou mutilar, danificar, modificar essa nossa ‘‘morada temporal” —, nica morada do psiquismo, freqiientemente subestimada por uma certa ‘‘onipo- téncia do pensamento psicanalitico”’ pos-freudiano. Mas a prova do corpo nfo pode ser a tinica prova dos noves da realidade, uma vez que para além da realidade imediata vivemos a realidade de uma deter- minada cultura, um campo de objetos e percepcdes que ultrapassa em muito aquilo que é do alcance da carne; um vasto campo simbélico no qual prazer e des- prazer vao depender de um codigo compartilhado. Inclusive os prazeres vividos, aparentemente, “‘no corpo". Codigo tao externo ao psiquismo — ainda que assu- mido e introjetado por ele — quanto os objetos concretos de que 0 corpo se apro- pria para sobreviver. Assim, a prova do corpo & preciso acrescentar a prova do Outro, humildemente aceitar que, como programa minimo de realidade — e sempre no limite —, real é tudo aquilo que o cédigo de uma determinada cul- tura aceita como tal; real é todo objeto e toda relaco que a cultura a que per- tengo reconhega como tal. Esse critério convencional, tao util as ciéncias exatas, serve mal e porca- mente a psicandlise, uma vez que o proprio Freud trabalhou para destituir boa parte de nossa confianca nos cédigos compartilhados ao encontrar outras causas, outras explicacdes e outras determinacOes para fendmenos que até entdo a cultura a qual pertencia pensava ja ter ‘‘enquadrado na realidade”’ 4 sua maneira. Além do mais, a psicandlise nos ajuda a desconfiar do campo do codigo como prova de realidade, ja que ¢ esse justamente 0 campo privilegiado da neurose, das racio- nalizacdes, das defesas que nos impedem, individualmente mas apoiados o melhor possivel no consenso, de ver 0 que nao é para ser visto. Ainda assim temos de nos conformar com o fato de que 0 cédigo tem 0 poder de criar um campo de realidade — social, ideoldgico ¢ inclusive neurético — e que é desse campo que nos chegam as representacdes, também externas ao psiquismo, que nos permitem uma certa confianca em que aquilo que estamos vivendo faz parte do que 0 Outro aceita como realidade, e, portanto, é como se assim fosse. E como se assim fosse. Uma vez que nos acostumamos a aceitar que a tealidade para a psicandlise tem um estatuto diferente do que tem para a filosofia; uma vez que aprendemos a desconfiar da relacdo necessdria entre realidade Satide, e encaramos a superadaptacao as | lidade como p da aco das defesas neuréticas que inibem a curiosidade, a capacidade de inves- 364 tigagao e de insubordinacio, — derivadas da curiosidade sexual infantil —, pode- mos admitir recuar até esse ponto como ‘‘ programa minimo"” para a definica0 do ‘campo social da realidade Desde que nao se petca de vista o limite da carne: pois alguém pode recusar 0 critério do Outro como exigéncia da realidade e se dispor a morter como sujeito social em nome de alguma outra experiencia de realidade — isolamento dos misticos, de alguns poetas, de alguns revoluciondrios —, nem por isso estaremos seguros de poder rejeitar essas experiéncias como menos reais em fungio de seu desvio quanto 20 codigo. Mas nao se pode desatender totalmente os critérios do corpo sob pena de morte — e a morte € o fim de qualquer possibilidade. Portanto, continuamos com Freud. O critério tltimo e irredutivel da reali- dade ainda é 0 que situa as possibilidades da vida diante das certezas da morte. Mesmo porque, embora sejamos obrigados a admitir que a realidade ¢ externa a0 psiquismo, ultrapassa seu alcance e sua capacidade de entendimento, precede nossa passagem por este mundo e certamente sobreviverd a ela, é impossivel nos referirmos 4 totalidade desse real. A realidade de que se trata aqui é a realidade humana, resultante da permanente negociagio entre as criagdes da realidade psi- quica e as imposigdes da realidade externa. Se no inicio da sua obra Freud ainda tinha a ingenuidade de supor que algumas categorias de seres humanos — os neurdticos e psicéticos — viviam em menor ou maior grau ‘‘mergulhados na realidade psiquica’’ enquanto outros — os sos — eram capazes de distinguir claramente a realidade sem deformé-la por aco do desejo inconsciente, logo foi obrigado a perceber que estava formulando uma psicologia cujas leis valiam para além dos limites do patologico. Assim, as deformacdes da realidade produzidas por a¢do do desejo, embora variem em qualidade e grau, no so proprias desta ou daquela patologia, mas proprias da existéncia do desejo e do recalque, 0 que significa proprias do humano, como 0 inconsciente também 6. As relagdes entre a realidade psiquica e a realidade externa ao psiquismo esto longe de ser de pura oposica0. Para entender um pouco do que as constitui, temos de admitir no minimo que: primeiro, toda fantasia toma como suporte algum acontecimento da experiéncia real; segundo, nem tudo o que é recalcado sto fantasias — percepgdes da realidade externa que podem ser sentidas como ameacadoras para o ego em funcio de sua associagdo com o desejo também s30 recalcadas e se incorporam ao conjunto de imagens que vao formar a tal realidade psiquica. A percepcdo ‘“‘minha mae me odeia’” pode ser, absolutamente realista em alguns casos e, recalcada por seu cardter doloroso e ameacador, ficar conde- nada a se manifestar na forma de fantasia ou percep¢ao deformada. Por ultimo, © desejo e suas manifestagdes ndo sdo menos reais do que as trovoadas ou as fases da Lua Por tudo isso, nenhuma humildade por parte do analista diante daquilo que é real para seu paciente ¢ demasiada. Como o criador da psicandlise, devernos saber negociar na moeda do pais que estamos visitando,! que no é especifica- mente o pais da neurose ou da psicose — ¢ 0 reino do inconsciente. Para além da onipoténcia do pensamento existe 0 pensamento ¢ sua poténcia, cujos limites 365 Aes nunca conhecemos o suficiente. Para além das frustragdes que a realidade impoe & onipoténcia do pensamento, temos de admitir que todo o resto do que pode ser ou ndo “‘real’” esta ai para ser redefinido por cada um que queira se aventurar — como Freud — a enxergar e agir ultrapassando as fronteiras do que estamos acos- tumados a convencionar como realidade. i Quem observa uma crianca se desenvolver pode conferir que, passado um primeiro momento em que ela parece no notar o mundo, e um segundo mo- mento em que, jé tendo notado o mundo, ela reage com angiistia a tudo o que é novo — tudo 0 que nao é a mae (anguistia que nao deixaremos nunca de sentir frente ao desconhecido, ainda que a esse sentimento venha se juntar outros) —, ela entra numa longa fase de inquietacZo que eu chamaria de fome do mundo. ““Fase’” que, se essa crianga nao for muito reprimida em seus impulsos, devera caracterizar o resto da sua vida, passando por altos e baixos a depender dos con- flitos que desviardo ou bloqueardo o curso da sua libido. Pois essa fome do mundo, essa libido passeadora que parece querer provar sempre um pouco de tudo mesmo quando aparentemente satisfeita em suas de- mandas essenciais — alimento, amor —, essa fome é tipica do humano, diferen- ciadora entre o que ¢ do homem e o que é da natureza. Essa fome nos permite dizer com tranqtilidade que a pulsdo ndo é da mesma natureza que 0 instinto, i4 que o instinto se define por seu objetivo, enquanto a pulséo permanece mével, capaz de abragar 0 mundo entre seus objetos. O que pretendo investigar aqui ¢ alguma coisa a respeito dessa fome do mundo, que, quando se nos apresenta desinterditada, ¢ capaz de nos proporcionar experiéncias muito proximas da felicidade — ainda que freqiientemente acompa- nhadas da chamada angiistia de prazer. E notem que estou relacionando a felici- dade ao sentir fome, e nao ao sentir saciedade; ainda que eu admita que uma Parte, mas s6 uma parte, da felicidade da fome vem da antecipacdo da experiéncia de saciedade, nao posso admitir que essa antecipacao seja responsavel por toda a alegria da fome, j4 que também sabemos por experiéncia que a saciedade esta mais proxima do tédio, de uma certa tristeza, de uma espécie de morte do desejo, do que a fome — e, portanto, a saciedade,é sempre também uma decepcio. Se a alegria da fome fosse pura antecipacdo da saciedade, seria a antecipacéo de uma decepcao. Nao; a alegria da fome, essa mesma que nos faz dizer ‘‘o melhor da festa ¢ esperar por ela’’, nao é a antecipacdo da hora em que nao teremos mais fome, hora de grau zero da alegria, mas a propria alegria de desejar, de ter desejos €enuncié-los, ou, como se diz, de viver por eles. Mas, assim como quero diferenciar a alegria da fome do prazer da sacie- dade, é importante diferenci-la da experiéncia da privagdo, ja que esta nunca é vivida sem imensa angistia, a propria anguistia de morte: a diivida sobre as possi- bilidades de sobrevivencia do sujeito. A alegria de desejar depende de uma certa 366 dose de confianga no real, uma certa quantidade de experiéncias de gratificagao que permitam esperar que esse Ingar externo ao psiquismo para onde se espraia a ‘“fome do mundo”’ seja um lugar de onde pode vir alguma espécie de prazer ¢ alguma espécie de confirmacao, de aplacamento, pelo menos tempordrio, de mi- nhas indagagdes. E quando a realidade da nossa experiéncia é de certa forma amis- tosa, quando a realidade cede ao acordo que o desejo faz com suas exigéncias, que a fome do mundo é sentida como antecipacao feliz, afirmacao do sujeito que a0 dizer “*eu quero’” esta também dizendo ‘‘eu posso’’ ou, pelo menos, ‘“eu acho que posso’’. Quando o real é hostil, lugar de privagdo e frustrac4o permanentes, tudo isso muda, e nos deparamos com a ameaca constante de afrouxamento dos vin- culos e dos investimentos do Eu em relaco & realidade: 0 que se pode chamar psicose da miséria. sig A realidade e seu Principio s6 se introduzem no campo do desejo a partir do malogro da satisfacdo alucinat6ria através.da qual o psiquismo tentava obe- decer as demandas imediatistas e onipotentes do Principio do Prazer. O fracasso (parcial, veremos) do Principio do Prazer inaugura a um s6 tempo trés instancias para a psique — 0 tempo, a realidade e o embrido de um sujeito, diferenciado do todo ao qual se achava unido imaginariamente e portador de um desejo, ja que na vigéncia do Principio do Prazer no se pode falar exatamente em desejo justa- mente pela vinculacio imediata entre a necessidade e a satisfac alucinatéria. No minimo, nao se pode falar de permanéncia do desejo antes do fracasso do Prin- cipio do Prazer. E a partir desse fracasso que o psiquismo desenvolve recursos para fazer a mediagdo necesséria entre a pulsdo e a satisfacdo parcial da pulsdo — recursos a que chamamoé Principio de Realidade. E entao que se introduz a experiéncia do tempo, ja que a psique, regida de acordo com os processos primarios, vive uma espécie de atemporalidade, de simultaneidade entre a manifestacao da necessi- dade e a representacao do objeto da satisfacao. E com o fracasso do Principio do Prazer que surge a possibilidade de este recém-chegado ao mundo se tornar sujeito de uma historia, que sera a historia das tentativas que ele fara para encontrar satis- facao substitutiva para a satisfagao alucinatoria: a historia dos embates do indi- viduo com a realidade e das muiltiplas enunciacdes do desejo, que s6 sao possiveis, se referidas aos objetos do ‘‘mundo real’. E aqui nao interessa se 0 psiquismo percebe esses objetos ‘‘corretamente’’ (ja vimos que nunca os percebe de ma- neira totalmente ‘‘realista’’), uma vez que 0 que nos ii a tealidade psi- quica, resultante da composicao possivel entre as demandas do prazer e as.impo- sigdes da realidade externa. Importa que a representacao desses objetos tenha algum apoio na realidade, que se sustente minimamente diante da prova do corpo eda prova do codigo, as provas da realidade que nos interessam. 367 Assim, podemos dizer que todo sujeito é sujeito de um desejo, ou melhor, todo sujeito & sujeito porque é desejante — e esse vinculo é fundante, j& que sujeito, realidade (da qual o tempo faz parte inegavel) e desejo sdo paridos a partir do mesmo evento: o fracasso do Principio do Prazer, primeira experiéncia de corte na unidade imagindria mae-crianga, ou mundo-crianga, ou, ainda, na uni- dade imaginaria entre a necessidade e sua imediata satisfacao. A decepcio com a satisfacao alucinatéria obriga a introducao da realidade para o psiquismo,” e a realidade cria 0 desejo em dois sentidos: primeiro, porque ¢ do fracasso dessa satisfacdo imediata que o desejo se manifesta enquanto tal. En- quanto ndo existe demora, nao existe corte, ndo é possivel reconhecer o desejo. Seguit desejante é assim, para 0 sujeito, ao mesmo tempo condenacao, signo de sua expulsdo do paraiso, e condicao de sua existéncia, jd que ndo desejar o reme- teria de volta a situacao primitiva de ndo ser sujeito, indiferenciacio anterior a esta separacdo inaugural que nos faz sujeitos de uma historia pessoal e intrans- ferivel. Em segundo lugar, a realidade cria 0 desejo porque é dela que nos chega a percepcao dos objetos parciais substitutivos para a demanda absolutista da pulsdo; objetos que permitem que o desejo se destaque da pulsio e ganhe uma fala (a pulsio € muda), e ao mesmo tempo aliviam o sujeito da pressdo dessa demanda absolutista destinada ao fracasso. A realidade cria o desejo do mesmo modo (e nao 0 mesmo processo?) que se pode dizer que uma mie cria seu filho, oferecendo a ele uma fala, seu proprio desejo (com o qual a crianga de inicio se identificard) e os recursos de satisfagao que lhe permitam crescer e multiplicar por sua vez seus proprios recursos, E com a introdugao do Principio de Realidade que © sujeito desenvolve consciéncia, aten¢ao, meméria, discernimento, pensamento e acéo! > Ao mesmo tempo, sdo esses recursos psiquicos que criam a realidade na qual este individuo Particular ira viver, realidade que nao é simplesmente um dado exterior ao psi- auismo e imposta em bloco a ele (este sim o “‘real impossivel’* a que se refere Lacan), mas recriagdo permanente do sujeito a partir de cada uma de suas inter- vengdes concretas e sobretudo simbélicas e simbolizatorias. O sujeito nao se apro- pria simplesmente do cédigo posto a sua disposicZo pela cultura, anterior 4 sua entrada em cena. Ele re-simboliza continuamente, interfere continuamente no Codigo. As chamadas ‘‘faculdades mentais’’ enumeradas em ‘‘Os dois princi- pios...”’, de Freud, representam um enorme ganho de liberdade para 0 sujeito que deixa de estar condenado ao recalque como tinico recurso para evitar despra- zer. Meméria, atengao, discernimento e o grande herdeiro da atividade alucina- toria que é 0 pensamento permitem que 0 psiquismo nao tenha mais de simples- mente recalcar toda a representacao que é fonte de desprazer, e assim possa dis- tinguir em que circunsténcias uma representacdo pode trazer prazer, desprazer ou ser neutra nessa questo. Interferir nessas circunsténcias, reinterpreté-las, relativiza-las ou até mesmo alteré-las concretamente quando possivel é interferir no codigo, re-simbolizar o real. Viver uma hist6ria pessoal que nao seja simples- mente repeticdo do ja vivido antes pelos que-nos precederam. 368 [...] Aquele que comecou a perceber a magnificéncia da coesdo universal e suas leis imutiveis, perde facilmente seu proprio, pequenissimo Eu. Ab- sorvido pela admiracio e possuido de uma verdadeira humildade, esquece com demasiada facilidade que é por si mesmo uma parte daquelas forcas cuja atuagdo o maravilham e que pode tentar alterar, na medida de suas energias pessoais, uma pequenissima parte do curso necessario do mundo, deste mundo onde o pequeno nao é menos maravilhoso nem menos impor- tante que o grande. * Ha uma distancia entre a onipoténcia do desejo, que pretende criar um mundo proprio a sua inteira conveniéncia, ¢ 0 poder de modificagio do Eu sobre a realidade, sinal de poténcia e side do ego. Distancia marcada pelas sucessivas transformagdes por que este sujeito teve de passar, movido pela aspiracio de ‘‘en: contrar uma realidade na qual o prazer seja possivel’”.5 dar dse ene Vv As representacdes dos objétos da realidade 40 0 tinico ponto de apoio do sujeito para falar do desejo, mas o julgamento que o Eu efetua sobre essas repre- sentagbes principalmente sobre sua relacdo com elas esté cheio de enganos, ou melhor, de ilusdes, criadas pelas proprias colisdes entre o desejo € 0 recalque. Se alguém diz: ‘‘aquilo que eu mais desejo é conhecer a Europa’’, respal- dado na plena certeza de que a Europa é um objeto real e de que seu desejo encontra consonancia e reconhecimento rio desejo de muitas outras pessoas, ‘mesmo assim estaré incorrendo em pelo menos trés ilusdes ou, por assim dizer, trés meias verdades. Primeiro, 0 que ele quer nao é exatamente conhecer a Europa — 0 que pressupde desconhecimento —, j4 que ao dizer Europa o sujeito est, ainda que inconscientemente, se referindo a alguma coisa que ele pensa que conhece, pelo menos o suficiente para desejar. O que ele deseja ent4o, aqui, nao é exatamente conhecer um lugar desconhecido, mas reconhecer um objeto de suas represen- tagdes, de seu universo simbélico, investido de afetos a priori a partir principal- mente do desejo do Outro. E (também) porque a Europa é um objeto da realidade bastante privilegiado dentro do cbdigo que ele se torna tio privilegiado aos olhos desse sujeito particular (supondo que ele seja brasileiro como nés...). Assim, quanto mais ele ‘‘souber’’ sobre essa Europa, mais chances tera de obter_psazer visitando-a, se aquilo que ele antecipa for encontrado.de fato — e, nesse caso, conhecemos 0 poder do desejo em promover ilusdes de modo que essa pessoa possa encontrar exatamente o que esperava e simplesmente nao perceber nada do que contrarie a imagem preconcebida da Europa dos seus sonhos. Nesse caso, ele encontraré a Europa como se fosse um reencontro, ¢ 0s reencontros em geral sdo mais felizes que os enfrentamentos com o desconhecidp — é so lembrar acrianga que reage com angustia a tudo o que nao é a mae. O reencontro é uma reafirmacdo narcisista do ego e um prazer de repeti¢ao, enquanto 0 encontro com 369 ‘0 desconhecido ameaga o narcisismo, exigindo que o ego se refaca, se reestruture parcialmente para incorporar o(s) fato(s) novo(s).* "Nesse caso, se 0 sujeito por algum grande azar nao for capaz de promover a ilusdo de estar reencontrando a Europa de seus pressupostos, corre © risco de voltar como se nao tivesse ido: 0 que ele foi (reencontrar nao estava, e 0 que encontrou nao estava investido de afeto, nao era a Europa dos seus desejos! Em segundo lugar, lembrando a dificuldade de Freud em visitar sua amada Roma, é ilusio pensar que 0 objeto mais desejado seja fonte de expectativas de puro prazer. E bem conhecida a interpretagdo que Freud fez de suas dificuldades em pisar 0 solo romano: aquilo que representava para ele a experiéncia mais dese- jada era também fonte de maior angustia justamente por seu enlace com o aspecto recalcado do desejo — superar seu pai na rivalidade edipica.’ Realizar_um_grande desejo pode ser, portanto, uma tarefa perigosa para a consciéncia, carregada de ameacas arcaicas e causadora de grandes angustias. No entanto, vencida essa an- gustia (quando é possivel vencé-la), nao ha felicidade maior do que a realizacao de ‘um desejo infantil — ¢ isso Freud também pdde constatar quando, enfim, visitou Roma... Por fim, talvez devéssemos dizer ‘‘o que eu mais guero é conhecer a Eu- ropa’’, jé que © desejo aponta para um outro lugar: o lugar da sua incansavel tepeticao. Entdo, o que mais se deseja nao ¢ ir 4 Europa, mas desejar ir d Europa e seguir desejando, seguir sendo sujeito de um enunciado que aponta para algum objeto real, reconhecido pelo Outro e que pode representar a reafirmacao repeti- tiva do desejo no campo da realidade. O que mais se deseja é seguir sendo sujeito de um desejo que possa se enunciar, ter a falta mas também o significante, j4 que © terrivel é a falta sem um significante que parega lhe corresponder — e assim sucumbir a ela. Terrivel ¢a perplexidade de se perguntar: 0 que eu desejo?, que é ‘© mesmo que desconhecer — quem sou eu? —, ja que desde a origem o sujeito se identifica pela sua particular cadeia de significantes, sua colecdo particular de re- presentantes da falta, tanto mais asseguradora quanto mais referida ao campo da tealidade a partir do qual também o Outro o reconhece e o legitima, reconhece os objetos (secundarios) do seu desejo. E ao reconhecer esses objetos como dese- javeis também no campo do cédigo que © sujeito reafirma narcisicamente a sua existéncia como alguém capaz de expressar 0 que também é desejavel para 0 Outro. Afinal, nunca é demais lembrar, com Lacan, que todo desejo € desejo-do- desejo-do-Outro — no limite, e sempre no limite, j4 que entre a abstracdo de que a teoria ¢ capaz ea maneira como 0 desejo se apresenta a consciéncia vai uma dis- tancia to grande quanto a distdncia entre o recalcado e o permitido. Distancia que s6 se revela pequena depois de transposta. Vv Se a realidade, 0 desejo e 0 sujeito sfo fundados a partir do recalque que acompanha o fracasso do Principio do Prazer, vale a pena especularmos um pouco sobre a natureza do que é recalcado. 370 Segundo Freud, 0 que é prazer para 0 inconsciente ¢ desprazer para a cons- ciéncia. O que eu mais penso que desejo talvez seja ir a Europa, mas este desejo j est no lugar de um outro, substituindo com algum éxito aquilo que nao pode se expressar. Nossa contradicao fundamental é que a busca do prazer seja regida justamente pelo Principio menos apto a realiza-lo, e que a manifestacio das de- mandas regidas pelo Principio do Prazer tenha tanta capacidade de suscitar des- prazer 4 consciéncia. Pois se 0 Principio do Prazer busca a descarga imediata de qualquer exci- tagdo — e a recordacdo deste percurso que vai da carga de excitacdo (desprazer) A sua descarga (prazer), chamamos desejo 9— isto equivale a dizer que busca um estado de ndo-tensao, de nao-desejo, de repeticdo de um eterno mesmo. Freud, depois de muito se indagar sobre essa tendéncia do psiquismo a repeticao, con- cluiu que 0 misterioso objeto primario do desejo, nunca expresso diretamente porque recalcado desde a introducao do Principio de Realidade,"° objeto perdido | para a consciéncia mas terrivelmente persistente no inconsciente, é um objeto imaginario representativo de um estado de plenitude ¢ de vazio. Capaz, no imagi- nario, de conduzir 0 sujeito cansado das tensdes de carga-e-descarga da vida, de volta a um lugar de repouso onde ele de fato nunca esteve: lugar de plenitude e | | indiferenciagio que, sendo dominio do Principio do Prazer ¢ assim mesmo — e{ por isso mesmo — dominio da Pulsio de Morte. caminho da satisfagdo alucinat6ria imediata é portanto recalcado nao s6 porque fracassa enquanto possibilidade de satisfazer 0 aspecto organico da pulsdo — oseio alucinado nao mata a fome — mas sobretudo por ser um caminho, uma cadeia associativa que conduz a pior das angustias, a de aniquilamento do sujeito, grau zero do desejo — fantasia priméria da fusdo com o objeto total e fim das perturbacées vitais, Essa fantasia equivale a uma fantasia de morte, e se nao é a representacao da morte do corpo (que ndo conhecemos) é certamente a morte do sujeito, retorno 4 origem indiferenciada, a um lugar onde as psicoses nos sugerem que fantasias de incesto e morte se equivalem. Mas, se é 0 recalque que interdita 0 acesso da consciéncia ao ‘objeto per- dido’’ imaginario, ele é por sua vez insuficiente para desviar 0 curso da libido desse investimento cujo caminho esta sempre aberto no inconsciente. O recalque |[/ €um recurso para evitar desprazer, mas nfo para proporcionar prazer. O funci namiento psiquico, marcado pelo recalque, fica para sempre dividido, aceitando e recusando as condi¢6es do Principio de Realidade, aceitando e recusando os pra- zeres patciais que a realidade lhe oferece e permite, recusando e insistindo na demanda de satisfacdo absoluta, gigante temporariamente imobilizado no incons- ciente, mas que pode a qualquer momento despertar, como lembra a poeta! a respeito da paixdo: ‘'é uma fera que hiberna — precariamente””. Para acalmar essa fera sO existe um recurso eficaz — o prazer, algum prazer. E a realidade com seus pobres objetos parciais que vai oferecer ao sujeito possibilidades de prazer substitutivas do prazer alucinatério e impedir que 0 campo do desejo seja inun- dado pela Pulsdo de Morte e seus ‘‘equivalentes em vida’” — incesto, indiferen- \ 371 ciacado. Assim como a luz do dia vem nos apaziguar minimamente depois de uma noite de insOnia em que ficamos entregues as nossas piores fantasias — e qualquer copo de Agua, qualquer escova de dentes parece ter a capacidade de recriar um ter- reno protegido contra a morte que havia dentro de nos —, a realidade tem um certo poder de salvar 0 ego da Pulsdo de Morte. Um certo poder, isto é, nos casos em que a realidade oferece gratificagdes capazes de sustentar os investimentos feitos em sua direca0. Por fim, é bom lembrar que, para além do minimo necessério de recalque, quanto mais recursos 0 sujeito tiver para obter prazer sem ter de recalcar todas as representagdes regidas pelo seu Principio, maiores suas possibilidades de gozo, j4 que, primeiro, seu desejo nao é de Jeite, mas de plenitude; segundo, o desejo nunca se conforma totalmente com os limites impostos pelo Principio de Reali- dade. E imediato evocarmos a experiéncia do gozo sexual, carregada de fantasias mesmo numa relagdo sexual ‘‘real’’, ¢ a experiéncia de gozo presente no ato da criagdo poética, por exemplo, em que as fantasias se aliam aos recursos secun- darios da psique para ‘‘inventar realidades”’ capazes de proporcionar um acrés- cimo de prazer aqueles que 0 mundo oferece. Estou relacionando aqui a expe- tiéncia do gozo ao sentimento de onipoténcia e de extravasamento dos limites do ego que acompanham essas experiéncias — para as quais 0 sofrimento (também presente) nao se constitui necessariamente em obstaculo. Terceiro: nem tudo o que, no que se refere ao desejo, ¢ prazer de repeticao, esta a servico da Pulsdo de Morte. A repetigao é a insisténcia do desejo nao apenas em se realizar plenaméente, mas em se expressar, em ser reconhecido pelo Eu." Se 0 desejo se realizasse plenamente no sonho, por exemplo, nao se repetiria de um sonho a outro. O que se realiza no sonho e com isso proporciona inegavel prazer é a expressao (disfarcada) do desejo. **O desejo é indissociavel de sua signi- ficatividade’’, escreve Moustapha Safouan," de modo que significd-lo é também, de certa forma, realiza-lo. Mas sé de certa forma — tanto que ele se repete. O que estou especulando aqui, e que talvez possa nos esclarecer alguma coisa a respeito do que estou chamando de ‘‘desejo da realidade’’, € que a satis- fagao parcial do desejo possibilitada pelos objetos secundarios ‘‘disponiveis’” no campo da realidade é indissocidvel de um minimo de satisfagdo alucinatoria. Afi- nal, 0 que seria do prazer obtido ‘‘na real’’ se até mesmo sua fruicdo mais pal- pavel e mais adaptada aos critérios do cédigo social no se comunicasse sempre com 0 onirico, nao fosse dotada de um poder de sonho fugidio capaz. de incre- mentar esse prazer e imprimir-lhe as marcas do goz0? E, quando escrevo poder de sonho fugidio , é para frisar que esse poder nio é total; perseguir isto que nos pa- rece sempre ao alcance, mas nos foge constantemente é a condig&o que nos permite continuar desejande. Continuar desejando; o que significava continuar vivendo enquanto orga- nismo e enquanto sujeito diferenciado. A manutengdo do desejo é a manutencao de uma fala. O recalcado nao quer se esgotar. Quer se repetir, ¢ se repete inclu- sive Nos tragos que persistem iguais entre as varias escolhas, aparentemente tao diversas, que fazemos pela vida. Outra vez. Safouan: ‘‘o traco que se repete no ob- 372 jeto secundario, independente de suas caracteristicas gerais, faz com que [este objeto] seja para o desejante um significante do objeto primario”” — e também, eu diria, um significante da identidade do proprio sujeito. O que nos remete a Nelson Rodrigues: “‘O que seria de mim sem as minhas obsessbes?"”. Entéo, para além das consideracoes sobre a ‘‘mais-repressio”’," que asso- cia todo o prazer as marcas da angiistia, ha uma parte do que chamamos anguistia de prazer — essa que nos faz apelidar 0 orgasmo de “‘pequena morte’” — que é a angiistia ante a ameaca (imagindria) de esgotamento do desejo. Aqui, 0 desejo-de de-ter-um-desejo-insatisfeito a que se refere Lacan (a respeito da histérica)'® pode ser generalizado como o desejo de se manter um significante para a falta e, no limite, para o ser. Aqui, a anguistia de prazer ¢ também medo do vazio que repre- sentaria a plena realizacao do desejo, vazio que experimentamos parcialmente depois da obtengdo de alguma coisa pela qual muito se lutou. So os vencidos que idealizam o sabor e a embriaguez da vitoria, como escreve a poeta Emily Dickin- son: ‘‘Vencer parece mais doce/ Aqueles que nunca vencem/ Melhor saboreiam um néctar/ Os que na sede esmorecem’”.!* Assim também, estar diante da possibilidade de realizagao de um desejo & motivo de maior alegria do que té-lo ja realizado. A mesma Emily, poeta das grandes privacdes e das grandes reniincias, expressa o conhecimento deste fato da vida psiquica em outros versos: ‘“Exaltacdo ha de ser a partida/ de uma alma campesina ao mar/ Além do casario, além da costa/ Na eternidade, mergulhar. Criado entre montanhas, como nés/ Ja entende o viajante agora/ A divina em- briaguez dessa légua/ primeira, mar afora?’””. j A embriaguez divina € 0 gosto da primeira légua: exaltacdo ante o que j4 se | anuncia, mas ainda nao se tornou real — ante aquilo que ainda conserva, para \ além de sua realidade, seu imenso poder de sonbo. VI Ao falar em desejo da realidade estou me referindo ao desejo de alguma coisa que, em sua totalidade, & inapreensivel para 0 sujeito. As tentativas que fazemos durante a vida para aprender a totalidade do real devem ser interpre- tadas como manifestagdes do proprio desejo recalcado que volta e meia insiste em suas demandas de unidade, completude, totalidade. O real para nds & to impossivel como o elefante para os sete cegos da fabula chinesa. O primeiro encontra uma pata e pensa que é uma palmeira. Outro apalpa uma presa e discorda — é um sabe. O terceiro encontra a cauda do ele- fante e afirma que 0 misterioso objeto ¢ uma corda gigantesca — e assim por diante, de modo que nenhum dos sete ¢ capaz de entender 0 que encontrou ¢ ‘mesmo a soma das ‘‘partes’” encontradas por cada um nao formaria jamais a idéia de que ¢ um elefante. Aceitando esta impossibilidade em relagdo 4 totalidade do real, gostaria de me referir na seqiiéncia a alguns fragmentos dela que constituem objetos privile- 373 Biados do desejo. A comecar pelo Outro e seu misterioso desejo — € 0 Outro aqui 0 fundamentado na pessoa da mae ou seu substituto no amor da crianga. E esse Outro de quem a propria sobrevivencia fisica da crianca depende — ou, antes disso, que teve poder sobre o proprio inicio de sua existéncia — que ‘‘tornao eu da crianca pens4vel”’, no dizer de Piera Aulagnier.”8 Ao oferecer 0 seio ainda antes que a crianca seja capaz de associar seu desconforto a fome, antes que ela seja capaz de representar o seio como objeto de seu desejo, a mie antecipa alguma coisa para a crianca. Ao supor que 0 pequeno recém-nascido ‘*quer alguma coisa’’, a mae antecipa o Eu da crianca’e the ofe- rece 0 primeiro material real, externo ao psiquismo, que ela podera dai por diante tomar como objeto complementar. Para Piera, ‘ta mae alimenta assim o Eu fu- turo da crianca’’® sobre o qual ela (mae) idealiza um poder de interferit na reali- dade a fim de expressar e mais tarde realizar diretamente seus proprios desejos. O desejo desse Outro torna assim o Eu da crianca pensavel para si mesmo, e este pensar-se, enunciar-se, fica marcado pelo fato que Ihe deu origem. Pensar ‘‘o que eu quero”’ fica sempre associado a uma certa tentativa de adivinhar ‘‘o que eu devo querer”’, que ¢ 0 mesmo que pensar “‘o que o Outro quer que eu quei- ra’?2 Aqui estamos falando evidentemente sobre o narcisismo, tentativa de reter sobre 0 Eu a totalidade do desejo do Outro que passa pela necessidade de conhecer este desejo, E, uma vez que o desejo-do-desejo-do-Outro passa por tentar co- nhecer este desejo em sua totalidade (0 que ¢ impossivel também — ele s6 se dé a conhecer em suas manifestagdes parciais), poderiamos afirmar que todo desejo, uma vez apartado de suas condigdes primArias, se torna um desejo-de-saber? Seguindo o raciocinio da autora que vim citando neste trecho, a realidade se impée logo de inicio para o sujeito como o lugar onde 0 Outro domina — a ponto de ter 0 poder de significar as proprias express6es do sujeito —, lugar onde impera © desejo do Outro. O desejo da realidade tem origem entao na necessidade de conhecer 0 campo do desejo do Outro, domina-lo, garantir-se quanto a ele; sua contrapartida € 0 medo do desconhecido, angustia ante aquilo que o Outro do- mina e eu nao; angustia de ser to pequena, to insignificante no imenso campo de objetos desejéveis para o Outro onde eu nao consigo saber qual é o meu lugar. Querer conhecer a realidade ¢ querer me apoderar desse Eu misterioso ¢ ina- preensivel — 0 Eu do Outro — do qual eu s6 conhego, e precariamente controlo, manifestagdes externas e parciais. Mais uma vez Piera Aulagnier: a primeira rea- lidade que importa a crianga é a exterioridade do Eu do Outro; o primeiro campo de objetos desejaveis & 0 campo dos objetos desejados pelo Outro (0 que possibi- lita, se avancarmos um pouco mais, a introdugao do ‘‘pai’” e de todos os terceiros no campo do desejo da crianca). O desejo de conhecer e investigar, carregado de erotismo desde a sua origem, é derivado do corte nessa relacao dual primordial, nde-crianca. Querer a posse da mae implica querer dominar 0 campo de acao do desejo materno. 374 A & VIL Aqui deveriamos nos voltar imediatamente para a curiosidade sexual da ctianga, originada nese mesmo desejo de posse em relacao ao Eu materno. Mas antes ha um outro objeto real, também externo ao psiquismo, que se impde 20 Eu da crianga desde o inicio: seu proprio corpo. Corpo que a mae investe, manipula, deseja e significa. Corpo em que acontecem todas as manifestacbes de necessi- dade, de desconforto e tensdo que dardo origem ao desconforto e a tensdo psi- quica, mas também lugar onde se da o prazer, a queda de tensio, 0 repouso pos-descarga. O encontro entre o Eu da crianca e a realidade se faz, de acordo com a reflexdo de Piera no texto que venho acompanhando neste ponto, através desses dois primeiros objetos — o Eu materno e o proprio corpo. Corpo que provoca na crianga os primeiros sentimentos ambivalentes. Por um lado se revela fonte de prazer que a crianga pode até certo ponto controlar com seus recursos auto-er6- ticos. Ao se sentir capaz de proporcionar prazer ao proprio corpo, a crianga vem a conhecer um prazer de outra ordem, que poderiamos chamar de narcisista, pois advem da experiéncia de posse e de poder sobre esse bom objeto que a0 mesmo tempo é dela e é manejavel por ela. Corpo que é sentido pela crianga como objeto possuido e ndo como seu proprio ser: dizer ‘‘eu tenho este corpo” traduz essa relacZo com mais preciséo do que dizer ‘‘eu sou este corpo”. Enquanto corpo-prazer, 0 corpo € © primeiro elemento da realidade que atrai para si e que torna possivel e necessério o investimento que faz 0 Eu do que chamarei dimenso do real dos objetos.* Mas, se eu havia situado 0 proprio corpo como objeto de uma relagio am- bivalente, ¢ porque ele nao é simplesmente lugar e fonte de prazer. O corpo sofre; e, se a ctianga se sente capaz de dominar parcialmente o prazer de seu corpo, nem por isso ¢ capaz de dominar a dor e fazé-la cessar. A dor, a doenca, o desconforto “‘separam’” narcisicamente 0 sujeito de seu corpo: 0 corpo que sofre é um corpo que a crianca rejeita, corpo aut6nomo que Ihe proporciona uma experiéncia de desprazer do qual ela nao pode se livrar. Odiar o corpo que sofre é complicado — acrianga ‘‘sabe’” que depende de existir ‘dentro’? desse corpo para existir como objeto do amor materno. E pela vida do sofrimento corporal [...] que 0 corpo se impord ao Eu como objeto real ¢ exterior, nfo redutivel a um simples ‘‘ser psiquico’’, dotando de um sentido particular estes dois qualificativos que sao ‘‘real’” e “ex- terior’’.”” A tentativa de o sujeito resolver sua ambivaléncia em relaco ao objeto-corpo dé lugar a possibilidade de um terceiro tipo de experiéncia em relacao a ele — a experiéncia de pensar o corpo. E a experiéncia de prazer que reforca o investi- mento do psiquismo em direcao ao pensamento, ja que essa atividade — pensar — se revela capaz de antecipar prazer ¢ desprazer, evitar o segundo e propor- 375 cionar 0 primeiro. Do mesmo modo, a auséncia ou a escassa possibilidade de prazer real favorece o desinvestimento do pensamento em favor do retorno a atividade alucinatoria. Nesse sentido, volto a insistir na idéia de que a extrema miséria ¢ psicotizante. A miséria é uma experiéncia em que a introdugao do Prin- cipio de Realidade nao parece vantajosa para o psiquismo, ja que os recursos adquiridos a partir do fracasso do Principio do Prazer no trazem de fato nada que substitua o prazer alucinatorio, A realidade em situagdes de extrema miséria ndo se apresenta como um campo de objetos capazes de substituir a alternativa do prazer alucinatrio, nem como um campo que attaia investimentos externos a0 narcisismo, capazes de salvar 0 Eu da Pulsao de Morte Essa foi, por exemplo, a intuicdo genial de Glauber Rocha ao criar os perso- nagens do seu Deus ¢ 0 Diabo na terra do sol. Sdo personagens psicoticos adap- tados, a sua maneira, a situagdo implacavel da vida no Nordeste brasileiro. Eles investem na morte, em fantasias messidnicas sobre a vida em ‘‘outro mundo” — um mundo diferente do mundo real onde nenhum investimento vale a pena. E quando perde suas tiltimas cabegas de gado, suas ultimas possibilidades reais de sobrevivéncia, para uma instdncia tiranica que ele nao € capaz de controlar ou evitar, que Manuel, personagem interpretado por Geraldo del Rey, se entrega ao transe mistico € a3 fantasias megalomaniacas sobre a terra prometida anunciadas pelo simulacro de Antonio Conselheiro criado por Glauber na figura de Se- bastido, o padre negro. Também Ant6nio das Mortes s6 sabe plantar cadaveres na terra de onde a vida nao brota, e Corisco, 0 que restou do homem que um dia teria sido companheiro de Lampido, totalmente identificado com seu idolo morto, discursa delirantemente sobre sua chegada triunfal ao reino do Outro Mundo. E na morte e em suas representagSes que investem os personagens de Glauber Ro- cha, numa situacao em que a vida nao tem nada a oferecer para sustentar seus investimentos. Neste filme de 1964 (em cuja anilise ndo posso me aprofundar aqui), 0 jovem Glauber, entio com 24 anos, retratou o Nordeste brasileiro num quadro nao realista, mas psicético: um lugar mergulhado nasicose da mixéria- Quando o corpo da crianca sofre, seja por doenca ou priva¢ao, todo o seu Eu fica ameacado pelo ddio que ela sente pelo corpo. $6 uma fala materna apazi- guadora pode ajudar a crianga a estabelecer uma relacdo nao-persecutéria com 0 corpo que sofre. E a mae que, a0 cuidar do corpo doente ou faminto da crianca como um objeto que ainda ¢ digno do seu amor, desculpabiliza esse corpo pelo softimento, ags.olhos da crianga. E 0 discurso amoroso da mae ao acalentar o corpo sofrido da crianca que Ihe possibilita separar corpo e dor, corpo e privacao, € perceber que 0 sofrimento, embora venha do corpo, se deve a alguma outra coisa externa a ele. E a fala da mae sobre esse corpo que softe que possibilita 4 crianga pensar nele como objeto bom e mau, e assim superar a situagdo em que se via prisioneira de um corpo inimigo e odiado. ‘Mas para isso é preciso que a mde represente alguma garantia contra 0 sofrimento, € que se sinta também ela, a partir de sua propria relagdo com a realidade, confiante (e capaz de transmitir confianca) de que 0 corpo ¢ uma mo- rada razoavelmente boa para se estar neste mundo, e de que o mundo é uma 376 morada razoavelmente boa para o corpo. Imaginemos agora uma mie mergu- Ihada em miséria, para quem o proprio corpo também é lugar de sofrimento e privagio, para quem as duvidas sobre as possibilidades de sua crianga em relagao 4 realidade sao idénticas ou maiores do que as da crianca que sofre. No que de- pender dela, so pequenas as chances de essa crianga vir a estabelecer uma relacio de pensar seu corpo e a realidade que o faz sofrer. Incapaz de simbolizar 0 corpo e a realidade da qual esse corpo faz parte, a crianca miserdvel estar4 condenada a viver a mercé do corpo, a mercé de uma realidade concreta e impensavel, a merce das psicoses como saidas ainda vidveis para a sua vida antes da ultima porta, que ¢ a morte. IX Uma vez que o proprio corpo e 0 Eu do Outro sio os primeiros objetos da realidade que se apresentam ao psiquismo, uma vez que todo desejo em relacao asses objetos, estando apartado do dominio do Principio do Prazer, ¢ um desejo- de-saber sobre eles e assim dominar 0 prazer que vem do corpo e que vem do Outro, estamos em pleno terreno da investigacdo sexual infantil. A curiosidade sexual infantil ¢ o desejo-de-saber sobre o desejo do Outro e a falta no Outro, sobre a natureza do desejo e da falta no proprio sujeito. E, em si mesma, uma curiosidade “‘filoséfica’” — voltada para o ser, a origem, a diferenga, a falta; mas, impossibilitada de chegar as suas tltimas conseqténcias — ja que a crianca nao tem condig6es de acesso aos mistérios do gozo sexual em fungao de sua propria imaturidade biologica —, essa curiosidade se deriva para 0 desejo-de-saber da crianga em relacdo aos outros mistérios da vida, da natureza e da cultura. No texto em que procura entender a origem do espirito investigativo de Leonardo da Vinci, Freud supde trés destinos possiveis para a curiosidade sexual infantil ibigdo neurdtica, a transformacio obsessiva da curiosidade num substituto para a propria atividade sexual adulta, e, por fim, seu destino ‘mais perfeito’? —™ quando | a libido escapa a repressdo sublimando-se desde o principio.em ansia de.sa- ber e incrementando 0 instinto de investigagdo, j4 muito intenso por si \ mesmo. “ Aqui, embora Freud nao se-detenha a explicar 0 conceito que nomeia, nos depa- ramos com o ‘ ‘instinto de investiga¢io como uma pulsio e parcial, acres- cido de energias considerdveis que provém da libido,sexual desviada de seus fins — mas nao reprimida totalmente. Quais s4o as condigbes que permitem que o impulso de investigagao sexual, desviado de sua finalidade, seja sublimado e elaborado na forma do espirito de investigacao capaz de orientar toda a atividade, da infancia até a vida adulta? Primeiro, que a sexualidade nao tenha sido reprimida em sua totalidade: ‘‘[. repressdo quase completa da vida sexual nao oferece as condicdes mais favoraveis 377 para o exercicio das tendéncias sexuais sublimadas"’.** Do contrario, ‘“‘o caréter prototipico da vida sexual acaba por impor-se, comecam a paralisar-se a atividade e acapacidade de tomar resolugdes répidas, e a tendéncia a indecisio e a reflexto obsessiva se faz notar de um modo perturbador [...]’*. Freud esta, portanto, dife- renciando aqui a atividade investigativa intensa mas dotada de mobilidade e liber- dade, caracteristica dos processos sublimat6rios, da atividade obsessiva e repeti- tiva que é conseqiiéncia da repressao. Em segundo lugar, uma condigdo estreitamente vinculada a primeira: a rebeldia em relagdo a autoridade paterna (e materna) que possibilita a crianga nao sb continuar desenvolvendo sua atividade sexual nos limites do que seu corpo Ihe solicita e permite, mas principalmente seguir no exercicio das suas indagacdes ¢ da sua atividade reflexiva. Da independéncia maior ou menor em relacao a auto- ridade depende a maior propensio, ou a livre investigacdo, ou 4 acumulacao de saber ja constituido — 0 que so dois destinos totalmente diferentes da pulsao. “*Aquele que disputa alegando a autoridade utiliza mais a meméria do que a inte- ligencia’’, disse 0 proprio Leonardo.” Mas quem desafia a autoridade paterna e as. verdades estabelecidas pelos que o antecederam tem de ser capaz de viver 0 de- samparo da orfandade, caminhar com os préprios pés ¢ errar sozinho. A terceira condicao para o livre desenvolvimento da atividade investigativa €, portanto, a capacidade de o sujeito admitir sua pequenez ¢ desamparo diante do mundo des- conhecido, isto é: aceitar para si a mesma condigo de incerteza, de desconheci- mento da verdade que um dia foi capaz de perceber em seu(s) pai(s) e que Ihe per- mitiu libertar-se de seus dogmas. Ser capaz de reviver a desprotecao e 0 senti mento de ignordncia da infincia diante do mundo, sem ter de necessariamente reviver a condi¢éo concreta da castracdo infantil, que nfo permitiu a crianga ir muito longe sozinha em suas investigacbes — esta seria a condigao do investi- gador adulto, munido de mais recursos do que a crianca para dar vazio ao seu desejo da realidade, mas ainda assim admitindo sua pequenez diante da totalidade do real Por outro lado, aquele que mantém as autoridades paternas num lugar de saber absoluto pode ser capaz de estudar, acumular conhecimentos e transmiti- los, mas permanece inibido para criar alguma coisa a partir da experiéncia e da livre reflexo. Aqui eu situaria o investigador na mesma vertente libidinal do criador e na vertente oposta a do erudito, segundo a concep¢ao freudiana ja citada sobre os dois destinos possiveis da pulsdo desviada de seus fins: 0 destino da subli- macio, mais afastado da repressao sexual, pois mantém uma relacio fértil, de interpenetragao e troca entre o sujeito e a realidade, e 0 destino da neurose obses~ siva, que substitui a relaco de troca pela de acumulagdo, mais aparentada com as conformagées anais da libido. O poeta irlandés Yeats retrata o erudito como um compilador asséptico dos versos que 0 poeta apaixonado escreveu com o proprio sangue: Cabegas calvas, esquecidas dos pecados Calvas cabecas velhas, doutas, de respeito, Editoram, com versos anotados, 378 Poemas que os jovens, estorcendo-se no leito, Rimaram, a sofrer do amor a crueza Para incensar 0 ouvido ignaro da beleza. [...] ” Ainda resta dizer que a curiosidade e a investigacao sexual ndo se esgotam com a possibilidade da pratica sexual concreta. Pelo contrario, assim como al- guma liberdade no exercicio da sexualidade é condigao da sublimagao, a maior liberdade imaginativa e investigativa é capaz de aliar-se a atividade sexual multi- plicando as possibilidades de prazer ali onde os corpos, mesmo explorados até seu limite, podem nos dar tao pouco — e, se explorados para além do seu limite estdo artiscados a destruicao e morte, a ultima fronteira da perversio. A atividade sexual propriamente dita nao é simplesmente uma ocupagio do corpo. E também linguagem, investigacao, criacdo de significados, troca simb6- lica; também @, para além do aspecto organico da pulsdo — e a pulsdo faz o limite entre 0 organico e 0 psiquico — herdeira legitima do desejo de saber. Investi- aco, no proprio corpo e no corpo do outro, sobre a falta, o desejo alheio, os mistérios do prazer, os limites do ego e da consciéncia — limites entre a fantasia € arealidade. Investigagao jamais satisfeita, que pede retorno e repeticao — e se ha um aparente esgotamento do interesse sexual por um longo periodo da vida de uma pessoa devemos pensar antes em recalque ou depressao do que em saciedade. Investigacdo que é condigo, mas também conseqiléncia do amor: “‘Nessuna cosa si pu amare né odiare si prima no si ha cognition di quella’, escreveu Leonardo da Vinci, o investigador. . Investigagdo que nasce, na crianga, em conseqiiéncia da impossibilidade de realizacdo completa do ato sexual, mas nao se esgota quando essa realizacao se faz possivel; do mesmo modo que a fantasia, outra substituta to poderosa do prazer sexual concreto, no se esgota e sim acompanha a pratica da sexualidade na vida adulta. A fantasia, fruto de uma parcela da atividade psiquica que nao renunciou a0 Principio do Prazer, fica fortemente associada a sexualidade desde a origem, ja que esta, sobretudo na infancia, mantém um forte componente auto-erdtico que nao depende das exigéncias da realidade para se satisfazer.” Se, por um lado, isto permite a pulsao sexual manter-se parcialmente livre das exigéncias da realidade para se satisfazer, por outro, fica evidente que ¢ nas fantasias sexuais, mais sub- metidas a0 dominio do Principio do Prazer, que se engancham a onipoténcia infantil eo narcisismo. O que tem uma vantangem e um prego. A vantagem: a aceitacdo sexual pelo outro, o investimento erdtico do outro sobre 0 sujeito, a experiéncia erdtica compartilhada — que une corpo-prazer corpo-pensado — proporcionam as experiéncias mais prazerosas da vida, capazes de compatibilizar elementos de realidade e fantasia sem grandes conflitos. O prego: sendo o lugar onde ficou encastelado grande parte do que restou do narcisimo infantil, a sexo ¢ também lugar de.nossa-maior fragilidade. Lugar onde a recusa do outro, a frustraco, a incapacidade de conquista, nos ferem mais profundamente. Nao é por acaso que é no lugar da sexualidade que situamos, antes mesmo de simboliza-los, os significantes da poténcia e da castrag3o: mas este é um tema bem mais complicado e 0 estou somente enunciando aqui. 379 x Encerrando, nao posso deixar de mencionar o que nos remete a psicandlise: © psiquismo, ou pelo menos uma parte dele, também se constitui em objeto de desejo-de-saber para si mesmo dada a sua cisdo original. A dualidade do aparelho psiquico permite que uma parte — a consciéncia com seus recursos secundarios de atengdo, pensamento, etc. — se debruce sobre a outra, o inconsciente, para indagar 0 que acontece ‘‘l4’’. E j4 que, como mencionamos, é préprio da energia do recalcado a tendéncia a se‘deslocat e se ‘‘ligar’? — procurar seus represen- tantes — € como se pudesse haver entre estes dois aspectos do psiquismo um acordo para tentar burlar a(angiistts, marca que assinala o recalque para a cons- ci€ncia, Como se (e por enquanto é melhor ficar no como se) o inconsciénte dese- jasse ‘se dar a conhecer’’ e a consciéncia, apesar das resisténcias conhecidas, desejasse se apropriar dessa realidade interna inacessivel, essa parcela do Eu que parece nao lhe pertencer e determinar seus destinos com designios tao inson- daveis como eram antigamente os designios de Deus. Este desejo-de-saber voltado para o proprio psiquismo nos remete 4 andlise. E nos remete outra vez a0 sonho, & persisténcia dos tragos do sonho na meméria da vigilia e ao desejo que o sonho realiza — desejo de sinalizar a existéncia do desejo inconsciente. Ainda falta mencionar, mesmo que seja apenas para anunciar sua impor- tancia, um subproduto fundamental do desejo da realidade: 0 desejo de atuar sobre o real e suas determinagdes. Interferéncias concretas que fazemos sobre 0 campo da realidade até mesmo quando nos sentimos incapazes de simboliz4-la; interferéncias que quando se do no contexto de uma anilise sfo tidas como atuagdes indesejaveis, impeditivas do bom curso do processo analitico mas que, assim como 0 sintoma, devem ser consideradas como expressbes possiveis do desejo de cura. Agir sobre as circunstancias concretas da realidade, procurar modificar 0 mundo, além de compreendé-lo, é tarefa humana fundamental que visa, na ex- pressio de Aulagnier, ‘fazer do mundo um lugar onde o prazer seja possivel””. * NOTAS 2) Expressio utilizada por Freud na conclusio do texto "*Os dois principios do funciona- ‘mento mental (1910-1911)”” in Obras completas, Madrid, Biblioteca Nueva, 1973, v. Il, p. 1638. “‘[.] Mas haveremos de guardar-nos muito bem de aplicar aos produtos psiquicos reprimidos a valoracdo da realidade, e nao conceder beligeréncia alguma as fantasias, enquanto producdo de sin- tomas, por no tratar-se de realidades; como igualmente de buscar uma origem diferente ao senti- mento de culpabilidade por nao encontrar nenhum delito real que 0 justifique. Estamos obrigados servir-nos da moeda corrente no pais que exploramos,-ou seja, em nosso caso, a moeda newrOtic ‘Ampliei por minha conta o alcance da expressio considerando que o proprio Freud naquela ocasito j havia estendido os limites de suas observagbes sobre o funcionamento psiquico para além das fronteiras, do “pais dos neuroticos””. 380

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