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A autodisciplina no combate à pandemia

Se a autogestão da sociedade é preparada pela autogestão das lutas, agora ela é


preparada também pela capacidade de autodisciplina no combate à pandemia.

(https://passapalavra.info/2020/03/130263/?
fbclid=IwAR3hss6efMqlrTYqfWj4E0s2AiUeP-
sNkppmbqq_qHwvJ4umkUg1H4yvWrc)

Por João Bernardo

A pandemia chegou ao Brasil.

Os últimos dados de que disponho indicam 533 brasileiros contaminados e 4 mortos, o


que significa uma taxa de mortalidade de 0,8%, muito baixa em comparação com a
média mundial (4,1%), e sobretudo em comparação com os países mais atingidos (8,3%
em Itália, por exemplo).

Mas notem que em Portugal, neste momento, a taxa é de 0,4% (785 casos de infecção e
3 mortes), o que não nos impede de tomar medidas bastante rigorosas, ou até nos
estimula a tomar essas medidas. Para me limitar ao essencial, actualmente, e pelo menos
nas principais cidades portuguesas, as pessoas só saem de casa quando têm necessidade
imperiosa de o fazer, para comprarem bens essenciais ou se dirigirem para o trabalho,
nos casos em que a presença física é exigida; os restaurantes estão, por determinação
governamental, reduzidos a 1/3 das mesas, mas grande parte fechou e mesmo os que
estão abertos praticamente não têm clientes; as salas de espectáculos fecharam, bem
como os estabelecimentos de ensino e as creches; todos os cultos colectivos, de todas as
religiões, estão encerrados; os recintos desportivos estão encerrados também (aliás, se
«a religião é o ópio do povo», o futebol não o é menos); grande parte das lojas fechou e
só estão obrigados a abrir os bancos, os estabelecimentos de venda de alimentos e as
farmácias; as farmácias atendem o público só por um postigo, e os clientes fazem uma
fila de espera na rua, mantendo entre cada pessoa uma distância de metro e meio a dois
metros; nos supermercados e hipermercados há um limite de 1 cliente por 25 m², e no
caso de esse limite estar preenchido as pessoas fazem fila, nas condições que descrevi;
os bares, discotecas, pubs e similares estão encerrados; tanto quanto pude verificar, as
pessoas evitam ajuntamentos e, se conversam na rua, mantêm geralmente uma distância
de metro e meio a dois metros; não há contactos físicos, nem apertos de mão, nem
abraços, nem beijos, limitando-se as pessoas, no máximo, a tocarem os cotovelos. E,
evidentemente, os infectados que não necessitem de tratamento hospitalar e as pessoas
que contactaram com infectados respeitam a quarentena domiciliária.

Notem que tudo isto se passa sem qualquer fiscalização policial. Não há policiais a dizer
às pessoas para se afastarem ou não se abraçarem. Só à porta de supermercados e
hipermercados é que vejo seguranças a deixar entrar uns clientes à medida que outros
saem. E isto passa-se entre portugueses, um povo de cultura latina, pouco propenso à
obediência. Mas que – tanto quanto posso testemunhar e segundo as informações de que
disponho – soube autodisciplinar-se. Encontro nestes casos a promessa de uma
sociedade que saberá organizar-se a si mesma.

Ora, a minha preocupação quanto ao Brasil ocorre em dois planos:


A) No plano governamental, parece-me difícil que se disponibilize o número de testes
que virá a ser necessário. As autoridades espanholas, por exemplo, anunciaram há
poucos dias que não conseguem, nem irão conseguir, ter o material de testes na
quantidade necessária. Serão as autoridades brasileiras mais eficazes do que as
espanholas? Parece-me difícil também que o governo brasileiro consiga equipar com
material de protecção adequado todos os profissionais da saúde (médicos, enfermeiros e
auxiliares) que contactem com infectados ou presumíveis infectados. E como é que o
governo federal, os governos estaduais e as prefeituras assegurarão a higienização dos
transportes públicos e o aumento do espaço entre os passageiros?

B) No plano da população a situação parece-me igualmente preocupante, se não mais


ainda. A cultura brasileira é 1) indisciplinada, 2) festiva e 3) aprecia o contacto físico.
Será que os duzentos e dez milhões de brasileiros conseguirão, da noite para o dia,
deixar de frequentar lanchonetes e cervejarias, deixar de organizar festas, de se
encostarem uns aos outros e será que conseguirão fazer filas mantendo um metro e meio
de distância entre as pessoas? Duvido.

Há outra coisa que me preocupa também, e que eventualmente diz respeito ao Passa
Palavra. Nos meios libertários e anarquistas, inevitavelmente circularão textos atacando
o «autoritarismo clínico» e defendendo o «direito à liberdade» numa situação de
pandemia. Não me incomoda nada que essas pessoas comprometam assim a saúde delas
e se exponham a morrer, o que me preocupa é que comprometem a saúde dos outros e
expõem os outros a morrerem. Na luta contra a pandemia, cada um de nós não se
defende só a si próprio, mas defende também os outros.

Com este tipo de atitudes, que eu encontro em vários textos, provenientes de vários
países, esses meios libertários e anarquistas reflectem aquilo que no fundo os caracteriza
— o individualismo. Para muitos desses pretensos militantes – eu diria mesmo para a
maior parte deles – o esquerdismo é apenas um álibi ou um disfarce do egoísmo e da
preguiça. Em circunstâncias normais este tipo de individualismo não tem nenhuns
inconvenientes. Torna apenas esses pretensos militantes ineficazes, o que aliás é uma
vantagem. Mas nós não estamos a viver, ou a morrer, em circunstâncias normais, e
aqueles comportamentos passaram agora de ineficazes a mortíferos.

Contra o individualismo e o egoísmo, defendemos a solidariedade. Contra a preguiça,


defendemos a autodisciplina. Na situação actual precisamos de um esforço de auto-
organização que nos leve, por nós próprios e sem esperarmos as imposições
governamentais e as fiscalizações policiais, a respeitar e difundir as normas de
segurança indicadas pelos cientistas e pelos profissionais da saúde. Se a autogestão da
sociedade é preparada pela autogestão das lutas, agora ela é preparada também pela
nossa capacidade de autodisciplina no combate à pandemia. Trata-se de ser solidário
com os outros, de evitar que os contaminemos. E a solidariedade parece-me ser a base
de qualquer luta anticapitalista.

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