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NOTAS PARA UMA REFLEXAO SOBRE AS LOGICAS DE ABELARDO E OCKHAM E O SURGIMENTO DO INDIVIDUO NA IDADE MEDIA. Joao GOMES DA SILVA FILHO . RESUMO: O presente texto, considerado como um apontamento de questées para uma teflexdo posterior, elencando conceitos chaves das légicas de Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham, procura valorizar a incursao a filosofia por Parte dos historiadores que se Preocupem com a problematica do individuo, bem como a relevancia da filosofia para outras pesquisas historiograficas possiveis. * _ PALAVRAS-CHAVE: Idade Média; individuo; légica; metodologia; Abelardo; Ockham. Em estudos desenvolvidos a respeito do individuo na Idade Média a Maioria dos autores, na tentativa de descrever, compreender e circunscrever este objeto tao fugidio — pelo menos dentro dos limites da historiografia atual — tomaram evidente a importancia do século XII como um periodo definidor das Caracteristicas minimas observaveis para que se pudesse iniciar uma pesquisa. Tal quadro deve Muito ao aumento dos registros escritos a partir do periodo (pelo menos desde o século XI) que vieram a contribuir para o esclarecimento dos problemas advindos da questao: se 0 individuo pode nao estar presente em todos os Periodos historicos, entéo, quando teria ele surgido? Mas nao é Somente a disponibilidade numérica de fontes escritas o mais importante, e sim a “Aluno do Programa de Pos-Gracuccdo em Historia — Mestrando em Historia Medieval - pela UNESP campus de Franca, Sob Orientacao da Profs. Dra. Néri de Barros Almeida. Apoio: CAPES. diversificagdo dos géneros literarios ("biografias", “auto-biografias*, hagi *guto-hagiografias", epistolas, bem como 0 registro escrito de namatvas em plena circulagao na matriz da oralidade) _€ das artes plasti antes representagao figurativa humana em geral e de si mesmo, principalmene iluminuras, a escultura, incluindo a arte tumular € a arquitetura) que ga em verdade, 0 proprio indicio que cria a possibilidade de questionarmos 9 sh na sobre o surgimento do individuo. 0 xi A proposta deste breve texto é apresentar a filosofia como fonte pose) e altamente relevante para a problematica, incluindo no que foi dito ale a escolha de Pedro Abelardo (1079-1142), mas acima de tudo ja propor je questionamento um pouco mals delicado a respeito do que se chamoy *nominalismo” e seu possivel papel no conjunto dos elementos articulaveis na constituigao do individu, historicamente. Para tanto, e no ambito das discussdes filosoficas especificas sobre 0 nominalismo, consideramos frutifero retomar 9 contraponto com Guilherme de Ockham (12852-1349) ja enunciado por outros autores, mas ao qual aqui daremos coloragées diferentes. A despeito das conhecidas dificuldades para a realizagao de uma comparagao entre os pensamentos de Pedro Abelardo e Guilherme de Ockham, ainvestida mostra-se valida como exercicio de desconstrugao e de compreensio filosofica, mas também histérica, principalmente se levarmos em consideracéo que a questo do surgimento do individuo congrega consequéncias para uma mais fundamentada critica da modemidade, alargando assim o papel da medievalistica no seio das ciéncias sociais. No que se refere a um primero passo, a aproximacao comparativa permite a precisdo dos conceitos e do sistema do pensamento de cada autor como um todo, além do que poderia ser possivel quando estudados isoladamente, em labirintos de arquitetura particular, 0s quais nos convidam a nos perdermos e nao a tragar 0 caminho mais curto, Em um estudo isolado, nada nos impediria de percorrermos todos os seus Corredores, de nos deixarmos levar por seus becos sem saida, como em imagens de Eco nas quais “o maximo de confusao [é] somado a0 maximo 42 ordem: parece-me um calculo sublime. Os construtores da biblioteca eran os grandes mestres" (ECO, 1992). Mas a comparagao possibilita 0 vislumbramento ‘anto em um como no outro das dimensdes de cada labirinto. Assim, penel es Nos dominios de Ockham com a "planta’ de Abelardo e vice-versa. S° A encaixam? Se é possivel uma justaposi¢0? De fato nao, mas 0 importer is ercepgao de suas dimensdes, pois evidentemente as chaves $2 fomec! Pelos préprios autores, e de: ‘fas dentro de sua propria autenticidade. , @ desta forma, encontramo-las A perspectiva da comparagao em si, no entanto, nao é suficiente para caracterizar como aleatoria a selegao dos dois autores, Pois os critérios que nos autorizam a realizar esta selecao estéo além das referéncias que ambos compartilham. Quanto a isto citemos entao Paul Vignaux em dois momentos diferentes: primeiro em 1931 e depois em 1941: Devemos inferir de uma transmissao do XIl ao XIV da critica do realismo e da metafisica do nominalismo? Nao necessariamente. Pois nés sabemos que os pensadores metafisicos so por vezes 'recuperados’, depois de numerosos séculos de distancia, sem terem sido precisamente transmitidos. Ockham nos diz por outro lado que todos aqueles que ele leu sobre o problema dos universais foram realistas. Ele nos basta da continuidade da tradico logica medieval: a mesma légica do termo tirada de Aristiteles, Porfirio, Boécio, que tinham conduzido uma vez Abelardo ao nominalismo podiam bem ter conduzido uma segunda vez Ockham e sua escola. (VIGNAUX, 1931, p.748-749) E, entdo, em 1941: As idéias de Ockham relembram as de Abelardo: no estado presente dos estudos mal podemos estabelecer, entre estes dois nominalismos, qualquer transmissao de doutrina; observemos simplesmente que, do século Xil ao XIV, apesar da metafisica do século XIl!, 0s espiritos ttm em comum uma formagdo primeira, haurida na légica de Aristoteles, Porfirio e Boécio; € o instrumento e a aprendizagem do saber, s40 os fundamentos do fegime mental. (VIGNAUX, 1941, p.184) Passados dez anos entre um texto e outro, a dificuldade subsiste, nao houve acréscimos consideraveis quanto a questéo. Mas talvez isto tenha ocorrido pelo fato dela ter sido formulada imprecisamente, procurando de fato uma influéncia direta e, portanto, a imprecisdo de que se trata aqui esta na falta de sua reformulacao. A busca que se norteia de Ockham para Abelardo pode ser invertida, parindo de Abelardo para Ockham, uma mudanga de sentido estabelecida por uma nova questo, sobre as aproximagdes possiveis entre os dois sistemas. Primeiramente nao podemos tomar Aristoteles, Porfirio e Boécio como base comum de reflexdo dos autores, sendo mais correto traté-los como referéncias ou fontes, as quais foram exaustivamente lidas, Telidas e comentadas Por todos os pensadores medievais, portanto, 0 que viria a ser chamado de base Comum para sustentar a selegdo de Abelardo e Ockham para um trabalho com estas preocupagées (a aproximago e 0 distanciamento) é justamente uma etapa além do contato com as fontes, ou seja, a sua interpretagao e neste caso especifico as formas de entender a natureza, 0 lugar e o papel dos universals no Processo de conhecimento humano. Ainda resta dizer que a op¢ao de partir de Abelardo Nao implica nenhuma logica cronologica, 0 que faria deste em diregdo @ Ockham texto uma tentativa de . ientagao € dada pelo acesso a obra de Aristote| eae ‘ere Bao a parte da obra do Filsofo, o que ae que ee incompleto, a Categorias e 0 De Interpretatione, e que Ockham ° oe a totalidade das tradugdes que foram completadas pelo encontro a : mores arabes, salientando-se, principalmente, a Metafisica. Isto Posto fica clan que qualquer aproximagao comparativa a partir de Ockham impoe limites para que nao se trate do que ha de excesso como se fosse 0 que ha de diverso Privilegiou-se, portanto, um levantamento de conceitos e definigdes de Abelardo e depois dos mesmos OU das solugées afins de Ockham esclarecendo, no entanto, que estes cruzamentos sustentam-se em afinidades de terminologia que nao necessitam corresponder em contetdo do conceito como um todo — o que por si ja demonstra a natureza de alguns desdobramentos de uma mesma questao — quanto de conceitos com conteUdos que se afinam pela sua dinamica dentro da ordem de um raciocinio mais amplo, marcando de maneira mais minuciosa as diferengas e a evidéncia advinda disso, a qual demonstra que o que ha de proximo nos dois sistemas nao esta necessariamente circunscrito a esfera dos conceitos concordantes. Sao eles, entao, 0 de universal, fundamental e no qual todos os demais se resolvem; causa comum, em Abelardo, e algo comum (aliquod commune) em Ockham, e respeitando ainda esta ordem, a¢ao da alma e intencdo da alma; o problema das distingoes circunscrito @ refutagdo do argumento realista; e, por fim, a compreensao dos autores sobre os processos de abstragao e inteleccéo. Cabe aqui, portanto, uma pequena ressalva ainda a respeito da selegao dos conceitos, e que esperamos, possa ficar mais evidente no que se segue: primeiro por se tratar de uma pequena amostragem, e segundo, por que estes conceitos em particular definem espagos cognitivos para sua propria existéncia, e é este “desbravamento" de espagos G tempos) que os tomam importantes para a questo do individuo. : Nao é nenhuma novidade no século XII 0 debate sobre o problema dos universais, que foi pontuado desde as leituras de Plato e Aristoteles feilas @ partir dos séculos Ill e IV, marcadamente pelos comentarios de Boecio ea Isagoge de Porfirio. As controvérsias produzidas pelas questoes deixadas em aberto pelo texto de Porfirio sobre elementos fundamentais, tais como 0s ee permanecerao e evoluirdo pelo menos até 0 século ode er ice ‘ toes Abelardo formula, no século xl, sua propria defini¢ a momento te pt 0 ae interpretacdes e nas solugdes propostas ate _ e Champeaus "4 minal istas como Roscelin, e realistas como Guilherm .' Visto que, até onde nos foi possivel observar, todas estas posigoes "De At dopa av ha Grersncas com o neste Guinerme: “ne ous cosas, no inoe” ea . ssimas provas dos meus argumentos, @ modifica ou antes. # 25" a“ nen 9002 as quais se refere foram criticadas ou totalmente refutadas. Nas palavras de Abelardo, as questGes de Porfirio so as seguintes: Gerd que os géneros e as especies subsistem ou est&o postos nas isoladas (_), como se dissesse, sera que tem verdadeiro ser ou permanecem apenas na opiniao? Caso se conceba que S40 verdadeiramente, sera que so esséncias corporais ou incorporais? Sera que s40 separados dos sensiveis ou colocados neles? (PEDRO ABELARDO, 1994, p.42- 43) Dai, Abelardo propde esclarecimentos sobre a natureza dos universais, seu lugar e sua relacao com os seres individuais, para no final, satisfeito com a longa introdugdo, solucionar as questées de Porfirio permitindo-se acrescentar Mais uma: Sera que tanto os géneros como as espécies, enquanto so géneros e espécies, tem necessariamente de ter alguma coisa subordinada através da denominagdo ou se, destruidas as proprias coisas denominadas, ento 0 universal poderia constar da signticago da inteleccdo, como este nome ‘rosa’ quando ndo ha nenhuma das rosas as quais 6 comum? (PEDRO ABELARDO, 1994, p.43-44) Esta ultima questéo compde-se de todas as respostas dadas as trés primeiras e da incompletude que Abelardo observou naquelas, ja que em todas as solugdes ndo conseguiu se fixar em uma resposta absoluta, sendo sempre necessario estendé-las até um ponto mais relativo, no limite onde a propria tesposta é a critica da questo. Mas nao serao as respostas de Abelardo a Porfirio que compordo 0 corpo da argumentagao na relagao com Guilherme de Ockham — pelo menos nao diretamente — ja que ha pouca coeréncia possivel entre os comentarios dos dois autores a elas; porém, nos esclarecimentos de ambos sobre os universais, encontramos material suficiente para respaldar algumas hipoteses e algumas duvidas que permanecerao em aberto. Para Abelardo qualquer classificagéo dos seres deve estar imprescindivelmente fundada no real. Isto € decorréncia de uma definigao de universalidade que exclui qualquer possibilidade de existéncia real, tanto nos seres quanto preterindo-se deles, do universal. Partindo da definigao aristotélica de que universal é aquilo que é apto naturalmente de ser predicado de muitos antiga doutrina sobre os universais. Com efeito, quanto ao caréter comum dos universais, ele era de opinio que uma mesma coisa estava toda, simuiténea e essencialmente, em cada um dos individuos, em cuja esséncia verdadeiramente nenhuma dlversidade havia, mas tao somente a variedade por causa da mulidéo dos acidentes. Ele corrigiu de tal modo esta doutrina, a ponto de, posteriormente, dizer que a mesma coisa erisia nos indivduos) néo essencialmente, mas de modo néo diferente." Apud. ROCHA, 2. Abelardo — Heloisa. Cartas, Recife: UFPE, 1997, p. 55. Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p.31-50, 2002 36 Lee esr eele Eres Ent T ane (PEORO ABELARDO, 1994, p 45) Abelardo buscara 0 esclarecimento Fs Que dé con de solucionar de maneira correta os impasses a respeito do tema on Para ele, i das prépnas coisas & causa da universalidade do nome . 1984, B76). no € universal senda 0 gue eave © 8 palavra, a prépna ce, ar $2150 ten, Sa;d0 por causa da cosy » 83s. POrWUE, tomy inatvo de acordo com a multid3o da: enbera ayy 0 ABs r muitos” refere-se, dito de outra maneira, a Capacidade de ‘amente contdo em sie nos elementos dos quais predica, logo, sea colegao dos individuos definisse 0 universal como agrupamento puro e simples baseado em cai isticas comuns, ao desfazer-se 0 grupo fragmentar-senig ° proprio universal, e ainda, neste caso a colegao seria, evidentemente, anterior ag universal, 0 que também nao é possivel admitir-se. O universal é, Para Abelardo, significagao, e os eres, aquilo que é significativo. : Até este ponto néo encontramos diferengas em Ockham, que tambem estabelece sua definigdo de universalidade sustentado em uma logica de linguagem, defendendo sua imaterialidade ‘in anima’ como nao sendo uma substancia, mas aquilo que “exprime ou expée (explicaf) a natureza da substancia, isto é, a natureza que é substancia™ (GUILHERMO DE OCKHAM, 1999 v.3, p.171). "Os dois filosofos concordam por conceber a coisa como inteiramente individual em si, incomunicavel com qualquer outra que seja; correlativamente eles afirmam, um e outro, que nao pode existir a coisa universal, ou em outros termos (...) que os universais na poderiam ser as coisas; (...) para eles 0 universal é um significant.” (JOLIVET, 1981, p.46-47) As sutilezas entre Abelardo e Ockham, as quais nao nos permitem confundi-los naquilo que presumiriames ser totalmente igual, devem ser buscadas entdo, no percurso que enfim levar- Os ao que foi dito acima. Primeiro a causa comum" de Abelardo. Esta "causa" 6 assim pela Caracteristica dos seres individuais de poderem corresponder significativame’'? 0 universal que deles se predica, e esta causa esta na sua propria natureza de Serem algo, isto é, a causa comum nao é uma esséncia, mas um fato. Este f2!2® aquilo que determina a razdo de ser (esse) da coisa ou coisas 4s quas ® femete, realizando-se mesmo como a atribuiggo de significado pautato "9 fealidade que estabelece um espaco intermediario entra a palavra € 2 oa colhendo uma poténcia nova recebida das duas extremidades de uma relay nomeagao simples. Porque Sdcrates e Plato convem naquilo que é "Po" 36 80,2002 Estudos de Historia Franca, 9.0.1.3 A resposta pode vir de outra questa: 0 que sao Plato e Socrates? Ora, tanto Platéo quanto Sécrates sao homens, este é, portanto, seu estado (status) que mais aproxima cada um de maneira suficiente para que, existindo apenas os dois e nenhum outro homem, bastariam para que 0 intelecto fundasse o conceito de homem (uma imagem comum ou confusa de muitos); "este esse é seu status” (JOLIVET, 1975, p.535). Chamamos de estado de homem o proprio ser homem, que nao é uma coisa, e que também denominamos causa comum da imposigao do nome a cada um, conforme eles proprios se retnem uns com os outros (PEDRO ABELARDO, 1994, p.61-62) Do que temos de Ockham que se enquadra operacionalmente neste contexto no qual esta a "causa comum" é aquilo por ele definido como “algo comum" (aliquod commune). Nao se trata mais de um individuo, pois das trés suposiges, a "materialis", a "personalis" e a "simplex’ importa aqui a Ultima o algo comum, qualquer coisa que entre Socrates e Platao hes é comum. De acordo com a regra geral se dissermos "homo est species" dizemos "homo est universalis", porque estaremos estabelecendo, mesmo que minimamente, um critério de identificagdo entre os seres. Como se péde notar em Abelardo, para que se chegue a tal proposicao @ obrigatorio passarmos pela consideragao do status. Em Ockham, 0 “algo comum" é carregado de uma necessidade de materialidade que Ihe possa justificar a existéncia nos seres individuais de maneira mais imanente a estes Ultimos. Esta necessidade de imanéncia ockamiana nao pode concordar com o percurso nas idéias promovido pela relagao de significagao de Abelardo, logo ha uma grande diferenga, pois nado ha sentido em perguntarmos sobre a existéncia real ou nao da "causa comum" (mas 6 pertinente quando se trata do "algo comum'), pois ja é estabelecida a sua qualidade de universal. Esbarramos, portanto, em uma dificuldade: 0 qué, nos individuos, sustenta a significago universal para Ockham? € exatamente a dificuldade j4 encontrada por Abelardo, de que este saira invocando os status dos individuos. Ockham vai resolvé-la de maneira semelhante, porém ainda mais radical [_] a resposta estava necessariamente incluida na propria colocagao da questo. Seus dois dados principals sé0, com efeito: 1° visto que tudo 0 que é real é individual, os géneros e as espécies nao so nada fora do pensamento; 2° 08 individuos se prestam, do obstante, a ser classificados pelo pensamento em géneros e em espécies. Dito isso, a nica solugdo correta para o problema consiste em nada acrescentar a esses dados € a compreender que estamos em presenga de um fato além do qual é impossivel remontar. E supérfluo imaginar que Platéo e Socrates tenham algo em comum para explicar que pertencem a uma mesma espécie; 0 que Platéo é individualmente e o que Socrates 6 Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p.31-50, 2002 37 indvidualmente se harmonizam simplesmente em virude do que Patio & & d 9, Socrates &. [grifo nosso] (GILSON, 1995, p. 802). rn Visto que ja precavemo-nos contra as possiveis confusdes que g aparente similitude dos termos poderia suscitar, testa ainda esclarecer qual é de fato a radicalidade de Ockham em relagao a Abelardo. Como & notavel, Ockham nao infere sobre um “estado” de homem, e isto diz respeito a sua preocupagag com as realidades contingents. Em Abelardo 0 fato de Socrates ser homem e Plato ser homem nao se questiona e é dado como necessario. Em Ockham, que apesar de sustentar 0 conhecimento apenas na coisa existente abstraindo. é se da esséncia da coisa (como em Abelardo), deste existente, porém, nada pode " dizer que seja_ universal, imovel, imutavel e necessario, neste sentido pode-se g apenas afirmar sobre o ser das coisas, mas sobre como elas sé0 (seu estado, f aproximadamente), nao ha certeza absoluta. Para que um “animal racional" seja, : basta que apenas um “animal racional” exista, mas ele nao € mais necessario do que uma phoenix, logo, a necessidade para Ockham é meramente ldgica, a contingéncia 6 absoluta e as afirmagoes sao condicionais. O estado ao qual recorre Abelardo em suas argumentagdes nao é relevante para Ockham simplesmente porque ele nao reconheceria uma razdo neste argumento, nao teria sentido nisto ja que a indivisibilidade total dos seres existentes, privilegiada em ambos, é também tao absoluta em Ockham quanto a contingéncia.? i Se ha neste sentido uma preocupagao em estabelecer aquilo que nos seres justifica os significados dos termos universais na mente por algo que entre 0s seres convenha, associado a isto é inevitavel desdobrar o raciocinio para 0 ponto em que estes seres diferem. Este desdobramento € uma necessidade ‘ogica que provem dos dois pontos centrais tratados acima: a singularidade total das coisas reais e 0 como, a partir disso, se produziria o universal. A forma de se | sustentar tal idéia nao pode bastar a semelhanga, mas ela deve tambem resistir | @0 questionamento sobre as diferengas para constituir-se como uma teoria de fato. Este é o papel da discussao sobre as distingdes. Tanto em Abelardo como em Ockham a critica ao argumento realista é Colocada da mesma maneira, como uma di a i ‘a discussao. totalmente de razdo a senteni ie ate identi ca pela qual se diz que a esséncia absolutamente idéntica existe simultaneamente em di ¥ soutamen iversos" (PI tanto quanto uma outra que suster eee ABELARDO, 1994, p51) ‘ nta a diversidade nas esséncias, "assi tra q \cias, "assim 8S proprias formas sao diversas, umas das outras em si mesmas OU ‘Ademals, a Estudos de Historia, Franca, v.9, 1.1, p.31-50. 2090 especie nao sé tomaria jamais 0 que é mais geral nem o género o que é mais especial, 0 que equivale a dizer — a diferenga entre clas é que a esséncia de uma nao é a esséncia da outra" (PEDRO ABELARDO, 1994, p.52). Resumidamenta poderiamos dizer que a recusa de Abelardo a estas duas posigdes est no fato de que elas, mesmo contraditérias, combinam ao considerem a esséncia dos seres como algo contido realmente na singularidade, caso que ja 6 mencionado por Abelardo na sua definigao de universal, e principalmente na sua tentativa de aplicagao de um argumento realista a relagao essencial entre Sécrates e um asno provando seu absurdo. No seu entender o universal deve estar contido inteiramente em si e nos individuos dos quais é predicado. Como sustentar que haja convivéncia nao contraditoria_no género animal de "racional" e “irracional"* sendo que 0 género animal deve dar conta de ser predicado, como foi dito, inteiramente dos individuos? Da "causa comum" que faz convir Socrates € Plato no que é homem, tambem haa "causa comum" que faria convir Socrates e um asno naquilo que € "animal". Desta maneira os realistas nao dao conta de esclarecer como é possivel, entéo, que destas consideragdes devesse haver uma "causa comum" para fazer convir “animal racional" (Socrates) e “animal irracional" (asno) como existéncias essenciais reais, pois assim Socrates teria que ser racional e irracional ao mesmo tempo. Guilherme de Champeaux foi o principal alvo da critica de Abelardo a este respeito, tentando ainda responder a impertinéncia de seu discipulo com 0 argumento da indiferenciagaéo — ja um produto das corregées forgadas pela disputa —, 0 qual nos aproximara da refutagao que Guilherme de Ockham faz da distingao formal. Segundo esta ultima posigao de Guilherme de Champeaux (..) 0 universal das coisas, denominam idéntico, no por certo essenciaimente, mas indiferentemente, o que é distinto, tal como afirmam que todos os homens distintos entre si mesmos s40 0 mesmo no homem, isto 6, nao diferem na natureza da humanidade. Desse modo, eles denominam universais, conforme a indiferenga € 0 acordo da semelhanga, aqueles mesmos que chamam de singulares, segundo @ distingdo. (PEDRO ABELARDO, 1994, p.52) Ja que a identidade essencial caiu por terra resta procurar um refugio onde ainda possa permanecer uma “res” universal. Nao captou-se a abrangéncia inescapavel da proposta de Abelardo. A aparente solidez deste refugio revelou- se muito efémera. Bom, se Sdcrates nao difere de Plato no que é 0 homem, também nao difere no que é 0 asno, ou, usando 0 exemplo de Abelardo, no que 6 pedra, ja que nem Socrtes nem Platéo sao asno ou pedra. Nao esquecendo, Portanto, que nesta posigao os individuos devem convir no universal, e visto que Socrates e Plato combinam no nao ser pedra, entéo combinam tanto em 39 Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p.31-50, 2002 homem quanto em pedia © Asno’. A CONclusao ja esta dada: s4 Plato s80 homem, pedra e asno! Para Ockham, *se algo universal fet’ & | Gnica substancia existente nas substancias singulares e distinta delas Una ia que poderia ser sem elas, porque toda coisa naturalmente anteven S. pode, pela poténcia divina, ser sem ela’, (GUILHERME OCKHAM, 1999 3 que concorda totalmente com Abelardo, e mais, pois em Ockham og he 7 compéem as proposigdes carregados de seus significados, e uma propo | nao pode ser composta de substancias. to | No que diz respeito a sua propria critica do realismo, Ockham Fesponds | diretamente a Joao Duns Escoto contra o argumento da distingao formal | qual a qualidade essencial dos individuos nao determina nenhuma distngy entre eles e apenas os acidentes que marcam a particularidade de cada ser poderiam requerer para si esta funcao. Temos aqui, portanto, uma Matera indistinta em si mesma e nos seres e as formas que sobre esta Materia se agregam. Ockham se apoia também, como foi visto, na auséncig de universalidade do real e, além disso, na marca da contingéncia absoluta neste Ultimo. A diferenciagao formal é, a partir disso, falsa, pois se Socrates é e Platio é, sem nada mais que seja necessario para afirmar-se o ser homem de cada um além desta constatagao evidente, a diferenga individual é natural as coisas na sua condigao de existirem de fato. Socrates e Platao realmente convém, mas por coisas especificas, nao por esséncia, e realmente diferem por conta das suas evidentes diferengas individuais, as quais, reafirma-se, nao podem diferr formalmente. "A diferenca individual € a natureza” (GUILHERME OCKHAM, 1999, p.168) e nada mais. Ao se dizer que "Sécrates 6 branco” isto confirma-se como uma proposigao e apenas como uma proposigao. Porque “Socrates é branco’ passa por uma transformagdo que a tora hipotética? Esta proposigao dz termos, mas nao a coisa, mesmo esta tao elementar como "Socrates é branco’, € isto sO se realizaria se ela fosse reduzida 4 uma suposicao lembrando 43 realidade da coisa a qual se deve referir. A teoria de Ockham é mais ampla¢ Mais extensa em termos e compreensdo tedrica do que a de Aristoteles, mas Nao sao contraditorias na sua totalidade (Ockham contradiz o que & “platonizante" em Aristoteles, ou seja, a multiplicagao das esséncias). Falamos até agora dos principios e dos resultados de reflexces acerca da Natureza dos universais e do ser das coisas no mundo, mas resta ainda tratar de forma mais atenta do processo pelo qual estes universais se constituem, & como sao realizadas as operagdes mentais com estes que foram constituidos. Dav em diante tomaremos este caminho através do que nos dizem os conceitos Ue da alma para Abelardo e intencéo da alma para Ockham, pontos de passage en a a importantissimos para chegarmos a abstraca issin str ait 5 proposta inicial que guia este trabalho, 2680 © @ infelecedo © mais, pela Aalmaé (...) dentro do pensamento cristao, (...) vi i também, e em particular, eer eer Raia a its a eae oe oun biolégica. Nao s6 importa, pois, a aspiragdo a0 ileal te ae que ‘ligam’ a vida da alma — por exempl Peet pee id iplo, a esperanca — . [_] Para os cristaos, a alma é 0 aspecto espiritual da pessoa. Como tal, tem uma relagdo filial — e nao so intelect i com a Pessoa divina [_]. A alma no é, pois, para os cristéos, uma ‘coisa’, nem I = essa ‘coisa! que pode ser chamado de ‘espirito’ E uma experiéncia, ou aa e experiéncias, que incluem a subjetividade, a personalidade, a consciéncia de si (ou de sentir-se viver) e, desde logo, a transcendéncia (FERRATER MORA, 1979, p. 106). De maneira ainda mais especifica distingue-se anima de animus, 0 primeiro termo aplica-se a0 ar, a0 sopro (também vital) e a alma (no sentido de principio vital), a vida (como aquilo que se opde ao corpo)’ e 0 segundo, ganhando sentidos quase idénticos como alma e espirito, tem especificidades proprias ao significar também a sede do pensamento, o conjunto das faculdades da alma, a sede do desejo e da vontade, bem como dos sentimentos e da paixdes (coragao, orgulho) e as intengdes (GAFFIOT, 1934). Veremos que, no caso de Abelardo e de Ockham, a reflexdo € construida sobre as bases do segundo termo, animus - mesmo que as vezes vindo a servirem-se do antenor, € bom termos clareza de quais os sentidos que Ihes sao caros. : Para Abelardo, a agao da alma 6 0 proprio intelecto definido pela sua faculdade fundamental de relacionar-se com objetos e serem conhecidos, por isso ela pode ser associada a noema (ver discemindo), e aqueles sobre 0s 2S sua acao se dirige, puderam ser associados a noesis (pensamento, ee nogdes, contetidos do pensado; objeto formal; significativo). Como 0 oe mesmo 0 diz, a intelecgao é algo proprio da alma, como tambem os s sensagoes, as quais, para Abelardo, desempenham um papel impo} ra processo de conhecimento, logo, faz muito sentido que ele nao disses: da mente" ao inves de "ago da aime. aes oy Em Ockham, 0 conceito de “intenca ndo complexo. A definigao dada por ele apresenta-se um tanto oh de um maior culdado para que nao se diga que © semelhante a vengzo primeia Abelardo, pois nao é. A intengao da alma é dada como uma inteng: & um pouco mais fees Sh, Glossarium . ., ; DU ANGE, Ch. 3 GAFFIOT, F. Dictionnaire Illustré Latin-Frangais. Pans, Ur Hache 1733. ad Soriptores Mediae et Infimae Latintats. Pars, Ediio Nove Locupl At ———o_rX—_—S———aeeeee as palavras faladas sao a aka destinado a sigificar algo diverso, L] | Pa einiaes daquilo que as intengoes da alma sao signos primarios (_]. Assim, quangy quer que alguém profira uma proposigao falada, antes forma interiormente proposigo mental, que nao é de idioma algum, tanto que muitos freqientemente forma, interiormente proposigbes que, em 1az30 do defeito do idioma, nao sabem expressar (GUILHERME DE OCKHAM, 1999, P. 153) Antes, no entanto, de voltarmos a Abelardo, precisamos recuar um poucg mais até Santo Agostinho, para que o conceito de proposi¢ao mental de Ockham ndo seja confundido tambem com 0 termo mental agostiniano. Este titima define-se pela sua total interioridade; nao é uma palavra pronunciada, nem uma articulagao ou idioma, € sim, anterior e possibilita vislumbrar 0 Verbo Eterno dp qual é sinal, tendo a mesma natureza daquele do qual procede. Neste caso, a linguagem e os signos sao necessarios somente por causa da comunicacéo, porém, 0 verbum transcende € prescinde disso, uma idéia que marca uma das diferengas fundamentais em relagéo a Ockham. Além disso, este 'termo mental de Agostinho provém de uma cogitagao amorosa e nao sensivel, da caritas, que compromete o homem, enquanto criatura, com o que 6 mais elevado. E preciso um ato cognitivo movido pelo amor que faz com que o verbo interior se assemelhe cada vez mais ao Verbo Divino; logo, 0 que conhecemos ¢ 0 que amamos, e isto preenche a questo de um carater moral e ético. O que muda definitivamente na proposicéo mental de Ockham 6, primeiramente, o fato dele té-la esvaziado de qualquer acep¢ao amorosa, recolocando o problema fora do campo ético e tomando-o exclusivamente no ponto da aquisigdo d conhecimento; em segundo, aquilo que o verbo interior agostiniano € com viséo, luz, intuigao, etc., em Ockham é um correlato discursivo, articulado, end passivel de expresso apenas pela fala ou pela escrita; e se 0 sujeito encorité conceito dentro de si é porque teve noticia intuitiva da coisa que marcou a $18 mente; em terceiro lugar, para Agostinho, o verbo mental nao é um signo, que® sempre algo sensivel, € que remeteria a um outro, mas em Ockham 0 sig", oe ° Se evecare _ sensivel nem necessaone perio case ental € um signo de maneira singular ou um e ee que se quisesse fazer entre os conceitos de Ane agdo da alma, e que ; simplista, diriamos que a intengao da alma € ee i que é Smee See mental estaria no mesmo pe desta a a Tigidamente marcad; aaa {como} dia} Boece) ae a entre os "lugares" nos quais realizam-se os sig™° Ab b elardo e Ockham, Este algo", que 6 signo da coisa é, em Ockham, wa mais subjeti ubjetivo, encontrando-se em uma esfera na qual nao carece 48 i para existir, 0 que em Abelardo jamai eo ks aquees a imtamse a ao de alg aoe rene a este respeito, aquela razéo de que ‘inutilmente se faz Por mais ° que se, at as rae, est Tudo 0 que Salvaguardado, admitindo algo distinto do ato de ine a Por menos’, salvaguardado sem tal distingao, Porque supor por outra [coisa] e Goins ita [coisa] pode competir tanto ao ato de inteligir como a outro Signo. Neo. Raion me). admitr algo além do ao de intl" (GULHERME DE OcktaM, 1606 p. . Vem a mente, a partir i dit = " ' San VeTIcTaS ae On ce foi dito, se estas resolugdes de Ockham provel G40 metafisica para a qual a poderia jamais atentar. Esta divida ficara em aberto. , stat Meet no F Como em Abelardo a origem dos termos universais é totalmente um ato a peter ore tambem repousa ai. E possivel esquematizar n 10 que vai da intelecgao até as concepgies, pasando pela abstragao. Em detalhe: o individuo toma contato com as coisas através dos 6rgaos dos sentidos, tendo, portanto, uma nogao desta coisa na sua subsisténcia enquanto matéria e forma nao dissociadas, no seu estado natural, mas "a razdo do espirito tem o poder de, ora considerar a matéria por si mesma, ora dirigir a atencao para a forma, ora conceber ambas misturadas. Por certo os dois Primeiros sao por abstragao, pois abstraem algo dos que estao reunidos para considerarem a sua propria natureza, mas 0 terceiro é por conjungao" (PEDRO ABELARDO, 1994, p.29). Isto significa que este contato com o sensivel é a garantia de uma elaboragao mais verdadeira, porém, o intelecto néo necessita da presenca constante da coisa para que a partir dela conceba alguma idéia, logo, é esta a fungdo da abstragao no processo do conhecimento (formar uma imagem mental, um fictum), podendo evidentemente ter seu carater seletivo dependendo dos objetivos daquele que esta empenhado em conhecer (ou privilegiando a forma, ou a matéria, ou ambos em conjungao). Estabelecer esta relacao coerente na propria coisa em si ou a relacao dela com demais individuos € 0 que Abelardo denomina de "ligacdo por predicagao", que é propria os dialéticos, em oposigao a “ligago de construgéo" dos gramaticos. No seu entender € importante matizar a diferenga para que a logica do texto nao seja entendida como se fosse a ldgica das coisas na sua existéncia real, dando aos nomes a fungao dos universais ou até mesmo da propria coisa da qual se fala. Assim, a “ligacdio por predicagao" mostra o estado da coisa, diz respeito a sua natureza e @ demonstragao da verdade de seu estado, Se dissermos "homem é pedra’, neste caso seria falso, apesar da frase estar gramaticalmente correta. A agao do intelecto aplica-se aquela certa "coisa imaginaria e ficticia" (PEDRO ABELARDO, 1994, p.62) separada da agdo dos sentidos, mas sem esta Ultima haveria apenas Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p.31-50, 2002 43 inigo, e nd0 inteligéncia, pois nada se pode afirmar sobre aquilo a TeSpeito dg oe 36 5e ouviu falar. em no conhecimento das coisas insensiveis — reg insensi Essas magens eee outras que as figmenta animi que sua irealidade, coment! — elas mesm on no espelho, opde a realidade do intellectus, a¢30 da alma Estee sem pete irreal que permite a Abelardo admitir que uma imago Communis a vaga possa corresponder a0 universal homo (VIGNAUX, 1975, p.72). quas! ° nto, a produgao do artista, sendo que ele pré-elabora 9 ue ainda roa weste caso, 0 pensamento pode ser dividido segundo algumas nogdes de tempo: no que diz respeito ao futuro ele é uma previsao; em relacdo ao passado € memoria e apenas no presente é uma inteligéncia. Logo, 9 artista nao podena ter esta inteligéncia antes da criagao da coisa no mundo sensivel e, tanto quanto a abstragao que predica do real é confusa em relacao a este, a previsdo do artista tambem 0 @, significando que o ser criado nao sera jamais absolutamente idéntico ao que havia sido previsto. A vantagem do artista é ter evidentemente mais conhecimento deste ser por té-lo criado, o que confere as pretensdes humanas de conhecimento da natureza um limite Obvio, uma vez que esta nao foi criada pelo homem. E sendo Deus 0 criador de todas as coisas, tendo sobre elas total conhecimento “falar a respeito da intelecgdo em Telagao a Deus € supérfiuo. Mas, a falarmos a verdade mais expressamente, prever o futuro para ele nada mais é do que o futuro nao estar oculto para ele que é a verdadeira razéo em si mesma". (PEDRO ABELARDO, 1994, p.72) O Deus de Abelardo é um Deus da razdo. Concluamos, entao, com Abelardo, que a inteleogao dos universais € denominada como raz3o isolada, nua e pura: isolada, sem duvida, das sensagdes porque nao Percebe a coisa como sensivel; nua, quanto & abstragdo de todas ou de algumas formas e completamente pura, quanto a dislingdo Porque nenhuma coisa, quer seja matéria, quer seja forma, é certificada nela, razdo pela qual chamamos acima uma Concepeao deste tipo de confusa. (PEDRO ABELARDO, 1994. p73) neon Em Ockham o objeto de conhecimento & sempre contingente e singular. € lecimento comeca jadai—ee completamente marcado, determinado em sence eee este modo-de-ser anterior do objeto - , pelos dados dos conhecimento: ¢ so /aluteza dos individuos. So, pois, duas formas de observada e. alc: ronhecimento_intutivo que trata da evidéncia da coisa “conhecimento als a apenas uma verdade contingente e atual, @ rm Contigente @ nem ene GU formula a imagem da coisa na alma de forma n dependente de sua existéncia atual, Faz sentido para e@ operar com duas formas de conhecimento e ainda cogitar uma possivel independéncia da segunda em relagao a primeira ja que pela vontade potente de ' Deus nada impediria que tal fato ocorresse, e a dificuldade estaria em conseguir | definir quais conceitos tem raiz em uma realidade sensivel e quais nao teriam. Uma dificuldade que parece intransponivel.* Para Ockham, ainda, tal posigao se i { i i { j 4 | | | | sustenta porque ele nao identifica 0 espirito com aquilo que conhece, logo, ha um "onde" no qual o conceito pode nascer sem agao do intelecto. Parece haver duas formas de engendramento possiveis, mesmo que uma delas seja pouco provavel. Isto nao existe em Abelardo. Jean Jolivet chama a atengdo para um dado muito importante a ser incluido em nossa reflexao: a diferenca de esferas significantes, ou integradas no + processo de significagao, que ha entre Abelardo e Ockham. Para o primeiro o ‘ universal sao palavras predicativas (que conferem significado), e para o segundo so sobretudo, conceitos; mas para ele nao ha de fato mais do que duas esferas: aquela das coisas e aquela dos signos, posto que os conceitos significam as esséncias das coisas e sao no seu todo significados pelas palavras, para Abelardo, ha trés: aquela das coisas e aquela das idéias, mas também aquela das palavras (JOLIVET, 1981, p.47-48) Para esta constelagao de esferas proprias de cada autor podemos sugerir a corespondéncia das formas de conhecimento tratadas mais acima. Em Ockham parece evidente que foi construido um raciocinio em que cada esfera pudesse conter, no universo que Ihe € proprio, uma forma de conhecer caracteristica (por isso, talvez, 0 "conhecimento intuitivo" e o “conhecimento abstrativo"). Ja em Abelardo, em um primeiro momento, dado ao que foi dito agora sobre Ockham, surpreende a impossibilidade de se estabelecer a analogia entre a quantidade das esferas e das formas de conhecer, mas é justamente isto que nos é mais importante: a possivel demarcacao de um territrio cognitivo, mesmo que mais modesto, em relagao a um "outro" (no caso de Ockham). Pois bem, em Abelardo o maior numero das esferas as quais fez mengao Jolivet (das coisas, das idéias e das palavras) cabem eficientemente em uma s0 forma precisa de construcao de inteleccao e, por conseguinte, de abstragao. Vemos que se manteve a esfera para as coisas (a res é desde ja e por longo tempo, imprescindivels), mas 0 amalgama que produzira o signo para a filosofia do XIV ee “ Excluindo-se, evidentemente, a visdo beatifica 7 Sf flosofia contempordnea (ou aqulo que se chamou pés-modemo) tem em suas bases fundados 2 dessacralizacao irremediavel da esfera das coisas, do real, pela critica das representagbes. No entanto, ctamos apenas como curosidade, femos um exemplo de uma pemanéncia da, 0 ee contempor’neo: "Se formos répido resumiremos como segue: por um lado as COIS, por: eae rmporal Entre elas uma fine pelicula, 0 acontecimento (que ndo seré confundido com sv2 efetuacai 45 a aw 50 se deu, permanecendo dissociadas a idéia e a palavra ! seca, como universal, ja esteja dado) Este estado dos ene Ae: @ 0 que sustenta € também o que é fruto do movimento de inteleccao ng ; arte do espago intermediano que faz saltar 0 sentido, 0 universal. Parece, ane ma isto que possibilita que este conhecer uno da logica abelardiana, ao ar dualidade ockhamiana, permanega em equilibrio. “ar da A presenga das ideias como uma dimensao apartada das coisas ed palavras, tanto pelas convengoes como pela compreensao do funcionamenty < mente, cna niveis diversos de comunicagao entre 0 sujeito, 0 objeto, a aes singular € as esséncias (ou substancias) que propunham uma difculdage consideravel de resolugao Por meio das respostas dadas as questies de Porfino, Abelardo abnu 0 caminho para a satisfagao desses problemas na medida das possibilidades historias do século XII. Ficou patente uma relacao de descontinuidade entre as coisas € 0S significados (como dados de um espago demarcado na alma) e 0 tempo (como um dado de velocidades — postendade e anterioridade — para o surgimento dos significados). As palavras e as coisas, guardando esta relagao descontinua, harmonizam-se na vontade de atnbuicdo de sentidos contida na esfera das idéias, do "espago-limite de um meio ideal" s da "causa comum”. Este complexo enquadra-se por sua vez em um temtono mais alargado: 0 do conhecimento uno. Dentro deste raciocinio a consideragdo ockamiana, tanto para as esferas quanto para a dualidade das formas de conhecer, quando deixa de supor uma esfera das ideias e outra das palavras em favor da dos signos acaba revelando uma aceleragao da producdo de significados na mente, um movimento de continuidade (ou pelo menos de uma descontinuidade menos evidente) transformado pela mudanca do tempo e do espago em realidades mais mensuraveis e independentes. Quer-se dizer com isto que haveria um processo de redugao, de desabamento, da hierarquia entre tempo e espago e entre estas e a realidade dos seres no mundo, promovendo uma honzontalidade completa totalmente diferente daquela relacao entre nives proposta em Abelardo. Estes resultados do pensamento de Ockham tambem no deixaiam de conter suas dificuldades: para que esta stuart ® MeO ‘em um estado de coisas), ou 0 sentido que, embora pertencendo essencialmente @ knguage™ & 8 ae Aaa ‘do se entfica com ela Planando na superficre das coisas, 0 aconteciento- mapa anes casas epalawas elem duas faces num ¢alnbuo da estados de costs (ea fce me? Gucds) ne outa @ exgressto da proposndo (& a face vata para 8s palowas)’ PAL PELBART. aaron Fora da Clausura. So Paulo’ Brasilense, 1969, p.143-144 acon # um espagomen wtral vindo a substtuir as antigas muralnas, perme avalar @ mpotsnos scant, ee 20 espago-imite de um meio eal, onde se relratae se refele @ Mz 0 ela expnme, com maximo de exahddo, a utopia de um conjunto CW® Or ays SP exclusivamente da compo: Paul Sedano, eat eran unenal de seus atamos constitutes” ALLIEZ E, Tempes sustentasse foi necessario um movimento ldgico e teo-ldgico que cindiu as possibilidades de conhecer, mesmo que, como foi dito antes, uma delas fosse muito mais improvavel de ocorrer do que a outra; Ockham pode preservar assim a onipoténcia divina absoluta, favorecida justamente pela total contingéncia da Tealidade e das verdades propostas sobre ela. No espago nominalmente delimitado de sua evidéncia, com o deslocamento da verdade em diregao & certeza das representages dissociada da ordem das coisas e da fundacao de todo ente na subjetividade, 0 cogito occamiano [sic] € uma promissdria em branco emitida no grande Livro do mundo escrito em linguagem matematica (ALLIEZ, 1991, p.463) Novamente, como foi demonstrado anteriormente na aproximagao entre *acao da alma’ e "intengao da alma’, aqui, no que convém a abstragéo, Ockham ja se distancia de Abelardo. Para 0 primeiro a abstragao é, sim, uma agao do intelecto, mas que no processo de concepgao do conceito este nao se realiza nela, mas na alma, como esta foi entendida por ele. Neste ponto da exposigao ja ultrapassamos a fronteira mencionada entre Abelardo, que nao reconheceria mais esta forma de abstracao - que para ele € absolutamente necessaria - e Ockham. Cabe aqui mais uma ressalva tanto aos historiadores da filosofia quanto aos historiadores sticto-sensu: nada disso deve ser tomado como fruto de uma vontade absolutamente consciente de seus autores, como uma intengdo positiva ou uma dissimulagao; evidentemente que tanto Abelardo como Ockham sabiam exatamente o que faziam, mas existe ainda a disponibilidade hist6rica mais ampla e mais profunda para que os elementos que cada sistema articula | pudessem ser captados, bem como a propria possibilidade da articulagao. i Deve ser tomado como valido para o historiador estes tipos de consideragdes ao se buscar compreender o surgimento do individuo na historia do ocidente. Tal evento, dada a sua enorme importancia, nao seria jamais restrito a apenas uma esfera de representagao, sendo ele tambem, um evento filosdfico. O mais importante aqui, e que talvez nao tenha ficado plenamente claro, € que a terminologia conceitual tanto do XII como do XIV sobre uma categoria individual, apesar de nos ser muito util, néo esta de fato enunciando 0 objeto que nos atém. Em Abelardo, por exemplo, individus quer dizer res, ea isto que se refere, ao estado singular das coisas, simplesmente as coisas individuais e sua indivisdo substancial. Mas € fundamental percebermos que no proceso de definigo do universal e do singular os dois autores tiveram que compor va cartografia minuciosa dos “lugares da alma", das dimensoes re intelecto e, portanto, definir estes estratos intimos da pessoa pode Saar A como ocorreu com Abelardo, em uma maior atengdo & fungoeS, eats principalmente lugar e natureza, da consciéncia humana. E esta caracte 47 Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p31-50, 2002 filosofia medieval, subscnta aos conceitos e proposizdes, que interessa em ultima instancia ao histonador. Ademais. nao se buscou neste trabalho empreender uma explicacao de todo 0 conjunto do pensamento de Abelardo e Ockham, mesmo de forma breve; nem tao pouco de todos os elementos que podenam ser considerados essenciais para compreender cada autor O objetivy for selecionar, da maneira como propusemos na introdugao deste trabalho alguns pontos chave a partir de Abelardo e entao realizaf Sua aproximagao com © pensamenta de Ockham. Ainda uma ultma observacao. resulta desta aproximagao a dificuldade em classifica-los como nominalistas. conceptualistas. ferministas Ou realistas moderados Indivdualmente a ordenacdo do raciocinio permitina de manera segura, contrapé-los a outros autores de linhas totalmente discordantes, pnincipalmente aqueles mesmos citados diretamente em seus textos. Para alem da refutagao baseada na comparagao. a logica intema das obras analisadas indocil a formulas pre-concebidas das correntes filosoficas as quais Se pretende filia-los. Isto se da por um motivo muito simples: entre aquilo que sustenta totalmente os sistemas de um e outro pensador, quaisquer que sejam, importa na determinaao de uma corrente 0 que ndo & detalhe, 0 que nao é sutileza, mas sim 0 que apatenta similandade Dentro das classificagdes, portanto, ha muito mais de heterogenerdade do que elas fazem supor Sao convengées cuja fun¢do @ meramente uma organiza.30 geral para facilitar o estudo. Observou-se atraves da atengao pontual a aiguns concertos de Abelardo e de Ockham que ja nao ha como dizer deles que facam parte da mesma corrente de forma definitiva. Havera sempre que se acrescentar a elas algumas ressalvas, isto quando a propna classifica¢do do se constituir, ela propna, em uma ressalva Como dizer que Roscelin e Abelardo so nominalistas? Ser, entdo, um nominalista moderado diz de fato aiguma coisa? Nao parece muito pertinente visto todos 0S ataques que Abelardo fez a teona de Roscelin de maneira tao pouco *moderada’ Como dizer do propno Abelardo e de Ockham 0 mesmo? Como coloca 4s, ent4o, sob a marca comum de um conceptualismo depois de termos visto a teona da suppositio de Ockham? Ao que tudo indica na Idade Media 35 partculandades, filosoficas $30 fundantes de novas concepgoes de mundo, de homem e ate em alguns casos. de Deus, mas dentro de uma mutipedate formulacées correspondente a quantidade de individuos envolvidos Na busca - conhecimento. com isto em mente ndo podemos desprezar completament ® boa intucao de Lus Dumont sobre 2. relagdo entre nominalism ¢ Ua of "Para alguns autores, sobretudo em paises onde 0 nominalismo & com 2 esteve sempre presente por toda a parte Para outros, ela surge Renascenga, ou com a ascensao da burguesia® (DUMONT, 2000. p36) dag p 31-80. 2002 GOMES DA SILVA FILHO, Jodo. Notes for a reflexion about the logics of Abelard and Ockham and the appearence of the individual in the Muddle Ages. Estudos de Historia, Franca, v.9, n.1, p.31-51, 2002. © @ ABSTRACT: The present text, considareted as a notice of questions to later reflexions, listing important concepts of Peter Abelard’s and William of Ockham's logics, attempt to valorize the incursion on philopsophy for the historian who cares with the individual problematic, as well the significance of philosophy to others possibles historiographics researches. KEY WORDS: Medieval Age; individual; logic; methodology; Abelard; Ockham. | REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALLIEZ, E. Tempos Capitais. Sao Paulo, Siciliano, 1991. BENTON, J. R. Culture, Power and Personality in Medieval France. Londres, 1991. | BERUBE, C. La connaissance de I'individuel au Moyen Age. Paris: PUF, 1964. CHENU, M-D. L’éveil de /a conscience dans la civilisation médiévale. Montreal: Inst. D'etudes médiévales, Paris: Vrin, 1969. DRONKE, P. 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