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COLECGAO ENSAIO Vonone 1 ANTONIO CANDIDO TESE E ANTITESE ensaios spoacde de Lucile Ribsire Bernardse DTLLC” ‘SBD-FFLCH-USP 3 124 8 COMPANHIA EDITORA NACIONAL sho PAULO 1odd-f Sa i COR 3t LN LIVROS DO AUTOR O Método Critico de Silio Romero, Revista dos Tribunais, Sao Paulo, 195 (2° edigio, Univer: sidade de’ Sio Paulo, 1963), Brigada Ligeira (Rassics) Martins, Sio Paulo, 1945, Ficgio ¢ Confissio, Estado sbbre a obra de Graciliano ‘Ramos, José Olympio, Rio, 1956. Formagio da Literature Brasileira, Momentos Deci- sivos, 2 vols, Martins, 1959 (2+ edigio, 1963), 0 Observador Litersrio, (Ensaios), Comissio de Lite- ‘atara, S40 Paulo, 1945 Em colaboragio com José Anmatoo Casreito: Presenga da Literatura Brasileira, Historia © Antologis, 2 vols, Difusio Européia do Livzo, Sa0 Baulo, 1963, 1964 Dircitor reservadot COMPANHIA EDITORA NACIONAL Rua dos Gusmées, 639 — Sio Paulo 2, SP Impreso wos Estados Ualdos do Brasit Printed in the United Stator of Brasil DEDALUS - Acervo - FFLCH 20900 A A Ropsico Mzto Franco pe ANDRADE éste livro é dedicado com reveréncia ¢ afeto nunca se féz estagnagio, as divides nunca cessaram de trabalhar, 20 contrério do que pretende a critica simplista ou interessada. Por isso € que pide discipliner o seu dinantismo, orientando-o na direcio mais literéria da simpatia, em lugar’ da inclinagio mais politica ou simplesmente pragmétice d2 oposigio social. Saibamos apreciar estéticamente uma acomodagio que pode ferir o nosso gésto politico, mas gragas A qual pAde realizar A Ilusive Case de Ramaives. Realizagio, em literatura, quer dizer complexidade dirigide pelo senso artistico, revelando, portanto, a presenga de elementos contraditérios, que a intuigo formal € a concepeio do mundo unificam na sintese superior da obra. Unificam, mas nfo extinguem. As conjecturas de ordem poli- tica trazem algum auxilio ao estudo do problema, mas no devem erigit-se em critério de julgamento, Na literatura, — que nos i € avancado o que é perfeito, traduzindo uma fo adequada do espirito criador com a sua matéria plistica, para perfazer a obra. f limitado e retrégrado 0 que significa divércio, defasagem entre um e outro, simples explo- ragio de temas ot servidio a imperativos estranhos 20 impulso ceitdor. Coinidindo com algumas das tendéncias pesouis © sugestdes socisis mais arraigadas em Ega de Queirés, a visio compreensiva \he permitiy, tanto quanto a oposicionista, a reali- zagio désse ideal de arte. 'O resto nfo ¢ literatura. TI. cardsrrore E SOBREVIVENCIA Para a catistrofe, em busca De sobrevivéncia, nascemos, ‘Muro Mewoes | Joszex Conn custou a genbar popula- ridade. Quando ela veio, foi gragas a0 cardter exético da sua obra inicial, ao sépro de’peripécia e poesia maritima, que rein- troduaiu em obras da iltimna fase.” Mas embora masitivero, n80 se sentia “eseritor do mar”, nem quetia ser considerado autor de livros de aventuras, — pois a sua preocupagio foi sempre, ¢ cada vez mais, apreseatar uma visio dramiiea do homem, independente das circunstincias de lugar. "LA, como aqui, 0 quadro da vide & tragado com a mesina elaboracdo.do' por tenor, colorido com as mesmas tntss.” (Preficio de Almayers Folly). "A exitca moderna, consciente désse catiter muito mais importante, adotou e desenvolveu 0 seu. poato de vista, ate rnuindo quanto possivel o significado do. elemento exitico. Ema preciso a todo custo salvilo da perigosa companhia dos Katl May. No entanto, a aventura ¢ 0 pitoresco sio elementos funda- ments dS re, 20 mesmo to que a preocapeo ey 0 sentimento dramético e 0 estilo pomposo. © mat, as paragens 59 remotas, 0 engaste do episédio no exotismo constituem um dos enquadramentos da sua filosofia. Nem poderia ser de outro modo, num escritor que professava o respeito pela propria expe- rigncia como fonte da imaginagio, e que logrou destarte co- municar ao leitor com férca inigualivel o encantamento dz paisagem estranha, os eflivios do mar e da natureze, tropical, ‘© mistério dos elementos, para quem os pretenda decifrar. Se tomarmos 0 caso da descrigGo da psisagem, veremos que ela desempenha na sua obra, além da fungio normal de ambiente, um papel decisivo na caracterizagdo. psicoldgica & rna_prépria composic¢éo. Isto j& nos livros inicisis, menospre- zados pela critica, mostrando que desde 0 comégo éle dominava alguns dos seus recursas mais tipicos de fatura ¢ de concepgio da vida, A Parte [V de An Outcast of the Islands poderia secvir de excmplo, com 2 elaboracio impressionista da longa noite decisiva, 2 sombra ¢ 2 chama na casa do esperto Baba- latchi, o amanhecer, o céu nublado durante a discusséo, a chava ensopando a terra, lustrando as folhas, — e Willems abandonado, atrazado, porfiando simbélicamente contra a lama no declive do patio. Bese tratemento descritivo nfo resulta em objetivismo por- menorizado, mas numa espécie de grande sugestio, envolvendo as coisas e a8 pessoas. No mesmo livro, a cena, do séco de Lin- gard (decomposto numa camara lenta de impresses que em si Sio desconexas, € que 0 significado geral do ato recompée no expiry do leit) mostra que of gesos ae rornam sgniieaives pela criagdo de uma atmofera propria do momento em que ‘ocorrem, na qual a sua mecinica se altera, ¢ que os faz. parecer muito mais poderosos, gracas a um j@go complexo de lentes de aumento. £ o avéiso da reportagem, sendo a sugestio em téda a sua forga. Poder-se-ia dizer 4 maneira do seu mais caro personagem porta-voz, Marlow, que “para éle o sentido de um episédio ‘nfo estava dentro, como a semente, mas fora, envolvendo 0 relato que apenas o suscitava, como um brilho suscita ume névoa, & semelhanga de um désses nimbos fuma- rentos tornados visiveis pela iluminagdo espectral da lua.” (“Heart of Darkness”) 60 Hi sem divida em tndo isso certa complacéneia de com- osigio: abuso de imagens ornamentais, excesso analitico, busca as vézes indiscreta do trecho antolégico. Mas uma boa porgéo da arte de Conrad repousa nesse esforgo estilistico, do qual parte a sua capacidade de elaborar metifores reveladoras, Estas apresentam por vézes certa candura de alegoria facil, como 0 castelo de cartes que Lingard vai construindo para 2 menina, enquanto expe a Almayer a sua quimera do tesouro (dn Out~ cast of the Islands) Mas correspondem a um universo artistico ¢ humano que comportava, entre outras coisas, @ crenga tenaz no adjetivo e na descrigfo opulenta, assim como na existéncia de rineipios elementares de honra, Uma nobre perinicia no estilo € na moral, visando 4 unidade, 2 inteireza, 4 capacidade de optar convictamente. Optar por um determinado ponto de vista, em meio as coisas que se dissolvem na fugacidade da impressio; optar por uma posigéo moral, em relagio zo cariter que se dissolve nos meandros da conduta. 2 T onavia, analisando 2 si préprio e aos homens, Conrad sentia os limites dessa inteireza 2 que aspirava ceque se esfuma a cada passo numa “linba de sombra".Nas suas ‘obtas mais significativas atuam certos fatres (entre 08 quais © exotismo e a aventura) que desvendam componentes suis © dilacerantes, criando 0 meio propicio a formacto e eclosio guns dos seus temas mais reveladores: 0 i8olamemo, a ocasiao, © bomen surpreendido, dispostas & volta da preocupagio funds” ‘mental com o ato, em que para ese espetha realmente o homem. isolamento, nio apenas fisico, mas moral, — @ solidio do boi no campo, - s0lidéo do bomen na rua, de que fala o poeta, — impregna a sua obra e ¢ admirivelmente ‘expresso pela circunstincia em que se desenvolvem as narrativas do mar ¢ do trépico, utilizadas para estabelecer quase um mito do homem cercado, acuado. Sob éste aspecto, hé néle um sentimento da ilka que funciona com velor metaférico € alegs- 62 rico, Além da ilha verdadeira, (a de Victory, por exemplo), hh o navio, espécie de ilha flutuante (The Nigger of the “Nar- cise, “Pyphoon”, “Wouth”, “The Shadow Line”, “The End of the Tether”, “The Secret Sharer”); € hi os postos tropicais de beira-tio, ilhados do mundo (Almayer’s Folly, An Outcast of the Islands, “Heart of Darkness”, “An Outpost of Progress”) Daf resulta o sentimento de bloqueio numa situacio, cujos limites tracam superficies exignas, forcando o homem a defrontar de maneira critica o semelhante ou éle préprio. Sob éste aspecto, 0 trecho mais elogtiente e por assim dizer simbélico talvez. esteja em Nostromo, — a descricéo da barca na qual Decoud transporta 0 tesouro de prata (para uma ilha, onde se jogard o sex destino), e que mergulha ne escuridéo mais com- acta e opressiva jamais obtide em literatura; escuridio absoluta, que segrege 0 homem na opacidade do mundo. ‘Na sua obra, entretanto, a metéfora do ithamento nio se fecha; & um predmbulo ao problema decisivo, 0 ato, cujo mecanismo cla desencadeia, como se pode constatar exemplar- mente em Victory, — talvez a sua obra-prima, O sueco Heyst conclui que a agio & algo diablico, respon- sivel pelo mal ns sociedade."Agir lesa esencielmeate,’ A mim, porque o ato, sempre imperfeito, compromete 2 cada passo a minha mais pura substinci, 2 minha virtualidade ideal, que no pode se manifestar no veiculo impuro; a outrem, porque (© meu eto importa em limitar, logo mutilar, as suas possiveis ages. Em conseqiiéncia resolve abster-se de qualquer atividade «, praticando estritamente a teoria, retire-se para uma pequena itha do Pacifico, — simbolo da sua misantropis, — onde & Gnico branco. Mas a iluséria solidgo abre caminho aos embates comuns da vida, resultantes do amor, da cobiga, do édio. Heyst recolhe uma jovem desamparada; um intrigante encaminha para seu refigio a ambigao de trés celeredos, que 0 forgam a Inter dentro do pequeno mundo. Daf a ironia da situagio, pois tendo recusado agir, isola-se; 0 sibito interésse pela méca o leva a icbrar a linha de conduta e a praticar um ato que, 20 trazet alguém para 2 sua companhia, revoluciona o intuito primordial. Esta conseqiiéncia poderia, aliés, dar-lhe plenitude, criando a 63 possibilidade do didlogo e encerrando para sempre a necessidade de outro ato. Heyst estaria completo no desdobramento do seu ser por intermédio da mulher, que a necessidade de convivio originow na solitude um pouco & maneira do mito de Eva, ¢ ale proprio & quem diz: “Em mim deve haver muito do. pri- mitivo Adio"(}). Aquéle ato se revele, porém, inicio duma série de outros, que 0 reinstelam nas Condigdes normais da vida, obrigando-o a observar, calcular, luter ou sucumbir. O mundo foi cacé-lo na ilha, ensinando, como em outros livros de Conrad, que recusar a ago imposta pelo momento é suscitar outras mais lesivas & integridade do ser. Dai a importincia do segundo tema, — 0 da ocasi@o, da oportunidade, que, dizia Séfocles, ‘dirige as emprésas do ho- mem”, surgindo muitas vézes dos refolhos do acaso, como vern dito de maneira tio bela em “Freya of the Seven Isles”: “Esta possibilidade se apresentara sem nenhum plano, quase natuzal- mente, se poderia dizer, como se os acontecimentos se houvessem modelado éles mesmos para servirem aos propésitos duma paixio sombria”. A ocasido € a mattiz do acontecimento, ¢ ésce, apesar do seu zelativo descrédito na literatura contempo- rinea, é alicerce do romance, pois constitui uma das manifesta- ‘g6es por exceléncia das sirmagGes humanas. Grande ¢ boa parte da ficgio déste séenlo encarecen a duragio psicol6gica, 2 lei interna do personagem, como reagio contra 0 exagéro dos incidentes tomados para solugio banal e ong thera et a oe eee ee eek Sam eee es ae ia ae Wiese semen ah bia, ed de Victory cn epee € 2 tase do vo de Pay War, ake cave nee heat ci cp ts Bae, Sit rue § miro blaco dn perds do Bien € defnide ade oa Cte SOE ote eta a RE 64 exterior. Certos romancistas passaram a submeter o aconteci- mento a elaboragio tal, que esta avulta, ganha realidade propria € 0 relega para segundo plano, as vézes 20 modo de um vago pretexto. Jé nos precursores do romance contemporineo, como Dostoievski, tudo se ordena A volta de lances dramétices, atos precisos ¢ brutais, que desviam o curso da narrative e definem ‘os personagens. Entretanto, cada lance é de tal modo envélto numa torrente dialética, esquadrinhada com tanta abundancia, que acaba parecendo, nfo circunstincia determinante, mas com- Bomente de um proceso hamano que o reese ¢ irnsende, rando surge, como estouro de palxdes condensadas, nds jé 0 vinhamos pressentindo mais ou menos confusamente, — seja a intervengio do velho Karamazov na reuniio do Starets; a invaséo de Dmitri na estalagem onde Gruchenka se encontra com 9s poloneses; ou, n°'Os ios, a de Lebiddkin no salio de Varvara Petrovisa;_ ou, 10 Idiota, 2 de Rogojin e seu bando no de Nastisia Filpovna. Em tais romancistas, — de que Proust & pedro © Joyce pode ser considerado 0 caso extremo, — 0 scontecimento destparece sob 0 que 0 precede, acompanha ¢ sucede. Na obra de Conrad d-se algo parecido, mas apenas em parte. Apesar de extraordindriamente puzificado e envolvido, ‘© acontecimento & repésto na sua natureza de coisa acontecida, de fato vivo em relacio a0 qual vio definir-se os atos e que vai se ligar concatenadamente com outros acontecimentos. Nio € lei absoluta da narrativa, como no romance de folhetim, mas & uma das suas traves. Todavia, nunca é fator soberano € independente, torcendo de Ié para cé o destino de personagens gp inkntriam sem ee: Hi nos peronagens uma certapre- isposicéo para determinado tipo de acontecimento, que, 20 surgir, é realmente ocasifo, quase ensejo que balisa o seu destino. Portanto, 0 fato e a peripécia existem com realidade propria, ‘autGnomas mas tém sentido enquanto ocasiGes para o per sonagem se definir. Na suz obra confluem com grande equi- brio o acontecer externo ¢ a visio interior, situando-o a igual distincia de Alexandre Dumas ¢ Marcel Proust, permitindo 0 ‘envolvimento da realidade pela poesia sugestiva. 65 Isso pésto, compreendemos em que medida o destino dos personagens, sém prejuizo da lei interna, € muitas vézes ditado por um elemento exterior, que solicita bruscamente a capacidade de decidir, condenando ou redimindo. Lord Jim, que se preservou, evitando empenhar-se na agéo corriqueira a fim de conservar um estado de virgindade pare ‘0 ato brilhante, puro, despojado da ganga quotidiana, malogra justamente por desconhecer que a circunstincia impura, imper- feita, 6 0 dado que 2 realidade oferece e que nos compete a cada momento enfrentar. Como disse Unamuno: “Lo més urgente es lo de ahora y de aqui; en el momento que pasa _y el reducido lugar que ocupamos estin nuestra etermidad y nuestra infinitud.” (Vida de Don Quijote y Sancho), Nio ha um momento ideal de agir, surgindo com aviso prévio para no: triunfo, em meio a horas neutras, estiticas © sem responsabi dade; © momento excepcional nasce de cada momento, ¢ todo ‘momento impée a acio correspondente. Por isso, tdda agio que se reserva, de duas uma: ou desconhece o carkter impe- oso do instante que passa e reduz o Eu a atonia; ou se precipita surprésa, sem peias, e arrisca descrui-lo. Willems achou que podia stir um instante do caminho certo, imaginando jue 0 quotidiano nio compele os homens capazes, conscientes la sua lucidez, ¢ que € sempre possivel dar como nulos os embates minisculos a que éle nos obriga: foi destruido pelo ato irregular e se tornou o “piria das ihas”. Quando se rejeita a ago (ou por aspirar a uma certa ataraxia, como Heyst, ou por ter, como Lord Jim, a ilusio de esperar 0 momento glorioso), ela volte por ‘outras veredas, compelindo a atitudes imprevistas que desabrocham a0 toque da cportunidade. O agente se desconhece enti; surpreende-se ‘como que féz, nio se identificando no ato praticado, Lord Jim nfo teconhece como legitimamente sua a desercio do posto, nem Willems a transgressio financeira, nem Heyst 0 rapto de Lena, nem Razumov a delacio de Haldin (Under Western Eves) £ como se ante a consciéncia tomada de surprésa brotasse um ignorado En sobressalente, que se projeta em senda diversa Ga que o hibito Ihe atribuiu. Em todos éses casos, manifesta-se 66 © terceiro tema escolhido aqui para sondar a arte complexa de Gonmed: 0 do homem surpreendido pela ocala, e ques Srpreende do prépri sto, semindo 2 formasio de'uma dual- dade no ser. © homem surpreendido age sem motivo aparente, por uma espécie de descarga brusca e inexplicivel, um ato formalmente gratuito, de que decorre porém uma segunda etapa, pois ¢ Obrigado a se refazer, caso pretenda readquirir 0 equilfbrio intetior. Lord Jim, que néo era covarde, pula bruscamente a amurada, abendona o pésto fugindo ao dever ¢ & punido com a expulsio da marinha mercante. Em seguida, reconstréi peno- samente o respeito de si mesmo numa longa vida de perigo, late, dedicagdo. Heyst resolve de chéfre seqiiestrar Lena, — € depois age com método e vagar, elaborando o plano’ para enfrentar os bandidos. Razumoy denuncia Haldin ‘num rom- pante; mais tarde, consagra a vida a reabilitar-se junto a mie © a irma do morto, Todavia, se analisarmos de perto, veremos que em Conrad as agées bruscas sé so ato puro, gratuito, pelo fato de se desencadearem; em verdade, atris’delas ha wm lento passado aque as explica e quase requer. J& vimos que em Lord Jim & 0 Problema da reserva, a supervalorizacio do Bx, que leva « Evitarcompromiso¢ a viver na parast do condiciona; quando 1 oportunidade se apresenta, inflexivel, acarreta o panico. No ‘caso de Heyst, a reserva absoluta levara quase 3 perda da pré- pria conscigncia, resultando uma auto-negacio que solicita 0 ato compensatério de reequilfotio. Ele “padecia da idéia de malégro dum modo sutil, desconhecido aos homens acostumados fa lidar com a5 realidades da existéncia comum. Era como a Gor corrosiva de uma apostasia intl”, E assim chegamos ao térmo do proceso: abstensio corrdi, em definitivo, mais do que 0 contacto imperfeito com © semelhante. O homem se isola, recusa agir; mas o isolamento acarreta atos mais decisivos do que qualquer outra situac30; 2 ‘ocasifo desencadeia 0 comportamente evitado, ou nao-previsto, € 0 homem se surpreende da propria imagem, ale revelada. Boa, como em “Youth” ou “The Shadow Line” m4, como em o An Outcast of the Islends ou Lord Jim. Mesmo quando sparen- temente gratuito, porém, 0 ato se constréi nume germinagio profunda, que explode em seguida com o pretexto ocasional da Circunsténcla. Por isso, a situacao exética, 0 remoto, o diferente, bem como a aventura, a petipécia, constituem elementos fun- damentzis da arte de Conrad. Bles permitem a configuragio favo ravel do ilhamento, da ocasiio e do homem surpreendido, que explicam uma das linhas mestras da sua concepgio de vida 3 A nist op compnzenven a posigéo désses temas no conjunto da sua obra, & preciso uma referencia, mesmo breve, a esta concepgi0, ot seja, sua visio do homem e da con- vivencis em sociedade. Para éle o homem surpreendido é um ser em crise, subme- tido a uma prova decisiva’ de individualidede. A crise decorre fem geral do’ conflito com 0 grupo, ou os padres: quem vem alicerce, supera ¢ se reconstroi; quem nfo tem, se dissolve nas coisas, ou, 0 que para éle era o mesmo, na banalidade do confor- mismo social. Porque, para ése homem tio respeitador de valores, a adesfo a éles s6 era vélida quando representasse uma espécie de aceitagio consciente, uma escélha em profundidede. © mero acatamento equivalia 4 sua auséncia, Em algumas das suas narrativas 0 trépico € 0 mal, fascinante, capitoso e 20 mesmo tempo, uma espécie de prova, por que ameaca a integridade do homem de bem, — 0 gentleman, tipo humano que a sua condigéo de desenraizado levou a superestimar fe que feria tido a fungio de enearnar, para a sua copsciéacia 69 dividida, perplexa num universo de valéres abalados, uma espé- ic de rochedo trangiilizador. ‘Na primeira fase da sua obra o sentimento da luta entre © branco © 0 tépico & mais vivo esquemitico, embora éle tenha chegado bem cedo 20 simbolo admirivel de “Heart of Darkness", para alcangar finalmente a criagio de Heyst, — fem que o pitoresco é apenas pretexto para of dramas da alma. Em “An Outpost of Progress” note-se aquela posicii iniciah refletida na personaldade de dois medioens, eujs reas. réacia se quebra com relativa facilidade e cuja mediocridade é expressa pela integracio passiva nos padrées sociais de origem. Diz o romancista que o grupo sustém o individuo de tal modo que a sua incapacidade ndo aparece, nem éle cria problemas graves enquanto vive em rebanho. Mas em face das condigées primitivas impostas pelos paises exéticos, o civilizado se encontra entregue @ si mesmo, ¢ se no possuir fércas interiores sufi- cientes desmorona, pela auséncia do amparo grupal. O social, © que nivela, aparece como algo desprezivel, que torna. possivel a sobrevivenis do inepe ¢ que o homem vetdadito nio acct Os personagens de “An Outpost of Progress” fazem do titulo uma calamitosa ironia: “Eram dois individuos perfeitamente insignificantes e incapazes, cuja existéncia & tornada possivel apenas gracas & alta organizagio das massas civilizadas. “Poucos homens pereebem que a sua vida, a propria esséncia do seu ca- réter, as suas capacidades e audécias, nto passam de expressGes da crenga na seguranga do ambiente.” ‘Est novela exprime uma constante de sua obta, ea peas convicgées manifestadas, seja pelo drama do branco desory nizado por incapacidade de enfrentar as condigdes da vide colonial. Ela confirma a idéie de que para éle os. valétes humanos, que a sociedade procura incutir, podem significar tanto automatismo quanto grandeza moral, conforme sejam adesio em profundidade, levando ao sacrificio e ao herofsmo, ‘ou nfo passem de conformismo em relacio & média das virtudes. E isso redime em parte a saz admiragao pelo gentleman bi tnico, — que as vézes parece um pouco tola. ‘ Poderfamos agora ir adiante e dizer que 2 sua humanidade preferencial se organiza em témo de dois tipos ideais, que 0 Jo fascinavam sucessiva ou simultineamente, formando os pélos, ou as duas metades da sua psicologia: o homem de sentimentos nobres, de conduta nobremente reta ¢ inteitica, cujos atos decorrem da integridade do seu teor humano ¢ do ajustamento Sarmonioso acs valdres;¢ o homem misteriosamente asaliado xr {Orcas que o dividem, que age, em conseqiiénciz, por Ipulsosobsburos, decisbec trscat‘devidas a un conjobro de circunstincias que atuam de modo a extrair déle certos atos € atitudes que o deixam perplexo. 4 Fa xa sua oara dois contos que en- camnam ésses pélos em grau de maxima purezs: “Prince Roman” “The Secret Sharer", Aquéle, apenss uma natrativa de boa qualidade; te, uma obre-prima, mostrando ainda nisso que a parte melhor do que escreveu é a que se estrutura ein t6rno do segundo pélo, que éste enssio esté procurando caracterizar. Sabemos pela sua sutobiografia que o Principe Romio (Senguszko) foi um heréi da insurreigio poloncsa, amigo do seu av6 ¢ exilado longos anos na Sibéris. No conto, € 0 para- digma daquele primeiro tipo (que aliés entra na formula da inioria das herlis conradianos que se prezam); ¢ n6s perce bemos que o romancista se encontra 1a sua retidio. “(...) Um homem que era eminentemente homem, entre todos os homens capazes de sentir com profundidade, acreditar com firmeza e amar ardentemente.” Qualidades que lhe pareciem a5 mais altas © pouco accessiveis 20 homem modetno, hiper- analitico, suscitador de antidotos & grandeza, incapaz de accitar 1 séres'e as coisas sem levantar divides. “f necessétio certa magnitude dalma para interpretar devidamente 0 pattiotismo, 72 ow-antes, uma sinceridade de sentimentos negada aos requintes algers do pensamento, modetno, que nio pode compreender 2 simplicidade augusta de um sentimento originado na prépria natureza das coisas ¢ do homem.” Ele encarava esa natureza do homem (que nos parece fruto da historia e da convengi0) como dado primério, reali- dade imediatmente manifesta 2 quem fésse capaz de percebé-la, estar mental € moralmente sparelhado para tanto. Segundo Ie, era 0 caso do verdadeiro gentleman, mutrido de valéres inregros, pisando um solo firme de conviegdes ¢ aicudes. Essa vivencia dos valéres 56 & negada aos que nao sto capazes de cchegar até éles. Daf o desencanto com o mundo contempo- Hineo © 0 apégo a0 universo da honra e do dever, que simbo- lizou na marinha; daf 2 desconfianca em rela¢io ‘20 fermento de cepticismo ¢ & crucza analitica. “Tudo € vacuidade apenas pars 0s homens vazios,¢ tudo & burla apenas para os que nunca foram sinceros consigo mesmos.” ‘Mas esta é como disse, apenas uma parte de Conrad. E seja como fér, para nés, homens de um século que se reconhece no estilhagamento de Joyee ¢ Picasso, no absurdo de Kafka, no contra-pélo da miésica serial, — para nds a sua férga nio ‘vem desta concepgfo unitétia. Indicando que 0 problema bésico das suas obras mais ca racteristicas € o mal, nota um eritico: “A natureza désse mal complexo ¢ indefinivel pode ser melhor expressa pela afirmacao daquilo que se opde a le, Numa sentenga famosa do prefacio de A Personal Record, Conrad escreves: “Os que te Iéem conhecem a minhe convic¢io de que o mundo, o mundo tem- poral, se mantém sObre elgumas iddias muito simples, entre as quais a da Fidelidade.” Douglas Hewitt mostrou em’seu livro Conrad: A Reassessment que como chave para a obra de Conrad estas palavras néo devem ser tomadas pela aparéncia. A fideli- dade ¢ a barreira que o homem erige contra o nada, contra a eorrupgio, contra o mal que 0 cerca, insidioso, esperando para devori-lo, © que num certo sentido jaz insuspeitado dentro déle préprio. Mas o que acontece quando as barreiras caem, quando o mal exterior confratemiza com 0 mal interior © 3 fidelidade € submergida? Mais do que a fidelidade, éste & 0 B tema de Conrad”(*). Por outras palavras é 0 que se esti pro- curando dizer. Daf o fato do sea homem mais interessante ser 0 do segundo tipo mencionado, que se surpreende 2 si ‘mesmo, inclusive pela negagdo de valores aparentemente anco- rados na sua concepeéo de vida, — como Lord Jim, Em “The Secret Sharer” éle aparece claramente proposto ¢ de certo modo simbolizado. O jovem capitio-narrador, que vive a experiéncia do primeiro comando num navio descon- fiado © hostil, € acuado por exceléncia na ilha mével. A sua arma é a rotina do dever, que aprenden talvez exteriormente € nfo incorporou as vivéncias profundas. Ris que surge a ocasido, fruto de circunstincias fortuitamente conjugedes: sua decisio de assumir o quarto de vigia da madragads, a escada que ficou inexpliclvelmente pensa da amurada, 0 nadador que por tla sobe. Etim asascing Leggatt, foregido'do Seforn, furdeedo perto; contra o cddigo de honta e o dever profissional, éle 0 es- conde durante dias no beliche exiguo, atriscando « cade instante a carreira ¢ a propria integridade. Algo profundo e inexplicével © prende a ésse companheiro, ésse parceiro noturno ¢ fora da lei, cuja alma compreende ¢ de cuja ago se sente misterio- samente solidério. Bste conto “fornece 0 caso psicolégico perfeito, o Eu oculto, “exatamente igual” 20 outro, mas culpado, ¢ por isso necessitiamente escondido aos ollios do mundo, vestido com roupa de dormir, traje adequado & vida inconscieate, surgindo da infinicude do’ mar e néle desaparecendo” (9). Ha néle “uma singular utilizacfo art(stica do homem dividido, da fissura mo- dema da personalidade, prevista no século passado por Hoffman, Poe, Stevenson ¢ Dostoievski”(*). Efetivamente, éle 44 corpo a uma tendéncia latente no methor da obra de Conrad, ligando-a a1uma das linhas mais caracteristicas do romance conternporineo, — a que, mesmo sem materializar-se no desdobramento, vem @) Walter Aizen, The English Novel, Penguin Books, 1958, p. 304 G) M,C. Beansoos, Joseph Conrad — Poland's English Genius, Cambridge University Press, 1941, p. 3637, (Vernon Younes, “Joseph Conrad — Outline for 2 Reconsiders- tion", Hudron Review, Tl, 1, 1949, p. & 4 do “romance negro”, das novelas grotescas de Gogol, d’O Duplo, de Dostoievski, enriquecendo-se até is franjas do surrealiine, de onde Julien Gracq tirou Le Rivage des Syrtes, obra-prima sdbre 0 individuo ilhado, surpreendido pela ocasiao. Segundo essa tendéncia, 0 homem é eminentemente um ser gue se desconhece, que semelha is vézes a uma colénia de sézes ‘omindos pela sintese convencionel que a educagio claborou com base mos preceitos, mas que podem escapar em sortidas imprevistas, nas qusis 0 Eu se sente Outro. Disse Pirandello, em Ciascuno a suo modo, que “hi pensamentos ilegitimos, como hh fithos bastardos”, e que ‘fora do honesto teto conjugal da consciéncia” mos permitimos relagdes ilieitas e numerosas com idéias € veleidades, rejeitadas afobadamente pata o porio do espitito, O caso do personagem de Conrad é de quem vé écses edes indesejados subirem ao patamar da sala. Mas (ai entra 4 sua profunda compreensio do dinamismo da vida psiquica) ‘este conto tal invasio é aceita, compreendida, e passa a consti- tuir uma base de fortalecimento do ser e retificagao da conduta. Nese ponto éle se distingue dos analistas, que descem 20 fundo do espizito ¢ o deixam perplexo, paralisado, desviado, pelo péso das verificagées perigosas. Lembra M. D. Zabel que para éle a melhor solugio da crise psicolégica ¢ a integracio mais harmoniosa do individuo nos valéres socisis; assim os seus livros se transformam de pesquisas pessoais em estudos sobre ‘a maneira pot que as pessoas defrontam aquéles valores. “O homem dividido ~ 0 rosto © 2 sus méscara, a alma ca sua sombra — nunca é, em Conrad, um individuo e nada mais. Ble se torna, — especialmente em romances de intuitos histéticos ou subentendidos parabélicos, como Nostromo, Under Western Eyes ¢ Victory — uma metifora da sociedade e da humani- dade” (5). “The Secret Siarer” utiliza um método simbélico de pro- jecio, fazendo realmente do foragido o duplo, a outta metade do natrador (0 “duplicate”, diria Mario de Andrade). “Mew duplo”, “meu espinito vestido de cinzento”, “o outro Eu”, (3) Moron Dauwen Zanst, “Editor's Introduction", em The Portable Comad, The Viking Pres, New York, 1947, p- 29 ws “meu segundo Eu”, “Eu proptio”, — séo expresses que Ihe aplcn, morando 2’ claert com qie ent, ns presengs ee nha, a realidade do desdobramento do espirito. Dai uma cum- plicidade imediata, tecida de sussurtos, manobras de despisca- mento, fascinado interésse, identificagio afetiva. Ble esconde © outro no beliche como se estivesse escondendo a si mesmo; fo que permite a0 outro dizer que agia como se houvesse esperado 1 sua Vinda, © que o narrador se sentia “quase tio estranho a bordo quanto éle.” Ante os veteranos hostis ¢ desconfiados, experimentava uma inseguranca que o tirava fora de si, levando-o ase afastar da rotina (que é dos outros, que é 0s outros) € a Se aproximar do imprevisto, da aventura. A essa altura 0 foragido surge do mar, como se emergisse da sua_prépria consciéneia, e éle sente’ mais solidariedade em relagio a éle do que as normas do servigo. O foragido apenas dé realidade 2 divisio do sen ser, que se sentia “mais dual do que munca.” Percebemos assim de que modo a ocasiio, surgida 20 mistério propicio das Aguas orientais, rondando 0 homem isolado moral- Inente ou fisicamente, suscita 2 revelacéo surpreendente dos sub- terraneos do espirito. Citemos ainda o eritico americano que sentiu tio bem alguns dos problemas aqui versados, e se refere 2 um “inimigo” latente nos homens conradianos, “o nosso jinimigo comum”, “saltando de abrigos ignotos, por vézes de esconderijos preparados pelo destino, mas Com maior freqiéncia © gravidade ‘das profundezas imensuriveis da nossa natureza secreta, dz nossa ignorincla, dos nossos séres inexperientes”(®). ‘Mas essa presenga do ser obscaro em face do ser de relacio io termina forgosamente em Conrad (como em Graciliano Ramos termina) por um atomismo ético ou psicolégico, por um relavsmo que disolve a inegrdade pessoal Para le eta a se forma, a0 contrétio, a partic eritneia do Outro, do Duplo que vive em ngs. Bepois que Leggatt deixon 0 navio, nadando para o desconhecido, o narrador se sentiu afinal exor- tismado, ‘senhor da situacio, consciente da sua personalidade total, A accitagio franca da experiéncia, das suas sogestées por vvézes perigosas, Ihe permitiu ésse encontro decisive. “Antes (6) Znses, ob. cit, p. 19. 16 de Leggatt desaparecer afinel, o capitio chegou a conhecer ala seereta com que vive. Sha vide madon. Uma nova visio mnidade rompen através do regime mascarado ¢ impes- soal dos seus dias"¢). a eee Assim, para éle, acima do dever ¢ da coeréncia, su pela educacio ¢ a sociedade, (isto é um dever e uma conrbnca Impostos), hé um risco que 0 homem deve assumir, embora posse desacreditar-se ante os padrdes usuais. Risco que é sto de coragem e desafio, mas exprime algo profundo: um desen- cadear de energias que levam bruscamente 0 ser e 0 ato pata determinado caminho, cuja validade s6 poderé ser calculada pelo proprio agente, © nacrador resolve transgredir« acoberta 0 assassing, fazer déle uma espécie de parceiro escondido, na cum- plicidade do vinculo profundo; a razi0 désse ato s6 poderd ser Seabelecde pela prépis consténclay eo ela, como tribunal ve contas. lo atinge a esta forga intima, a etapa perigosa tata Yencida 6 0 homem'€ homem; 0 navio; conduetio. Com afoiteza para perto dos rochedos, a fim de desfazer-se de Leggatt, que se evade, manobra simbdlicamente 2 um nada do ‘esfacelamento, encontra a corrente favoravel e recebe mas velas © vento que faltava para livréelo do marasmo do Gélfo de Siéo, Ao abandonar 0 respeito humano, enfrentando as reali- dades profundas da alma, o narrador se encontra maduro, senhor da situagio, transpondo a indeciséo inicial que 0 ames quinhava como intruso 20s olhos também simbélicos da tript~ lagio, que sio os outros. “Talvez nada mais pudesse afeté-lo, desde que havi sobrevivido ao ataque dos podéres obscures? (Lord im) Ao cabo de tudo, o homem fntegro, mencionado atris, po consi et, o omen ag, meno ty, Hiscos do homem dividido. Nao como quem fugiu de si mesmo, mas como quem, tendo aceitado as atrages do abismo interior, saiu delas triunfante, pronto para esferas elevadas de humeni dade. Neste caso, 0 homem surpreendido pela prépria imagem, que veio assusti-lo a0 toque da ocesigo, conquista a inteireza, nio em relagio a um dever mecdnicamente aprendido e penosameate OD) Zasity 0b, cit, p. 30. 7 mantido; (como 0 do capitio do Séfora, pélido e impecivel autémato que vem A busca de Leggatt no navio do narrador);, mas em face de si, contra o de diminutive nos padres sociais. Existe portanto em Conrad (como éle afirmou tantas vvézes) uma crenga em valores permanentes 2 que se redaz a ética de cada um; mas de que o juiz supremo é © proprio individuo em face da consciéncia, longe do convencionalismo automético, Gnica amatra dos dois pobres belgas que desmo- ronam em “An Outpost of Progress”. Uma livze concepeio da responsabilidade se manifesta nesse encontro do homem consigo; e ésse encontro € 0 térmo ideal dos atos inexplicéveis, dos bruscos arrebatamentos que chegam a destruir uma vida, mas podem permitir a sua reconstrugio em térmos de nobreza auténtics. Longe do bom rapaz que trilha virtuosamente a5 vias do dever, o homem de Conrad deve fazer experiéncias duvidosas a fim de provar a sua fibra, terminando como fér_possivel Derrotado, como Willems; morto no éxtase dum triunfo todo interior, como Heyst; literalmente desumanizado, como Kurtz, na solitude do coragio das trevas; finalmente integro & hora da morte, como Jim; senhor de si, como 0 narrador de “The Secret Sharer”. “Quem nio conhece as regiées do mal nao compreende grande coisa déste mundo; 0 estéico talvez as ignore, mas o santo bem 2s conhece” — disse Jacques Maritain respondendo & carta de conversio de Jean Cocteau, O mal, talver; com certeza os abismos do mundo ¢ do sxpcto, son. dados. pelos personagens mais significativos de ‘como ftcagdo 9 noomnideie verde, 5 : Os xomawerstas de complexidade deixam freqitentemente @ impressio de que ela ¢ umn caso, um {sto excepctonal ecurioso, Inclusive part o seu grande pattono, Dostoievski, 2 pluralidade contraditria da slma aparece as mais das vézes associada a uma certa teratologia moral ou 20 menos tum certo desequilfbrio da personalidade. ‘Em Conrad nao ocorre ésse_naturalismo infuso. ‘A fra e a novidade de sua obra residem na circunstincia de que a referida divisio ou pluralidade aparece como norma, nio desvie. Em muitos dos seus romances e-contos & 2 prépria natureza do homem que vem aptesentada, implicita ou explcitamente, como um polipeiro de sérey vir- tuais, que se revelam ou aio, dependenda da citcunstincia, __ Sob éste aspecto € muito significative Lord Jim, no qual tals problemas aparecem ligados 20 j6go dos trés elementos aqui apontados: 0 iihamento, 2 ocasiéo, o homem surpreendido. Sobretudo em virtude da técnica narrativa, que transporta para a fatura a visio do homem fragmentirio, a busca de unidade, de tal modo que o que até agora foi analisado como conieiido aparece confirmado no nivel da forma. E s6 entio podemos 9 ver que a eficicia da arte de Conrad nto é devida & simples pro- osigio de uma atitude de vida; mas 20 fato de traduzi-le con- Forme uma certa maneira de narrar, que se toma parte indis- solivel do que 0 romancista quer dizer, pois é afinal de contas, © que diz eletivamente. Em Victory n6s encontramos de ma- neira talvez ainda mais pura o jdgo dos tés fatdres; mas no encontramos a técnica do estilhagamento. Em Chance ela apa- rece mais refinada do que em Lord Jims mas néo ocorre 2 constelacéo propicia dos fatdres. O livro conta a histéria de um ofical da marinha mercante ‘que abandona o pésto em momento de perigo. Julgado, perde © cettificado, leva uma vida precéria, fugindo sempre que identificado, até recolher-se a Patusan, lugar perdido no interior da Malisia, L4, onde se ignora o seu passado, torna-se uma espécie de Arbitro forte ¢ bom, visto pelos natives de um Angulo que o redime. Um grapo de aventurciros europeus asselta a povoacio; Jim (que se mostra estranhamente fascinado e inti~ ‘midado. pelo seu chefe, Brown), depois de neutralizé-los concorda em os deixar partir livres. No caminho éles assassinam o filho do chefe indigena a quem se alitra como conseleiro ¢ amigo Expiando esta culpa final, deixa-se matar pelo velho. © cemne do problema de Jim (que se debateri aqui apenas em Fangio da primeira parte do livro, antes da ida para Patusan) j foi apontado nas paginas anteriores. & 0 do homem normal- mente digno, sequioso de aventaras brilhantes, 4 espera do momento ideal para dar 2 sua medida; © que no entanto falha quando & pésto realmente & prova, sem saber exatamente por gue. i le era imedizto de um velho vapor enferrujado, o Patna, ‘comandado por um patife alemfo com mais trés brancos maqui- nistas e tripalagéo nativa, que conduz. oitocentos peregrinos para Meca, Certa noite ouve-se um baque surdo. Investigando ‘© que houvera, Jim verifies por um portalé que a chepa de ferro, fraca, rolda de oxidagi0, havia cedido a algum impacto ¢ a dgua entrava, Os peregrinos dormiam, espalhados pelos tombadilhos; os botes de salvamento eram insuficientes; 0 tempo de afundamento provivelmente tio répido que seria im- posivel baixtlon. Vengo 2 situagio, o comandante ¢ 08 ma- 80 guinistas tratam de safar-se escondido de Jim. Mss como a roldana do bote nfo funciona, éle acaba por chegar e presenciar 0s esforgos grotescos que fazem para deseé-lo, sem nisto tomar pitts, Sem intengio definide, recusindo aula os outros, pars- lisado pela perplexidade da situagio. Um dos homens morre de emogio; 0§ outros, que jé haviam’conseguido atriar 0 barco, no percebem eo chamam repetidamente. Mas £ Jim quem, uma decisio brusca, salta a amurada e vai cair néle; o bote se afasca ¢ todos tim a impresio de que a nave afundara dali a momentos, pois além da chuva © ma névoa, o adernamento ocultava a tz de vigia aos fugitivos. No dia seguinte sio reco- Ihidos por um navio ¢ Jim, passado certo tempo, fica sabendo que o Patna no afundara, mas féra rebocado a salvo por um cruzador francés. £ a vergonha, 0 crime profissional, 0 julga- mento, a carreira acabada, a pétria interdita pelo pudor de encontrar os parentes e amigos. Sendo 0 Gnico homem de bem entre os brancos do Paina, © rapaz estava moralmente isolado a bordo pela impossibilidade de estabelecer contacto com os outros, além de’ fisicamente isolado na imensidio do Oceano fadico, — “quieto, sem um ‘tremor, sem um deslizar, sem uma ruga, — viscoso, estagnedo, morto.” Quando surge @ ocasiao inesperada, cla nto vem como. conjuntura adequads a0 herofsmo brilhante, nio traz nenhuma das caracteristicas que cercem os fcitos, nas natrativas exem- plares dos livros de belas acdes. & apenas 0 momento, como qualquer outro, que éle niéo previa (como nio se prevéem os momentos obscuros), mas que é decisivo, que impée uma opgio de vida ou morte. B al, ante essa emergencia que nio era a ideal para que se tinha preparedo longa e confiadamente, um ‘Jim inesperado, que 0 surpreenderé ¢ atormentaré durante 0 resto da vida, reponta e age como os patifes que escapavam do dever, abandonando ao seu destino 0 navio, os comandados, ‘08 oitocentos peregrinos maometanos, Por que ? — indaga Jim € nés com éle, Esta pergunta sem resposta toma quase a métade do romance e se processa segundo uma combinagao muito complexa de pontos de vista, ou focos narrativos, envolvendo cenas, didlogos, deseric6es, subordinadas a uma extreordinéria técnica’ de cimara lenta e desfechos brus- br cos, que precede de quatorze anos as anilises de Proust ¢ que talvez se tenha desenvolvido, ao menos em parte, sob a influéncia dos longos debates explicativos de Dostoievski(®). Do ponto de vista formal, o problema é 0 da correspon- déncia eatze uma visio do homem e os meios técnicos adequados para exprimi-la, Como transmitir de maneira viva, nfo no plano menos convincente da exposigio pura e simples, a divisto do ser, 08 abismos, a fragmentacio que transforma cada um de nds numa precdria unidade, sempre prestes a romper-se? Conrad rejeitoa a introspeceéo, que funcionaria no caso como uma espécie de panactia clistica. Se recorresse a ela, de duas uma: ‘ou Jim seria capaz de se explicar, e nesse caso néo haveria problema, transformando-se 0 romance numa confisséo clati- vvidente; ‘ou nfo seria capaz. de se interpretar, ¢ neste caso apenas reafirmaria incessantemente o problema.” O romancista pos resolutamente de lado, portanto, 0 Angulo subjetivo (que rnunce foi do seu agrado) 'e optou por angulos objetivos, isto 6 que focalizam o Sujeito de fora pars dentro, mesmo quando st identificam idealmente 3 sua personalidade. Gragas a éles péde, em compensacio, reinstalar um maximo de subjetividade, a0 desvendar Jim largamente, mas néo de maneira direta, O Angulo € objetivo e indireto: 0 protagonista fala a Marlow, ‘que conta a0s amigos o que éle falou, ¢ 0 que os outros faleram (8) E a segunda vez que saludo 3 influfacia dése sébre Corman, que “a negava tensemence’'e considersva Dostoievski um paradig’ fra do que havia. de repelente na “alma russa” para éle, polonés, fitho de"tma vicime do carsmo. No entanto cla & evidente, ¢ muitos erfticos a reconhecem, £ 0 caso de Joseph Warten Beacr, em uj Sesleore The Tues Century Nooeh, Applemy-Cenmary-Crofs New York, 1932, cap. XXIX, "impressionism: 7p. 340, Lemos? “Trlves Ihe depose o mole pecicamente eligi) do misicime ‘de Dostoievsli. Todavia, no & pocsivel que éle tenha sido afetado incons~ ‘cientemente pelo derejo muito natural de desmerecer um artista pelo ‘qual foi influenciado de maneira tio, grande e tio ? Reromando alguims afirmacoes de Beach e desenvolvendo o tema sobre- ado no ideoldgico, Irving Howe dé 20 problema um tratamento ddecisivo em Politics and the Novel, Horizon Presse, New York, 1957, cap. IV: "Conrad: Order and Anarchy”. A influéncis € também reconhecién por Albert Guiza, tlvez 0 seu melhor critico no momento: Conrad Bhe Novelit, Harvard University Press, Cambridge, 1958, pasrim. 82 déle. Isso deixa sempre 2 possibilidade de que o narrado seja em parte uma visio pessoal de Marlow, néo a’ manifestacéo pura de Jim. E téda essa parte do livro € um mundo de aspas dentro de outras aspas, depois do inicio em que fala o narrador onis- ciente(?). ‘Se encararmos 2 otdem da narrativa, veremos como essa técnica se apoia num jgo temporal bastante complexo, do qual se poderé ter uma idéia clara pela representagao alfabética de J. W. Beach. Imaginando a seqiiéncia normal de um relato ‘como uma série de etapas que se ordenam segundo as letras do alfabeto, de A a Z, a seqiténcia de Lord Jim @ a seguinte (cada virgula marca um’ capitalo): KLMP, WA, E, B, E, E, H, GD, HJ, FE, F, E, F, F, E, FK, 1,1 Ry I, KL, MN, N, Q, QPO, OP, P, QP, P, P, P,Q, P, 2.0. R, ZV, YX, 8,5, §, TY, U, U, U, WXY (ID) Gragas a ésse jdgo, temos 2 manifestagio tangivel de uma realidade interior patcelads, complexa, que aos poucos vamos compreendendo com dificuldde, ¢ que se completa por uma realidade exterior igualmente multiple, cuje abordagem € feita de maneira intrincada e descontinua. Fiquemos na primeira parte do livro. No comégo, fala 0 narrador onisciente, que entra diretamente na apresentacio de Jim, na fase que (saberemos depois por inferéncia) sucede 20 fen julgamento ¢ precede a ida para sertio de Patusen. Bose Jim, ativo agenciador dos negociantes com navios, tinha a pecu- iene ae teeta ee cose Ha PO Si tes eri, om hi, he er Rs ain com re iis ce impedes Yue lta rosin = eda adhe oe etn, Ort k Whken ren tT a oar, Te A ade fe EON EES Coat net arte ie areca ses, geabpoee aha eo se tei. aa oy Moo Lovee & Renoons Als mms eras) rt Ie en Joep 00) We bea ana 83 liaridade de ir mudando para mais adiante, sempre que vinha & luz uma circunstincia que 0 aborrecia. E com uma aluséo s6bre 0 seu retiro na jingal malas, o narrador emont 2 sua oxigem ¢ formacao, relatando um fato que contém em germe téda a tragédia futura: 2 sua hesitacdo em acorrer ao bote de salva- mento numa emergéncia, durante o periodo de aprendizagem naval. Depois vem a ida para o Oriente, um desastre que o deixa hospitalizado por algum ‘tempo, o engajamento como imediato no Patna, Descrevé entéo a navegacio rumo & Aribia, até a noite do acidente, ocorrido no momento em que ia ser rendido pelo comandante no quarto de vigia da madrugada, Af ocorre tum salto temporal ¢ somos levadas & sala do ingiiérito, onde 0 vemos responder a alguns pedidos de esclarecimentos sobre @ ocorréncia. Os seus olhos cruzam os de um espectador, 0 capitulo acaba, 0 narrador onisciente desaparece e a narrativa Bassa ser feta por te cxpectador, Marlow. Com a palvrt farlow narra como vin pela primeira vez o estranho grupo dos homens do Patna ¢ alguns episédios que seguiram. Volta a0 inquérito, narra a reaezo violenta de um dos membros da comissio, 0 comandante Brierly, narra o que 0 imediato Jones Ihe contou sdbre a morte déste, volte novamente ao inquérito, narra encontro com Jim, transmite o longo relato déle, entrecortado de comentitios. ‘A essa hora ficamos sabendo como Jim viu o portalé inundado © o que ocorreu até a fuga no bote. A seguir entra o relate, ouvide muito mais tarde ¢ casual- mente, de um tenente francés que di os elementes finais do caso (uma das cenas mais admirSveis do livro e de tOda a obra de Conrad). Terminon a conversa com o rapaz ¢ Marlow relata como traton de Ihe arranjar um emprégo, que o conduz 3 vide de agencador, seer as primeit, inh do vo Com isso estd encerrado 0 bloco inicial, abrindo-se a segunda e ltima fase, com a vida em Patusan, onde vai intervir uma complicagdo ainda maior de narrativas indiretas, cartas, ete. Como se vé, & um zigue-rague eronolégico descontinan, ‘com episédios interrompidos, embutidos uns nos outros, viscos por diversas mediagées narrativas. Um acontecimento iniciado vai se esclarecer muito depois, o fim aparece antes do coméco, © foco varia enquanto o tempo se estende em seqiiéncia ou 20g 84 saltos, as premonigées ¢ as antecipagdes dio 20 relato aquéle esteemecimento de que Contad é mestre. Se os séres e os fatos so misteriosos, a via para compreendé-los igualmente com- plexa e estranha, formada de pedacos achado: pelos quatro eantos do mundo, — da Indie 2 Indonésia, da Indonésia & Austrilia, da Austrélia 4 Indochina, porqué do ato de Jim é estithagado numa série de longas conversas, com desvios élucidativos; ¢ a resposta néo é dada. Fica sepaita nas entrelinhas, com bastante clareza pata perce- bermos que se trata de uma daquelas invasées da subjetividade oculta, daquelas inesperadas visitas do Outro, gue se materi lizam em *The Secret Shares”. Se o ser é miltiplo ¢ no 0 podemos apreender, a melhor aproximagio narrativa seré no s atacé-lo por varios lados, mas, ainda, mostrar a sua similitude com outros séres (duas maneitas de testar e pesquisar 198 fragmentos que podemos conhecer). Por isso, apenas. uma parcela dos fatos é vista pelo narrador onisciente, que tem 0 privilégio de revelar o que Jim sentia, mas que’so usa éste privilégio para pormenorizar’ cenas qué, afinal, poderiam ser conhecidas ¢ relatadas por qualquer am: ‘a infincia, a formagio fem breve escérgo, a noite no Paina, o choque, 2 verificagio do acidente, a audiéncia da comissio de inquérito. Ai, ésce natrador de oniscéncia limitada para, voltando apenas um pouco no segunda parte; mas mesmo naquele inicio no é fixo, ¢ 0 seu Angulo varia. No Patna, semelha um observador ideal que sobrevoa 0 navio e depois baixa para presenciar o que néle ocorre; na sila de audiéncia & apenas um espectador mais esclerecido, que entretanto nada entende © apenas presencia Quando se trata de momentos e seqiiénelas decisivas, Mar assume a palavra, ¢ € do Angulo subjetivo déste que a reali se desdobra, sem nenhuma garantia de objetividade. Os atos sio mostrados € comentados segundo o arbftrio de um testemunho, seja 0 do préprio Marlow, seja o de Jim através déle. Isto fonciona como afastamento da certeza, que reforga singular- mente a verossimilhanca. Jim nao sabe por que, e tenta saber até encontrar algumas férmulas, que bem podem ser recionali- zagées. Marlow, & medida que ouve, faz um esforco de com- preensio que também pode ser deformador; ¢ nés recebemos as 85 uss deformagées, construindo com elas © nosso conhecimento © 0 nosso juizo. A realidade aparece como de fato é uma fonte de conhecimentos possiveis, mas no necessiriamente certos, sObre os quais levantamos os ediffcios do cardter e da conduta, Para esclarecer 0 ato debatido, 0 romancista desdobra a narrativa em dois planos, sendo que 0 segundo funciona (como veremos) a0 modo de uma réplica, ou reproduc aproximada, que repercate o primeiro. Neste primeizo plano esth Jim, que narra minuciosamente, alongando por_péginas ¢ paginas os poucos minutos que durou a acio no Patna, — conforme um feimpo que parece deter-se, subdividido em momentos infin. diveis. Gragas a isso & possivel decompor o ato nos instantes que mio se medem, que se vivem, e que depois a meméria gradua 4 sus maneica, Assim como na vida de Jim aquéles momentos foram tudo, (pois decidiram-na duma vez para sem- pre), no romance éles'se estendem como se tivessem a duracio de anos, como se cada parcela infinitesimal, dado 0 seu signi- ficado, 'se transformasse num espago formigante de fatos sentimentos, Por isso que a natrativa nfo ¢ continua. Marlow entremeia comentarios, estabelece 2 ligagio de fatos marginals, deixa Jim para trazer o depoimento de outros: o oficial do cruzador francés, que fornece as pecas faltantes para completar S sequencia dos fatos; o mediate Jones, que conta a ragedia do capitio Briesly. 6 Exsre Batenty compe por assim dizer um segundo plano, ou o plano de ressonincia di natrativa, © a sus pesaza€ fundamental nfo apenas par «visto do home dividido, como para a técnica dividida que Ihe corresponde. ‘A'sua fungio € a de um misterioso comprovante de Jim, sendo de certo modo o seu negativo, no sentido fotogrsfica. “A pei- meira vez que aparece, no sebemos quem seja; do angulo de Jim, exposto pelo narrator, é apenas um dos peritos que intc om o magistado a comisfo de inquérito sObre o caso do Patna. ‘Trata-e por enquanto de um “homem forte, desdenhoso, repol- treado na cadeira, com o brago esquerdo bem estendido, rafando delicadamente as potas dos dedos num mataborrio.” Mais diate, surge a narrativa de Marlow com a sua identidade, € somos informados de que & 0 Grande Brierly, comandante do melhor navio da Blue Star Line, belo, forte, sereno, competente, bravo, cheio de honrarias © recompensas, invejedo por todos Através das suas converses com Marlow, conhecemos 0 seu avésso ¢ presenciamos a sua inquiesude com o interrogatério, {ue Feputa perigoso, vergonhoso, comprometedor para a pro 87 fissio; quet que convenga o tapaz a fugir, com dinheiro dado por éle, Brierly. Percebemos que se seate exposto no caso de Jim, com téda a sua honorabilidade em risco, possufdo por um sentimento estranho de inquievacao, que lhe ‘abala a superiori- dade desdenhosa, a perfeita linha de conduta. E vem 0 choque, no curso da narrativa em que Marlow o vai caracterizando: “Os miasmas da vida podiam menos sObre a sua alma suficiente do que 0 arranhao de um alfinete sébre um rochedo. Era uma coisa invejével. Vendo-o a0 lado do magistrado palido ¢ inex- pressivo que presidia 20 inquérito, era como se a sua seguranca apresentasse, a mim e a0 mundo, uma superficie tio dura quanto a'do granio. Suicidou-se alguns dias mais tarde.” ‘Com efeito, depois de tomar as providéncias do dever, 0 rutilante Brierly também salta a amuzada, como Jim, — mas para a morte. Sem motivo, sem justificative, sem qualquer explicagio, — fazendo-nos lembrar 0 nfo menos imponente Ri- chard Coty, do poema de Edward Arlington Robinson. A inquietude que 0 secudiu durante o inquérito abre caminho, wia, para uma interpretagio muito cabivel dentro dos mé- todos de Conrad, e que io escapou 8 crftica(""). Como Leggatt para o jovem comandante de “The Secret Sharer”, Jim repre- senta para Brierly 0 Outro, o duplicata obscuro e’temivel em que se desdobra o ser, e que a oportunidade traz & tona da cons- ciéncia. Sem necessidade do menor comentério, nés sentimos que a sua integridade se abalou até 9 alicerce pelo contacto de (11) £0 problema da resontncin moral exposto de mancira exce- lente no citadlivro de Albert Guna, p. 4-151, oode very resunldo sas ava: “Drammen '¢ecaman Lord” amt Fistria de stopatis, projogies campatas... e leaidasen. ‘A telaho central 4 de Maslow com Jum. (-} Ble 6 devocsdo's jim come seideve sot a tum outro ser potencal, ao ser criminosamene aco. que poses side guint. (...) Marlow nko fica fatalmente paralsado ou imoblveade pot fice jovesnduplo, mas o Grande Brierly sin, (...) Be tnha recontecido em fim um insoiperado ego poteneil; tnks sikado em st mesmo, pels primeira yer” Allés'© propfio Marlow se sefore = fimio mais mégo", imaginando que a pluie The pedis coms alle (0.28) Nouteo paleo SNio wt porate Ls ampre me puree ambico (Ga juvenrude). ja esta a cause real do meu interése no een destina.” (p. 265). 88 tuma realidade perturbadora (0 ato de Jim), despettando néle Deus sabe que confrontos e clarividéncias. Trate-se de ume solidariedade misteriosa entre os séres, que, muliplica o desdo- bramento interior em ressonfincias sem fim, que nde somos nfo apenas Intimamente divididos, incon. ‘gruentes, 2 despeito de unidade imposta pela norma social, mas sentimos’ nos outros parcelas de afinidade que nos revelam « nds mesmos, como se todos os outros féssem os nosses duplos por alguma parte do seu ser. O maior horror de Jim, [por exemplo, reside no médo de ser equiparado aos lamentéveis malandros do Paina, que além de tudo fugiram a0 inquérito, Geixando-o $6 para agitentar o péso do sto que foi déles, antes de ser déle. Ato a que aderiu, todavia, nivelando-se. Por isso pressente que hi em si alguma coise de comum com aquéles homens: 9 gordo e sebento comandante; 0 mecinico-chefe, corroido de bebedeira; segundo mecinico, trémulo de co- vardia, No final do fivro, em Patusan, 0 mesmo sentimento de solidariedade escusa e inevitével o enfraquece diante do arzo- re Brown, que lhe pergunta se a sua consciéncia estava Finpe to pono de Ihe permitir julger os outros; ¢ que alude idiosamente & comunidade incvitivel dos homens. “Sendo igualmente um pétia social ¢ um chefe, Brown apresenta uma semelhanga grotesca com Jim; ¢ o encontro entre ambos pode ser comparado com a cena do bote salvavidas do Paina, como O segundo © notivel exemplo no livro da mencina dramitoa e visual pela qual Conrad traduz. uma posigio psicolégica, A esperteze de Brown dé resultado, porque Jim, um homem. Filia, ¢ sfo oor sobreaatural de Leads no pode desta © sew passado, mesmo numa terra sem passedo” (2), (12) Paul L. Wax, 0b, ct. p. 59, Diz, Albert Goinano, comen- tando @ susio” de Brciy: “A. puncioat funlo. do endo nos, Prepare ‘pare ‘compreender, ou ao menos acetan, a paralisadors Wentlicaglo de Jim’ com 0 Gensleman Brown, ¢ a, recut suicida. de Iutar com éie". (ob, cit, p. 149). No confrorto com Brows, suryer “ecos de uma Yor apagada'deatro déle (...) ligado a Brown por uma culpa comam Jim arruina Parusin © & morto pelos aldedes". Walter Allen, 0b. cit, p. 307. 89 O suicidio de Brierly, seguindo 4 violenta e inesperada reagio moral, fornece um elo decisive 4 cadeia de ecos ¢ ressoniincias, que estabelecem uma solidatiedade profunda entre todos os homens, por diversas que sejam as suas condutas aparentes. Sob a firmeza desta, hd ume gradacao de matizes ‘morais que nos aproximam uns dos outros. Assim, num extremo, bf os malandros do Patna; hi depois 0 honesto Jim, que agiu ‘um momento como éles; hé Brierly, que nunca rompeu, ao que saibamos, a linha de comportamento, mas que se matou a0 con- tacto da’agio de Jim; hi Marlow, que resistiv, mas comenta a cada passo com os amigos que Jim “era um de nés”, um homem de bem, lembrando que na mocidade muitos estiveram expostos a atos’semelhentes, Marlow se liga a Jim, protege-o, comprende-o apesar de sentir a gravidade do que éz, porque tem 0 vago senso das obscaras possibilidades interiores. E tam- bém uma curiosidade pelo outro que parece projecio ¢ o leva a deixar de lado as aparéncias, 2 fim de procurar 0 essencial de cada um. “Nada mais terrivel do que observar um homem que foi apanhado, nfo num crime, mas numa fraqueza mais do gue criminosa, HA uma firmeza estabelecide de carter que nos impede de ser criminosos num sentido legal; mas da fra- jeza desconhecida, talvez suspeitada, como em certas partes Jo undo suspeicamos que em cada’ moita hi uma serpente mortifera, — da fraqueza que pode estar dentro de nés, fisca- lizada ow nio, conjurada submissamente ou virilmente despre- zada, reprimida ou talvez ignorada durante a metade da vida, — desta fraqueza nenhum de nés esté livre.” “Seria por minha propria. causa que eu tentava encontrar a sombra dalguma des- Culpa para ésse rapaz que ea nunca tinha visto antes, mas cuja simples aparéncia acrescentava um toque de preocupagao pessoal aos pensimentos sugeridos pelo conhecimento da sua fraqueza, dela fazendo algo cheio de mistério e terror, como: o togue de tum fado destrutivo, pronto para atingir todos nés cuja juven- tude, a seu tempo, tinba sido parecido com a déle?” “fle era tum de nés”, “Ble era um de nds”, — diz o préprio autor falando do seu personagem € encerrando o preficio do livro com estas, palavras, Por ai, éle proprio se inclut humanamente na cadeia de Fessondncias ¢ afinidades, levando-nos @ nos incluirmos também, go i | | | I ra fazer do ato de Jim um capitulo das nossas virtualidades. ‘odds os estudiosos a fepetem por sua vez, como frase-chave, que nio significe todavie apenas: “éle no fundo era um homem de bem, da mesma classe, parecido com o que somos pela profissio € as convicgdes.” A luz da interpretagio proposta neste ensaio, significa sobretudo: “também nés somos feitos de uma massa que nos leva potencialmente a atos semelhantes.” Esta vinculag¥o profunda manifesta a teoria implicita em Conrad, j& exposte acima: a perturbadora complexidade do ser, que 0 leva a surpreender-se no ato imprevisto, é normal, iio excepcional. Ela se exprime na constelagdo de personagens que testemunham virtualmente uns sObre os outros, ¢ determina © emprégo do éngulo narrativo miltiplo. Concepedo ¢ técnica se fandem intimamente; a fregmentagio psicolégica se traduz por um tempo fragmentado, uma narrativa estihacada, uma multiplicidade de pontos de vista, que envolvem a realidade, dissociando-a para recompé-la. A ‘realidade & sempre vista através de alguém, sem que o prdprio romancista a exponha diretemente nos momentos decisivos, eo intermediério. final € a morte, que completa e realiza 0 personagem, dando & sua vida um sentido que antes nao tinha. Ela é nao apenas 0 dado final para o conhecimento, mas o fim do tempo para o ser. Na morte no hé mais incidentes, nfo ff mais seqiiéncias de fatos, nao hi novos atos do que morreu. Heyst, Razumov, Decoud, Almayer, Kurtz, Jim. $6 a morte os explica, sobretudo quando 2 sua vide se tora uma preparagio inconseiente para ela. Jim evitou-a no Patna; por isso ela passe a ser a sua meta involun- trie, ¢ éle 56 se livra do Outro e se reconcilia consigo quando a encontra depois de uma longa depuracéo, aceitando-a como sacrificio consciente, Morre pagando um novo é:r0; mas um érro de magnanimidade e de rendincia, que redime a catéstrofe pela sobrevivéncia moral. gt

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