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Octavio Paz
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O Arco e a Lira

Tradução de
Olga Savary

2? edição
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EDITORA
NOVA
FRONTORA
trutura semelhante ao castelhano, ou ao alemão, mina A IMAGEM
de ritmos. No que diz respeito ao espanhol, vale a pena
repetir que o apogeu da versificação rítmica, conseqüên
cia da reforma levada a cabo pelos poetas hispano-ame
ricanos, é na realidade uma volta ao verso espanhol tra
dicional. Mas esse regresso não teria sido possível sem a
influência de correntes poéticas estrangeiras, a francesa A palavra imagem possui, como todos os vocábulos, di
em particular, que mostraram a correspondência entre versas significações. Por exemplo: vulto, representação,
ritmo e imagem poética. Repito: ritmo e imagem são in como quando falamos de uma imagem ou escultura de
separáveis. Essa longa digressão nos leva ao ponto de Apoio ou da Virgem. Ou figura real ou irreal que evoca
partida: só a imagem poderá nos dizer como o verso, que mos ou produzimos com a imaginação. Nesse sentido, o
é frase rítmica, é também frase que possui sentido. vocábulo possui um valor psicológico: as imagens são
produtos imaginários. Não são esses seus únicos signifi
cados, nem os que aqui nos interessam. Convém adver
tir, pois, que designamos com a palavra imagem toda
forma verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta
diz e que, unidas, compõem um poema.* Essas expres
sões verbais foram classificadas pela retórica e se cha
mam comparações, símiles, metáforas, jogos de palavras,
paronomásias, símbolos, alegorias, mitos, fábulas, etc.
Quaisquer que sejam as diferenças que as separam, to
das têm em comum a preservação da pluralidade de sig
nificados da palavra sem quebrar a unidade sintática da
frase ou do conjunto de frases. Cada imagem — ou cada
poema composto de imagens — contém muitos signifi
cados contrários ou díspares, aos quais abarca ou recon
cilia sem suprimi-los. Assim, San Juan de Ia Cruz fala
de Ia música callada, expressão na qual se aliam dois
termos em aparência irreconciliáveis. O herói trágico,
nesse sentido, também é uma imagem. Exemplificando:
a figura de Antígona, despedaçada entre a piedade divi
na e as leis humanas. A cólera de Aquiles tampouco é

1 Roberto Vemengo propõe, para evitar confusões, a expressão: "menção


poética".

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simples e nela se unem os contrários: o amor por Pátro- não é o do ser, mas o do "impossível verossímil" de
clo e a piedade por Príamo, o fascínio ante uma morte Aristóteles.
gloriosa e o desejo de uma vida longa. Em Sigismundo Apesar dessa sentença adversa, os poetas se obstinam
a vigília e o sonho se enlaçam de maneira indissolúvel em afirmar que a imagem revela o que é e não o que
e misteriosa. Em Édipo a liberdade e o destino... A poderia ser. E ainda mais: dizem que a imagem recria
imagem é cifra da condição humana.
o ser. Desejosos de restaurar a dignidade filosófica da
Épica, dramática ou lírica, condensada numa frase ou imagem, alguns não vacilam em buscar o amparo da
desenvolvida em mil páginas, toda imagem aproxima ou lógica dialética. Com efeito, muitas imagens se ajustam
conjuga realidades opostas, indiferentes ou distanciadas aos três tempos do processo: a pedra é um momento
entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do da realidade; a pluma, outro; de seu choque surge a
real. Conceitos e leis científicas não pretendem outra imagem, a nova realidade. Não é necessário recorrer a
coisa. Graças a uma mesma redução racional, indivíduos uma impossível enumeração das imagens para se dar
e objetos — plumas leves e pedras pesadas — conver conta de que a dialética não abarca a todas. Algumas
tem-se em unidades homogêneas. Não sem um justifi vezes o primeiro termo devora o segundo. Outras, o se
cado assombro as crianças descobrem um dia que um gundo neutraliza o primeiro. Ou não se produz o tercei
quilo de pedras pesa o mesmo que um quilo de plumas. ro termo e os dois elementos aparecem frente a frente,
Custa-lhes muito reduzir pedras e plumas à abstração irredutíveis, hostis. As imagens do humor pertencem,
quilo. Dão-se conta de que pedras e plumas abandona geralmente a essa última classe: a contradição serve
ram sua maneira própria de ser e que, por uma escamo- apenas para assinalar o caráter irreparavelmente absur
teação, perderam todas as suas qualidades e sua auto do da realidade ou da linguagem. Enfim, apesar de
nomia. A operação unificadora da ciência mutila-as e muitas imagens se desdobrarem conforme a ordem hege-
empobrece-as. O mesmo não ocorre com a poesia. O liana, quase sempre se trata mais de uma semelhança
poeta nomeia as coisas: estas são plumas, aquelas são que de uma verdadeira identidade. No processo dialéti
pedras. E de súbito afirma: as pedras são plumas, isto co pedras e plumas desaparecem em favor de uma ter
é aquilo. Os elementos da imagem não perdem seu ca ceira realidade, que já não é nem pedras nem plumas,
ráter concreto e singular: as pedras continuam sendo mas outra coisa. Contudo, em algumas imagens — pre
pedras, ásperas, duras, impenetráveis, amarelas de sol cisamente as mais altas — continuam sendo o que são:
ou verdes de musgo: pedras pesadas. E as plumas, plu isto é isto e aquilo é aquilo; e ao mesmo tempo, isto é
mas: leves. A imagem resulta escandalosa porque de aquilo: as pedras são plumas, sem deixar de ser pedras.
safia o princípio de contradição: o pesado é o leve. O pesado é o leve. Não há a transmutação qualitativa
Ao enunciar a identidade dos contrários, atenta contra que a lógica de Hegel exige, como não houve a redução
os fundamentos de nosso pensar. Portanto, a realidade quantitativa da ciência. Em suma, também para a dia
poética da imagem não pode aspirar à verdade. O poe lética a imagem constitui um escândalo e um desafio,
ma não diz o que é e sim o que poderia ser. Seu reino também viola as leis do pensamento. A razão dessa in-
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suficiência — porque é insuficiência não poder explicar gação e afirmação, isto e aquilo, pedras e plumas, se dão
algo que está aí, diante dos nossos olhos, tão real como simultaneamente e em função complementaria de seu
o resto da chamada realidade — talvez consista em que oposto.
a dialética é uma tentativa de salvar os princípios lógi O princípio de contradição complementaria isenta
cos — em especial o de contradição — ameaçados por algumas imagens, mas não todas. O mesmo talvez deva
sua cada vez mais visível incapacidade de digerir o ca se dizer de outros sistemas lógicos. Ora, o poema não
ráter contraditório da realidade. A tese não se dá ao só proclama a coexistência dinâmica e necessária de
mesmo tempo que a antítese; e ambas desaparecem para seus contrários como sua identidade final. E essa recon
dar lugar a uma nova afirmação que, ao englobá-las, ciliação, que não implica redução nem transmutação da
transmuta-as. Em cada um dos três momentos reina o singularidade de cada termo, é um muro que até agora o
princípio de contradição. Nunca afirmação e negação se pensamento ocidental se recusou a saltar ou a perfurar.
dão como realidades simultâneas, pois isso implicaria a Desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção
supressão da própria idéia de processo. Ao deixar in nítida e incisiva entre o que é e o que não é. O ser não
tacto o princípio de contradição a lógica dialética con é o não-ser. Esse primeiro desenraizamento — porque
dena a imagem, que dispensa esse princípio. foi como arrancar o ser do caos primordial — constitui
Como as outras ciências, a lógica não deixou de se
o fundamento de nosso pensar. Sobre essa concepção
fazer a pergunta crítica que toda disciplina deve se fazer
çonstruiu-se o edifício das "idéias claras e distintas" que,
em dado momento: a de seus fundamentos. Tal é, se
se tornou possível a história do Ocidente, também con
não me equivoco, o sentido dos paradoxos de Bertrand
denou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas
de apreender o ser por caminhos que não fossem os des
Russell e, no extremo oposto, o das investigações de
ses princípios. Mística e poesia viveram assim uma vida
Husserl. Assim, surgiram novos sistemas lógicos. Alguns
subsidiária, clandestina e diminuída. O desenraizamen
poetas se interessaram pelas investigações de S. Lupasco, to tem sido indizível e constante. As conseqüências des
que se propõe a desenvolver séries de proposições fun se exílio da poesia são cada dia mais evidentes e aterra
dadas no que se chama de princípio de contradição com doras: o homem é um desterrado do fluir cósmico e de
plementaria. Lupasco deixa intactos os termos contrá si mesmo. Pois ninguém ignora que a metafísica ociden
rios, mas sublinha sua interdependência. Cada termo tal termina num solipsismo. Para rompê-lo, Hegel re
pode se atualizar em seu contrário, de que depende em gressa até Heráclito. Sua tentativa não nos devolveu a
razão direta e contraditória. A vive em função contradi saúde. O castelo de cristal da dialética revela-se ao fim
tória de B; cada alteração em A produz conseqüente como um labirinto de espelhos. Husserl coloca de no
mente uma modificação, em sentido inverso, em B.x Ne- vo todos os problemas e proclama a necessidade de "vol
tar aos fatos". Mas o idealismo de Husserl parece de
1 Stéphane Lupasco, Le príncipe d'antagonisme et Ia logique de Vénereie,
sembocar também num solipsismo. Heidegger retorna
Paris, 1951. aos pré-socráticos para se fazer a mesma pergunta que
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se fez Parmênides e encontrar uma resposta que não imo Como se fosse um antecipado comentário a certas es
bilize o ser. Não conhecemos ainda a última palavra de peculações contemporâneas, Chuang-tsé assim explica o
Heidegger, mas sabemos que sua tentativa de encontrar caráter funcional e relativo dos opostos: "Não há nada
o ser na existência tropeçou num muro. Agora, segundo que não seja isto; não há nada que não seja aquilo. Isto
mostram alguns dos seus últimos escritos, volta-se para vive em função daquilo. Tal é a doutrina da interdepen
a poesia. Qualquer que seja o desenlace de sua aventura, dência disto e daquilo. A vida é vida diante da morte.
o certo é que, desse ângulo, a história do Ocidente pode E vice-versa. A afirmação o é diante da negação. E
ser vista como a história de um erro, um extravio, no vice-versa. Portanto, se alguém se apoia nisto, teria de
duplo sentido da palavra: distanciamo-nos de nós mes negar aquilo. Mas isto possui sua afirmação e sua ne
mos ao nos perdermos no mundo. Há que começar ou gação e também engendra seu isto e seu aquilo. Portanto,
tra vez.
o verdadeiro sábio despreza o isto e o aquilo e se refugia
no Tao..." Há um ponto em que isto e aquilo, pedras
O pensamento oriental não sofreu desse horror ao "ou e plumas, se fundem. E esse momento não está antes
tro", ao que é e não é ao mesmo tempo. O mundo oci nem depois, no princípio ou no fim dos tempos. Não é
dental é o do "isto ou aquilo". Já no mais antigo upani- paraíso natal ou pré-natal nem céu supraterreno. Não
xade se afirma sem reticências o princípio da identidade vive no reino da sucessão, que é precisamente o dos con
dos contrários: "Tu és mulher. Tu és homem. És o ra trários relativos, mas está em cada momento. É cada
paz e também a donzela. Tu, como um velho, te apoias momento. É o próprio tempo engendrando-se, fluindo-
num cajado.. . Tu és o pássaro azul-escuro e o verde se, abrindo-se a um acabar que é um contínuo começar.
de olhos vermelhos... Tu és as estações e os mares." r Jorro, fonte. Aí, no próprio seio do existir — ou melhor,
E essas afirmações o upanixade Chandogya condensa-as do existindo-se —, pedras e plumas, o leve e o pesado,
na célebre fórmula: "Tu és aquilo". Toda a história do nascer-se e morrer-se, ser-se, são uma e mesma coisa,
pensamento oriental parte dessa antiquíssima afirmação,
O conhecimento que as doutrinas orientais nos pro
do mesmo modo que a do Ocidente se origina da de Par
mênides. Esse é o tema constante da especulação dos põem não é transmissível em fórmulas ou raciocínios. A
grandes filósofos budistas e dos exegetas do hinduísmo. verdade é uma experiência e caía um deve tentá-la por
O taoísmo revela as mesmas tendências. Todas essas sua conta e risco. A doutrina nos mostra o caminho,
doutrinas reiteram qúe a oposição entre isto e aquilo é, mas ninguém pode percorrê-lo por nós. Daí a importân
simultaneamente, relativa e necessária, mas que há um cia das técnicas de meditação. A aprendizagem não con
momento em que cessa a inimizade entre os termos que siste no acúmulo de conhecimentos, mas na depuração
nos pareciam excludentes. do corpo e do espírito. A meditação não nos ensina na
da, exceto o esquecimento de todos os ensinamentos e a
renúncia a todos os conhecimentos. Ao fim dessas pro
1 Svetasvatara Upanishad. The thirteen principal upanishads, translated vas, sabemos menos mas estamos mais leves; podemos
from the Sanskrit by R. E. Hume, Oxford University Press, 1951.

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.Tf
empreender a viagem e nos defrontar com a mirada diversas das humanas. Po-Chu-I nos conta num poema
vertiginosa e vazia da verdade. Vertiginosa em sua imo autobiográfico que:
bilidade; vazia em sua plenitude. Muitos séculos antes
que Hegel descobrisse a equivalência final entre o nada In the middle of the night I stole a furtive glance;
absoluto e o pleno ser, os upanixades tinham definido The two ingredients were in affable embrace;
os estados de vazio como instantes de comunhão com o Their attitude was most unexpected.
ser: "O mais alto estado se alcança quando os cinco They were locked together in the posture of man
instrumentos do conhecer permanecem quietos e juntos [and wife,
na mente e esta não se move." 1 Pensar é respirar. Reter Intertwined as dragons, coil with coil. *
o alento, deter a circulação da idéia: produzir o vazio
para que o ser aflore. Pensar é respirar porque pensa
Para a tradição oriental a verdade é uma experiência
mento e vida não são universos separados e sim vasos
pessoal. Portanto, em sentido estrito, é incomunicável.
comunicantes: isto é aquilo. A identidade última entre
Cada um deve começar e refazer por si o processo da
o homem e o mundo, a consciência e o ser, o ser e a exis verdade. E ninguém, exceto aquele que empreende a
tência, é a crença mais antiga do homem e a raiz da aventura, pode saber se chegou ou não à plenitude, à
ciência e da religião, magia e poesia. Todas as nossas identidade com o ser. O conhecimento é inefável. Às
empresas se orientam para descobrir o velho cami vezes, esse "estar no saber" se exprime numa gargalha
nho, a via esquecida da comunicação entre os dois da, num sorriso ou num paradoxo. Mas esse sorriso po
mundos. Nossa busca tende a redescobrir ou a verificar de também indicar que o adepto não encontrou nada.
a universal correspondência dos contrários, reflexo de Todo conhecimento se reduziria então a saber que o co
sua identidade original. Inspirados nesse princípio, os nhecimento é impossível. Uma vez ou outra os textos
sistemas tântricos concebem o corpo como metáfora ou se comprazem com esse gênero de ambigüidades. A dou
imagem do cosmo. Os centros sensíveis são nós de ener trina resolve-se em silêncio. O Tao é indefinível e ino
gia, confluências de correntes estelares, sangüíneas, ner minável: "O Tao que pode ser nomeado não é o Tao
vosas. Cada uma das posturas dos corpos abraçados é absoluto; os Nomes que podem ser pronunciados não
o signo de um zodíaco regido pelo ritmo tríplice da seiva, são os Nomes absolutos." Chuang-tsé afirma que a lin
do sangue e da luz. Otemplo de Konarak é coberto por guagem, por sua própria natureza, não pode exprimir o
uma delirante selva de corpos enlaçados: esses corpos absoluto, dificuldade que não é muito distinta da que se
são também sóis que se levantam de seu leito de chamas, desvela aos criadores da lógica simbólica. "O Tao não po
estrelas que se acoplam. A pedra arde, as substâncias de ser definido... Aquele que conhece não fala. E aque
enamoradas se entrelaçam. As bodas alquímicas não são le que fala não conhece. Portanto, o Sábio prega a dou-

1 Katha Upanishad; ver nota anterior.


Arthur Waley, The life and times of Po-Chu-I, Londres, 1949.

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trina sem palavras." A condenação das palavras origina-
se da incapacidade da linguagem de transcender o mun nas. Graças às imagens poéticas o pensamento taoísta,
do dos opostos relativos e interdependentes, do isto em hindu e budista resulta compreensível. Quando Chuang-
função do aquilo. "Quando se fala de apreender a ver tsé explica que a experiência do Tao implica um retor
dade, pensa-se nos livros. Mas os livros são feitos de no a uma espécie de consciência elementar ou original,
palavras. As palavras, é claro, têm um valor. O valor onde os significados relativos da linguagem se mostram
das palavras reside no sentido que ocultam. Ora, esse inoperantes, recorre a um jogo de palavras que é um
sentido não é senão um esforço para alcançar algo que enigma poético. Diz que essa experiência de regresso ao
não pode ser alcançado realmente pelas palavras."* Com que somos originalmente é "entrar na gaiola dos pássa
efeito, o sentido aponta para as coisas, assinala-as, mas ros sem fazê-los cantar". Fan é gaiola e regresso; ming
jamais as alcança. Os objetos estão mais além das pa é canto e nomes.1 Assim, a frase quer dizer também:
lavras. "regressar para ali onde os nomes não são necessários",
Apesar de sua crítica da linguagem, Chuang-tsé não ao silêncio, reino das evidências. Ou ao lugar onde os
renunciou à palavra. O mesmo acontece com o budismo nomes e as coisas se fundem e são a mesma coisa: à
Zen, doutrina que se resolve em paradoxos e em silên poesia, reino onde nomear é ser. A imagem diz o indi
cio, mas à qual devemos duas das mais altas criações zível: as plumas leves são pedras pesadas. Há que re
verbais do homem: o teatro Nô e o haiku de Bashô. tornar à linguagem para ver como a imagem pode dizer
Como explicar essa contradição? Chuang-tsé afirma que o que, por natureza, a linguagem parece incapaz de di
zer.
o sábio "prega a doutrina sem palavras". Ora, o taoís-
mo — diversamente do cristianismo — não crê nas boas
ações. Tampouco nas más: simplesmente não crê nas
A linguagem é significado: sentido disto ou daquilo. As
ações. A predica sem palavras a que alude o filósofo plumas são leves; as pedras, pesadas. O leve é leve em
chinês não é a do exemplo, mas a de uma linguagem que relação ao pesado, o escuro diante do luminoso, etc. To
seja algo mais que a linguagem: palavra que diga o in- dos os sistemas de comunicação vivem no mundo das
dizível. Embora Chuang-tsé jamais tenha pensado na referências e dos significados relativos. Daí que sejam
poesia como linguagem capaz de transcender o sentido conjuntos de signos dotados de certa mobilidade. Por
disto e daquilo e de dizer o indizível, não se pode sepa exemplo, no caso dos números, um zero à esquerda não
rar seu raciocínio das imagens, jogos de palavras e ou é o mesmo que um zero à direita: as cifras modificam
tras formas poéticas. Poesia e pensamento se entretecem seu significado de acordo com sua posição. Outro tanto
em Chuang-tsé até formar uma só tela, uma única ma ocorre com a linguagem, só que sua gama de mobilidade
téria insólita. O mesmo se deve dizer das outras doutri- é muito superior às de outros processos de significação
e comunicação. Cada vocábulo possui vários significa-
1 Arthur Waley, The way and its power. A study of the Tao Te Ching
and its place in the Chinese thought, Londres, 1949.
1 Arthur Waley, op. cit.
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dos, mais ou menos conexos entre si. Esses significados essas imagens constituem uma realidade objetiva, válida
se ordenam e se precisam de acordo com o lugar da pa por si mesma: são obras. Uma paisagem de Góngora não
lavra na oração. Os outros desaparecem ou se atenuam.
é a mesma coisa que uma paisagem natural, mas ambas
Óu, dizendo de outro modo: em si mesmo o idioma é possuem realidade e consistência, embora vivam en^
uma infinita possibilidade de significados; ao se atualizar
numa frase, ao se converter verdadeiramente em lingua esferas distintas. São duas ordens de realidades parale
gem, essa possibilidade se fixa numa única direção. Na las e autônomas. Nesse caso, o poeta faz algo mais que
prosa, a unidade da frase é conseguida através do senti
dizer a verdade; cria realidades que possuem uma ver
do, que é algo como uma flecha que obriga todas as dade: a de sua própria existência. As imagens poéticas
palavras a apontarem para um mesmo objeto ou para têm a sua própria lógica e ninguém se escandaliza de
uma mesma direção. Ora, a imagem é uma frase em que que o poeta diga que a água é cristal ou que "ei pirú
es primo dei sauce" (Carlos Pellicer). Mas essa verdade
a pluralidade de significados não desaparece. A imagem estética da imagem só vale dentro de seu próprio uni
recolhe e exalta todos os valores das palavras sem ex
cluir os significados primários e secundários. Como pode verso. Finalmente, o poeta afirma que suas imagens nos
a imagem, encerrando dois ou mais sentidos, ser una e dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos e que
resistir à tensão de tantas forças contrárias, sem se con esse algo, ainda que pareça um disparate, nos revela de
verter num mero disparate? Há muitas proposições, per fato o que somos. Essa pretensão das imagens poéticas
feitamente corretas quanto ao que chamaríamos de possui algum fundamento objetivo? O aparente contra-
sintaxe gramatical e lógica, que terminam por ser um senso ou sem-sentido do dizer poético encerra algum
sentido?
contra-senso. Outras desembocam num sem-sentido, co
mo as citadas por Garcia Lorca em sua Introducción a Quando percebemos um objeto qualquer, este se nos
Ia lógica moderna ("o número dois é duas pedras"). Mas apresenta como uma pluralidade de qualidades, sensa
a imagem não é nem um contra-senso nem um sem-senti ções e significados. Essa pluralidade se unifica instan
do. Assim, a unidade da imagem deve ser algo mais que taneamente no momento da percepção. O elemento uni-
a meramente formal que se dá nos contra-sensos e em ficador de todo esse conjunto de qualidades e de formar
geral em todas as proposições que não significam nada é o sentido. As coisas possuem um sentido. Mesmo no
ou que constituem simples incoerências. Qual pode ser caso da mais simples, casual e distraída percepção, ve
o sentido da imagem, se vários e díspares significados rifica-se uma certa intencionalidade, segundo demons
lutam em seu interior? traram as análises fenomenológicas. Assim, o sentido não
As imagens do poeta têm sentido em diversos níveis. só é o fundamento da linguagem como também de toda
Em primeiro lugar, possuem autenticidade: o poeta as apreensão da realidade. Parece que nossa experiência da
viu ou ouviu, são a expressão genuína de sua visão e pluralidade e da ambigüidade do real se redime no sen
experiência do mundo. Trata-se, pois, de uma verdade de tido. À semelhança da percepção comum, a imagem
ordem psicológica, que evidentemente nada tem a ver poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mes
com o problema que nos preocupa. Em segundo lugar, mo tempo, outorga-lhe unidade. Até aqui o poeta não
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realiza algo que não seja comum ao resto dos homens. cura e remota. O poema nos faz recordar o que esquece
Vejamos agora em que consiste a operação unificadora mos: o que somos realmente.
da imagem para diferenciá-la das outras formas de ex A cadeira é muitas coisas ao mesmo tempo: serve para
pressão da realidade. sentar, mas também pode ter outros usos. Outro tanto
Todas as nossas versões do real — silogismos, descri ocorre com as palavras. Tão logo reconquistam sua ple
ções, fórmulas científicas, comentários de ordem práti nitude, readquirem seus significados e valores perdidos.
ca, etc. — não recriam aquilo que pretendem exprimir. A ambigüidade da realidade, tal como a apreendemos no
momento da percepção: imediata, contraditória, plural
Limitam-se a representá-lo ou descrevê-lo. Se vemos uma
e, não obstante, possuidora de um sentido recôndito. Por
cadeira, por exemplo, percebemos instantaneamente sua obra da imagem produz-se a instantânea reconciliação
cor, sua forma, os materiais com que foi construída, etc. entre o nome e o objeto, entre a representação e a rea
A apreensão de todas essas características dispersas não lidade. Portanto, o acordo entre o sujeito e o objeto dá-se
é obstáculo para que, no mesmo ato, nos seja dado o com certa plenitude. Esse acordo seria impossível se o
significado da.çadeira: o de ser um móvel, um utensílio. poeta não usasse da linguagem e se essa linguagem, por
Mas, se queremos descrever nossa percepção da cadeira, meio da imagem, não recuperasse sua riqueza original.
teremos de ir aos poucos e por partes: primeiro sua for Mas essa volta das palavras à sua natureza primeira —
ma, depois sua cor, e assim sucessivamente até chegar ao isto é, à sua pluralidade de significados — é apenas o
significado. No curso do processo descritivo foi se per primeiro ato da operação poética. Ainda não apreende
dendo pouco a pouco a totalidade do objeto. A princí mos completamente o sentido da imagem poética.
pio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma certa Toda frase possui uma referência a outra, é suscetí
espécie de madeira, e finalmente puro significado abs vel de ser explicada por outra. Graças à mobilidade dos
trato: a cadeira é um objeto que serve para sentar. No signos, as palavras podem ser explicadas pelas palavras.
poema a cadeira é uma presença instantânea e total, que Quando tropeçamos numa sentença obscura, dizemos:
fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve "O que essas palavras querem dizer é isto ou aquilo." E
a cadeira: coloca-a diante de nós. Como no momento da para dizer "isto ou aquilo" recorremos a outras palavras.
percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas quali Toda frase quer dizer algo que pode ser dito ou expli
dades contrárias e, no ápice, o significado. Assim, a ima cado por outra frase. Em conseqüência, o sentido ou sig
gem reproduz o momento de percepção e força o leitor nificado é um querer dizer. Ou seja: um dizer que se
a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O ver pode dizer de outra maneira. O sentido da imagem,
so, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, pelo contrário, é a própria imagem: não se pode dizer
como dizia Machado: não representa; apresenta. Recria, com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma.
revive nossa experiência do real. Não vale a pena assina- Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer. Sentido
;lar que essas ressurreições não são apenas as de nossa e imagem são a mesma coisa. Um poema não tem mais
experiência cotidiana, mas as de nossa vida mais obs- sentido que suas imagens. Ao ver a cadeira, apreendemos
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instantaneamente seu sentido: sem necessidade de re degradou na segunda versão: de afirmação converteu-se
correr à palavra, sentamo-nos. O mesmo ocorre com o em explicação rasteira. A corrente poética sofreu uma
poema: suas imagens não nos levam a outra coisa, como baixa de tensão. A imagem faz com que as palavras per
ocorre com a prosa, mas nos colocam diante de uma rea cam sua mobilidade e intermutabilidade. Os vocábulos
lidade concreta. Quando o poeta diz dos lábios de sua se tornam insubstituíveis, irreparáveis. Deixaram de ser
amada: "pronuncian con desdén sonoro hielo", não faz instrumentos. A linguagem deixa de ser um utensílio. O
um símbolo da brancura ou do orgulho. Coloca-nos diante retorno da linguagem à natureza original, que parecia
de um fato sem recorrer à demonstração: dentes, pala ser o fim último da imagem, é apenas o passo prelimi
vras, gelos, lábios, realidades díspares, apresentam-se de nar para uma operação ainda mais radical: a linguagem,
um só golpe diante de nossos olhos. Goya não nos descre tocada pela poesia, cessa imediatamente de ser lingua
ve os horrores da guerra: oferece-nos simplesmente a gem. Ou seja: conjunto de signos móveis e significantes.
O poema transcende a linguagem. Fica agora explicado
imagem da guerra. Os comentários, as referências e as
explicações ficam sobrando. O poeta não quer dizer: diz. o que eu disse ao começar este livro: o poema é lingua
gem — linguagem antes de ser submetida à mutilação
Orações e frases são meios. A imagem não é meio; susten
da prosa ou da conversação —, mas é também alguma
tada em si mesma, ela é seu sentido. Nela acaba e nela
coisa mais. E esse algo mais é inexplicável pela lingua
começa. O sentido do poema é o próprio poema. As ima
gem, embora só possa ser alcançado por ela. Nascido da
gens são irredutíveis a qualquer explicação e inter palavra, o poema desemboca em algo que a ultrapassa.
pretação. Assim, as palavras — que haviam recupe
A experiência poética é irredutível à palavra e, não •
rado sua ambigüidade original — sofrem agora outra obstante, só a palavra a exprime. A imagem reconcilia
desconcertante e mais radical transformação. Em que os contrários, mas essa reconciliação não pode ser ex
consiste?
plicada pelas palavras — exceto pelas da imagem, que já
Derivados da natureza significante da linguagem, dois deixaram de sê-lo. Assim, a imagem é um recurso deses
atributos distinguem as palavras: primeiro, sua mobili perado contra o silêncio que nos invade cada vez que ten
dade ou intermutabilidade; segundo, em virtude de sua tamos exprimir a terrível experiência do que nos rodeia
mobilidade, a capacidade de uma palavra poder ser e de nós mesmos. O poema é linguagem em tensão: em
explicada por outra. Podemos dizer de muitas maneiras extremo de ser e em ser até o extremo. Extremos da pa
a idéia mais simples. Ou mudar as palavras de um texto lavra e palavras extremas, voltadas sobre suas próprias
ou de uma frase sem alterar gravemente o sentido. Ou entranhas, mostrando o reverso da fala: o silêncio e a
explicar uma sentença por outra. Nada disso é possível não-significação. Mais aquém da imagem, jaz o mundo
com a imagem. Há muitas maneiras de dizer a mesma do idioma, das explicações e da história. Mais além,
coisa em prosa; só existe uma em poesia. Não é a mes abrem-se as portas do real: significação e não-significa
ma coisa dizer "de desnuda que está brilla Ia estrella" ção tornam-se termos equivalentes. Tal é o sentido últi
e "Ia estrella brilla porque está desnuda". O sentido se mo da imagem: ela mesma.
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Certo, nem em todas as imagens os opostos se recon mentar, a distância entre a palavra e a coisa se reduz ou
ciliam sem se destruir. Algumas descobrem semelhanças desaparece por completo: o nome e o nomeado são a
entre os termos ou elementos de que se compõe a reali mesma coisa. O sentido — na medida em que é nexo1
dade: são as comparações, segundo Aristóteles as defi ou ponte — também desaparece: já não há nada que tu
niu. Outras aproximam "realidades contrárias" e produ apreender, nada que assinalar. Mas não se produz o sem-
zem assim uma "nova realidade", como diz Reverdy. sentido ou o contra-sentido, e sim algo que é indizível e
Outras provocam uma contradição insuperável ou um inexplicável, exceto por si mesmo. Outra vez: o sentido
sem-sentido absoluto, que denuncia o caráter irrisório do da imagem é a própria imagem. A linguagem ultrapassa
mundo, da linguagem ou do homem (a essa classe per o círculo dos significados relativos, o isto e o aquilo,
tencem os disparos do humor e, já fora do âmbito da e diz o indizível: as pedras são plumas, isto é aquilo. A
poesia, as piadas). Outras nos revelam a pluralidade e linguagem indica, representa; o poema não explica nem
interdependência do real. Há, enfim, imagens que rea representa: apresenta. Não alude à realidade; pretende
lizam o que parece ser uma impossibilidade, tanto lógi — e às vezes consegue — recriá-la. Portanto, a poesia é
ca quanto lingüística: casamentos dos contrários. Em um penetrar, um estar ou ser na realidade.
todas elas — apenas perceptível ou inteiramente realiza A verdade do poema apóia-se na experiência poética,
do — observa-se o mesmo processo: a pluralidade do que não difere essencialmente da experiência de identi
real manifesta-se ou expressa-se como unidade última, ficação com a "realidade da realidade", tal como foi des
sem que cada elemento perca sua singularidade essencial. crita pelo pensamento oriental e uma parte do ocidental.
As plumas são pedras, sem deixarem de ser plumas. A Essa experiência, reputada indizível, expressa-se e co
linguagem, voltada sobre si mesma, diz o que por natu munica-se pela imagem. E aqui nos defrontamos com ou
reza parecia lhe escapar. O dizer poético diz o indizível. tra perturbadora propriedade do poema, que será exa
A censura que Chuang-tsé faz à palavra não atinge a minada mais adiante (no ensaio "A revelação poéti
imagem, porque ela já não é, em sentido estrito, função ca"): em virtude de ser inexplicável, exceto por si
verbal. Com efeito, a linguagem é sentido disto ou da- mesma, a maneira própria de comunicação da imagem
• quilo. O sentido é o nexo entre o nome e aquilo que no não é a transmissão conceituai. A imagem não explica:
meamos. Assim, implica distância entre um e outro. Ao convida-nos a recriá-la e literalmente a revivê-la. O di
enunciarmos certa classe de proposição ("O telefone é zer do poeta se encarna na comunhão poética. A ima
comer", "Maria é um triângulo", etc.) produz-se um sem- gem transmuta o homem e converte-o por sua vez em
sentido porque a distância entre a palavra e a coisa, o imagem, isto é, em espaço onde os contrários se fundem.
signo e o objeto, torna-se insalvável: a ponte, o sentido, E o próprio homem, desenraizado desde o nascer, recon
rompeu-se. O homem fica só, encerrado em sua lingua cilia-se consigo quando se faz imagem, quando se faz
gem. E na verdade fica também sem linguagem, pois as outro. A poesia é metamorfose, mudança, operação al-
palavras que emite são puros vsons que já não significam química, e por isso confina com a magia, a religião e
nada. Com a imagem ocorre o contrário. Longe de au- outras tentativas para transformar o homem e fazer

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